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São Paulo, sábado, 18 de novembro de 1995

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Franceses se suicidam para "marcar


posição"
SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Muita tinta já foi gasta com a morte do filósofo Gilles Deleuze e eu


nada teria a acrescentar se, em meio a tantas orações fúnebres, alguém
tivesse dado conta da estranha tendência ao suicídio dos intelectuais
franceses.
O teórico marxista Nicos Poulantzas, nascido na Grécia mas
parisiense de adoção, chegou a ser lembrado (ele se matou em 1979),
porém num contexto trágico emoldurado por acidentes (Barthes) e
causas naturais (Sartre, Althusser, Foucault).
Ninguém evocou as mortes recentes, e quase simultâneas, de Guy
Debord, Sarah Kofman, Roger Stéphane e Gérard Voitet. Todos
franceses. E suicidas.
Sobreviventes de maio de 68, cansaram-se de chocar pelos meios,
digamos, tradicionais e apelaram para aquilo que Albert Camus
qualificou de o único problema filosófico realmente sério. Ao
contrário de Deleuze, não se mataram para sustar uma situação física
insuportável, mas para sublinhar algum aspecto vital de suas obras ou,
como se dizia antigamente, para marcar uma posição. No mínimo
contra a igreja, que há 15 séculos, por inspiração de santo Agostinho,
enquadrou o suicídio na categoria de pecado mortal.
O escritor Roger Stéphane (ligado a Gide) e o editor Gérard Voitet se
confessaram desiludidos com os rumos tomados pelo governo
Mitterrand. O primeiro foi mais explícito: abominava todos os
monumentos modernistas que Mitterrand espalhou por Paris. Quem
foi que disse que só as paisagens são vitimadas pela má arquitetura?
Debord, principal teórico do Situacionismo Internacional e inimigo
número um da "sociedade do espetáculo", optou pelo paradoxo.
Vingou-se do que aí está com um gesto que é sempre espetacular,
mesmo se cometido da forma mais discreta possível. Não surpreendeu
seus pares, simpáticos ao aspecto prometéico do suicídio, nem os que
acompanhavam suas crises de depressão, cada vez mais profundas e
alcoolizadas. Passara seus últimos cinco anos anunciando que sairia
de cena, pois julgava seu trabalho encerrado.
Igual motivo foi invocado por Sarah Kofman, austera filósofa ligada a
Jacques Derrida e vítima, como Debord, do que os entendidos
chamam de melancolia terminal. Debord saiu de cena comparado a
Rimbaud, Lautréamont, Artaud e outros "grandes poetas
revolucionários", e com a insígnia de "suicida da sociedade". Kofman
não obteve honra menor: seu suicídio foi encarado nos meios
acadêmicos franceses como um gesto genuinamente pós-moderno.
Kofman venerava Nietzsche, que, como se sabe, considerava o
suicídio um grande consolo para noites difíceis. É possível que o
desprendimento com que o filósofo alemão encarava a morte (mais
digna, segundo ele, do que sentir medo) tenha levado alguns de seus
seguidores à auto-eliminação, mas seria injusto atribuir a letomania
dos franceses à sua influência.
Nietzsche tinha apenas 11 anos quando o poeta e escritor romântico
Gérard de Nerval enforcou-se num poste de rua, dando início a uma
tradição.
Ou melhor, consolidando uma tradição. Afinal de contas, Alphonse
Rabbe veio antes dele. Rabbe não era um autor da envergadura de
Nerval, precursor do simbolismo e do surrealismo, mas foi um dos
primeiros a teorizar na França a favor do suicídio, receitando no seu
"L'Álbum dún Pessimiste" a melhor maneira de se matar.
Um século depois, o vade-mécum de Rabbe ainda era consumido com
mórbida fascinação pelos intelectuais parisienses. Especialmente
pelos surrealistas, que por sinal enterraram três figuras de proa -
Jacques Vaché, René Crevel e Jacques Rigault- no panteão dos
suicidas.
Volta e meia a França surpreende o mundo com um novo Rabbe. O
último de que tenho notícia chamava-se Claude Guillon, que também
achava que eliminar a própria vida é uma reivindicação
revolucionária. Ao estrear como jornalista, há pouco mais de 20 anos,
foi logo anunciando: "Quando eu crescer, vou me suicidar". Como já
tinha 23 anos, a promessa soou como uma boutade.
Em vez de se matar, Guillon fundou o "Comitê Morte Serena". Tinha
31 anos e pouco mais do que isso quando, de parceria com Yves Le
Bonniec, publicou "Suicídio, Modo de Usar", best seller instantâneo
dos mais polêmicos que os franceses já leram.
À frente do Comitê, Guillon empenhou-se em desqualificar
publicamente os métodos mais comuns de suicídio -enforcamento,
fogo às vestes, saltos de grande altura- por serem brutais e dolorosos.
No livro, ensinou quais as maneiras mais eficazes, recatadas e
indolores de pôr termo à vida, listando 60 remédios à venda em
qualquer farmácia (pílulas contra enjôo, xaropes antialérgicos etc.),
com as doses e misturas adequadas, sem desprezar venenos
tradicionais como o arsênico e a estricnina.
Meticuloso, mediu o tempo que cada um dos coquetéis letais leva
para executar o serviço e selecionou os ambientes mais apropriados
para o gesto extremo. Como bom francês, recheou seu guia com
digressões históricas e filosóficas, remontando a Sócrates, a mais
famosa vítima da cicuta.

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