Entrevista

Chrís Atkins
Nasceu em Londres em 1976. Depois de ter feito o documentário Taking Liberties,
nomeado para os BAFTA, o realizador lançou o polémico Starsuckers, sobre a obsessão
dos media por notícias de celebridades. Texto: Vera Moura Fotos: Alexander Christie

"Inventámos
notícias falsas e os
jornais publicaram
Pode ser uma história inventada, absurda e ridícula, mas se envolver
celebridades, os jornais não hesitam em publicá-la e ainda lhe
acrescentam mais mentiras. Foi isso que elefez: espalhar históriasfalsas

Q
uando a SÁBADO enviou as per-
guntas por email à agente de
Chris Atkins, aproveitou para sa-
> ber porque é que o realizador ti-
nha deixado a representação depois do su-
cesso de A Lagoa Azul, filme em que con-
tracenou com Brooke Shields. Ela não
demorou mais de 10 minutos a responder:
"Tomei a liberdade de retirar as questões so-
bre a carreira de actor de Chris Atkins an-
tes de lhe reencaminhar o seu email. É que
este não é o mesmo Chris Atkins que pro-
tagonizou esse filme." O erro, segundo
acrescentou, é muito comum. Mas mostra
como os meios de comunicação estão ob-
cecados por celebridades - o mote de Star-
suckers, o polémico documentário que
Atkins acaba de produzir e que foi apresen-
tado no Festival de Cinema de Londres pe-
los actores George Clooney e Kevin Spacey.
Como surgiu a ideia de fazer este documentá-
rio?
Estávamos a fazer o meu último filme
[ Taking Liberties], que é sobre a erosão das
liberdades civis no Reino Unido. Quería-
mos contar a história de cidadãos vulgares
cujos direitos foram retirados pelo gover-
no em nome da luta contra o terrorismo.
O distribuidor gostou do filme, mas quis
que entrevistássemos celebridades para o
tornar mais rentável. Aquilo pareceu-nos
um disparate, as estrelas não tinham nada
a ver com o tema do filme, mas ele insis-
tiu tanto que começámos a pensar em fa-
zer outro filme sobre a obsessão dos me-
dia pelas celebridades.
Qual foi a primeira notícia falsa que oferece-
ram aos jornais?
Espalhámos que tínhamos visto a canto-
ra Avril Lavigne a dormir e a ressonar
numa discoteca em Londres. Todos acre-
ditaram e publicaram sem confirmar se
era verdade.
Com que jornais fizeram este teste?
Telefonámos para o The Sun, para o The

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ENTREVISTA
Express e para o Daily Mirrar. O Mirrar foi
logo o primeiro a escrever um artigo sobre
esta história, o que nos encorajou a inven-
tar e difundir histórias cada vez mais por-
menorizadas e ridículas.
Algum resistiu à armadilha, não publicando
nada do que lhes disseram?
Diferentes jornais caíram em diferentes
histórias falsas. Mas, mais cedo ou mais
tarde, todos escreveram uma notícia in-
ventada por nós.
Que jornal vos pareceu mais fácil de enganar?
O Daily Mirrar. Eles publicam qualquer coi-
sa, desde que seja sobre uma vedeta - in-
dependentemente da veracidade da notí-
cia. O apresentador de televisão Piers Mor-
gan foi director e levou este jornal a um
nível muito baixo.
Pode dar exemplos de notícias falsas que a sua
equipa tenha passado a jornais e que foram
publicadas?
Inventámos que o ex-marido de Madon-
na, Guy Ritchie, tinha feito um corte na
cara a fazer malabarismos com talheres
e que a cantora Amy Winehouse tinha
pegado fogo ao cabelo a tentar arranjar
um fusível eléctrico. Ambas foram pu-
blicadas.
Só passaram notícias falsas de estrelas de
cinema e da música ou também o fizeram com
políticos?
Focámo-nos em celebridades ligadas ao
40
Quisemos
mostrar que,
quando há
estrelas envolvidas
nas notícias, o valor
da veracidade deixa
de ser importante
entretenimento. Quisemos mostrar que,
quando há estrelas envolvidas nas notí-
cias, o valor da veracidade deixa drastica-
mente de ser importante.
Como era o vosso procedimento? Telefonavam
para as redacções com nomes falsos?
Uma das nossas investigadoras é também
uma excelente actriz e ligava para as re-
dacções com nomes e sotaques diferen-
tes. A certa altura, começámos a usar no-
mes completamente idiotas para ver se
eles desconfiavam, mas isso nunca acon-
teceu.
No filme Starsuckers critica essencialmente os
tablóides ingleses. São os piores?
São os piores do mundo no que toca à pu-
blicação de histórias incorrectas. Os nos-
sos media são extremamente agressivos e
intrusivos, ao ponto de os políticos terem
medo deles. Isto faz com que os jornais
j publiquem histórias fictícias sem sofrer
i quaisquer consequências.
i E os outros meios também vão atrás...
i Sim. E o pior é que as agências noticiosas
j internacionais usam os tablóides ingleses
\o fonte de informação, repetindo as
j suas mentiras e espalhando-as por todo o
i mundo. Uma das nossas notícias falsas foi
i publicada no Times of índia, o jornal em in-
I glês mais vendido em todo o mundo.
! Alguma vez lhe ofereceram dinheiro pelas notí-
\? Quanto?
| Fizemos isto para provar que o facto de as
! redacções pagarem pelas notícias leva ine-
I vitavelmente algumas pessoas a inventar
i histórias para ganhar mais dinheiro. Ofe-
i receram-nos dinheiro por todas as histó-
i rias que espalhámos e foram publicadas,
i mas nunca aceitámos, porque isso ia com-
| prometer a nossa ética e o objectivo ini-
I ciai do nosso trabalho. Ofereceram-nos
j entre 55 e 650 euros por informação.
Como é que chegámos a este ponto em que os
i jornalistas não confirmam as informações?
i O negócio dos meios de comunicação tor-
| nou-se"tão vocacionado para as vendas que
i os jornalistas de hoje são treinados para
i se preocuparem mais em entreter as au-
|
i
diêndas do que em contar a verdade. E
com o aparecimento da Internet passou a
i esperar-se das agências notícias imedia-
i tas, o que retira aos jornalistas tempo para
confirmar os factos e questionar as fontes.
A verdade já não é o valor mais importante?
Nem pensar, a verdade deixou de ser um
valor importante. O que importa mais é
saber se a personagem principal da histó-
ria é famosa e se a história é engraçada e
insólita. Para muitos jornais, a verdade,
hoje, é praticamente irrelevante.
De quem é a culpa?
O público tem de assumir alguma respon-
sabilidade. A nossa ânsia natural de con-
sumir uma quantidade absurda de notí-
cias sobre celebridades faz com que tam-
bém sejamos culpados pelo facto de a
maioria das histórias que saem ser falsa.
Além disso, o público habituou-se a rece-
ber as notícias de graça pela Internet, e
quase tudo o que é grátis tem menos qua-
lidade. Mas, em última instância, a res-
ponsabilidade é dos directores e editores
dos jornais e agências. Eles é que decidem
26 NOVEMBRO 2009 SÁBADO
ENTREVISTA
• quando se publica um artigo e questio-
nam a sua veracidade.
E como se sentem em publicar uma história
sabendo que não é verdadeira?
No filme, mostrámos como os directores
dos tablóides britânicos estão satisfeitos,
mesmo sabendo que publicam histórias
que sabem que são falsas como sendo ver-
dadeiras. Se um médico mentisse aos seus
pacientes, fazendo com que gastassem di-
nheiro em medicamentos que não os iam
ajudar, seria imediatamente despedido.
Quando um editor faz a mesma coisa, é
promovido.
A deontologia jornalística está ultrapassada?
Creio que a ética jornalística não é mais
do que uma memória longínqua do que
os jornalistas aprenderam na universi-
dade.
Os blogues e as redes sociais como o Twitter
e o Facebook vieram piorar as coisas?
As redes sociais podem piorar tudo por-
que reproduzem e espalham notícias a
uma velocidade nunca antes vista. Por
isso, se uma história falsa aparece, as re-
des sociais repetem-na exaustivamente,
sem nunca confirmar a sua veracidade.
Os leitores confiam cada vez menos nos jor-
nais?
Absolutamente. E isto é preocupante -
significa que as pessoas compram cada
vez menos jornais e que há cada vez me-
nos jornalistas nas redacções. É um ciclo
vicioso.
A tragédia de há poucas semanas da criança
norte-americana que estaria a voar sozinha
num balão afinal era uma farsa. É mais uma
prova de que os media não são credíveis?
Claro que sim. Meios de comunicação de
todo o mundo viram aquelas imagens in-
críveis e começaram a fazer directos, sem
verificar se alguma coisa estava errada.
Depois o balão aterrou e todos viram que
não tinha passado de um embuste. De-
viam ter esperado primeiro para ver se a
criança se encontrava mesmo no balão e
depois cobriam a história. Mas todos que-
riam ser os primeiros.
Qualquer pessoa pode fazer dinheiro a inven-
tar histórias sobre vedetas?
É tão simples - qualquer pessoa pode fa-
zer o que nós fizemos. No nosso site até te-
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mos um guia útil com todas as coisas que
é preciso saber para enganar um jornal.
Quais são as regras básicas para vender uma
notícia falsa?
A história deve ter piada mas não ser de-
masiadamente desagradável sobre a ve-
deta em questão.
a
Sobre a Amy
Winehouse,
tudo o que
contámos foi que o seu
cabelo tinha pegado
fogo. O Daily Star
acrescentou mentiras
Algumas notícias, como a do cabelo de Amy
Winehouse a arder, espalharam-se por todo
o mundo. Esperavam ter tanto impacto?
Quando começámos não tínhamos noção.
Pensámos que estas histórias seriam pu-
blicadas apenas em Inglaterra e em pou-
cos jornais, mas descobrimos que as agên-
cias de notícias internacionais estão com-
pletamente dependentes dos tablóides
ingleses para alimentar as suas secções de
celebridades. Qualquer coisa que eles pu-
bliquem espalha-se rapidamente pelo
mundo, sem ninguém sentir necessida-
de de conferir as suas fontes.
Qual foi a notícia fictícia que fez mais sucesso
entre os jornais?
Criámos uma história sobre Sarah Har-
ding, que é cantora na girlsband Girls
Aloud. Espalhámos que ela estava a mu-
dar de casa, fingindo que éramos da em-
presa de mudanças que ela tinha contra-
tado. Dissemos ao The Sun que a estrela
tinha dezenas de livros sobre Física Quân-
tica e Astronomia. Sem confirmar nada,
imediatamente publicaram uma notícia
que, dias depois, até ao Turkish Weekly ti-
nha chegado.
Algum jornal inventou informações para acres-
centar às que a vossa equipa forneceu?
Em relação à história da Amy Winehou-
se, tudo o que contámos foi que o seu ca-
belo começou a arder quando tentava ar-
ranjar um fusível. No entanto, o Daily Star
acrescentou as suas próprias mentiras e
disse que um amigo da polémica canto-
ra entrou pela sala onde ela estava e de-
satou a bater-lhe na cabeça, para extin-
guir o fogo.
Houve alguma notícia que nenhum jornal
tenha publicado?
Sim. Tentei passar uma história falsa so-
bre o famoso sir Alan Sugar, uma estrela
da televisão britânica. Disse que um gru-
po de anarquistas que queriam protestar
contra a cimeira Gio ia despejar uma to-
nelada de açúcar (sugar] na sua garagem.
Ninguém a comprou.
O próprio Chris é uma figura pública. Como
lida com a perseguição dos media''.
Não sou uma estrela, mas alguns jorna-
listas já tentaram plantar-se à porta da mi-
nha casa. Tiveram azar, porque se engana-
ram na morada. Por enquanto, têm-me
deixado em paz.
Já teve alguma reacção destes tablóides ou de
jornalistas ao documentário?
Sim. Todos disseram: "S em comentário s."
E de celebridades?
Daquelas sobre as quais inventámos coi-
sas, nada, mas o George Clooney comen-
tou o documentário no Festival de Cine-
ma de Londres. Disse que antigamente
uma notícia precisava de duas fontes cre-
díveis, mas agora isso já não acontece. E
revelou que também ele já foi alvo de ru-
mores que foram apresentados como fac-
tos e se transformaram em notícias. •
26 NOVEMBRO 2009 SÁBADO