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FOLHA DE SÃO PAULO - Edição 24.

819
Domingo, 16/03/97 Tiragem 908,636
Editoria: MAIS! Página: 5-13 3/7166
Assuntos Principais: MODERNISMO NO RIO DE JANEIRO. TURUNAS E QUIXOTES
/LIVRO/

Como se faz uma tese

Estudo sobre modernismo é exemplo dos vícios que afetam os textos acadêmicos
MARCELO COELHO da Equipe de Articulistas

Todo estudante de pós-graduação já leu ou pelo menos ouviu falar de um livro de


Umberto Eco , publicado aqui pela Editora Perspectiva, chamado '' Como se Faz uma
Tese ''. Trata- se de um guia bastante convencional para aspirantes ao mestrado ou ao
doutorado, que ensina, por exemplo, a organizar a bibliografia, a fazer fichas de leitura, coisas
do gênero.
O livro ''Modernismo no Rio de Janeiro'', de Monica Pimenta Velloso, resultou de
uma tese de doutorado, defendida no departamento de história social da USP. Com o risco
de parecer implicante e injusto, julgo possível tomá-lo como exemplo das várias estratégias,
cacoetes e enfoques típicos da produção universitária média em ciências humanas no Brasil.
Esta resenha não pretende ser uma peça acusatória e maldosa contra a autora, que
visivelmente se dedica com amor e inteligência a seu objeto de estudo, mas sim uma crítica
ao estilo universitário corrente, do qual ela é vítima; escrevo uma espécie de '' Como se
Faz uma Tese '' ao contrário. Vamos por tópicos.
1) O Título . ''Modernismo no Rio de Janeiro'' não é, a rigor, um estudo sobre
literatura, pintura, escultura, música, teatro modernistas na antiga capital. Monica Velloso
pesquisa uma revista em particular: a revista satírica ''Dom Quixote'', publicada nos anos 20,
e trata de intelectuais boêmios cariocas, como José do Patrocínio Filho, Paula Nei, Bastos
Tigre. O humorismo e a caricatura da época (J. Calixto, Raul Pederneiras) são seu verdadeiro
objeto.
Mas é típico das teses universitárias buscarem o máximo de generalidade em seus
títulos, contrastando com uma grande especificidade na pesquisa. Um estudo sobre mutirões
de construção na favela X tende a ganhar o nome de ''Cidade, Moradia e Mobilização
Popular''; se o cotidiano em três borracharias de São Paulo for pesquisado, a tese
provavelmente se chamará ''Trabalho, Cotidiano e Sociedade em São Paulo''... Assim se
faz uma tese .
2) Justificação da Pesquisa. Monica Velloso procura, com acerto, relativizar a idéia de
que o movimento modernista de 1922 em São Paulo foi um fenômeno isolado, sem
precedentes. Quer ''atentar para outras modalidades e dinâmicas, enfim, outros sinais de
modernidade no conjunto da sociedade brasileira''. Seria preciso ''desvincular o modernismo
da idéia de movimento cultural organizado por uma vanguarda intelectual'', reavaliando
também ''a inserção dos intelectuais cariocas na dinâmica do cotidiano urbano''.
O humorismo e a caricatura, assim, seriam respostas estéticas tipicamente ''modernas''
ao progresso e à urbanização, cabendo ver os chargistas cariocas dos anos 20 como
representantes de uma vertente inovadora que a hagiografia em torno do modernismo
paulista costuma minimizar.
De meu ponto de vista, surge aqui um problema. Está- se falando de modernismo
estético ou de modernidade social, vida urbana, crítica política etc? Se a obra dos
caricaturistas cariocas faz um diagnóstico da vida moderna, seria possível com isto
demonstrar que a escola modernista em literatura, artes plásticas etc., é um fenômeno menos
paulista do que parece? Havia ''modernismo'' na linguagem Bastos Tigre e de Emílio de
Menezes? Ou simplesmente há uma coincidência (intencional, possivelmente) entre o uso do
humor nos poemas de Mário de Andrade, Oswald ou Drummond e a prática jornalística da
época? Nenhuma comparação é feita. O diálogo entre o objeto estudado e a idéia teórica a
defender fica, assim, truncado, do mesmo modo que entre o título e o conteúdo da obra as
relações são tênues.
3) Declarações de intenção. Todo autor de tese é por definição inseguro; sabe que
será julgado. Antes de cada passo no raciocínio, está portanto obrigado a dizer para onde vai.
Como a ''demonstração'' da idéia central costuma ser difícil de fazer (ver tópico anterior),
cumpre explicitar com frases e mais frases aquilo que a pesquisa, por si mesma, não consegue
tornar evidente.
É assim que, já na pág. 90 do livro, vemos a autora uma vez mais anunciando seus
propósitos: ''Proponho resgatar a caricatura como um dos sinais da história, ou, mais
especificamente, como um dos indícios que possibilitam pensar o modernismo no Rio de
Janeiro''.
4) Repetições. Eis como continua o trecho citado acima: ''Por seu caráter de impacto,
condensação de formas, debate sobre o cotidiano, e principalmente por sua agilidade na
comunicação, o humor apresenta- se como linguagem amplamente identificada com as
demandas da modernidade''. Isso na pág. 90.
Eis o que reza a pág. 41 do livro: ''O humor é um dos sinais mais expressivos da
modernidade carioca, funcionando como pólo unificador e de identidade intelectual. Por seu
caráter de impacto, condensação de formas, ilustração do cotidiano e agilidade na
comunicação, apresenta- se como uma linguagem amplamente identificada com as
demandas da modernidade''.
Acidentes como este acontecem. Sabe por quê? Porque nem a autora se lembra
exatamente do que disse. O texto universitário é tão pastoso e dá tanto trabalho a quem
escreve e a quem o lê, que a atenção se perde. E como não estamos às voltas com uma
demonstração lógica, científica, perde- se a diferença que deveria existir entre idéia central,
exemplo dessa idéia, comprovação do enunciado, projeto da pesquisa, explicitação das
intenções do autor, prefácio e conclusão. Assim se faz uma tese .
5) Modéstia. É essencial nesse tipo de trabalho. No final do livro, a autora afirma com
simplicidade: ''A idéia aqui é retomar e desenvolver alguns pontos que me parecem
fundamentais na reflexão. Quero deixar claro que outros eixos poderiam ser tão relevantes
quanto estes, mas a proposta é explorar determinados atalhos, na perspectiva de alcançar um
horizonte reflexivo mais amplo sobre a problemática de nossa modernidade''. Estou citando
Monica Velloso, mas quantas outras teses de doutorado não seguem o mesmo modelo?
''Outros eixos poderiam ser tão relevantes quanto estes...'' A frase nos leva ao sexto tópico.
6) Anticientificismo. Nada é real, tudo é construção. Não há objetividade, não há fatos,
só interpretações. Quando Nietzsche escreveu isso, imaginou estar bagunçando o coreto
intelectual. Não sabia que estava na verdade facilitando a vida de muitos pós-graduandos, que
repetem a ladainha. Monica Velloso diz: ''Historicamente é inviável a idéia de um documento-
verdade, capaz de desvendar e trazer à tona a realidade''. Até aí, tudo bem; de fato, cada
documento histórico _um discurso presidencial, por exemplo, reflete preconceitos, interesses
específicos, vontade de ocultar ou evidenciar determinados fatos. A autora cita então o
historiador Jacques Le Goff: ''Nesse sentido, afirma Le Goff, 'todo documento é mentira'±''.
Certo, desde que se saiba, por comparação, o que é verdade. Mas surge aí uma conclusão
mirabolante da autora: ''Mentira porque não passa de construção subjetiva, elaborada pela
mente do historiador''. Assim se faz uma tese .
7) Elogio do fragmentário. Como toda história é ''construção'', a idéia de um trajeto
linear, de uma sucessão temporal, de uma lógica interna aos acontecimentos é descartada.
Citar Walter Benjamin é sempre importante nesse contexto. Carlo Ginzburg também ajuda.
Mas vejamos como a autora ''trabalha esses conceitos''.
Lembra que ''não há história dotada de sentido unívoco e triunfalista, baseada na idéia
de continuidade. A história torna- se então uma 'obra em aberto' e, enquanto tal, não pode
ser interpretada em definitivo''. Certo. Mas a autora continua: ''É justamente esse caráter
inacabado que faz com que seu sentido esteja presente nos lugares mais imprevistos: nos
interstícios da ação humana é que se inscreve a história''. Com perdão da ingenuidade, cabe a
pergunta: que sentido é esse, ''presente nos lugares mais imprevistos'', se sabemos que a
história não tem sentido unívoco? ''A história'', prossegue a autora, ''foge a uma explicação
linear pontuando sua presença nos indícios, nas pistas e nos sinais''. Outra pergunta ingênua:
indícios de quê? Pistas de quê? Sinais de quê, se não é possível explicar coisa nenhuma?
Mas a resposta é fácil, trivial, típica na atual produção universitária. Resume- se a
uma única palavra, que merece outro tópico.
8) Resgatar. Toda pesquisa ''resgata'' alguma coisa. Não se trata de explicar,
interpretar, entender. Trata- se de resgatar. Resgatar é uma atividade que a rigor se resume
à citação das fontes primárias, seguida de outra atividade muito frequente, que é reorganizar
os trechos citados segundo uma lógica que não é a da demonstração ou da explicação, mas a
de uma divisão temática (o Carnaval; a cidade; a política; os bares e cafés, no exemplo que
estou tomando). A essa reorganização se dá, em geral, o nome de ''reconstrução'' no jargão
acadêmico.
Há outro aspecto importante nessa tarefa de ''resgatar''. Implica certa complacência
com o objeto ''resgatado''. A idéia de uma ''história dos vencidos'' (citar Benjamin de novo)
envolve uma atitude na maior parte das vezes acrítica, um pouquinho sentimental. Como ,
por definição, o pesquisador contemporâneo está se contrapondo às versões oficiais da
história, privilegiando grupos e pessoas marginalizados pelo sistema, o esforço crítico já foi
dado de antemão, pela escolha do objeto. Não é preciso fazer muito mais além de...
9) Paráfrases. Todo texto, todo documento, depois de citado deve ser repetido com
outras palavras. Assim, a autora descreve uma caricatura de Kalixto a respeito da morte de
Emílio de Menezes: ''Gordo, com cara de bonachão, Emílio se equilibra precariamente nas
nuvens devido à bagagem excessiva que leva (...) debaixo do braço, um tremendo estoque de
garrafas de bebida. Leva também um mensageiro de cartas e mais uma penca de cachorros''.
Segue- se o comentário: ''Tal caricatura sintetiza com perspicácia a vida de Emílio:
seu gosto pela bebida, pelas mensagens satíricas e seu amor aos cachorros, que ultimamente
preferia aos homens''.
10) Explicar o óbvio. Sempre que alguma coisa não desperte maiores
questionamentos, cumpre buscar o caminho mais tortuoso e longínquo para chegar ao ponto
de destino, que é também o ponto de partida. A autora estuda uma revista humorística
chamada ''Dom Quixote''. Por que ''Dom Quixote''? Aqui, sim, será preciso buscar uma
explicação. Monica Velloso recorre ao folclorista Câmara Cascudo para referir- se ''à
presença dos personagens cervantinos, notadamente de D. Quixote, na memória popular
brasileira, via tradição oral''. Há também a presença de correntes migratórias espanholas. De
modo que ''figuras como as de D. Quixote e Sancho, assim também como episódios da
história, acabaram se convertendo em algo extremamente familiar e conhecido''.
Isso basta, não? Não. Será necessária uma pesquisa em Madri sobre a presença da
figura de D. Quixote no modernismo espanhol e nas revistas latino-americanas; Unamuno e
Maeztu (citado sempre como Maetzu) serão lembrados. Cabe ainda aludir a um sentimento
antilusitano presente no Rio, como possível, mas não suficiente, explicação para que a
revista escolha o emblema de D. Quixote.
11) Por último, toda tese que se preze deve fazer Críticas à Seriedade Acadêmica.
Há uma ''ideologia da seriedade'', diz a autora, citando Luiz Baeta Neves, que ''evoca para si
o status de teoria científica, colocando- se como única, genérica e verdadeira. Ao eleger- se
como saber único, essa ideologia exclui as outras modalidades da experiência social''. Ver o
tópico 6.
Fico por aqui. Se todos esses problemas fossem características exclusivas do livro de
Monica Velloso, esta resenha não teria razão de ser. ''Modernismo no Rio de Janeiro'' não é
um mau livro. Ressente- se , apenas, do estilo atual de se fazer teses universitárias, que pode
ser detectado em muitos outros exemplares da espécie. Quem já leu alguma que o diga; ou
que conteste o que foi dito acima. Pois, naturalmente, meu esforço foi apenas o de recortar
determinados traços significativos no objeto de análise, sem pretensão a uma leitura unívoca,
que aliás seria inerentemente autoritária e acadêmica, e portanto fechada às inúmeras
possibilidades interpretativas que, de forma instigante, se colocam como desafio para quem
quer que se proponha ao resgate de experiências e vivências significativas num contexto etc.
etc. etc.

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