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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Sofia

Querida filha,

Cá estou eu a escrever-te de novo ... já sabes que vem lá algo da pesada, chato, ...
certo? ... Espero que o inicio deste novo ano lectivo te esteja a correr bem. ... Qual é o
motivo, desta vez, deste mail? Vem a propósito daquela conversa que tivemos no
terraço de Várzea – anos-luz, distâncias, viagens ao passado, buracos negros, ...
lembras-te? – e também das imagens que vimos na televisão evocativas do 11 de
Setembro, ... da destruição das Torres Gémeas em Nova Iorque. Deu-me vontade de
completar o último mail que te enviei sobre religiões, relações entre povos e a educação
das crianças e adolescentes. Faço-o avançando por um tema que na minha opinião
também abarca o das religiões, e muitos outros, e que é o do conhecimento encarado
numa perspectiva mais abrangente do que é habitual. Perspectiva essa que também
engloba, por exemplo, as ideologias políticas. Pois entendo que quanto a estas se
aplicam exactamente os mesmos pressupostos e princípios de acção que nesse mail
expressei. Particularmente no que diz respeito ao perigo que é crianças e adolescentes
desenvolverem convicções políticas. Penso que também nesta área estamos a falar de
questões importantes. Logo, pelas mesmas razões que então apontei quanto às religiões,
é perniciosa a formação de convicções, de qualquer quadrante, demasiado cedo.
Tenho ainda bem presentes as imagens que vimos e o que conversámos a propósito
daquele acontecimento apocalíptico, aterrador, da destruição das Torres Gémeas. Não
me saem da memória os dois aviões a entrarem pelos arranha-céus como facas em
manteiga ... Quais seriam as motivações dos suicidas, quais as justificações para tal acto
que se apresentaram a si próprios? Dificilmente poderemos encontrar num
acontecimento de duração tão curta, e ao mesmo tempo tão avassalador, espectacular,
que seja melhor ilustração do que a seguir tentarei expor: a simbiose absoluta entre
identidades, valores e aspirações, que é sempre mediada, preenchida de significado,
transportada, implementada, feita surgir, emergente em cada momento, em cada instante
único ... através das tecnologias. Instante, lembras-te? Buraco negro, fusão do tempo e
espaço ... início tanto do Universo material, como do tempo ... Voltando às Torres
Gémeas ... De novo estamos perante um acontecimento cujas motivações encontram
fundamento no paradigma da verdade: a crença de que existe uma verdade que está aí

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para ser encontrada e afirmada, o que implica inevitavelmente que diferentes grupos de
pessoas entenderão que se aproximaram mais dela, ou mesmo que a descobriram. Seja
como for, irão sempre pô-la ao seu serviço, uma vez que, não existindo, essa suposta
verdade nunca poderá dissociar-se dos interesses do momento, de cada instante, de cada
grupo de pessoas, e sempre por contraste aos de outros grupos de pessoas. Para
complicar ainda mais, a própria construção de sentido do que é o próprio grupo – O Eu,
passo a designar – e o grupo dos outros – o Outro – emerge em cada instante, face às
estratégias de afirmação no momento. Ou seja, qualquer conhecimento é sempre
afirmação de identidade, logo também de valores – a cultura - e aspirações partilhados,
que se transformam com e pelas tecnologias em cada instante. De novo, como a
propósito das religiões, aquilo que nos habituámos a olhar como o essencial muda,
mesmo, e o acessório muda menos. É o caso de muitas tecnologias, procedimentos,
ferramentas e instrumentos, e das próprias palavras que se mantêm iguais designando
objectos que se vão transformando, passando a preencher funcionalidades
completamente diferentes. Lembra-te, por exemplo, da palavra telemóvel o do que ela
tem vindo a designar ao longo destes últimos anos. Esta permanência dos termos que
utilizamos para designar os fenómenos que, no entanto, se vão transformando,
diferenciando, contribui para a ilusão da estabilidade das identidades, culturas e
aspirações, e das ideias em geral.
Para rematar, implica tudo isto que qualquer conhecimento é sempre decisão em
cada instante. Decisão sobre o que pensar e como agir, também face ao Outro, e que
Outro e que Eu, utilizando e encaixando-se nas tecnologias disponíveis, fazendo-as por
sua vez transformarem-se também ao sabor dessas estratégias de afirmação de
identidades, aspirações e culturas, apesar de eventualmente as palavras que as designam
se manterem as mesmas. Penso que se olhares as diferentes especialidades médicas
podes concluir que elas se afirmam não somente por via da sua dedicação a
determinadas fases da vida, tipos de doenças, àreas ou sub-sistemas do corpo humano,
mas muito também pelo domínio de determinadas tecnologias e procedimentos
específicos cuja utilização de per se acaba por ser o grande motivo de especialização,
logo de emergência de identidades, culturas de grupo e de partilha de aspirações, com
implicações na construção das relações Eu – Outro. Já ouviste o aforismo “Quem tem
martelo encontra pregos”?
Deixa-me tentar explicar melhor a ideia em geral (não me meto mais nas questões
médicas) ... Em cada instante estamos imersos num processo que podemos chamar

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contexto sentido. Sentido em duas acepções: porque atribui significados, porque dá
sentido às coisas; e porque é sentido, quer dizer, antes de tudo mais é emocionalmente –
intuitivamente – emergente, podendo, ou não, ser racionalizado a posteriori. Digamos
ainda que esta designação é também uma forma de sublinhar a natureza eminentemente
contextual do conhecimento, o que implica também afirmar a sua essência como
processo colectivo. Quer dizer, o conhecimento emerge como um todo, e único, em
cada contexto – momento específico da acção dos humanos. Único porque emerge in
situ como processo e que é no mesmíssimo instante percepção, decisão e acção e, ainda,
que constrói holisticamente o real no aqui-e-agora, incluindo-se nesse “real” tudo, logo
também aquelas instâncias que somos nós próprios, indivíduos e grupos – daí a sua
incontornável natureza social. Quer dizer, Eu e Outro são também contextuais e
emergem em interdependência indissociável com todas as outras instâncias do processo
conhecimento. Por esta via rejeito uma perspectiva personalista sobre o conhecimento,
que o centra no indivíduo, e o encara, ao conhecimento, como consequência de
processos sequenciais do tipo apreensão, decisão, e acção. Ou seja, como se fosse o
produto final de análises fragmentadoras dos fenómenos, que separam o observador e o
objecto observado, e ainda como se fosse o resultado final de processos de causa e
efeito ou de natureza cibernética (acção e retroacção).
Ao invés, conhecimento é ele próprio, a um só tempo, processo em curso, de
percepção/decisão/acção, que emerge in situ, enformado por e enformando as dinâmicas
interactivas dos actores sociais – indivíduos/grupos. Isto implica que o processo
conhecimento abarque também fenómenos que designamos por vezes por decisão,
inovação, criação, mudança, e outros, tantas vezes abordados como se de fenómenos
independentes, ou pelo menos com relativa autonomia, se tratassem. São absoluta e
integralmente interdependentes, tal como acontece quanto a identidades, culturas, e
aspirações. Deste modo, os fenómenos habitualmente associados àquelas e a estas
expressões não só podem e devem ser encarados como essencialmente interdependentes
e contextuais, mas também como emergentes – participantes e participados –, in situ, no
e pelo processo de percepção/decisão/acção que é o conhecimento. Encurtando, são, na
sua essência, conhecimento. A sua natureza só é apreensível em interdependência
mútua, como instâncias em processo, e apenas sob a lente do contexto específico que a
um só tempo enforma e é enformado pelo comportamentos dos indivíduos/grupos,
também eles, incluindo o Eu e o Outro, emergentes no concreto. Numa frase curta,
qualquer conhecimento é-o também sobre nós, nomeadamente sobre como “vemos”

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aquilo que, apenas aparentemente, está fora de nós. Tal como já o fiz anteriormente para
a questão das religiões, resolvi contar uma história aos teus irmãos para lhes passar esta
ideia da contextualidade das identidades, culturas e aspirações, dos mundos únicos,
instantâneos, que em contexto são construídos. Em suma, do conhecimento. Chamei-lhe
“A Aldeia dos Narizes”. Está em attach. Diz-me o que te parece.
Esta acepção contextualizante e abrangente sobre o conhecimento oferece-nos um
ponto de fuga para o qual confluem o individual, o grupal, os sistemas de significados
(as tecnologias em sentido lato, como por exemplo as linguagens) e o “mundo das
ideias”, permitindo-nos perspectivar o social holisticamente, uma vez que são
interdependentes e, mais, faces de um mesmo polígono em transformação permanente
no processo conhecimento in situ. Proporciona-nos também a possibilidade de olhar o
papel da tecnologia, nomeadamente o das tecnologias de informação e comunicação, no
processo contínuo e omnipresente de emergência/transformação do conhecimento, logo,
na “construção” de nós próprios, o que é dizer, na emergência da essência em
tranformação do humano. Assumindo que a capacidade de realizar transformações
intencionais e continuadas na tecnologia é a característica que nos distingue em relação
às outras espécies, e tendo em conta a participação da tecnologia na construção do
“real”, é recomendável então explorar a hipótese de que é na relação humano-
tecnologia, na sua permanente transformação, que reside precisamente a nossa essência.
Esta abordagem é tanto mais possível quanto mais entendermos o humano não como
uma colecção de indivíduos, nem como de grupos de indivíduos, mas como processo de
transformação em permanência do conhecimento. (Sobre isto, Margarida, poderemos
falar noutra ocasião ... Já estou a abusar da tua paciência ...)
Restam-nos, aparentemente, como invariantes a-contextuias os artefactos
tecnológicos, tanto tangíveis como intangíveis (ferramentas, máquinas, signos
linguísticos, prescrições, métodos, ...). No entanto, se tivermos em conta a variabilidade
semântica desses artefactos – basta pensar, como exemplo, nos sentidos que a palavra
amizade pode ter consoante o contexto de utilização! -, queremos dizer, a construção
incontornavelmente contextualizada dos seus significados, logo das suas
“contribuições” para a construção do “real” in situ, podemos então olhá-los, no que diz
respeito ao conhecimento, não tanto como signos mas mais como media. Melhor ainda,
como media e mediados a um só tempo do processo conhecimento e pelo processo
conhecimento. Este entendimento dos artefactos tecnológicos revela-se com particular
clareza nos dias de hoje com a generalização da utilização das novas tecnologias de

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informação e comunicação, porque são sistemas tecnológicos que operam com e sobre
signos de elevada intangibilidade, logo de alargado espectro e acelerada variabilidade
semântica. Em paralelo, são também realçadas as limitações redutoras racionalizantes
das “velhas” línguas faladas e escritas, de pendor linear e sequencial... O que me diz que
provavelmente não estarei a utilizar o media mais adequado para passar as minhas
ideias! ☺
Implica tudo isto que o conhecimento é um processo indissociável das estratégias de
diferenciação, logo de afirmação, dos indivíduos/grupos. Numa perspectiva
evolucionista, os grupos humanos em contexto, logo as identidades, culturas e
aspirações, afirmam-se e transformam-se emergindo em processo subordinado ao
imperativo de diferenciação de um Outro e de integração de um Eu in situ. Por outras
palavras, no processo conhecimento estão contidas as necessidades de diferenciação e
afirmação dos indivíduos/grupos, e sua satisfação. Por outro lado, a um só tempo, esse
processo alimenta-se de e alimenta a diversidade no “mundo das ideias” como condição
necessária à transformação das mesmas, logo à evolução do humano. Deste ponto de
vista nós, indivíduos/grupos, podemos olhar-nos em simultâneo como, em contexto,
media de e mediados pelo processo conhecimento. Em consequência, e de novo
segundo um paradigma evolutivo, à transformação do humano está subjacente a
necessidade de extinção das ideias, na medida em que estas se transformam e se
multiplicam, mas não a da extinção ou submissão dos indivíduos/grupos. O que
significa ainda, numa perspectiva emancipatória, que defendo a aparente contradição de
que as ideias não são, por um lado, assimiláveis a pessoas/grupos e que, por outro, não
devem ser encaradas como universais e a-contextuais, e muito menos como dissociáveis
dos interesses específicos em contexto dessas mesmas pessoas/grupos (De novo a
abusar da contradição e do paradoxo! ☺). À evolução do conhecimento está subjacente
a necessária busca incessante da diversidade das ideias, que por sua vez se alimenta de e
alimenta as divergências e incompatibilidades contextuais dos interesses e desejos,
processo este no qual participam e emergem em interdependência com aqueles, mas não
lhes sendo assimiláveis, as identidades, culturas e aspirações – logo, o Outro e o Eu.
Retiramos daqui a ilação utópica, e era aqui que eu queria realmente chegar – isto a
propósito do 11 de Setembro e de eventuais sequelas de parte a parte - de que o fim de
qualquer tipo de violência poderá muito bem passar pelo fim do parasitismo das ideias.
Quero dizer que passará pela tomada de consciência e aceitação da contextualidade e
interdependência daquelas em relação aos interesses, em oposição à utilização das

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mesmas no pressuposto do paradigma da verdade, como se fossem autónomas dos
contextos e indivíduos/grupos. Este pode bem ser um primeiro passo para o fim da sua
utilização como vias e armas para a imposição de uma suposta superioridade a-
contextual dos interesses do Eu em relação aos do Outro, induzindo atitudes e
estratégias competitivas que confundem acepções universalistas sobre justiça, bem
comum, valores universais, etc., com os interesses próprios.
A necessidade desta visão é, na minha opinião, particularmente pertinente face à a-
temporalidade e à a-espacialidade no hiperespaço proporcinado pela internet que
permite a comunicação entre todos, independentemente do tempo e do espaço,
libertando-nos das distâncias, da necessidade de proximidade física e das sincronias
temporais, da necessidade da articulação de agendas com os outros. Ou seja, cada vez
mais se torna visível a autonomia dos instantes, a sua descontinuidade apesar da
permanência das palavras e dos artefactos tecnológicos, em suma, cada vez mais o
processo contexto sentido se mostra. Ainda por outras palavras, cada vez mais se nos
revela a efectiva volubilidade das essências supostamente permanentes e universais, a
leviandade e o egoísmo intrínseco aos exclusivismos e triunfalismos associados a
quaisquer tipos de ideias, a superficialidade e o perigo das teleologias, e a futilidade e
simplismo da divisão das civilizações segundo critérios coincidentes com as religiões
dominantes. Revela-nos, por outro lado, a seriedade e importância vital do instável, do
temporário, das divergências, das contraposições e das incompatibilidades de toda a
ordem e, sobretudo revela-nos a necessidade de se aceitar e lidar com a sua
incontornabilidade. São ingredientes essenciais, por exemplo, em qualquer processo de
aprendizagem, de mudança e de inovação.
Isto tanto mais é importante quanto cada vez mais os grandes desafios que se põem
à humanidade são globais e exigem por isso abordagens globais, particularmente por via
desta sociedade em redes à distância que a net em banda larga proporciona. Neste
mundo globalmente interdependente o Outro já não é o espacial e temporalmente
distante – cada vez menos se aplica o aforismo “longe dos olhos, longe do coração” –, e
cada vez com mais frequência está ao nosso lado, e inesperadamente se transfigura no
Eu, e de novo noutro Outro, e de novo noutro Eu, e de novo... É desejável que esta
escalada não seja também a da violência.
Margarida, fui de novo extenso. Senti que aquele mail sobre as religiões teleológicas
tinha ficado incompleto. Perdoa-me. Se quiseres falar sobre estes assuntos ... quando
quiseres. Ao menos registei para não me esquecer daquilo que me parece importante.

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Os teu irmãos e a Rita mandam beijinhos. Já estão com saudades, e eu também, e só
há poucos dias regressaste à Alemanha ...
Falamos na net no dia e à hora do costume.

Beijos,

Pai

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