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O MARXISMO DE LEON TROTSKY: NOTAS

PARA UMA RECONSTRUÇÃO TEÓRICA

Álvaro Bianchi*

A leitura de um clássico apresenta sempre desafios intelectuais.1


Problematizar o próprio objeto de leitura torna-se uma necessidade
antes de enfrentar esses desafios. A leitura nunca é uma aproximação
inadvertida a um texto. O leitor tem lá suas razões, desconhecidas
muitas vezes da própria razão. Sua história de vida, seus valores, noções
e pré-conceitos fazem parte da própria leitura, do modo como se
aproxima da obra em questão. Tomando esse texto, qualquer um, em
um contexto, o leitor estabelece com ele sempre uma relação tensa,
sendo por ele desafiado, questionado e interrogado. A relação é tensa
porque entre o ato da escrita e o da leitura há sempre um distanciamento
no tempo e no espaço: escrever ontem e ler hoje; redigir lá, estudar
aqui. Esse afastamento multidimensional cria uma relação de
estranhamento do leitor perante o autor. Daí a importância de reconstruir

* Professor do Departamento de Ciência Política e diretor do Centro de


Estudos Marxistas (Cemarx) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas, e secretário de redação da revista
Outubro.
1
Este texto foi escrito com resultado das discussões levadas a cabo durante
o ano de 2004-2005 no Grupo de Estudos sobre o Marxismo de Leon Trotsky
do Cemarx/Unicamp.
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o contexto do autor, refazendo as perguntas que este dirigia a sua


época e as soluções que apresentava para essas perguntas.
Se estivermos circunscritos a uma pesquisa situada no campo da história
das idéias, basta isso. A localização do autor em sua época nos fornece
os elementos necessários para a reconstrução daquelas relações de
produção do texto que resultaram na obra ora em mãos.
O passado intelectual se apresentaria relevante para o presente
apenas como um elo na cadeia evolutiva do conhecimento humano.
Nessa perspectiva, um clássico seria uma obra sem a qual essa cadeia
estaria rompida, um elemento fundamental para a compreensão de
nosso presente intelectual. Um clássico do marxismo, como Leon
Trotsky, seria importante para a reconstrução das fundações do
pensamento político marxista contemporâneo, do mesmo modo como
um fóssil fornece registros para os paleontólogos reconstruírem nosso
passado hominídeo.
Não é esta uma aproximação à obra desses clássicos que eu
recomende. Sem dúvida, suas obras permitem que arqueólogos do
saber reconstituam – muitas vezes de modo arbitrário, é verdade –
um passado que muitos gostariam de transformar em ultra-passado.
Mas é possível outra leitura. A relevância de sua letra está na
complexidade dos desafios, das questões e das interrogações que ela
coloca para seu presente. Está, também, na capacidade dela se
reapresentar sempre diferente, colocando novos problemas e
apresentando soluções antes não pensadas para um tempo que não é
mais por eles partilhado. Um clássico, pois é disto que estamos tratando,
revela-se aqui não apenas naquilo que o autor disse, como também
naquilo que ele continua a dizer.
Ler Trotsky tem significado tomar um partido, pois o próprio autor
o fez antes de nós. É quase um ato de rebeldia intelectual no qual o
leitor se ergue contra o exílio intelectual ao qual o autor foi condenado
antes mesmo do ator sucumbir ao golpe fatal. Um ato de rebeldia e
uma provocação, que tende imediatamente a suscitar a interrogação
do censor: Por que Trotsky? A resposta mais simples continua a ser:
porque é um clássico. Mas não é necessariamente uma resposta eficaz.

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A pergunta do censor já indica que ele não atribui tal estatuto de


atualidade à obra do marxista russo. O risco de um diálogo entre sujeitos
incapazes de empreender uma comunicação eficaz é grande. Trata-
se, então, de responder à pergunta reconstruindo a originalidade de
seu pensamento.
Mas o clássico do qual me aproximo neste caso tem lá suas
peculiaridades. Muito embora tenha por objetivo uma abordagem de
seu pensamento social e político, não é fácil, nem conveniente, separar
sua obra teórica de sua prática militante. Constituída em grande medida
por textos de intervenção em conjunturas específicas, formulando
respostas para problemas que se impunham pela sua urgência, sua
obra teórica é, também, uma obra de intervenção política. A relação
teoria/prática, constitutiva de seu marxismo, se manifesta, de modo
intenso naquelas obras de intervenção. É nestas que o argumento
teórico aparece com toda sua força, revelando suas nuances, sua
plasticidade e sua capacidade de apreender, diria até, de confrontar o
real. O vigor de seu marxismo aparece plenamente naqueles momentos
nos quais Trotsky toma como objeto de sua reflexão a revolução e a
contra-revolução. É em seu estudo da Revolução Russa e na teoria
da revolução permanente, é em sua crítica da burocracia soviética, é
em sua análise do fascismo e da frente popular que é possível encontrar
a originalidade do pensamento de Trotsky.
Uma concepção aberta do marxismo, que se recusava a tratá-lo
de modo dogmático era professada por Trotsky, para quem “o
marxismo é acima de tudo um método de análise – não de análise de
textos e sim das relações sociais.” (1969, p. 421.) A definição do
marxismo como um método de análise de relações sociais não implica
sua redução a uma filosofia. Sobre isso afirmará em carta a Sidney
Hook, comentando o artigo “Marxismo: dogma ou método?”: “O
marxismo não é um dogma, mas também não é apenas um método:
ele é uma doutrina. A dialética materialista é um método. Marx,
entretanto, não apenas formulou este método como o aplicou a dois
domínios, criando a teoria da economia capitalista (ciência) e a teoria

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dos processos históricos (a ‘filosofia da história’ – mais exatamente,


uma ciência).” (TROTSKY, 1978a, p. 124.)
É na sua particular contribuição ao desenvolvimento desse método
de análise das relações sociais que podemos encontrar a originalidade
do marxismo de Trotsky. Duas questões de ordem metodológica se
apresentam após essa afirmação:

1) É possível afirmar a existência de uma unidade interna no


marxismo de Trotsky? A questão remete à polêmica de Ernest Mandel
com Nicholas Krassó nas páginas da New Left Review no final dos
anos 1960. À tentativa levada a cabo por Krassó de identificar no
pensamento de Trotsky a “unidade característica e conseqüente, desde
sua juventude até a velhice” (1970, p. 47), Mandel respondeu afirmando
que o marxismo de Trotsky “é uma tentativa de incorporar aos princípios
clássicos do socialismo científico uma resposta aos problemas
específicos da época imperialista” (1970a, p. 142). Tanto Krassó como
Mandel constroem respostas insatisfatórias à pergunta acima
enunciada. Em seu empreendimento, Krassó anula o desenvolvimento
do pensamento político e social do revolucionário russo e suas
diferenças chegando a identificar a concepção de partido do Trotsky
pré-bolchevique (e anti-bolchevique em alguns momentos) com sua
concepção após a adesão ao bolchevismo, a despeito de tudo o que
ele e Lenin afirmaram a respeito!
A crítica de Mandel não é satisfatória porque, de fato, nega a
específica contribuição de Trotsky “aos princípios clássicos do
socialismo científico” e reduz seu marxismo a “uma resposta aos
problemas específicos”. Neste ponto a réplica de Krassó está plena
de razão: o argumento do marxista belga é empirista. Ao colocar um
sinal de igual entre o materialismo histórico de Marx, Engels, Lenin e
Trotsky, Mandel justificava a incorporação deste último ao panteão do
marxismo, em um contexto histórico e político no qual vicejavam os
“erros e preconceitos sobre o papel histórico do fundador do Exército
Vermelho” (1970, p. 45). Mas ao proceder desse modo, empobrecia
enormemente o marxismo de Trotsky, reduzindo-o à solução por ele

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dada a problemas empíricos. Na definição de Mandel não há lugar,


por exemplo, para o analista da formação social russa, para o historiador
das revoluções de 1905 e 1917 ou para o crítico literário. Sua definição
também não esclarece porque o marxista russo teria chegado à
“resposta dos problemas específicos”, enquanto outros não.
Afirmar uma unidade interna no marxismo de Trotsky é não apenas
possível como necessário para compreender sua envergadura teórica.
Não se trata de criar mais um fetiche sobre a excepcionalidade do
pensamento de Trotsky, desvinculando-o completamente da tradição
do marxismo russo. Mas refletir sobre a especificidade do marxismo de
Trotsky permite compreender como ele chegou a determinadas respostas
aos problemas específicos de sua época antes que outros o fizessem.

2) Como encontrar essa unidade em uma obra tão diversificada e


extensa? Meu objetivo aqui é o de apontar alguns traços de seu
marxismo que se manifestam de modo contraditório, com intensidades
diversas e sob diferentes modalidades, mas também de maneira
recorrente em suas obras. Ou seja, trato de apontar aquilo que é a
differentia specifica de seu marxismo, aquilo que o distingue de seus
contemporâneos. Não é o caso, entretanto, de estabelecer o seu
pensamento como uma totalidade homogênea governada por um ou
dois princípios básicos imutáveis e minha ênfase no caráter contraditório
da manifestação desses traços no interior da obra de Trotsky tem por
objetivo evitar o tratamento esquemático desta.
O desenvolvimento dessa contribuição teórica pode ser encontrado
de forma mais nítida e intensa em suas obras de análise histórica e
política. O procedimento não é arbitrário. Certamente, ele é, dentre os
marxistas de seu tempo, o mais sensível à História (TICKTIN e COX,
1995). Mas não se pode deixar de destacar que suas tentativas de
expor de modo sistemático a teoria marxista não apresentam o mesmo
vigor teórico de suas obras históricas e políticas, nas quais as fórmulas
mais rígidas cedem lugar a uma análise sutil do movimento da totalidade
social. De caráter sintético e voltadas para a divulgação do pensamento
de Marx e do marxismo, essas exposições sistemáticas (p. ex. TROTSKY,

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1985a) incorrem muitas vezes em simplificações que permitem uma leitura


reducionista rejeitada explicitamente pelo próprio autor.
Colocados desse modo os problemas que guiarão minha investigação
e apontadas algumas questões metodológicas que necessitam cuidado
posso, então, anunciar minha hipótese e passar rapidamente a sua
discussão: duas são as novidades teóricas desenvolvidas por Trotsky
que permitem afirmar a originalidade de seu pensamento social e
político, o internacionalismo metodológico e a centralidade da política
nos processos revolucionários.

Internacionalismo metodológico

Trotsky era um defensor intransigente do internacionalismo político.


Como a maior parte de sua geração, circulou muito cedo pela esquerda
européia, não se restringindo aos círculos de emigrados russos e
participou ativamente, por meio de seus artigos, dos debates de então.
Sua dedicação às questões de política internacional nos primeiros anos
da Revolução Russa e seu empenho na organização da Quarta
Internacional costumam ser os exemplos apresentados para comprovar
essa filiação. Mas não é de uma prática política que aqui estou falando
e sim de uma concepção da história e da política que encerra uma
dimensão metodológica profundamente internacionalista.
Esse internacionalismo metodológico aparece já plenamente em
1906 na sua obra Balanço e perspectivas. A revolução de 1905, afirma
nesse texto, acabou com o “particularismo” russo, mostrando que o
desenvolvimento russo não era excepcional. Mas afirmou, também, o
caráter “único” desse desenvolvimento, a soma de todos os traços
distintivos de sua história que abria, por sua vez, perspectivas históricas
completamente novas (TROTSKY, 1969, p. 17). É nessa dialética da
semelhança e da diferença que se constituiu a formação social russa.
A análise dessas características tornava-se possível mediante a
percepção da heterogeneidade espacial do processo histórico do
desenvolvimento do capitalismo. O desenvolvimento das forças

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produtivas na Rússia podia, dessa maneira, ser definido


comparativamente com o de outros Estados europeus. Da comparação
estabelecia-se a caracterização:

“Se comparamos o desenvolvimento social da Rússia com o de outros


países da Europa – destacando os fatores comuns que constituem
seus traços gerais mais distintivos e que distinguem sua história da
história russa – poderemos dizer, por comparação, que a principal
característica do desenvolvimento social da Rússia é sua lentidão e
seu caráter relativamente primitivo.” (Idem, p. 397-398.)

A medida do desenvolvimento das forças produtivas acima citado


não era realizada, desse modo, em uma dimensão circunscrita ao
Estado-nação. Ela era estabelecida internacionalmente levando em
consideração a dimensão espacial do capital. Já Marx e Engels haviam
destacado a tendência à universalização da forma valor e são por
demais conhecidas as páginas do Manifesto comunista nas quais o
capital aparece como relação social que se generaliza. Era a descoberta
dessa tendência o que sustentava a crença, partilhada por muitos à
época, em uma suposta linearidade e homogeneidade do
desenvolvimento histórico. Largamente difundida pelo chamado
“marxismo legal” (STRADA, 1984) essa visão predominava também
no interior da social-democracia russa. A autoridade dessas idéias se
manifestava na influência que as obras de Plekhanov mantinha entre
as primeiras gerações de marxistas.2
Amparada em uma leitura reducionista de alguns textos de Marx
e Engels, tal concepção sustentava uma visão linear do desenvolvimento
da formação social russa. A senha para essa leitura havia sido dada

2
Vários anos depois da revolução, Lenin aconselhava a publicação dos textos
de Plekhanov: “A propósito, seria uma boa coisa se, primeiro, a atual edição
das obras de Plekhanov tivessem um ou mais volumes especiais de todos
seus artigos filosóficos com índices detalhados, etc, para serem incluídos em

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pelo próprio Marx, que no prefácio à primeira edição de O capital,


afirmava: “O país que é mais desenvolvido industrialmente apenas
mostra aos menos desenvolvidos a imagem de sue próprio futuro.”
(MECW, v. 35, p. 9.) E, mais adiante concluía:

“Mesmo que uma sociedade comece a seguir a trilha da


lei natural de seu movimento – e a finalidade última desta obra é
revelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna – ela
nunca saltará sobre as fases naturais de seu desenvolvimento
nem as removerá por decreto. Mas ela poderá abreviar e diminuir
as dores do parto.” (Idem, p. 10.)

“Mas ela poderá abreviar e diminuir as dores do parto.” A ressalva


feita no prefácio de O capital adquiria altura e o tom de um alarme
quando Marx e Engels discutiram o caso russo com os populistas.
Notável é a missiva de Marx ao diretor de Otiechesviennie Zpiski.
Respondendo a um suposto defensor de sua obra e esclarecendo o
alcance de sua visão no capítulo sobre a acumulação originária d’O
capital, Marx afirmava: “O capítulo sobre a acumulação primitiva
não pretende mais do que traçar o caminho pelo qual na Europa
Ocidental a ordem econômica capitalista emergiu das entranhas da
ordem econômica feudal.” (MARX e ENGELS, 1965, p. 312. Grifos
meus.) E na carta enviada a Vera Zasulich, em 1881, sobre o destino
da comuna rural russa, novamente protestava contra a generalização
de seu argumento: “portanto, a ‘inevitabilidade histórica’ desse

uma série de livros-texto sobre o comunismo; segundo, penso que o Estado


operário deve exigir dos professores de filosofia que tenham conhecimento
da exposição da filosofia marxista feita por Plekhanov e habilidade para
transmiti-la a seus estudantes.” (LENIN, 1965a, p. 94.) E Trotsky recomendava
sua leitura pelos jovens militantes: “sobre esta questão, recomendo aos jovens
camaradas que estudem, as obras de Engels (‘Anti-Durhing’), Plekhanov e
Antonio Labriola” (TROTSKY, 1982, p. 148).

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movimento [a separação radical do produtor dos meios de produção e


a expropriação dos camponeses] é expressamente limitada aos países
da Europa Ocidental.” (Idem, p. 339. Grifos de Marx.)
A generalização da forma valor estava muito longe de seguir a
mesma trajetória e de produzir os mesmos resultados. Estava também
distante de ser apreendida por uma filosofia da história que reconstruísse
arbitrariamente o passado de uns para transformá-lo em modelo de
outros. E muito embora seu infeliz defensor do Otiechesviennie Zpiski
tivesse convertido o esboço histórico de Marx da “gênese do
capitalismo na Europa Ocidental em uma teoria histórico-filosófica do
caminho geral que todo povo está fadado a trilhar, quaisquer que sejam
as circunstâncias nas quais se encontrarem”, ele pede àquele que o
dispense desse empreendimento: “Ao mesmo tempo me honra e me
envergonha muito” (Idem, p. 313).
Os caminhos alternativos vislumbrados por Marx não foram,
entretanto, trilhados pela maioria dos marxistas russos do final do século
XIX e início do século XX. Eram por demais tortuosos, sendas apenas
riscadas no mapa da história, a exigir um desbravador que não
compareceu. Em sua maioria esses marxistas optaram pela estrada
aberta pelos modelos. Ainda mais que em vários momentos pareciam
encontrar indícios de que Marx e Engels haviam mesmo trafegado
por ela. Afinal não tinha sido o próprio Engels em um texto de 1875
quem havia afirmado que a revolução russa “se aproxima”, mas que
ela seria “iniciada pelas classes superiores do capital, inclusive, talvez
o próprio governo”? E não tinha ele alertado contra “uma tentativa
prematura de insurreição que leve novamente as classes possuidoras
a lançar-se nos braços do próprio governo”? (MECW, v. 24, p. 50.)3
Coube a Lenin e Trotsky embrenharem-se por aquelas sendas
alternativas. O caminho seguido por Lenin em sua colossal obra sobre

3
Este texto de Engels encontrava-se nas coletâneas de Marx e Engels
organizadas pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, anexo ao comitê central
do Partido Comunista da União Soviética. Mas as cartas ao Otiechestviennie
Zapiski e a Vera Zasulitch, por razões óbvias, não.

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o desenvolvimento do capitalismo na Rússia enfatizava aquilo que o


desenvolvimento russo tinha de tipicamente capitalista, ao mesmo
tempo em que apontava para as contradições internas de sua formação
social. Tendo em vista a aguda luta teórica travada contra o populismo
russo, Lenin (1965) construíra seu argumento distanciando-se da
afirmação do particularismo russo. É sabido que Trotsky havia lido
essa obra durante seus anos de formação (Cf. TROTSKY, 1973a, p.
156). Sua apropriação do conceito de formação social pode ser
indicativo dessa leitura e da influência que ela deve ter deixado no
jovem Trotsky. Mas isso não é senão suposição.
Em terreno mais firme estou ao afirmar que, sem excluir muitas
daquelas contradições apontadas por Lenin, o internacionalismo
metodológico de Trotsky lhe permitiu ir além e incorporar uma nova
dimensão analítica, investigando os espaços nacionais de produção e
reprodução das relações sociais capitalistas e as relações contraditórias
que se estabeleciam entre o processo de universalização e
internacionalização da forma valor e o processo de particularização
da forma Estado. Olhando este movimento a partir da periferia do
capitalismo, Trotsky pôde radicalizar essa concepção, politizando-a: a
relação contraditória entre o desenvolvimento das forças produtivas e
as relações de produção ocorre com a mediação do Estado-nação.
Colocando-se espacialmente na fronteira do capitalismo Trotsky pôde
ver o espetáculo caótico de um tempo partido. O choque do moderno
e do arcaico tornava a Rússia atrasada, como queriam os populistas,
distante ainda de uma modernidade idealizada. Mas também a tornava
contemporânea de um presente capitalista que ela também, a seu modo,
é claro, partilhava.4
Essa dialética do arcaico e do moderno, do passado e do presente,
do ultrapassado e do contemporâneo, do velho e do novo, do particular
e do semelhante encontra-se fundada na contradição que se estabelecia
entre as forças internas do desenvolvimento do capitalismo na Rússia
e as forças externas a esta. A categoria da totalidade era, assim,

4
Sobre a dialética do tempo partido remeto a Daniel Bensaïd (1999, cap. 3).

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incorporada por Trotsky na análise do processo histórico (cf. AVENAS,


1983 e LÖWY, 1998). O lento desenvolvimento das forças produtivas
locais e a conseqüente precariedade das bases materiais para a
formação das classes modernas, por um lado; e, por outro, sua inserção
no sistema político e econômico do capitalismo mundial.
A originalidade da formação social russa era uma tese questionada
até mesmo por historiadores bolcheviques, como Mikhail Pokrovsky.
De 1918 até sua morte, em 1932, Pokrovsky foi figura chave da
historiografia marxista soviética. Bolchevique desde 1905; foi presidente
do Soviet de Deputados e Soldados de Moscou depois da revolução
de Outubro de 1917 e vice-comissário para a Educação de 1918 a
1932, fundador e presidente da Academia Comunista; primeiro diretor
do Instituto de Professores Vermelhos; e primeiro presidente da
Sociedade de Historiadores Marxistas. A partir de 1925 Pokrovsky, o
historiador sutil da sociedade russa, vinculou seu destino ao da camarilha
stalinista: “toda a teoria histórica de Trotsky corrobora o veredito
negativo que o Partido pronunciou sobre o trotskismo”, afirmou ainda
naquele ano (apud BARON, 1974, p. 393).
As críticas de Prokovsky dirigidas a Trotsky, em 1922, por ocasião
da primeira edição russa da obra 1905 provinham, portanto, de uma
alta autoridade na historiografia soviética. Daí a importância desse
debate. O presidente da Sociedade de Historiadores Marxistas negava
as bases primitivas e a originalidade do processo de desenvolvimento
capitalista russo e destacava o desenvolvimento do comércio da Rússia
no século XVI, aproximando o desenvolvimento desse país àquele
que teve lugar na Europa ocidental.5 Ao mesmo tempo, rejeitava a

5
Ver a esse respeito Leon Trotsky (1950, t. I, p. 419-426). A crítica de Pokrovsky
foi publicada na revista Krasnaya Nov’, n. 3, mai.-jun 1922. A partir de 1924,
Pokrovsky tornou-se um dos expoentes da historiografia stalinista, mas depois
de 1936, quando o stalinismo completou a afirmação de que a Rússia se
encaminhava para o socialismo com uma teoria voluntarista que subordinava
a história à ação do guia genial dos povos, o presidente da Sociedade de
Historiadores marxistas foi vítima de um expurgo post morten sendo sua obra

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ênfase de Trotsky – assim como de Plekhanov – no papel


desempenhado pelo Estado russo na formação do próprio capitalismo.6
Aferrando-se a uma concepção extremamente dogmática do
marxismo, Pokrovsky afirmava que as concepções de seus adversários
intelectuais explicavam as origens do Estado russo em termos não
classistas e, portanto, não marxistas: “A autocracia moscovita era a
encarnação da ditadura do capital comercial” (Apud BARON, 1974,
p. 391). Não fazia senão repetir a tese amplamente desenvolvida
em seus livros de História e, particularmente em seu Breve
História da Rússia. 7
Em sua resposta, Trotsky, fez uma dura crítica à apropriação
mecanicista e dogmática do marxismo e enfatizou o caráter incipiente
do processo de produção de mercadorias e as bases rurais da produção
artesanal que explicariam a própria expansão do comércio analisada
por Pokrovsky e o caráter híbrido da formação social analisada.
Partilhando com Plekhanov – e certamente com Marx – a idéia do
caráter asiático do desenvolvimento russo, Trotsky afirmava que esse
desenvolvimento comercial coexistia com uma produção artesanal que

colocada no index soviético. Sobre o lugar de Pokrovsky na historiografia


soviética ver Szporluk (1964), sobre sua teoria da revolução russa, Szporluk
(1967). Uma instigante comparação das historiografias de Trotsky e Pokrovsky
encontra-se em Baron (1974).
6
A polêmica com a historiografia populista é exposta de modo resumido em
Pokrovsky (1929).
7
Fazendo referência à política do século XVII, Pokrovsky escreveu: “A classe
cuja posição mais incrementou sua posição sob os primeiros Romanovs foi a
dos grandes mercadores capitalistas.” (Pokrovsky, 1968, v. 1, p. 83.) Em um
artigo escrito em 1931 e incluído como apêndice desse livro, Pokrovsky
relativiza sua tese sem entretanto, alterar seu sentido: “Muito embora o capital
mercantil possa ter tido em alguns momentos (e em certos períodos essa
influência foi imensa e foi reconhecida, como podemos ver nas obras de Marx
e Engels, bem como de Lenin), o caráter da superestrutura política é sempre
determinada pelas relações de produção e não pelas de troca; “o “chapéu de
Menomakh” [a coroa dos tzares moscovitas. N. AB] é um ornamento feudal e
não capitalista.” (Idem, p. 283.)

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não havia se separado ainda da agricultura e que, portanto, não se


encontrava concentrada nas grandes cidades e sim dispersa no meio
rural. As cidades russas não eram centros produtores, eram apenas
centros administrativo-militares e consumidores.
Dada a imensidão geográfica e a escassa densidade demográfica, o
abastecimento das cidades exigiu do capital comercial o dinamismo
que era percebido por Pokrovsky. Mas esse dinamismo do comércio
na Rússia do século XVII não era o resultado do progresso do
capitalismo e sim de seu caráter primitivo:

“Aqui nos aproximávamos mais da Índia que da Europa,


assim como nossas cidades medievais eram mais asiáticas que
européias, assim como nossa autocracia ocupando um lugar entre
o absolutismo das monarquias européias e os déspotas asiáticos
aproximava-se mais, sob muitos aspectos, destes últimos.”
(TROTSKY, 1950, t. 1, p. 422.)

É importante destacar que a afirmação do “atraso” ou do


“primitivismo” da sociedade russa, não implicava em uma visão
eurocêntrica. Essa situação não tem como conseqüência uma simples
repetição do caminho percorrido pela Europa ocidental no
desenvolvimento de seu capitalismo. Pelo contrário, ela determina “as
profundas particularidades que devem constituir, isoladamente, um
objeto de estudo” (Idem, t. 1, p. 421). A particularidade é, desse modo,
a originalidade da formação social russa. Ao invés de modelos, sua
compreensão exige a análise das contradições que se manifestam no
interior de sua totalidade diferenciada. A análise dessa contradição
interna à totalidade é levada a cabo por Trotsky auscultando os
batimentos de dois tempos que se processam em dimensões espaciais
diferentes. Primeiro essa forças externas aparecem como alheias ao
próprio desenvolvimento da formação social russa. Fornecem, assim,
um impulso, quase um pretexto, à modernização preservando,
entretanto, essa exterioridade. Depois, em um segundo momento,

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ocorre a internalização das forças externas e estas passam a integrar


a totalidade da formação social russa de modo indivisível das forças
internas. O tempo de dentro sucede o tempo de fora.
Na Rússia, a pressão dessas forças externas manifestou-se não
por meio do comércio exterior, como levaria a crer uma leitura
reducionista de Marx, e sim por meio da pressão militar da Lituânia,
Polônia e Suécia e da modernização necessária para resistir a essas
ameaças. 8 Foi com o intuito de resistir às ameaças militares
provenientes da Europa, que o Estado russo se expandiu, aumentando
os obstáculos à apropriação privada dos escassos excedentes
produzidos e consumindo improdutivamente as forças que poderiam
alimentar um processo interno de acumulação primitiva:

“Desse modo, na mesma medida em que o Estado absorve uma


parte desproporcional do sobreproduto, ele entravava a
diferenciação, já bastante lenta, das camadas sociais; na mesma
medida que ele retirava uma parte importante do produto
necessário, destruía as próprias bases da produção primitiva das
quais dependia.” (TROTSKY, 1969, p. 399.)

Travado o desenvolvimento das novas classes sociais pelo Estado,


coube ao mesmo o impulso substituto do processo de acumulação
primitiva. É bom lembrar que em O capital, Marx indicava para o
lugar da política e a ação do Estado no processo de construção das
modernas classes sociais justamente no momento em que discutia os

8
Marx, nos Grundrisse, texto que era evidentemente inacessível a Trotsky,
iniciava assim uma lista de temas que deveriam ser desenvolvidos em sua
pesquisa: “1) A guerra se desenvolve antes que a paz: mostrar a maneira em
que certas relações econômicas tais como o trabalho assalariado, o
maquinismo, etc. têm sido desenvolvidas pela guerra e nos exércitos antes
que no interior da sociedade burguesa. Do mesmo modo, a relação entre
forças produtivas e relações de comércio, particularmente visíveis no exército.”
(MECW, v. 28, p. 45.)

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diferentes momentos da acumulação primitiva, representados pela


Espanha, Portugal e Holanda e a combinação desses processos
na Inglaterra:

“Esses diferentes momentos são sistematicamente combinados no


final do século XVII na Inglaterra; a combinação abarca as colônias,
a dívida pública, o moderno sistema tributário e o sistema de proteção.
Esses métodos dependem em parte da força bruta, assim como no
sistema colonial. Mas todos eles empregam o poder do Estado, a
força concentrada e organizada da sociedade, para acelerar
rapidamente o processo de transformação do modo de produção
feudal no modo capitalista e para abreviar a transição. Força é a
parteira de toda velha sociedade que se encontre prenhe de uma
nova. Ela é, em si, uma potência econômica.” (MECW, v. 35, p. 739.)

O Estado não era, senão um meio de “fabricar o fabricante ou


expropriar trabalhadores independentes” (Idem, p. 744). A transição
do feudalismo ao capitalismo, mesmo em seu caso paradigmático, a
Inglaterra, não ocorreu de modo meramente espontâneo, contribuindo
para tal a ação estatal. E embora a Rússia tenha seguido um caminho
muito diferente nessa transição, foi explorando essas hipóteses que
Trotsky desenvolveu a idéia de um Estado que age como mola
propulsora de um desenvolvimento capitalista cujo movimento
espontâneo era por ele próprio travado.
Segundo Trotsky, a criação da base social do Estado ocorreu por
meio da produção/reprodução dirigida de uma hierarquia responsável
pela sua manutenção e funcionamento. Não se trata, entretanto, de
um processo automático resultado das novas formas de produção
introduzidas a golpes de baioneta. O Estado não pode funcionar como
demiurgo, criando a seu bel prazer classes sociais. Estas nasceram do
complexo jogo de forças entre Estado e as classes em presença,
resultando no surgimento de um capitalismo que aparecia como
“engendrado pelo Estado” (TROTSKY, 1969, p. 401), mas que se
sustentava na conversão social destas classes em uma burguesia russa

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


72 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

profundamente dependente do regime autocrático. Desse modo, o


desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental influenciou o
desenvolvimento do capitalismo na Rússia “por intermédio do Estado”
(Idem, p. 402).
Em um segundo momento da análise, a pressão das forças externas
não forneceu apenas o impulso à modernização da sociedade russa,
como também o combustível que a alimentou. Se os exércitos
estrangeiros não se estabeleceram em território russo, muito embora
tenham tentado, mais sorte teve o capital financeiro. As forças externas
cuja pressão travou o desenvolvimento espontâneo das modernas
classes sociais agiram no sentido contrário financiando o processo de
modernização dirigido pelo tzarismo. Apontei acima que os escassos
excedentes produzidos pela economia camponesa eram insuficientes
para alimentar o processo de acumulação primitiva. Eram insuficientes,
também, para sustentar o imenso aparelho do Estado russo. Coube ao
capital financeiro europeu financiar a Rússia por meio de empréstimos:

“O absolutismo, enquanto proletarizava e pauperizava os


camponeses mediante os impostos elevados transformava os
milhões da Bolsa européia em soldados e navios de guerra, em
prisões de isolamento, e em ferrovias. A maior parte desses fatores
eram, do ponto de vista econômico, absolutamente improdutivos.
Uma enorme fração do produto nacional partia, sob a forma de
juros, para o exterior onde enriquecia e reforçava a aristocracia
financeira européia.” (Idem, p. 409.)

O endividamento estatal não foi, entretanto, o único modo de


penetração do capital europeu na Rússia. Sob a forma de capital
comercial e industrial ele contornou a política econômica protecionista
do tzarismo instalando-se em território russo. Essa importação de forças
produtivas do capital produziu uma formação social extremamente
complexa, na qual formas modernas de produção capitalista coexistiam
com relações sociais arcaicas. A industrialização da Rússia não foi
feita a partir do desenvolvimento orgânico da pequena produção

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


Álvaro Bianchi 73

artesanal e sim diretamente por meio da grande indústria. A debilidade


estrutural da burguesia russa, marginalizada do próprio desenvolvimento
do capitalismo em seu país, contrastava com um proletariado
extremamente concentrado nos centros urbanos. Estabelecia-se, assim
não apenas a dependência da burguesia perante o absolutismo, como
a deste perante o capital financeiro europeu:

“o capital europeu, primeiro sob a forma de capital comercial e depois


sob a forma de capital financeiro e industrial abateu-se sobre nós em
um período no qual o artesanato russo, em sua massa, não estava
dissociado da agricultura. Apareceu assim entre nós um indústria
capitalista completamente moderna no ambiente de uma economia
completamente primitiva. (...) Daí o enorme papel desempenhado pelo
capital da Europa ocidental na economia russa. Daí a debilidade política
da burguesia russa. Daí a facilidade com que destruímos a nossa
burguesia. Daí as dificuldades que surgiram quando a burguesia
européia interveio em nossos negócios”. (Idem, p. 424-425.)

Fechava-se, assim o círculo que lançava a burguesia e o liberalismo


russo para fora da revolução democrática e colocava o proletariado
como seu sujeito. Esta via particular de desenvolvimento do capitalismo
condicionava as modalidades de luta política contra o tzarismo, bem
como o próprio processo de construção do socialismo na Rússia. O
controle da economia russa pelo capital europeu determinava tanto a
debilidade da burguesia nacional como a força de seu proletariado. A
contagem acelerada do tempo que registrava o desenvolvimento de
um capitalismo industrial e, também, sua superação por meio da
revolução operária. Mas a partir desse ponto o tempo era novamente
desacelerado e o escasso desenvolvimento das forças produtivas
cobrava seu preço. Em A revolução traída, Trotsky colocava a questão
comparativamente do seguinte modo: “Rússia não era o elo mais forte
da corrente do capitalismo e sim o mais fraco. Atualmente, a União
Soviética não está acima do nível mundial da economia, mas está apenas
tentando alcançar os países capitalistas.” (TROTSKY, 1991, p. 41).

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


74 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

É, portanto, a partir do nexo nacional-internacional que Trotsky


analisava o modo particular de desenvolvimento do capitalismo na
Rússia e a possibilidade de construção do socialismo. Mas esse critério
metodológico não se restringia à análise da formação social russa. Ele
era um critério de aplicação universal próprio do marxismo de nosso
tempo. É por meio desse internacionalismo metodológico que se tornava
possível apreender as diversas dinâmicas nacionais do capitalismo
contemporâneo:

“O marxismo procede a partir da economia mundial


considerada não como a simples adição de suas unidades nacionais,
mas como uma poderosa realidade independente criada pela divisão
internacional do trabalho e pelo mercado mundial que em nossa época
domina todos os mercados nacionais”. (TROTSKY, 1963, p. 10.)

A dominação dos mercados nacionais não implica, entretanto, na


sua supressão. Se ao longo dos séculos XVIII e XIX a constituição
dos Estados nacionais impulsionou o desenvolvimento das forças
produtivas, o mesmo não ocorreu ao longo da época imperialista. À
contradição entre relações de produção e desenvolvimento das forças
produtivas percebida por Marx e Engels, Trotsky acrescenta aquela
que existe entre o desenvolvimento das forças produtivas e o Estado-
nação, entre a lei do valor no mercado mundial e a regulação estatal,
por um lado, e os países imperialistas e as colônias e semicolônias, por
outro. Segundo Trotsky, o capitalismo:

“tem o duplo mérito histórico de ter colocado a técnica em um


nível elevado e de ter ligado todas as partes do mundo, por laços
econômicos. (...) A base de sua expansão é sempre o Estado
nacional, com suas fronteiras, suas alfândegas e seus exércitos.
Entretanto, as forças produtivas há tempo superaram as fronteiras
do estado nacional, transformando-o assim de um fator histórico
progressista em um constrangimento insuportável.” (1985a, p. 184.)

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


Álvaro Bianchi 75

A crescente mundialização da economia não fez senão agravar


essas contradições. A internacionalização, concentração e
centralização do capital em grandes companhias transnacionais
tornaram potencialmente mais agudos os conflitos entre os Estados
no mercado mundial. Vantagens comerciais no mercado mundial são
obtidas por diferenças nos níveis médios de produtividade do trabalho.
Em períodos normais, a potência hegemônica no mercado mundial é
aquela que consegue obter um nível mais alto de produtividade do
trabalho e, com isso, obter vantagens competitivas para suas
mercadorias. Se quiserem competir no mercado, os demais países
deverão ajustar sua produtividade a esse nível. Mas, para Trotsky,
essa luta no mercado mundial não é feita de maneira pacífica. Ela
inclui as armas da guerra, dos bloqueios comerciais, das restrições
alfandegárias.
É esta apreciação ao mesmo tempo econômica e política do
imperialismo a base de seu conhecido relatório sobre a crise econômica
mundial apresentado no 3º Congresso da IC:

“O capitalismo é um fenômeno mundial. O capitalismo conseguiu


abarcar todo o globo terrestre; e isso se manifesta de modo mais
agudo durante a guerra e o bloqueio, quando um país, privado de
um mercado, produzia excedentes, enquanto outro, carente de
mercadorias, deixava de ter acesso a eles. E hoje, essa
interdependência de um mercado mundial desmembrado se
manifesta aqui e em todo lugar. O capitalismo, no estágio atingido
antes da guerra, está baseado na divisão mundial do trabalho e no
intercâmbio mundial de produtos. (...) Essa divisão do trabalho
não é, por sua vez, uma coisa constante, algo dado de forma
definitiva. Ela é formatada historicamente; ela é constantemente
rompida por crises e pela concorrência – sem falar nas guerras
tarifárias. E ela é permanentemente restaurada apenas para ser
novamente rompida. Mas a economia mundial como um todo
repousa em uma maior ou menor divisão da produção das
necessidades correspondentes entre os respectivos países.”
(TROTSKY, 1973, v. 1, p. 232.)

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


76 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

Nesse contexto, o Estado forte é instrumento da consolidação de


posições no interior do mercado mundial. Na arena mundial, ele torna
possível a solução (mas não a superação) dos conflitos interimperialistas
através da força e da chantagem. Permite, também, a repressão aos
movimentos de libertação nacional nas colônias e semicolônias,
garantindo uma divisão internacional do trabalho favorável aos
interesses das grandes potências. Na arena nacional, o Estado forte
permite a repressão ao movimento dos trabalhadores e a manutenção
de elevadas taxas de produtividade, ou seja, de exploração do trabalho.
Assim, ao invés de supor uma tendência ao amortecimento ou
superação dos conflitos entre as classes sociais e no interior da própria
burguesia, como, por exemplo, está na sempre citada mas pouco
conhecida teoria kautskyana do ultra-imperialismo (KAUTSKY, 1970),
a concepção do imperialismo de Trotsky permite compreender a
permanência – e até mesmo o recrudescimento – desses conflitos.
Sua sutil análise das relações entre a Europa e os Estados Unidos,
esboçada em 1921 e desenvolvida nos anos seguintes, mostra como a
afirmação da hegemonia estadunidense longe de acabar com as crises
reconfigurava-as.
Na crítica, escrita em 1928, ao programa da Internacional
Comunista, já no exílio, portanto, o revolucionário russo, afirmava a
necessidade de definir de modo preciso a hegemonia estadunidense.
Relacionando as dimensões nacionais e internacionais da política,
Trotsky afirmava que a “estabilização”, “normalização” e “pacificação”
da Europa depois da derrota da revolução alemã de 1923, foi possível
porque estava “em estreita correlação material e intelectual com os
primeiros passos da intervenção americana nos assuntos europeus.”
(TROTSKY, 1988, p. 215.)
Mas a pressão dos Estados Unidos sobre a Europa, ao mesmo
tempo em que colocava esta em uma posição subalterna, aumentava
potencialmente a tensão existente entre os vários estados europeus.
Da análise dessa contradição interimperialista Trotsky desenhava uma
situação mundial na qual o reforço da hegemonia estadunidense
ocorreria ao mesmo tempo em que aumentaria a probabilidade de

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


Álvaro Bianchi 77

novas guerras. A crise econômica nos Estados Unidos (é bom lembrar


que Trotsky escrevia isso apenas um ano antes do crack de 1929)
não enfraqueceria nem diminuiria a extensão da hegemonia
estadunidense:

“Durante a crise, a hegemonia dos Estados Unidos se fará


sentir mais completamente, mais abertamente, de modo mais agudo
e implacável do que durante o período de crescimento. Os Estados
Unidos procurarão ultrapassar suas dificuldades e suas
perturbações acima de tudo em detrimento da Europa, sem se
importar que isso ocorra na Ásia, no Canadá, na América do Sul ou
na própria Europa, que seja por meios ‘pacíficos’ ou militares.”
(Idem, p. 216-217.)

Desse modo, muito embora a primeira intervenção dos Estados


Unidos em solo europeu tivesse um efeito “normalizador” a médio
prazo seu efeito seria o de elevar as tensões internacionais gerando
novos conflitos. As conseqüências políticas desse internacionalismo
metodológico e do conceito de imperialismo que ele produz, articulando
as dimensões políticas e econômicas destes, são evidentes. Essa visão
do imperialismo produz um internacionalismo que supera a ênfase em
uma identidade comum. A ênfase agora é colocada na necessidade de
contrapor ao imperialismo a ação internacional organizada do
proletariado. O internacionalismo dos séculos XX e XXI é
revolucionário. Ele inclui um esforço sistemático para coordenar os
movimentos de emancipação do proletariado e alterar a correlação de
forças na arena nacional, mas também na arena mundial:

“Em nossa época, que é a do imperialismo, isto é, da


economia e da política mundiais dirigidas pelo capital financeiro,
nenhum partido comunista pode estabelecer seu programa partindo
apenas ou principalmente das condições e tendências de
desenvolvimento de seu próprio país.” (Idem, p. 212.)

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


78 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

Tal esforço de coordenação só pode ser eficaz se estiver


materializado em uma organização internacional dos trabalhadores.
Depois da falência da social-democracia e do stalinismo essa
organização passou a ser a Quarta Internacional, para a qual Trotsky
dedicou suas energias ao longo de seus últimos anos de vida.

A centralidade da política

Já muito foi dito sobre a concepção determinista do marxismo que


reduz o movimento histórico ao desenvolvimento das forças produtivas.
Eliminando desse movimento as relações sociais, o determinismo
econômico deslocava a própria luta de classes da análise, reduzindo
esta a uma expressão fenomênica dos automatismos inerentes ao
desenvolvimento da técnica. Em vários momentos da obra de Trotsky
é possível encontrar passagens que revelariam, em uma leitura
apressada, referido determinismo. Assim, por exemplo, na análise da
revolução russa levada a cabo por Trotsky em 1906, este afirma: “O
marxismo ensina que o desenvolvimento das forças produtivas constitui
a base do processo histórico-social” (1969, p. 398). Formulação similar
pode ser encontrada em A revolução traída: “O marxismo considera
o desenvolvimento da técnica como a mola do progresso e constrói o
programa comunista sobre a dinâmica das forças produtivas.”
(TROTSKY, 1991, p. 39).
Não seria difícil encontrar passagens similares na obra de Marx e
muitos foram os que a elas se apegaram, seja para transformar o
marxismo em um determinismo econômico, seja para denunciar esse
mesmo determinismo. Também contra Trotsky a acusação de
determinismo econômico foi várias vezes lançada, particularmente por
intelectuais de inspiração maoísta. Revelando uma leitura superficial
e preconceituosa, quando não francamente stalinista, esses intelectuais
procederam destacando citações padrão de seu contexto (como essas

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


Álvaro Bianchi 79

acima mencionadas).9 Mesmo uma abordagem mais sofisticada, que


concede a Trotsky um importante lugar na teoria do fascismo, como a
de Poulantzas, chega a afirmar que este e a Internacional Comunista
já stalinizada tinham um “comum economicismo”. Afirmação que
Poulantzas não se dá ao trabalho de demonstrar: “Trata-se de uma
sugestão o que aqui se faz e não de uma demonstração; o problema é
demasiado importante para poder ser aqui objeto de uma análise
aprofundada” (POULANTZAS,1987, p. 87).
Um tratamento rigoroso da questão impõe, entretanto uma análise
do conjunto da obra de Trotsky, das contradições que ela encerra e
das tendências que predominam em seu interior. Haveria, é verdade,
razões para Trotsky partilhar uma concepção determinista. Era
justamente ela a que predominava no ambiente intelectual do autor.
Mas sua trajetória intelectual o levava para além dela. Sua aversão ao
dogmatismo, que o havia impelido a se aproximar dos círculos populistas
no começo do século e a rejeitar os sistemas construídos a partir de
uma apropriação mecanicista da obra Marx, levaram-no muito cedo
à leitura direta de Marx e Engels – como muito poucos na sua época
faziam.10 Certamente, durante seus anos de formação havia passado
pela leitura Plekhanov – como muitos mais então o fizeram – mas

9
Exemplo dessa abordagem é a obra de Charles Bettelheim, A luta de classes
na União Soviética. Apesar dos inegáveis méritos de sua pesquisa, a
exposição do pensamento de Trotsky nessa obra é recheada de lugares
comuns da vulgata stalinista sustentados em uma leitura superficial de um
número muito pequeno de textos. Os dois primeiros volumes não deixam de
evidenciar que a ruptura de Bettelheim com o stalinismo era até então apenas
parcial. Em sua tentativa de diminuir o papel de Trotsky na luta contra a
burocracia na União Soviética, Bettelheim chegava paradoxalmente a
apresentar um novo sujeito nessa batalha: o próprio Stalin. Tomando ao pé
da letra o relatório de Stalin no pleno de abril de 1928, Bettelheim identificava
uma luta efetiva contra a burocracia liderada pelo próprio secretário geral do
Partido Comunista (cf. BETTELHEIM, 1983, p. 411-412).
10
Entre os aderentes do maior partido marxista da época, o SPD era escasso o número
de leitores de Marx e Engels fora dos círculos dirigentes. (Cf. BONNELL, 2002.)

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


80 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

também havia se aproximado de autores identificados com um


marxismo antideterminista e antidogmático, como Antonio Labriola.11
Seus anos de militância ao lado dos populistas, por outro lado, haviam-
no familiarizado com a apreciação que estes faziam das
“particularidades” dos países de desenvolvimento capitalista
“retardatário” e com a possibilidade aventada desses países saltarem
por cima do capitalismo.12
Desse modo, se o convencionalismo da afirmação sobre as forças
produtivas o conectava a seu ambiente intelectual, o desenvolvimento
que lhe dava o levava muito além deste. A questão não estava ainda
plenamente resolvida no pensamento de Trotsky e reconhecer isso
permite identificar a ambigüidade de certas formulações. É notável
que essas fórmulas nas quais a história é conectada de modo mais
direto ao desenvolvimento das forças produtivas digam respeito a uma
definição teórica ampla – “o marxismo ensina”, “o marxismo considera”
– e se coloquem em um nível elevado de abstração como chaves para
a compreensão do movimento da história universal e da constituição
de um campo de possibilidades para a luta de classes. Mas para Trotsky
são essas lutas, cujo resultado é imprevisível, que fazem a história
concreta. A história concreta não é, desse modo uma façanha da
técnica e sim o resultado dessas lutas.
Em várias oportunidades Trotsky manifestou sua oposição ao
determinismo econômico que caracterizava tanto a social-democracia
como o stalinismo. Repetidas vezes contestou a tentativa de derivar
os fenômenos políticos diretamente da economia, a crise política da
crise econômica. Em seu discurso de julho de 1921 a respeito do
Terceiro Congresso Mundial da Internacional Comunista, Trotsky
desenvolveu sua concepção a partir do conhecido “Prefácio de 1859”

11
Sobre a relação com Labriola, ver BROSSAT (1976, p. 113-114). A aversão ao
dogmatismo aparece claramente nas passagens de sua autobiografia nas
quais reconstitui seus anos de formação (TROTSKY, 1973a, cap. VI-VIII. Cf,
tb. KNEI PAZ, 1978, cap. 1 e DEUTSCHER, 1984, cap. 2.)
12
Ver, a esse respeito, WALICKI (1971) e VENTURI (1981).

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Álvaro Bianchi 81

à Crítica da economia política, de Karl Marx. Segundo o


revolucionário russo, o Prefácio estabelecia que “nenhum sistema social
deixa a arena até que tenha desenvolvido as forças produtivas até o
máximo grau possível sob esse dado sistema; e nenhum sistema social
aparece no cenário a menos que as premissas econômicas necessárias
para tal já tenham sido preparadas pelo velho sistema social”. Mas
Trotsky alertava logo a seguir: “mais de uma vez o marxismo
compreendeu [essa afirmação] mecanicamente, unilateralmente e,
portanto, erroneamente.” (1973, v. 2, p. 1)
Qual o significado desse alerta? Trata-se de um alerta contra o
fatalismo decorrente do economicismo. As condições para a revolução
socialista são criadas quando a velha ordem não permite mais o
desenvolvimento das forças produtivas. A afirmação de que as forças
produtivas deixaram de se desenvolver no capitalismo, presente nesse
discurso, tem sido motivo de grande confusão. Poulantzas, por exemplo,
escreveu que essa afirmação expressa um “catastrofismo
economicista” que lhe impediria de “reconhecer a existência de etapas,
no sentido rigoroso do termo, na luta de classes” (1987, p. 87-88).
Mas a afirmação de Trotsky não significa o colapso automático da
velha ordem social. A queda da burguesia não é “automática ou
mecanicamente pré-determinada” (TROTSKY, 1973, v. 2, p. 4). Ela
é o resultado apenas da luta de classes: “Se o desenvolvimento das
forças produtivas é concebível nos marcos da sociedade burguesa,
então a revolução será, geralmente, impossível. Mas desde que o
desenvolvimento das forças produtivas nos marcos da sociedade
burguesa é inconcebível, a premissa básica da revolução está dada.
Mas a revolução, em si, significa uma viva luta de classes.” (Idem.)
A burguesia não é um ator passivo desse drama histórico. Ela é
uma força histórica viva, dinâmica e ativa. Contraditoriamente, segundo
Trotsky, a burguesia obtém justamente nesse momento seus maiores
poderes, a “maior concentração de forças e recursos, de meios políticos
e militares de fraude, coerção e provocação”. O que o “Prefácio de
1859” fez, então, foi apresentar o desafio histórico. Mas a solução
deste, segundo Trotsky, cabia à “classe trabalhadora”, “aos dirigentes

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


82 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

da classe trabalhadora”, “aos comunistas” e o resultado dessa luta


não poderia ser previamente definido (Idem, p. 6). Sobre isso são
importantes os esclarecimentos dados pelo próprio Trotsky em um
artigo a respeito da situação espanhola. Assim como o reformismo
anterior à Primeira Guerra Mundial justificava sua política, por meio
do forte desenvolvimento do capitalismo, da elevação do nível de vida
das massas e da estabilidade da democracia, os sectários justificavam
sua política recorrendo ao declino do capitalismo, à queda do nível de
vida das massas e à decomposição da democracia. “Mas assim como
o reformismo da época precedente, o sectarismo transforma as
tendências históricas em fatores onipotentes e absolutos.”
(TROTSKY, 1983, p. 97.)
Para Trotsky uma análise da “situação presente com toda a sua
particularidade” não pode ter como ponto de partida a “dissolução do
momento presente em uma situação geral” (idem). Desse modo, a
afirmação de que o capitalismo imperialista não é capaz de desenvolver
as forças produtivas nem de realizar concessões materiais ou reformas
sociais “efetivas” só é correta na “escala de toda uma época” (idem,
p. 98). Essa definição temporal pressupõe uma dimensão histórica de
longa duração – a época imperialista – que não pode ser reduzida à
situação (que Poulantzas de modo impreciso denomina “etapa”) ou à
conjuntura. A estagnação do desenvolvimento das forças produtivas
não impede, portanto, afirma Trotsky, os ciclos conjunturais de fluxo e
refluxo da economia mundial ou o desenvolvimento de certos setores
da economia ou de regiões específicas.13
Mas mesmo com relação a esses ciclos econômicos Trotsky foi
sempre cauteloso, prevenindo contra toda dedução da política a partir
da economia. O tema foi desenvolvido de modo incisivo no Relatório
sobre a crise econômica mundial e as tarefas da Internacional
Comunista, apresentado no 3º Congresso da Internacional Comunista

13
A afirmação de Poulantzas revela uma confusão entre os conceitos de época,
situação e conjuntura recorrente no campo do marxismo e causa de muitos erros. Um
livro recentemente publicado ajuda a esclarecer esses conceitos (ARCARY, 2004).

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


Álvaro Bianchi 83

em junho de 1921. Se uma depressão econômica, afirmava o


revolucionário russo nesse Relatório, forçasse a burguesia a exercer
uma forte pressão econômica sobre os trabalhadores, arrochando seus
salários, isso poderia levar a grandes lutas. A tarefa dos comunistas
deveria ser expandir essas lutas e seria de se perguntar se estas não
poderiam levar automaticamente à revolução mundial. “Entretanto,
colocar a questão desse modo é contrário ao marxismo. Não
temos garantias automáticas de desenvolvimento.” A negação do
automatismo tem um duplo sentido, também ao antagonista ele é
recusado. Um ciclo de crescimento econômico poderia não bloquear
a possibilidade da revolução. “Em geral o movimento proletário
revolucionário não tem uma dependência automática da crise. Existe
apenas a interação dialética.” (TROTSKY, 1973, v. 2, p. 261.)
A questão foi novamente explicitada, em 1935, no artigo Uma vez
mais, aonde vai a França?: “Não há nenhuma crise que, por si
mesma, possa ser ‘mortal’ para o capitalismo. As oscilações da
conjuntura criam somente uma situação na qual será mais fácil ou
mais difícil para o proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da
sociedade burguesa para a sociedade socialista pressupõe a atividade
de pessoas vivas, que fazem sua própria história.” (TROTSKY, 1994,
p. 64.) A recusa do determinismo tem aqui o estatuto de uma
advertência política. O determinismo econômico produz a crença no
caráter automático do próprio processo histórico. Para Trotsky, é essa
a matriz teórica do oportunismo: “Fé na evolução automática é o traço
mais importante e característico do oportunismo” (1973, v. 2, p.
263). A crítica contra o determinismo econômico é em Trotsky uma
crítica contra o imobilismo que ele produzia no movimento operário
internacional. Nada exerceu pior influência sobre a classe operária
alemã, afirmaria poucos anos depois Walter Benjamin, do que a idéia
“de que ela nada com a corrente” (1996, p. 227).
Essa formulação é constante no pensamento de Trotsky, a ponto
de julgar necessário registrá-la em suas memórias. Apresentando suas
pesquisas durante os anos que se seguiram à derrota da Revolução de
1905, Trotsky afirma:

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84 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

“Durante os anos da reação ocupei-me dos problemas da situação


geral do comércio e da indústria, tanto no plano mundial como em
escala nacional. Era o interesse da revolução o que me guiava:
procurava explicar a dependência mútua das flutuações comerciais
e industriais por um lado e, por outro, as fases do movimento
operário e da luta revolucionária. Sobre este ponto, como em todas
as questões do mesmo tipo, evitava, acima de tudo, estabelecer
uma dependência automática da política pela economia. As
relações mútuas deveriam ser deduzidas do processo considerado
em seu conjunto.” (TROTSKY, 1973a, p. 266.)

A concepção antideterminista e antidogmática da história


desenvolvida por Trotsky e sua rejeição de todo automatismo
economicista mostra seu vigor em sua História da revolução russa.
O prefácio anuncia um ambicioso projeto historiográfico que se
coloca no entroncamento histórico de múltiplas temporalidades, na
revolução: “a história da revolução é pra nós, principalmente, o resultado
de uma irrupção violenta das massas nos domínios onde se pautam
seus próprios destinos.” (TROTSKY, 1950, t. I, p. 10.) Mas o projeto
não se esgotava em uma narrativa dos acontecimentos. Para além
dessa narrativa ele tinha o objetivo de esclarecer as leis do próprio
movimento histórico:

“A história de uma revolução, como toda história, deve antes de


tudo relatar o que e como ocorreu. Mas isso não é suficiente.
Depois da própria narrativa é necessário que se veja claramente
por que as coisas ocorreram desse modo e não de outro. Os eventos
não poderiam ser considerados como um encadeamento de
aventuras, nem inseridos um após os outros sobre o fio de uma
moral preconcebida, eles devem se conformar a sua própria lei
racional. E a descoberta dessa lei íntima que o autor considera
seu objetivo.” (Idem, t. 1, p. 9)

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


Álvaro Bianchi 85

A arquitetura da obra revela uma concepção da história que


se afasta decididamente do determinismo economicista. “As
peculiaridades do desenvolvimento da Rússia”; “A Rússia tzarista e a
guerra”; “O proletariado e os camponeses”; “O tzar e a tzarina”, os
títulos dos primeiros quatro capítulos bastariam para indicar que o autor
pretende desenvolver uma análise histórica debruçando-se sobre um
tempo multifacetado que revela as várias dimensões da sociedade
russa. Respondendo às críticas que a historiografia oficial soviética
dirigiu a sua obra, Trotsky explicou da seguinte maneira seu método e
seus objetivos:

“Na História [da Revolução Russa] tentei partir não de minhas


simpatias políticas, mas do fundamento material da sociedade.
Considerei a revolução como um processo, condicionado por todo
o passado de uma luta implacável das classes pelo poder. No centro
de minha atenção estavam colocadas as modificações na
consciência das classes que se produziam sob a ação do ritmo
febril de sua própria luta. Não considerei os partidos e os homens
políticos de outro modo que sob a luz das modificações e dos
choques que sofriam as massas. Quatro processos paralelos,
condicionados pela estrutura social do país criaram o pano de
fundo de toda a narrativa: a evolução da consciência do proletariado
entre fevereiro e outubro; as mudanças produzidas no estado de
espírito do exército; o incremento da revolta camponesa; o
despertar e sublevação das nacionalidades oprimidas. Revelar a
dialética da consciência das massas deslocadas de seu equilíbrio
significou, também, para o autor mostrar a chave que permitiria
penetrar o mais diretamente e o mais intimamente em todos os
acontecimentos da revolução.” (TROTSKY, 1978, p. 100.)14

A ordem dos capítulos de História da revolução russa indica um


movimento que a partir de níveis mais abstratos de análise se dirige

14
Ver a respeito da atividade de Trotsky como historiador o comentário de
García Higueras (2005, p. 165-177).

Idéias, Campinas, 14(1/2), 2007


86 O Marxismo de Leon Trotsky: notas para uma...

àqueles mais concretos na busca da apreensão dessa dialética. Se nos


primeiros capítulos são definidas as relações de forças objetivas, ou
seja, a estrutura, a materialidade das classes sociais, nos demais são
as relações de forças políticas e ideológicas as que ganham força. Do
lento tempo do desenvolvimento do capitalismo, um tempo no qual os
indivíduos não tem vez, ao tempo frenético dos combates de rua, nos
quais a personalidade do tzar torna-se decisiva. Unificando essas
diferentes temporalidades está a própria revolução, o encontro da
estrutura com os atores.
Salta aos olhos, entretanto, que o embora o autor dedique-se
exaustivamente à análise da conjuntura política, não há uma análise
da conjuntura econômica em suas obras de análise das revoluções de
1905 – 1905 e Balanço e perspectivas – e de 1917 - História da
revolução russa, Lições de outubro (TROTSKY, 1971) e A
revolução russa (Conferência) (TROTSKY, 1989). Evita-se, desse
modo deduzir os movimentos revolucionários de fevereiro e de outubro
das oscilações da economia, tão ao gosto do marxismo vulgar.
Revalorizando o lugar da vontade humana na história, das classes
sociais e de suas formas partidárias, Trotsky descarta todo
automatismo e afirma a centralidade da política nos processos de
revolução social. Na própria letra do texto seu autor se justifica a esse
respeito:

“Em uma sociedade tomada pela revolução, as classes estão em


luta. É, portanto, evidente que as transformações nas bases
econômicas da sociedade e no substrato social das classes que se
produzem entre o início e o fim de uma revolução, não são suficientes
para explicar a marcha da própria revolução, uma vez que em um
breve lapso de tempo ela derruba as instituições seculares, cria
novas e as derruba novamente. A dinâmica dos eventos
revolucionários é diretamente determinada pelas rápidas, intensas
e apaixonadas conversões psicológicas das classes constituídas
antes da revolução.” (TROTSKY, 1950, t. I, p. 10.)

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Álvaro Bianchi 87

Essas mudanças na psicologia das classes, ou seja, o processo de


formação da consciência de classe, não se produzem, entretanto, de
modo autônomo. Seguindo de perto Marx, Trotsky afirmava ser esta
determinada pelas condições gerais de existência. É importante
ressaltar que por tais condições o autor de História da Revolução
Russa entende de modo abrangente as circunstâncias históricas da
formação da sociedade russa em suas dimensões econômica, social e
política, bem como a relação desse país com as potências estrangeiras.
Daí que dedique os primeiros quatro capítulos a análise do
desenvolvimento da sociedade russa e de suas forças internas,
apresentando nos demais essas forças em plena ação.
Paradoxalmente, essa concepção da história motivou uma crítica
oposta àquela de Poulantzas acima mencionada. Nicolas Krassó, por
exemplo, acusou Trotsky de desenvolver uma concepção impregnada
de “sociologismo”. A tese de Krassó é construída de modo mais rigoroso
do que aquela do “economicismo” e revela um conhecimento mais
aprofundado do conjunto da produção teórica e da trajetória política
do marxista russo. Segundo Krassó:

“Assim como assinalado freqüentemente, a História da Revolução


Russa é, acima de tudo, um brilhante estudo da psicologia das
massas e de seu oposto complementar, o esboço individual. Não é
tanto uma explicação do papel do partido bolchevique na
revolução como uma epopéia das multidões que dito partido
conduziu à vitória. O sociologismo de Trotsky encontra aqui sua
máxima expressão. O idealismo que necessariamente entranha,
produz uma visão da revolução que rejeita explicitamente a
permanente importância das variáveis políticas. A psicologia da
classe, combinação perfeita dos dois membros do permanente
binômio – forças sociais e idéias – converte-se na instância
determinante da revolução.” (KRASSÓ, 1970, p. 41-42.)

A acusação central de Krassó é que essas forças sociais e idéias


seriam consideradas “sem organizações políticas que interviessem

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como níveis permanentes e necessários da formação social” (Idem,


p. 20). A afirmação não deixa de ser surpreendente. Já demonstrei
acima a importância atribuída por Trotsky ao Estado na formação
social do capitalismo russo e as acusações dirigidas por Pokrovsky a
esse respeito. Sobre isso é necessário acrescentar, para ser rigoroso,
que o conceito de Estado mobilizado por Trotsky em Balanço e
perspectivas apresenta ainda alguns limites. e é possível encontrar
em seu interior uma nítida contradição. O enunciado inicial do conceito
é bastante convencional: “O Estado não é um fim em si. É apenas
uma máquina em mãos das forças sociais dominantes.” (TROTSKY,
1969, p 419.) A afirmação carrega um viés fortemente instrumentalista
e de modo compatível com esse viés Trotsky insinua a neutralidade do
aparelho estatal, afirmando: “dependendo em que mãos se encontre
pode ser a alavanca para uma revolução profunda ou o instrumento
de uma paralisação organizada” (Idem).
Não é este o lugar para apresentar de modo mais aprofundado a
crítica ao conceito instrumental de Estado, mas para meus propósitos
basta dizer que desde A guerra civil na França, redigido por ocasião
da Comuna de Paris, Marx destacou que “a classe operária não pode
se contentar em apossar-se do aparelho de Estado tal como se
apresenta e de fazê-lo funcionar para seus próprios fins.” (MECW, v.
22, p. 328.) Ou seja, a mesma “alavanca” não poderia ser o instrumento
de uma “revolução profunda” ou de “uma paralisação organizada”
bastando mudar seu operador. A construção do socialismo exigiria
uma máquina e ferramentas de outro tipo.
Embora o conceito de Estado mobilizado por Trotsky neste momento
apresente limitações sua abordagem não deixa de ser sutil e mesmo
criativa em vários aspectos. A afirmação do Estado como uma máquina
não define senão o conteúdo de classe do Estado, e mesmo assim o
autor não utiliza a palavra classe, preferindo “força social”, para, logo
a seguir mencionar os “interesses de casta, dinastia, camada ou classe”
(TROTSKY, 1969, p 419.). Tais interesses são percebidos por Trotsky
de modo original como a “organização, desorganização e reorganização
das relações sociais” (Idem). Na esfera da política, a coerção estatal

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sobre as classes subalternas – mas não apenas sobre estas – se


exerceria de um modo negativo como supressão de sua capacidade
de organização autônoma, ao mesmo tempo em que imporia,
afirmativamente, formas controladas de participação. Na esfera da
economia, a coerção estatal procuraria suprimir formas econômicas
pré-capitalistas de produção e apropriação do excedente, ao mesmo
tempo em que imporia novos modos de organização da produção,
reconfigurando as relações sociais.
Os cuidados tomados lhe permitem analisar de modo inovador o
Estado absolutista russo. Enquanto, afirma Trotsky, o absolutismo
europeu nascia do equilíbrio de forças entre as classes dominantes, o que
garantia ao aparelho governamental aquela independência que permitia a
Luís XIV identificar-se com o Estado, na Rússia era a debilidade das
classes sociais, da burguesia em primeiro lugar, o que possibilitava à
autocracia se afirmar como um poder absoluto: “Nessa perspectiva, o
tzarismo é uma forma intermediária entre o absolutismo europeu e o
despotismo asiático, e pode ser que se aproxime mais deste último”,
afirmou (idem, p. 21).15 Era essa condição de forma intermediária o que
permitia ao Estado russo operar com elevada autonomia perante as classes
sociais e manifestar-se ativamente no próprio processo de organização/
desorganização/reorganização das relações sociais. Uma autonomia que
era para Trotsky, avant Poulantzas, relativa.16

15
De modo extremamente mecânico, Pokrovsky tratava o Estado absolutista
como uma criação do capital comercial: “O absolutismo dos tempos modernos,
de Luís XIV tanto como de nosso Pedro, foi criado pelo capital comercial, o qual
necessitava de uma ‘mão de ferro’ para extorquir o excedente produzido pelos
pequenos produtores (legalmente) independentes, bem como para a conquista
de rotas comerciais, mercados e colônias.” (Pokrovsky, 1970, p. 158.)
16
“Se o tzarismo se erigiu em organização de Estado independente
(relativamente independente, repitamos, dentro dos limites da luta viva das
forças históricas sobre o terreno da economia) , não foi com o auxílio de
poderosas cidades, em oposição a poderosos senhores feudais ; foi – apesar
da completa penúria industrial de nossas cidades – devido à debilidade dos
senhores feudais em nosso país.” (TROTSKY, 1950, t. I, p. 424.)

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Mas a importância da política não é afirmada apenas nesse tempo


expandido da formação social. Para Trotsky a política ocupa um lugar
central nos processos revolucionários, daí a sua ênfase desde 1905 na
questão da constituição das instituições políticas das classes
trabalhadoras e, particularmente, dos soviets. Quem assumir seriamente
a afirmação de Krassó ficará na difícil posição de explicar como o
presidente do soviet de Petrogrado nas revoluções de 1905 e 1917
teria negligenciado o soviet do qual era presidente.
E o que dizer dos capítulos chaves de sua História da revolução
russa dedicados aos conflitos no interior das instituições políticas? O
que dizer da reconstrução minuciosa dos conflitos no interior do governo
provisório entre os diferentes grupos políticos; das disputas existentes
no interior dos soviets; dos embates existentes entre aquele governo
provisório e estes soviets que constituíram uma dualidade de poderes;
e, por fim, das diferenças existentes no seio mesmo do partido
bolchevique?17 O equívoco da afirmação de Krassó encontra-se
assentado em uma concepção da política que primeiro restringe esta a
suas instituições para depois reduzi-las a uma única: o partido. Seu
argumento tem como pressuposto um reducionismo institucionalista.
Ora, para o marxismo a política é o espaço dos conflitos pela
apropriação do poder político e, portanto, as instituições que compõem
esse espaço são de grande relevância, muito embora elas não o
preencham completamente.
A questão não é apenas conceitual, o argumento de Krassó é
equivocado porque suprime parte fundamental do argumento de
Trotsky. O conhecido nexo que o revolucionário russo estabelece entre
a crise da humanidade e a crise de direção revolucionária do
proletariado já indica, claramente, o vínculo que estabelece entre classe

17
Cf. TROTSKY (1950). A esta obra seria importante acrescentar o
acompanhamento detalhado das disputas no interior do PCUS na década de
1930, além de um importante estudo sobre seus grupos dirigentes à moda
daquilo que hoje seria denominado “sociologia dos partidos políticos”
(TROTSKY, 1986, p. 192-202).

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e partido. Sobre esse nexo é esclarecedor, seu importante artigo de


caráter teórico a respeito da Revolução Espanhola:

“o desenvolvimento da revolução consiste, precisamente na


mudança incessante e rápida da relação de forças sobre o impacto
das mudanças na consciência do proletariado, a atração exercida
sobre as camadas atrasadas pelas camadas avançadas, a confiança
crescente da classe em suas próprias forças. A mola principal,
vital, deste processo é o partido, assim como a mola vital do
mecanismo do partido é sua direção. O papel e a
responsabilidade da direção em uma época revolucionária são
colossais.” (TROTSKY, 1985, p. 328. Grifos meus.)18

É na transição para o socialismo que a centralidade da política


se manifesta de modo mais claro. Contrapondo-se às idéias do
historiador Nicolai Rozhkov, Trotsky afirma a revolução proletária
como a condição prévia do socialismo. O debate sobre as
condições prévias para o socialismo ocupava então um lugar
central entre a intelligentsia russa no começo do século XX. A
partir de uma leitura reducionista de Marx, Rozhkov fixava três
condições para o advento do socialismo na Rússia: 1) o
predomínio “quase completo da produção em grande escala em
todos os ramos da economia”; 2) o predomínio da produção
cooperativa; e 3) “um desenvolvimento suficiente, no seio do
proletariado, da consciência de classe a um grau necessário para
realizar a unidade espiritual da esmagadora maioria das massas
populares” (apud TROTSKY, 1969, p. 435). Atendidas essas
condições seria possível “abater aqueles magnatas do capital e
organizar, sem revolução nem ditadura, uma ordem econômica
socialista.” (Idem, p. 438.)

18
Esse texto é um fragmento inacabado, com data presumida por Pierre Brouè
de março de 1939.

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É contra esse automatismo que Trotsky se levanta. O


desenvolvimento técnico, a concentração da produção e a elevação
da consciência das massas são condições prévias para o socialismo.
Mas esses processos ocorrem de modo simultâneo e na sua articulação
têm seus tempos acelerados ou freados. Não há, portanto, automatismo.
Se fosse possível pensar um desenvolvimento técnico autônomo, seu
valor limite seria um único mecanismo que suprimisse todo trabalho
humano e tornasse prescindível o próprio capitalista. Ocorre que o
capitalismo encontra-se constrangido pelas relações de classe e pela
luta revolucionária. Para Trotsky:

“a questão é que esses processos que constituem as premissas


históricas do socialismo não se desenvolvem isoladamente uns
dos outros, mas se limitam mutuamente; e assim que elas atingem
um certo ponto que depende de numerosas circunstâncias, longe,
entretanto, de seus limite matemático, são afetadas por uma
mudança qualitativa, sua combinação complexa engendra, então,
o fenômeno que denominamos de revolução social.” (Idem, p. 440.)

A discussão sobre as condições prévias, tal qual colocada até aqui


não faz senão fixar os limites de uma época histórica e afirmar o
socialismo como uma possibilidade histórica. E é sobre isso que Trotsky
discute com Rozhkov. Mas para a análise da situação essas condições
aparecem como constantes. A questão fica clara em sua polêmica
mais uma vez contra Pokrosvky no prefácio à segunda parte de
História da revolução russa. O historiador soviético acusava Trotsky
de sustentar suas teses em uma concepção idealista que se afastava
dos fatores objetivos da revolução. “Entre fevereiro e outubro ocorreu
uma formidável desorganização econômica”, que teria provocado
a sublevação dos camponeses afirmava Pokrovsky (Apud TROTSKY,
1950, t. II, p. 10). Era nesse deslocamento objetivo que radicariam as
causas da revolução. Em sua obra Teoria da revolução proletária,
Pokrovsky recorreu a uma leitura enviesada de Lenin para afirmar

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que apenas uma crise econômica, geral seria capaz de produzir uma
situação revolucionária, indispensável para o triunfo do movimento de
massas. Daí o veredicto: “É isso, precisamente o que Trotsky não
compreende, razão porque expõe a teoria de que: resume-se nos
transes de protesto da massa trabalhista, que responsabiliza
capitalmente a crise econômica, a possibilidade de sublevação do
proletariado” (POKROVSKY, s/d, p. 40).
A oposição entre o materialismo histórico de Trotsky e o
materialismo econômico de Pokrovsky é flagrante. Em sua exposição
de 1914 da teoria do materialismo histórico, o futuro presidente da
Sociedade de Historiadores Marxistas resumia assim sua concepção
que norteava seu trabalho:

“Onde surge com mais clareza a dependência das relações


econômicas é na organização política: (...): a cada regime econômico
corresponde um regime político preciso, Tudo isto faz do
materialismo histórico a hipótese mais fecunda que jamais teve à
sua disposição a ciência histórica: dentre todas as interpretações
possíveis das transformações históricas, o investigador tem o
dever de atender antes de mais nada à interpretação ‘econômica’”
(POKROVSKY, s/d, p. 15).

Era por esta via que a posição de Pokrovsky aproxima-se


certeiramente do positivismo. O materialismo econômico daria o
estatuto de ciência à Historia, uma ciência que Pokrovsky não relutava
em aproximar das ciências naturais e, particularmente, da biologia,
après Comte:

“Em resumo, não há fundamento racional algum para negar que a


história da cultura seja uma das ciências naturais e uma ciência
não tão atrasada como às vezes se supõe. À proporção que a
interpretação materialista da história vai conquistando um número
cada vez maior de adeptos, entre os especialistas, nossa ciência vai
alcançando, mais e mais, sua mais próxima vizinha e antecessora, a
biologia.” (Idem, p. 19.)

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Trotsky respondeu as acusações destacando aquele que é o


ponto central, a crítica ao economicismo:

“Graças a uma louvável clareza na maneira de colocar as questões,


Prokrovsky revela do melhor modo a inconsistência de uma
explicação vulgarmente econômica da história que se faz passar,
freqüentemente, por marxismo” (TROTSKY, 1950, t. II, p. 10) .

As causas da revolução não podem, entretanto, ser procuradas


nas mudanças conjunturais da economia. As bases sociais da revolução
se desenvolvem ao longo de um tempo estendido no qual a contradição
entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais
se estabelece. Mas este tempo define uma época histórica e não uma
situação, e menos ainda uma crise revolucionária.

Conclusão

Dentre as importantes contribuições de Trotsky ao marxismo é


comum apontar as teorias do desenvolvimento desigual e combinando,
da revolução permanente e do Estado operário degenerado.
Propositalmente evitei aqui essas questões para destacar os
pressupostos metodológicos que permitiriam compreender esses
desenvolvimentos teóricos. Nesse sentido, minha ênfase recaía não
nos originais aportes de Trotsky à teoria social e política e sim na sua
específica contribuição ao desenvolvimento do marxismo como um
método de análise das relações sociais.
Creio ter demonstrado que o internacionalismo metodológico e
a centralidade da política nos processos revolucionários são
importantes aspectos do marxismo de Trotsky e constituem elementos
de unificação de seu pensamento social e político. É nesses aspectos
que reside a força e a originalidade de seu marxismo. Revelar os
fundamentos desse pensamento permite reconstruir teoricamente as
soluções dadas por Trotsky a problemas específicos da teoria social e

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política. Mas a afirmação dessa unidade não basta para tal reconstrução.
É preciso, além dela, captar a diversidade que se manifesta no próprio
processo de produção teórica.
Para tal é necessário, em primeiro lugar, levar em conta a
diversidade material da obra de Trotsky e definir de modo preciso as
fontes da pesquisa. Como já disse, tratam-se, em grande medida, de
textos de intervenção em conjunturas específicas. Mas o próprio grau
de desenvolvimento dos textos é variado. Um trabalho rigoroso de
reconstrução teórica não pode aquilatar do mesmo modo uma obra
como A revolução traída e uma carta destinada a um dirigente do
Socialist Workers Party, não pode atribuir idêntico valor a uma obra
publicada pelo autor e a outra póstuma. A determinação do lugar
ocupado por cada parte da obra no conjunto desta torna-se, desse
modo imprescindível. Isso não significa, evidentemente, fazer uma
reconstrução unicamente por meio das “grandes obras” significa isto sim,
compreender que no processo de reconstrução teórica elas devem ocupar
um lugar de destaque, como procurei fazer ao longo deste artigo.19
Em segundo lugar, é necessário levar em conta a diversidade teórica
da obra de Trotsky e definir de modo preciso o método de pesquisa.
Trata-se de assumir a relação dialética entre a teoria e a prática no
interior da própria obra de Trotsky. Assumir essa relação implica em
reconhecer as diferentes temporalidades que se fazem presentes no
conjunto de sua obra e explicitar a tensão existente no interior desta
entre o tempo histórico e o tempo do processo de produção teórica,
entre o tempo no qual um problema específico da vida social e política
se apresenta como um problema ao mesmo tempo prático e teórico e
o tempo do desenvolvimento da solução teórica dada pelo autor a essa
questão. Nessa perspectiva, a querela sempre renovada entre as
leituras contextualistas/historicistas e as leituras imanentes de uma
obra teórica perde todo sentido.

19
Sobre fontes da pesquisa seria necessário cuidar ainda a qualidade das
edições utilizadas. Sobre este tema e, particularmente sobre as edições em
português remeto a meus comentários em Bianchi (2005).

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É, pois, tomando como ponto de partida a unidade do marxismo de


Trotsky para nela reencontrar sua diversidade que se pode avançar
em um processo de reconstrução teórica de seu pensamento social a
político. É a partir desses critérios que creio ser possível abordar
criticamente às teorias do desenvolvimento desigual e combinando, da
revolução permanente e do Estado operário degenerado para nelas
encontrar um marxismo vigoroso que se debruça sobre o real com
vistas a transformá-lo. E creio que essa abordagem crítica, se for
teoricamente rigorosa, poderá chegar a resultados muito distantes
daqueles firmemente estabelecidos no senso comum anti-trotskista,
não-trotskista ou, até mesmo, trotskista. Certamente é mais fácil ficar
com o senso comum. Mas quem disse que a teoria marxista é fácil?

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