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Prolegomenos
Alguns dos livros de Foucault foram editados tendo como base as anotações
feitas pelos seus alunos, das suas lições, como eram chamadas as aulas ministra-
das no Colégio de France, o que não é este o caso.
Geoffroy de Lagasnerie, é filosofo e Doutor em sociologia pela École des
Hautes Études en Sciences Sociales, é professor dessa disciplina no Institut
d’Études Politiques de Paris e pesquisador vinculado ao Departamento de Ciên-
cia Política da Universidade de Paris 1/Panthéon Sorbonne.
Lagasnerie neste livro como que faz uma síntese (interpretação) dos dois
últimos livros de Foucault – “Segurança, Território e População” (1978) e “Nas-
cimento da Biopolítica” (1979) extraindo desses livros, uma análise crítica da
forma de abordagem utilizada pelos críticos do neoliberalismo, o que denomina
de “a última lição de Michel Foucault”.
O livro com 165 páginas, foi estruturado com um prefácio, introdução e
14 tópicos em sua maioria com duas ou três páginas. Procurou-se nesta resenha,
manter a separação por tópicos, tais como definidos pelo autor, e em algumas
ocasiões fundidos, visando uma melhor fluidez e melhor entendimento do texto
Prefácio/Introdução
A publicação, em 2004, do curso de Michel Foucault, “O Nascimento da
Biopolítica”2 imediatamente, estabeleceu-se como um marco. Neste conjunto
1
Pesquisador Associado do Laboratório Especial de História da Ciência do Instituto Butantan. Conta-
to: Ivomar.duarte@butantan.gov.br
2
Biopolítica é o termo utilizado por Foucault para designar a forma na qual o poder tende a se modi-
ficar no final do século XIX e início do século XX. As praticas disciplinares utilizadas antes visavam
governar o indivíduo, enquanto a biopolítica tem como alvo o conjunto dos indivíduos, a população.
A biopolítica contrasta com os modelos tradicionais de poder baseados no uso da força, da coerção e
da ameaça de morte. Ela representa uma “grande medicina social” que se aplica a população a fim de
controlar praticamente toda a vida das pessoas: a vida faz parte do campo do poder. O pensamento
medicalizado utiliza meios de coerção que não são meios de punição, mas meios de transformação
dos indivíduos, e toda uma tecnologia do comportamento do ser humano está ligada a eles. Permite
aplicar a sociedade uma distinção entre o normal e o patológico e impor um sistema de normalização
dos comportamentos e das existências, dos trabalhos e dos afetos.
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A última lição de Michel Foucault, de Geoffroy de Lagasnerie
Uma Transgressão
Durante o curso “Nascimento da Biopolítica” no Colégio de France no pe-
ríodo de 1978-1979, Foucault propõe aos alunos a leitura e a análise dos princí-
pios teóricos do neoliberalismo.
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O problema apontado: Como elaborar uma teoria radical, uma filosofia crí-
tica e uma prática emancipadora na era neoliberal?
O curso é “neutro” e o filósofo em suas aulas não oferece nenhuma crítica
ao neoliberalismo, apesar de suas críticas severas ao fascismo, marxismo e psi-
canálise. Na aula de 07 de março de 1979, por exemplo, ele fala que a ideia de
imposto negativo (renda mínima) atribuída ao Welfare State Europeu, é na ver-
dade uma ideia do neoliberalismo norte-americano. Discute a política de Valery
Giscard D’Estaing e, para seus adversários, esse seu posicionamento traduziu
uma espécie de aprovação tácita ou então em desembarque “à droite”.
Lagasnerie entende que, com esse curso, Foucault mais uma vez transgrediu
uma fronteira profundamente enraizada no campo intelectual, uma espécie de
“muro”, pois somente os vilões é que vão ler os teóricos liberais e neoliberais,
considerados como autores proscritos. Segundo o autor, Foucault colocou na
berlinda um padrão enraizado no espaço da esquerda, razão pela qual foi visto
como “direitizando-se” ou pelo menos, afastando dessa linha de pensamento.
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O mercado onipresente
O projeto neoliberal é a “mercadização” de todas as relações sociais. Saúde,
educação, cultura e lazer, tudo regulado pelo mercado. O contrato e a troca indi-
vidual devem ser valorizados em detrimento de todos os outros tipos de relações
humanas, bem como dos modos alternativos de alocação de recursos. A principal
e hegemônica forma social válida é o mercado. Essa é a utopia mercadológica
segundo o autor.
Isso posto, o autor afirma que o neoliberalismo é uma ruptura e uma des-
continuidade com o velho liberalismo, anterior a 1945. O neoliberalismo coloca
todas as esferas do Estado sob a égide da economia. É a economia que vai “refun-
dar” a política e que vai determinar as formas e a natureza da intervenção pública.
O liberalismo e o neoliberalismo colocam a questão da “liberdade” de forma
privilegiada, sempre associando-a com a propriedade privada e aos direitos naturais.
Assim, na visão neoliberal, a interferências do Estado (regulação, impostos, etc..) na
maioria das vezes, interfere negativamente no funcionamento da sociedade.
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neas que por vezes escapam, do conhecimento humano. A rigor, a teoria neoli-
beral constituiu uma doutrina cética.
Segundo Lagasnerie, Foucault reencontrou no neoliberalismo a preocupa-
ção de adotar atitudes de estar sempre atento, aberto e receptivo à multiplicidade
de fatos que são elaborados no mundo social.
As teorias de pretensão universal e as grandes narrativas mascaram e de-
formam a realidade justamente no momento em que pretendem apreendê-la.
Segundo o autor, a intenção de Foucault é alforriar o pensamento – de mitos e
atitudes que impedem a compreensão e a radicalidade – obsessão pela coerên-
cia, valores coletivos, sentidos da história, busca do universal, do geral. Tudo isso
impede uma clara visão das singularidades (Lagasnerie, 2013, p.110).
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O mesmo vale para a política penal, vai indicar o autor de ”Vigiar e Punir”.
Ao aplicar o raciocínio neoliberal à política penal os economistas percebem que:
diminuir a delinquência decerto é socialmente benéfico, porém essa luta tem
um preço (um custo), em termos de efetivos policiais, funcionamento de justiça.
Assim a ideia de acabar com o crime identificando e punindo o conjunto dos cri-
minosos é absurda. Os setores envolvidos – empresas de segurança, seguradoras
de roubo de veículos, escoltas patrimoniais, e outras – além dos aparatos legais
de policiamento e justiça, que seriam atingidos, sem falar no custo de tal política
que seria exorbitante e desproporcional aos benefícios. Segundo o autor a socie-
dade neoliberal não estabelece como objetivo de normalizar os indivíduos, ou
controlá-los. Por ser uma sociedade da pluralidade, é marcada pela tolerância,
dentro de limites, concedida aos indivíduos infratores e as determinadas práticas
minoritárias. (Lagasnerie, 2013, p.59)
Segundo Lagasnerie, o objetivo de Foucault não foi denunciar o neolibera-
lismo, e muito menos defendê-lo, mas fazer dele uma ferramenta de crítica ao
pensamento político tradicional, à filosofia do direito e a teoria social. Buscou no
pensamento neoliberal – com sua aversão ao Estado e sua defesa da diversidade
do mundo social – instrumentos para o desenvolvimento de uma filosofia de
emancipação, para nosso tempo.
No seu entender, Foucault propõe no que seria sua “última lição”, utilizar-
-se do instrumental do neoliberalismo para sua desconstrução visando travar a
mecânica implacável do poder disciplinador.
Ainda conforme Lagasnerie, “há quase 150 anos, Marx convocava a romper
com a crítica pré-capitalista do capitalismo: hoje é tempo de sair da crítica pré-
-liberal do neoliberalismo”.
Referências
Foucault M. Nascimento da biopolítica. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
Lagasnerie G. A última lição de Michel Foucault. Tradução Andre Telles. São Pau-
lo: Editora Três Estrelas, São Paulo 2013.
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