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Campinas, 9 a 22 de novembro de 2009 JORNAL DA UNICAMP 11

Livro mostra relações entre as áreas jurídica, arqueológica e dos direitos humanos
Isabel Gardenal enterrado na época da ditadura. Poucas assassinados, como dissidentes políticos. questão é como essa ditadura pôde se

R
bel@unicamp.br pessoas assistiam. A localização no Não conseguimos porque neste local de instalar. Porque não existe um ditador
meio do mato é dificílima. Passados “desova de cadáveres” foram achados apenas. Existe todo um sistema. Como
ecém-lançado, o livro Arqueologia, Direito 30 anos, quando instalou-se o regime corpos misturados, já que as pessoas é que as coisas funcionavam para evitar
democrático, os parentes dos desapare- são jogadas ali em pouca profundidade. a sua ocorrência de novo? O racismo
e Democracia, que tem como um de seus cidos queriam descobrir onde eles esta- Foram encontrados fragmentos de ossos. na Alemanha, e no Brasil, tinha outras
organizadores o historiador da Unicamp Pedro vam. Era praticamente impossível. Não E as pessoas não eram todas seguramente características. Como tomar cuidado?
Paulo Funari, coordenador do Núcleo de Estudos havia documentação. As pessoas vivas desaparecidas políticas, mas ainda víti- No caso dos direitos humanos, quando
Estratégicos (NEE), apresenta ao leitor estudos não tinham, muitas vezes, interesse mas de tráfico e gangues. falei do assassinato de pessoas na épo-
atuais nos âmbitos arqueológico e jurídico que convergem para em divulgar. Agora o Exército ficava O que temos no país é que, além de ca da ditadura, ele acontecia por este
envolvido. Uma ideia era que ele, por descobrir corpos, um outro aspecto da motivo e mais. Outro motivo era que,
a temática dos direitos humanos. A passagem da ditadura militar ter estado na guerrilha, tivesse essas Arqueologia e do Direito nas ditaduras é se fosse contra e fizesse resistência à
para a democracia, na década de 80, mostrou consequências informações. Se tivesse, não sabemos analisar os campos de detenção e a vida ditadura, era morto. Naquela época,
legais, com um contexto marcado por guerras civis e provas se estaria interessado em revelá-las. dos prisioneiros. Descobrir, através dos as pessoas continuavam sendo mor-
cabais de violência no Brasil e em outros países da América vestígios materiais, como as pessoas tas na periferia. Esses cemitérios, de
JU – No caso específico da guer- eram mantidas presas, torturadas. Isso “desova de corpos”, existem até hoje
Latina. As evidências materiais para a Arqueologia, aliadas rilha do Araguaia, fala-se de busca também é feito pela Arqueologia. Neste em cidades como Rio de Janeiro e São
às questões jurídicas, são fundamentais para conhecer o que de corpos pelo Exército. Que outro caso, a Argentina está à frente do Bra- Paulo. As pessoas estão sendo mortas
aconteceu com os presos e mortos políticos, além de mostrar que setor poderia ter feito isso? sil, pois possui estudos de prisões clan- pela polícia e também pelas gangues.
também o cidadão comum é alvo ainda hoje de execuções, senão Funari – Na Argentina, formava-se destinas. Lá existiram estas prisões. Vivemos um desrespeito aos direitos
pela polícia, também pelo crime organizado. Na entrevista que um grupo de arqueólogos, antropólogos humanos sem nos apercebermos.
e sociólogos para entrevistar pessoas, JU – E no Brasil?
segue, Funari reconstitui trechos de uma história não tão distante, como atividade independente, não con- Funari – Bem, aqui elas normal- JU – A democracia está longe de
concluindo que falta muito para transformar o Estado de Direito trolada. Teriam que começar pesquisas mente não eram clandestinas, como era ser alcançada?
em algo para todos. arqueológicas para descobrir onde es- o caso do Dops, que ficava num prédio Funari – A democracia está sempre
tariam estas pessoas e fazer escavações em São Paulo em que funciona hoje o em evolução e em negociação. Aqui foi
JU – O que aborda o livro? A participação da Arqueologia em locais prováveis. O processo poderia Memorial da Resistência, na Estação tomada como Estado de Direito, que
Funari – Ele está dividido em duas é muito importante para os direitos ser feito por cientistas. Muitas vezes da Luz. Neste local ocorriam torturas. diz respeito à lei e que não haja um
partes. A primeira é sobre Arqueolo- humanos. Quando se pensa na identi- pessoas ou instituições não colaboravam Realizou-se uma reforma no prédio arbítrio do poder. Neste sentido, desde
gia Forense, que cuida dos aspectos ficação de pessoas, não se sabe se há por temerem represálias e processar as antes de se fazer pesquisa. A parede 1985, o país já tem um ordenamento
legais e jurídicos, em particular da documentos relatando sobre os que pessoas que estavam vivas, mas existiam foi toda refeita. As antigas celas foram com o Estado de Direito. Tem que ser
identificação dos ossos humanos. Este desapareceram. Quando mortas ilegal- mecanismos, como na África do Sul, de transformadas em museu. Perdemos valorizado. Muitos não valorizam.
instrumento é importante para estudar mente, elas desapareciam e não havia uma comissão de justiça e verdade. informações sobre o que acontecia Você não pode ser preso. Pode recorrer
por exemplo cemitérios clandestinos, interesse em registrar isso. Mesmo que O entrevistado que dá informações lá. Como o prédio teve muitos anos a um advogado, ao habeas-corpus e ser
em que a população é morta, assas- existissem documentos, eles poderiam está automaticamente isento de ser pro- de atividades administrativas, já teria julgado, se tiver evidências. Não pode
sinada ou executada ilegalmente. As ter sido destruídos. E, mesmo que ain- cessado, sem contar que grande parte sido tão alterado que não teríamos ser preso imediatamente. Acho que
pessoas não identificadas são jogadas da existam, são inacessíveis porque o destes crimes estão prescritos, exceto informações. Não é verdade. Sempre esta democracia, no sentido formal e
ou enterradas em fossas comuns, tam- governo, o anterior e o atual, não os se forem crimes contra a humanidade, há informações perdidas. O fato é jurídico, avançou muito. Falta, porém,
bém não identificadas. A Arqueologia liberam. A Arqueologia permite ter que são imprescritíveis. Este é um pro- que não foram contatados arqueólo- uma substância social a esses direitos
Forense estabelece a identificação do informações de primeira mão e que blema pois, à medida que se considera gos e demorou para se reconhecer o humanos. Pessoas estão sujeitas a se-
contexto em que a pessoa foi morta e atestam não existir qualquer tipo de o crime imprescritível, as pessoas não valor de envolver a Arqueologia em rem assassinadas na rua e a terem seus
enterrada. Há casos em que se con- documento escrito. querem falar. Se é feito como na África edifícios que foram antigas prisões. corpos jogados. A família não conhece
segue identificar pessoas por arcada do Sul, um mecanismo jurídico com os mecanismos para reivindicar. Este
dentária, eventualmente até pelo DNA JU – Nesse contexto, o que repre- critérios para dar informações, com JU – O que representaram 30 anos é o ponto. Assistimos à guerra civil no
e por outras características físicas sentou a guerrilha do Araguaia? isso se isenta e, como uma espécie de de apagamento da história da repres- Rio e vemos pessoas sendo assassina-
comparadas às desaparecidas. Outro Funari – A guerrilha do Araguaia confissão, confessa e, portanto, está são militar na América Latina? das. Então, o Estado abdica o Estado
caso consiste em saber como a pessoa aconteceu entre o final dos anos 60 absolvido da pena. Funari – Isso é importantíssimo. de Direito, mas como se ali ele nem
foi morta. Se levou um tiro, como este e começo dos 70, quando o regime A população mais jovem não sabe o chega? A democracia também não. Se
tiro foi dado? Dependendo da posição, militar endureceu, o que fez com que JU – Quais os casos emblemáticos que foi a ditadura, pois nasceu e viveu há facções lutando, e a população? Está
é possível saber se estava lutando, se alguns grupos tomassem as armas. de desaparecidos políticos da Amé- outro contexto. Se não temos uma submetida e não está sendo protegida
foi assassinada a sangue frio ou se foi Travou-se então uma luta. A reação rica Latina? apresentação do que foram os conflitos, pelo Estado. Outro dia mesmo na fave-
executada. Se foi torturada, teve os do regime foi enérgica e, da parte do Funari – Um caso famoso é o do por que e como ocorreram, falta-nos la do Morro dos Macacos, com a briga
ossos quebrados; como eles foram que- Araguaia, montaram uma operação Che Guevara, que foi enterrado e en- crítica sobre nossa própria sociedade. dos traficantes, a população se retirou
brados? A Arqueologia Forense trata na selva e mataram a maior parte das contrado na Bolívia graças à pesquisa As pessoas não têm noção da demo- do local à noite. Só que as pessoas
então desses aspectos que são jurídicos, pessoas. Foram mortas em combate arqueológica. No Brasil, há um caso cracia por desconhecerem a ditadura. tiveram que sair do morro. Isso não é
por terem implicações legais; tem ain- –literalmente ou não –, sendo presas do qual fiz parte. Foi no Rio de Janeiro, Isso tem um pouco a ver com o caso da tranquilidade. É algo fora das regras da
da um lado biológico e médico, como a e mortas, o que é muito comum para numa fossa comum. Tentamos identifi- Alemanha nazista. Lá se fala do Hitler democracia, pois o Estado não conse-
identificação de ossos, DNA; e tem um evitar um processo. Estados de força, car, com o Laboratório de Antropologia e se tenta realizar uma crítica a ele. gue impor a estes bandos criminosos o
lado propriamente arqueológico, que é ao invés de prenderem pessoas, matam. Biológica da Universidade Estadual do Mesmo na Alemanha, assim como no direito das pessoas que vivem ali. Neste
o contexto em que foram encontrados. Mesmo matando a pessoa, ainda se Rio de Janeiro, comandados pela doutora Brasil, critica-se o Hitler-personagem, ponto, falta muito para transformar o
A perspectiva jurídica do patrimônio pensa o que fazer com ela. O corpo era Nanci Vieira de Oliveira, os possíveis grande personagem. Entretanto, a Estado de Direito em algo para todos.
arqueológico implica os aspectos dos
vestígios materiais para o ordenamento

Escavando
jurídico brasileiro. Os temas aqui trata- Foto: Antoninho Perri
dos referem-se a esta questão: como a
Arqueologia foi tratada na legislação,
por que as leis tratam da Arqueologia,
como a tratam e qual a relação dos
vestígios materiais com o ordenamento

a memória
jurídico, em particular num ponto – a
passagem da ditadura militar para a de-
mocracia. A justiça de transição é isso.
No caso das pessoas que foram
mortas e tiveram seus corpos encon-
trados, quais as suas implicações
jurídicas? São diversas. Identificou-
se uma pessoa, a responsabilidade
é jurídica. Alguém foi responsável
pela morte, algum órgão? Isso pode O professor
Pedro Paulo Funari:
ter consequências para o Estado, ter
“A perspectiva
que pagar indenização à família. A jurídica do
pessoa foi torturada antes de morrer? patrimônio
Quem a torturou e por quê? Outro arqueológico
assunto abordado está nas audiências implica os
públicas como defesa do patrimônio. aspectos dos
O que é audiência pública? É quando vestígios materiais
para o ordenamento
se faz qualquer tipo de trabalho com jurídico brasileiro”
impacto ambiental. É preciso que este
trabalho envolva Biologia, Antro-
pologia, Arqueologia e outras áreas.
Inclui ouvir a população local sobre
o projeto. Já a segunda parte do livro
enfoca mais o aspecto do patrimônio.

JU – Em que medida Direito e


Democracia devem caminhar com a
Arqueologia?
Funari – Não há necessariamente
uma relação. No livro, estabelecemos a
passagem da ditadura para a democracia,
que se deu a partir dos anos 80 e que teve
consequências legais. O ordenamento
jurídico do país mudou. As pessoas
foram responsabilizadas por outras que
morreram e instituições por pessoas que
foram torturadas. Logo, direito e demo-
cracia estão associados: a passagem de
um Estado autoritário para um Estado de
Direito, que é a democracia. O que é novi-
dade neste livro é juntar estas discussões
jurídicas com a Arqueologia, fornecendo
informações específicas sobre ditadura e
democracia que não existem em outros
documentos.

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