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Alim. Nutr.

, Araraquara ISSN 0103-4235


v.16, n.4, p. 321-325, out./dez. 2005

OBTENÇÃO DE UMA BEBIDA FERMENTO-DESTILADA


A PARTIR DO "LICOR" DE LARANJA
Henrique ROÇAFA JUNIOR*
Fátima Cristina PADOVAN*
João Bosco FARIA*

RESUMO: Dentre os subprodutos derivados do Durante o processamento dos frutos cítricos, todo o
processamento do suco de laranja concentrado, o resíduo produzido, que compreende, o bagaço, os descartes
chamado “licor” de laranja, produto da extração final das centrífugas, a polpa, as cascas e os refugos, são
dos resíduos industriais da fruta, em função da grande encaminhados para a produção de ração cítrica. Numa
quantidade de sólidos solúveis que contém, tem sido primeira etapa, esse resíduo é triturado e seu pH corrigido
concentrado e reincorporado ao resíduo seco da polpa para facilitar a degradação da pectina, visando aumentar a
utilizada na elaboração da ração cítrica. eficiência das prensas na retirada da água do bagaço10.
Considerando-se portanto o grande volume de produção, A operação de prensagem, realizada após a adição
e principalmente a economia que poderia representar o de cal, resulta na produção de uma fase líquida chamada
uso do “licor” de laranja como matéria-prima de uma “licor” de laranja que apresenta uma concentração de sólidos
nova bebida destilada, foi objetivo deste trabalho obter, solúveis, em torno de 10-12,5 oBrix, dependendo da
com base no processo de obtenção da cachaça, uma quantidade de água adicionada no processo e da variedade
aguardente, com características físicas químicas e da fruta processada. Grande parte dos sólidos solúveis
sensoriais compatíveis com esse tipo de bebida. presentes no licor (60-75%) são constituídos de açúcares,
Nesse sentido, foram obtidas em laboratório amostras de principalmente glicose, frutose, sacarose e pequenas porções
aguardentes, de cana e de “licor’ de laranja, a partir das de pentoses4.
respectivas matérias primas, utilizando-se um processo Considerando-se portanto, as características do
de dupla destilação dos vinhos e o envelhecimento dos “licor” de laranja, bem como as vantagens que poderiam
respectivos destilados em ancorotes de carvalho, com advir de seu aproveitamento como matéria-prima de uma
vistas a realizar um estudo comparativo entre as duas nova bebida destilada, obtida com procedimento semelhante
bebidas. A metodologia otimizada para a obtenção da ao utilizado na fabricação da cachaça, foi objetivo desse
aguardente de “licor” de laranja envelhecida, resultou trabalho, desenvolver uma bebida similar à aguardente de
um produto que, do ponto de vista sensorial, revelou-se cana, com características próprias e peculiares, utilizando
comparável à cachaça. Estudos complementares principalmente a dupla destilação3,8 e o envelhecimento em
relacionados aos aspectos econômicos e toxicológicos do carvalho, como etapas fundamentais da otimização do
produto, deverão complementar os requisitos necessários processo de obtenção dessa nova bebida.
para se propor comercialmente a nova bebida
desenvolvida. Material e métodos

PALAVRAS-CHAVE: Aguardente de cana; aguardente Material


de “licor” de laranja; dupla destilação; envelhecimento;
análise sensorial. Amostras de aguardente de cana e de aguardente de
“licor” de laranja concentrado, obtidas em laboratório e
Introdução
envelhecidas em ancorotes de carvalho, foram avaliadas
comparativamente do ponto de vista físico-químico e
Desde 1963, impulsionado pelo crescimento das
sensorial.
exportações e pelo desenvolvimento da indústria citrícola,
o Brasil tem se destacado como um dos grandes produtores
Preparo do Material
de laranja, sendo atualmente reconhecido como o maior
produtor mundial dessa fruta. O Estado de São Paulo é o
Foram inicialmente produzidas as amostras de
responsável por 70% dessa produção, com um volume de
produção da ordem de 400 milhões de caixa por ano1. aguardente de cana, sendo o preparo do mosto e sua
Apesar do suco de laranja concentrado e congelado fermentação realizados conforme procedimentos já
ser hoje o principal produto da laranja, as indústrias cítricas estabelecidos na literatura11 e o vinho duplamente destilado
produzem também uma série de outros subprodutos tais em um pequeno alambique artesanal de cobre, com
como óleos essenciais, terpenos e o farelo de polpa cítrica, capacidade para destilar 5 litros de vinho cada vez. Em
utilizado na elaboração de ração animal7. seguida, utilizando-se o mesmo processo e em condições

* Departamento de Alimentos e Nutrição - Faculdade de Ciências Farmacêuticas - UNESP - 14801-902 - Araraquara - SP - Brasil.
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semelhantes, foram obtidas as amostras da aguardente Tecnal (mod. Tec-2).


elaborada a partir do “licor” de laranja. Os teores de sólidos solúveis do caldo de cana e do
A adoção do processo de obtenção da aguardente de “licor”, foram determinados utilizando-se um refratômetro
cana como modelo para a obtenção de um destilado alcoólico Atago (mod. RL3).
a partir do “licor” industrial de laranja, foi baseado em dois
principais motivos. O primeiro deles foi o exemplo já bem Determinação dos perfis de voláteis das amostras
sucedido de se produzir álcool a partir dessa mesma matéria-
prima4 e o segundo, não menos importante, de se utilizar A determinação dos perfis de voláteis das amostras
no processo fermentativo, o mesmo pé-de-cuba desenvolvido foi realizada por injeção direta em cromatógrafo de fase
para a produção da aguardente de cana. gasosa VARIAN 3300, equipado com detector de ionização
Nos dois casos, o procedimento de obtenção foi de chama (DIC) e coluna capilar carbowax com 30m x
conduzido da mesma, forma. 0,32mm (id), nas seguintes condições de operação:
Numa primeira etapa foi fermentado o caldo de cana, temperatura do detector: 180ºC; programação de
extraído em moendas convencionais e diluído a 14º Brix. temperatura do forno: 60-120ºC (5ºC/min); temperatura do
Na obtenção do pé-de-cuba, foi utilizado fermento de injetor: 160oC; volume de injeção: 1 l.
panificação, que juntamente com as leveduras selvagens
presentes no caldo, deram origem ao fermento utilizado nos Análise Sensorial- Testes de Aceitação
dois tipos de fermentação. Com base em ensaios prévios, o
tempo decorrido, desde o inicio da fermentação do caldo de As amostras de aguardente de cana e de aguardente
cana até o momento da destilação, foi estendido a 48 horas, de licor de laranja, após o envelhecimento em ancorotes de
o tempo médio necessário para completar a fermentação do carvalho foram submetidas a testes de aceitação em relação
“licor”. à cor, aroma, sabor e impressão global2.
No caso da fermentação do “licor” de laranja, a Para tanto, foram recrutados através de questionário,
matéria-prima coletada na industria após o processo de dentre alunos, professores e funcionários da Faculdade de
evaporação do resíduo, teve seu conteúdo em sólidos solúveis Ciências Farmacêuticas da UNESP, 40 provadores,
abaixado de 32º para 14º Brix, e seu pH reduzido, com a consumidores de bebidas destiladas, que demonstraram
adição de ácido fosfórico, de 6,0 para 3,7 visando favorecer interesse em participar dos testes. Aos referidos provadores,
a ação das leveduras. O tempo e as condições da fermentação foram submetidas as amostras de cachaça envelhecida e de
foram os mesmos adotados no caso do caldo de cana. Ao aguardente de licor de laranja para análise da aceitação em
final da fermentação, o teor de sólidos solúveis do vinho de relação à cor, aroma, sabor e impressão global. As amostras
“licor”de laranja, ficou em torno de 8,5º Brix. foram servidas aleatoriamente, de forma monádica, em
Após as etapas de fermentação, os vinhos conforme cabines individuais do laboratório de Análise Sensorial do
obtidos, foram lentamente destilados no alambique já Departamento de Alimentos e Nutrição da Faculdade de
mencionado, durante um tempo de destilação aproximado Ciências Farmacêuticas-UNESP, em cálices de cristal
de 3 horas para cada amostra. Em seguida, as amostras de transparente, codificados com 3 dígitos e cobertos com
aguardentes de cana e de “licor” de laranja, foram então vidros de relógio que eram retirados no momento da análise.
respectivamente reunidas em dois lotes A e B, diluídas a As avaliações relativas ao aroma sabor e impressão
30°GL e novamente destiladas. Na re-destilação, após global, foram registradas em fichas utilizando-se uma escala
separadas as frações de cabeça e cauda, foram obtidos hedônica estruturada de 9 pontos.
respectivamente 5 litros de cada amostra (58/62 ºGL) que
foram então, postas a envelhecer em pequenos ancorotes de Análise Estatística dos resultados
carvalho, por 4 meses.
Após o processo de envelhecimento, as amostras de Os dados obtidos nos testes de aceitação foram
aguardente de cana e de aguardente de “licor“ de laranja, foram submetidos à análise de variância (ANOVA) e testes de
finalmente diluídas a 42º Brix e comparativamente analisadas. médias de Tukey5, utilizando-se o Programa Estatístico
SAS9.
Métodos

Determinações Físico-Quimicas Resultados e Discussão

A determinação do teor alcoólico das amostras foi Os resultados das determinações físico-quimicas, que
realizada, de acordo com as normas do Instituto Adolfo estão representados nas Tabelas 1 e 2, orientaram os
Lutz6, utilizando-se um alcoômetro simples de Gay-Lussac. processos de obtenção das amostras de cachaça e de
No caso das amostras envelhecidas foram determinados os aguardente de “licor”de laranja.
teores alcoólicos aparentes. Nas Figuras 1,2,3 e 4, estão representados os perfis
Os valores do pH aparente das amostras foram de voláteis das amostras de aguardentes de cana e de “licor”
determinados através de leitura direta em um pHmetro de laranja, antes e após o processo de envelhecimento.
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Tabela 1- Dados relativos à obtenção das amostras de aguardente de cana.


Aguardente de Cana
Brix do
Brix do Tempo de Brix do Tempo de º GL do Tempo de
Ensaios Caldo de
mosto Fermentação Vinho Destilação Destilado Envelhecimento
Cana
01 22º 14º 48 horas 4.5º 3,5 horas 37º -
02 20º 14º 48 horas 4.0º 3 horas 40º -
01 + 02 - - - - 3 horas 62º 4 meses

Tabela 2 - Dados relativos à obtenção das amostras de aguardente do “licor” de laranja.


Aguardente de “licor” de laranja
Brix do Correção Tempo de Brix do Tempo de º GL do Tempo de
Amostra
Licor do Brix Fermentação Residuo Destilação Destilado Envelhecimento
01 31º 14º 48 horas 8.0º 4 horas 35º -
02 32º 14º 48 horas 9.0º 3,5 horas 38º -
03 33º 14º 48 horas 8.5º 3,5 horas 36º -
04 33º 14º 48 horas 8.0º 3,5 horas 38º -
01+02+03+ 04 - - - - 3,5 horas 58º 4 meses

FIGURA 1 - Cromatograma da aguardente de cana sem FIGURA 2 - Cromatograma da aguardente de cana


envelhecer. envelhecida.

FIGURA 3 - Cromatograma da aguardente de “licor” de FIGURA 4 - Cromatograma da aguardente de “licor” de


laranja sem envelhecer. laranja envelhecida.
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Os perfis de voláteis das amostras, apresentados nas Aguardente de Cana


figuras acima, embora indiquem padrões semelhantes de 9 Aguardente de Laranja
fermentação e destilação, não tem relação com a qualidade 8
7
sensorial das amostras, pois como se sabe inúmeros
6
compostos, mesmo não percebidos pelos detectores , podem 5
ter grande importância sensorial, porém a diminuição dos 4
teores de D-Limoneno já observada após a segunda 3
destilação e principalmente após o envelhecimento, indicam 2
que os processos adotados, visando eliminar o forte e 1
característico odor cítrico observado no primeiro destilado, 0
Cor Aroma Sabor Impressão
parecem ter atingido seus objetivos. Global

Na Tabela 3 estão expressos os resultados dos testes FIGURA 5 - Histograma das médias dos Testes de Aceitação
de aceitação e de Tukey e na Figura 5, os histogramas das relativos à cor, aroma, sabor e impressão global das
amostras de aguardente de cana e de “ licor”de laranja. amostras de aguardente de cana e licor de laranja.
Os resultados obtidos, com exceção da aceitação em
relação à cor, revelaram uma preferência significativa em da cachaça, desde que o vinho obtido, seja submetido a um
relação ao aroma, sabor e impressão global, para a processo de dupla destilação e devidamente envelhecido.
aguardente de cana envelhecida, conforme se pode visualizar
na Figura 5.
Os resultados mais favoráveis obtidos na análise ROÇAFA JUNIOR, H; PADOVAN, F.C.; FARIA, J.B.
sensorial da aguardente de cana, já eram de certa forma A new fermented distilled beverage from orange liquor.
esperados, uma vez que a cachaça por já ser reconhecida Alim. Nutr., Araraquara, v.16, n.4, p. 321-325, out./
pelos provadores, acaba representando o padrão de dez. 2005.
comparação em relação à nova bebida. Cabe porém destacar,
os valores relativamente altos de aceitação, obtidos no caso ABSTRACT: Among the orange juice processing by-
da aguardente de “licor” de laranja envelhecida, resultados products, the orange “liquor” obtained by the pulp final
estes que permitem afirmar, ter esta nova bebida, extraction, use to be concentrated and added to the pulp
características sensoriais de aceitação comparáveis às da dried residue, that is used in the feed processing. The
cachaça. technological and economic aspects related and the
Certamente, mais estudos relacionados com o production scale of the orange “liquor”, makes it a very
processo de fabricação e envelhecimento da aguardente do interesting raw-material to be considered for better
“licor” de laranja devem ser conduzidos no sentido de uses,.so the challenge to obtain a distilled beverage from
melhorar o rendimento e a qualidade sensorial da nova the orange “liquor”, using the knowledge of cachaça
bebida, porém desde já é válido afirmar que a bebida obtida production, was the main reason to start this work. In
a partir do “licor” de laranja conforme os procedimentos this way, sugar cane juice and the orange “licor”, were
adotados na fabricação da cachaça, é perfeitamente aceitável both, fermented, distilled (twice) and aged in miniature
do ponto de vista sensorial podendo portanto, representar oak casks, using the same process, in order to make a
um produto comercialmente viável. comparative study with these two beverages. The
Estudos complementares, principalmente processing methodology of cachaça production, used to
relacionados com eventuais efeitos toxicológicos do produto produce the aged distilled orange “licor” beverage,
e envolvendo aspectos econômicos, deverão ainda ser results a new beverage, very similar, from the sensory
realizados, porém com base nos resultados obtidos, é possível aspects, to the known aged distilled beverages.
afirmar ser perfeitamente viável a obtenção de uma bebida Complementary studies, mainly related to economic and
fermento-destilada, a partir do “licor” de laranja, utilizando- toxicological aspects, need yet to be made with this new
se um procedimento semelhante ao adotado na produção proposed beverage.

Tabela 3 - Resultados da ANOVA e dos Testes de Tukey para os valores do Teste de Aceitação relativos à cor,
aroma, sabor e impressão global das amostras de aguardentes de cana e de licor de laranja.
AGUARDENTE DE CANA AGUARDENTE DE LICOR
IMPRESSÃO IMPRESSÃO
COR AROMA SABOR COR AROMA SABOR
GLOBAL GLOBAL
Teste de
7,5250a 7,5500a 7,0875 a 7,3125 a 7,1750ª 6,8875b 5,7875 b 6,3000 b
Tukey
DMS 0,5589 0,637 0,7357 0,5204 0,5589 0,637 0,7357 0,5204
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KEYWORDS: “Cachaça”; orange “licor” spirit; aging; 2nd ed. New York: J. Wiley, 1957. 611p.
sensory analysis. 6. INSTITUTO ADOLFO LUTZ. Normas analíticas . 3.ed.
São Paulo, 1985. v.1, p.341-346.
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Referências bibliográficas 2nd ed. Florida: John Wiley & Sons, 1999. 247 p.
8. NOVAES, F.V. Processo de dupla destilação. In:__.
1. ABECITRUS. Disponível em: www.abecitrus.com.br. Programa do fortalecimento do setor de aguardente
Acessem: de cana-de-açúcar e seus derivados do Estado do Rio
2. AMERINE, M.A. Principles of sensory evaluation of de Janeiro. Rio de Janeiro: SEBRAE, 1999.
food. New York: Academic Press, 1965. p.349-397. 9 . SAS INSTITUTE. SAS user’s guide: statistics. Cary,
3. BIZELLI, L.C.; RIBEIRO, C.A.F.; NOVAES, F.V. Dupla 1993.
destilação da aguardente de cana: teores de acidez total 10. TETRA-PAK. The orange book. Lund-Sweden: Tetra
e de cobre. Sci. Agric., v. 57, n. 4, p.2000. Pak Processing System AB, 1998, 206p.
4. BRADDOCK, R.J. Handbook of citrus by products and 11. YOKOYA, F. Fabricação de aguardente de cana.
processing technology. Gaithersburg: - Aspen Publ., Campinas: Fundação Tropical de Pesquisas e Tecnologia
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5. COCHRAN, W.G.; COX, G.M. Experimental design. Industriais, n.2).
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