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Faculdade Santa Marcelina – FASM

Programa de Estudos Pós -Graduados em Artes


(Mestrado Acadêmico)

A CONSTRUÇÃO DE UM AUTO -RETRATO:


“COLCHA DE RETALHOS”

Rosana d e Oliveira Lopes


Esta dissertação foi defendida perante a seguinte banca examinadora:

_________________________________________
Profa. Luise Weiss, Dra. - Orientadora

__________________________________ _______
Prof. Norberto Stori, Dr.

_________________________________________
Prof. Ricardo Hage de Matos, Dr.

São Paulo, 14 de Abril de 2008.


ROSANA DE OLIVEIRA LOPES

A CONSTRUÇÃO DE UM AUTO -RETRATO:


“COLCHA DE RETALHOS”

Dissertação apresentada ao Curso de


Mestrado em Artes Visuais da Faculdade
Santa Marcelina, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Mestre em
Artes Visuais.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Luise Weiss

SÃO PAULO
2008
FICHA CATALOGRÁFICA

LOPES, Rosana de Oliveira

A CONSTRUÇÃO DE UM AUTO -RETRATO: “COLCHA DE RETALHOS”. São Paulo, 2008.


87p.

Tese (Mestrado) – Faculdade Santa Marcelina.

Título em Inglês: THE CONSTRUCTION OF A SELF-PORTRAIT: “PATCHWORK QUILT"

Descritores numerados, deixando dois espaços entre cada um.


AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pelas pessoas que colocou em meu caminho durante o mestrado.

À minha família, pelo apoio e compreensão.

Ao meu marido, cuja confiança em mim e companheirismo incondicional


estimularam-me a ingressar no mestrado e a persistir.

À minha mãe pela dedicação redobrada nesses dois anos.

Aos meus filhos, pela paciência, colaboração e por sua s orações.

Ao meu cunhado Emerson, pelo auxílio com os textos em inglês e à minha cunhada
Lia, pela revisão do português.

A Ermelindo Nardin, por iluminar meu caminho no início da estrada tortuosa.

A Luise Weiss, por abraçar a causa. Por sua serenidade exe mplar e pelos
conhecimentos que me serviram de atalho.

Aos demais professores, pela inspiração e competência.

Cabe a lembrança dos membros da banca examinadora de qualificação pelas ótimas


contribuições.

Aos funcionários da faculdade pelo interesse por meu trabalho de criação, e em


especial à Beth, pela eficiência e prontidão para com todos os mestrandos.
Todas elas, porém,
personagens de ficção ou mulheres reais, desde as mais remotas
épocas, de mãe para filha e de avó para neta, vieram nos
bastidores tecendo seus fios, emendando carreiras, dando pontos
e fazendo nós numa espécie de grande texto coletivo: o tecido da
História composto pelas linhas entremeadas das histórias.
Ana Maria Machado
RESUMO

A proposta deste trabalho é apresentar uma reflexão sobre os conceitos que


justificam a produção apresentada, a fim de que seja possível a compreensão da
poética que cerca a obra em questão. Para isto, faz -se necessário o entendimento
das questões pertinentes à temática do auto -retrato, que se deu por meio do estudo
da trajetória de artistas, cuja obra auto -referente desempenha um papel considerável
na totalidade de sua produção. Com o objetivo de conceituar os procedimentos
utilizados durante o processo d e criação, realizou-se uma investigação sobre as
problemáticas da fotografia e do fazer artesanal.

Palavras chave: auto-retrato; fotografia; pintura; fazer artesanal

ABSTRACT

The purpose of this work is to present a reflection about the concepts tha t justify the
presented production, in order to become possible the understanding of the poetic
that surrounding the work in question. For this, become necessary the understanding
of the relevant issues related to the self -portrait thematic, performed base d on artists
trajectory which self-referential work occupy a very considerable role in their totally
production. With the target of to concept the utilized procedures during creation
process, took up an investigation about photograph and craft doing proble ms.

Key words: self-portrait; photograp;, paintin; craft doing


ÍNDICE

INTRODUÇÃO 8
1.1 Temática 8
1.2 Objetivos 9
1.3 Razões 9
1.4 Primeiros Trabalhos 11

2 REFERÊNCIAS: ALGUMAS CONS IDERAÇÕES


SOBRE O RETRATO E O AUTO -RETRATO 17
2.1 O surgimento do retrato na antiguidade 17
2.2 O retrato no Renascimento e no Barroco 20
2.3 O retrato na modernidade e contemporaneidade 25
2.4 A entrada da fotografia 31
2.5 Colcha de retalhos 40

3 PRODUÇÃO: OS AUTO -RETRATOS 44


3.1 Fotografia 44
3.2 Pintura de auto-retratos 47
3.3 Estampas 69
3.4 Colcha de retalhos I 73
3.5 Colcha de retalhos II 78

BIBLIOGRAFIA 86
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1- Rosana Lopes Sem Título 12
Figura 2- Rosana Lopes Sem Título 13
Figura 3- Rosana Lopes Sem Título 13
Figura 4- Rosana Lopes Sem Título 14
Figura 5- Rosana Lopes Sem Título 14
Figura 6- Rosana Lopes Sem Título 15
Figura 7- Rosana Lopes Sem Título 15
Figura 8- Rosana Lopes Sem Título 16
Figura 9- Rosana Lopes Sem Título 16
Figura 10 - Rosana Lopes Sem Título 16
Figura 11 - Rosana Lopes Sem Título 16
Figura 12 – Fayyum Sarcófago e retrato, século II 19
Figura 13 – Fayyum Rapaz barbado,, século II 19
Figura 14 – Albrecht Dürer Auto-retrato, 1498 22
Figura 15 – Albrecht Dürer Auto –retrato Com Peles – 1500 23
Figura 16 – Rembrandt Auto-retrato, 1629 24
Figura 17 – Rembrandt Auto-retrato com a boca aberta, 1630 24
Figura 18 – Rembrandt Auto-retrato com olhos esbugalhados,
1630 24
Figura 19 – Rembrandt Auto-retrato, 1661 24
Figura 20 – Goya Auto-retrato, 1795-1797 25
Figura 21 – Goya Auto-retrato, 1815 25
Figura 22 – Kollwitz Auto-retrato, 1889 26
Figura 23 – Kollwitz Auto-retrato de frente, 1900 26
Figura 24 – Kollwitz Auto-retrato desenhando, 1933 26
Figura 25 – Kollwitz Auto-retrato com Karl Kollwitz, 1940 26
Figura 26 – Kollwitz Auto-retrato, 1943 27
Figura 27 – Kollwitz Auto-retrato de frente, 1923 29
Figura 28 – Kollwitz Auto-retrato com a mão direita erguida,
1924 29
Figura 29 – Chuck Close SP Triptych, 1999 33
Figura 30 – Chuck Close Auto-retrato, 1995 34
Figura 31 – Chuck Close Auto-retrato, 1967-68 36
Figura 32 – Chuck Close Auto-retrato, 1995 36
Figura 33 – Chuck Close Auto-retrato, 2004-2005 36
Figura 34 – Vik Muniz Auto-retrato, s.d. 38
Figura 35 – Vik Muniz Auto-retrato (estou triste demais para te
contar), 2003 39
Figura 36 – Linda MacDonald So many people I, 2006 43
Figura 37 – Mary Ann Tipple Our dads at war , 2006 43
Figura 38 – Judith Plotner Are we safer now?,2006 43
Figura 39– Andrew Wyeth Crown of flowers – 1974 45
Figura 40 – Klimt O Beijo – 1907/1908 48
Figura 41 – Rosana Lopes Auto-retrato 51
Figura 42 – Rosana Lopes Auto-retrato 53
Figura 43 – Rosana Lopes Auto-retrato 54
Figura 44 – Rosana Lopes Auto-retrato 56
Figura 45 – Rosana Lopes Auto-retrato 57
Figura 46 – Rosana Lopes Auto-retrato 58
Figura 47 – Rosana Lopes Auto-retrato 60
Figura 48 – Rosana Lopes Auto-retrato 61
Figura 49 – Rosana Lopes Auto-retrato 63
Figura 50 – Rosana Lopes Auto-retrato 65
Figura 51 – Rosana Lopes Auto-retrato 66
Figura 52 – Rosana Lopes Auto-retrato 68
Figura 53 – Rosana Lopes Fotografias das estampas dos tecidos
utilizados 71
Figura 54 – Rosana Lopes Pinturas das estampas dos tecidos
escolhidos 72
Figura 55 – Rosana Lopes Planejamento da estrutura da Colcha de
retalhos I 76
Figura 56 – Rosana Lopes Colha de retalhos I 77
Figura 57 – Rosana Lopes Auto-retrato de costas 78
Figura 58 – Rosana Lopes Detalha do Auto-retrato de costas 79
Figura 59 – Rosana Lopes Estampa de Chita 79
Figura 60 – Rosana Lopes Estampa de Chita 79
Figura 61 – Rosana Lopes Auto-retrato 80
Figura 62 – Rosana Lopes Sem título 81
Figura 63 – Rosana Lopes Sem título 81
Figura 64 – Rosana Lopes Colcha de retalhos II 83
Há pintores que transformam o Sol numa
mancha amarela, mas há outros que transformam uma mancha
amarela num Sol.
Pablo Picasso

INTRODUÇÃO

1.1 Temática

Esta pesquisa apresenta considerações acerca do auto -retrato e as questões que


envolvem sua realização, bem como estabelece conexões desse com a fotografia,
elemento de fundamental importância dentro do processo criativo.

As investigações acerca de procedimentos artesanais, como quilt e patchwork, os


quais, por sua vez, abrangem fazeres como costura e bordado, buscam estabelecer
relações com as últimas produções, tema central da presente dissertação.

Mesmo que as pinturas apres entadas nos trabalhos atuais sejam, em sua totalidade,
obras auto-referentes, a partir do momento que são costuradas umas às outras em
função da composição de um novo trabalho, é preciso discorrer sobre concepções
que vão além da pintura de auto -retratos para que se atinjam os aspectos
fundamentais relativos à poética que define a obra final.

Com a finalidade de situar a produção em questão num contexto artístico, as


poéticas de outros artistas são estudadas na medida em que se relacionam com o
trabalho apresentado.
1.2 Objetivos

Esta pesquisa realizou a configuração de um discurso que tornasse compreensível a


poética que envolve os processos artísticos relativos à produção plástica da autora.

Para que o objetivo fosse atingido, foi necessário a realizaçã o de um depoimento,


desde os primeiros trabalhos, sobre o percurso pelo qual se configurou a produção
artística.

1.3 Razões

Durante minha infância, o desenho era a ocupação que mais me aprazia.

Na adolescência esta atividade tomou novos rumos, visto que , tendo optado por um
curso técnico em Telecomunicações, passei a dedicar -me somente ao desenho
técnico e de circuitos eletrônicos.

Quando ingressei na faculdade para cursar Licenciatura em Educação Artística,


restabeleci o contato com o desenho artístico , contudo não mais almejei, com o ato
de desenhar, alcançar a liberdade dos tempos de criança.

O desenho, cujo enfoque era o desenho de observação, foi apresentado a nós


alunos delimitado pelos cânones ocidentais, fato que não me causou desconforto, ao
contrário, atraía-me o desafio de representar no papel o máximo de detalhes que
meu olhar pudesse capturar do objeto.

Contrariando o planejamento original, no último ano do curso fiz a opção pela


especialização em Desenho, ao invés da especialização em Artes Plásticas. Tal
escolha possibilitou a aquisição de conhecimentos sobre desenho artístico, técnico,
industrial, arquitetônico e geométrico, que hoje permeiam minha produção artística.

Como professora de Arte, foram as crianças que me ensinaram a valorizar a


liberdade no ato da criação. Eu costumava expor seus trabalhos individuais, unindo -
os por meio de costura ou colagem, conforme as possibilidades que o suporte
oferecia.
Quando trabalhos independentes tornam -se uma obra única, anulam -se como
criações individuais para alimentar uma nova forma, mais forte e imponente.

Fazendo uma reflexão sobre meu processo criativo, torna -se possível compreender
que meus auto-retratos não são independentes, já nasceram para constituir um
conjunto.

A costura faz parte da his tória de minha infância e apresenta -se carregada de dados
simbólicos. Costurar é construir algo novo a partir do que já se tem – transformar. É
algo mais palpável, é mais real, está mais ligado à terra, ao humano, à civilização.
Saber costurar é deter o po der de transformação.

Quando menina ficava fascinada ao observar minha mãe transformando alguns


metros de tecido em roupas novas para mim e meus irmãos.

Como morávamos no bairro do Brás, íamos a pé até a Rua Almirante Barroso


escolher os tecidos que ficava m enrolados em compridos canudos de papelão, que
tomavam as calçadas, visto que os interiores das pequenas lojas já se encontravam
atulhados.

As cores e estampas variadas ofuscavam -me o olhar e a mente, e neles ficariam


gravadas para sempre.

Impressionava-me o papel da linha de costura nesse processo. Como poderia algo


aparentemente tão frágil, que se rompia sem muito esforço, tornar -se tão forte a
ponto de unir, ligar, provocar tamanha transformação?

Todas essas imagens que faziam parte de minha vivência n utriam meu desenho
infantil, cujo tema limitava -se à criação de novos modelos de roupas.

Tais elementos da memória fizeram -se tão presentes que, quando tive meu primeiro
filho, comprei uma máquina de costura e recorri a minha mãe para que me
ensinasse a costurar.
Algumas frases, por serem constantes em minha educação familiar, influenciaram a
formação de minha personalidade: “Faça sua parte e Deus te ajudará”, “Não espere
que os outros façam por você”, “O que fizer, faça muito bem feito”.

Por ter uma formação religiosa inserida na fé católica, a necessidade da aprovação


de Deus sempre fez parte do meu imaginário. A exemplo de meus pais, o fazer, para
mim, tornou-se algo apreciado. Sendo assim, a artesania, ou seja, a perícia do
ofício, está presente em minha poética, revelada tanto na pintura, quanto na costura.

“O verdadeiro fazer, aquilo que caracteriza o Homo faber, transformador da natureza


e criador da cultura” (MACHADO, 2003, p. 183).

1.4 Primeiros Trabalhos

Com uma formação acadêmica em Desenho, meu s primeiros trabalhos traziam


algumas referências desse aprendizado. Desde o início, realizava desenhos com
lápis, carvão ou pastéis, a partir da observação, sempre com o objetivo de atingir o
máximo grau de naturalismo.

Porém, assim que descobri a possib ilidade de projetar a imagem fotográfica na tela
para reproduzir em sua superfície as formas com precisão, passei a dedicar -me
exclusivamente à pintura a óleo.
Meu interesse, desde a época dos desenhos, sempre girou em torno da figura
humana e, de modo especial, da retratística do rosto. A pintura sempre foi pouco
matérica, construída a partir de gestos suaves, com a intenção de que esses se
tornassem praticamente imperceptíveis.

Sendo inexistente o interesse pela realização de inovações em relação à feit ura da


figura, os primeiros retratos (figura 1) mostram experimentações que se restringiam
unicamente ao tratamento do fundo. Receitas artesanais eram utilizadas na diluição
da tinta ou na obtenção de efeitos marmorizados, que tinham a pretensão de se
fazerem passar por uma abstração ao invés de decoração.
A segmentação de figura e fundo é evidente nessas pinturas, cuja força dos rostos
retratados é absorvida pelo excesso de informações contidas no fundo.

Figura 1 - Rosana Lopes


Sem Título
Óleo sobre tela
60X60 cm

Na tentativa de inverter essas forças, realizei uma série de retratos sobre fundo
negro. Os elementos da figura foram concebidos basicamente com a utilização de
três cores: branco, preto e sépia (figuras 2,3,4 e 5).

Abdicando da policromia, acres ci valor ao retrato, contudo satisfazer -me com o


resultado final seria forjar minha expressão.
Figura 2- Rosana Lopes
Sem Título
Óleo sobre tela
120X40 cm

Figura 3- Rosana Lopes


Sem Título
Óleo sobre tela
40X60 cm
Figura 4- Rosana Lopes
Sem Título
Óleo sobre tela
60X60 cm

Figura 5- Rosana Lopes


Sem Título
Óleo sobre tela
60X80 cm
Realizei , então, algumas pinturas e desenhos de auto -retratos utilizando o mesmo
procedimento de transferên cia da imagem fotográfica para o suporte, porém,
alterando os materiais e suportes. Executei desenhos com pastel oleoso sobre papel
e madeira e pinturas com tinta a óleo, acrílica e aquarela sobre tela e papel. (Figuras
6,7,8,9,10 e 11).

As experiências foram válidas porque permitiram que eu libertasse o meu traço e


criasse intimidade com algumas linhas particulares, definidoras de minha fisionomia.

Com alguns conhecimentos a mais, retornei à pintura a óleo sobre tela, certa de que
era isso o que eu queria fazer.

Figura 6 - Rosana Lopes


Sem Título Figura 7 - Rosana Lopes
Crayon sobre papel Sem Título
30X50 cm Tinta acrílica sobre papel
30X50 cm
Figura 8 - Rosana Lopes Figura 9 - Rosana Lopes
Sem Título Sem Título
Óleo e pastel sobre papel paraná Óleo e nanquim sobre papel paraná
40X60 cm 40X60 cm

Figura 10 - Rosana Lopes Figura 11 - Rosana Lopes


Sem Título Sem Título
Aquarela e pastel sobre papel Óleo e pastel sobre papel paraná
30X50 cm 40X60 cm
Certas imagens flutuam da superfície e exigem
serem pintadas e outras caem fora... Eu acho que sempre
parecem ser interessantes para auto -retrato.
Chuck Close

2 REFERÊNCIAS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O RETRATO E O


AUTO-RETRATO

2.1 O surgimento do retrato na antiguidade

Embora com uma conotação distinta do que representa o retrato contemporâneo,


pode-se verificar durante toda a história humana, desde a antiguidade, a existência
da arte do retrato.

Na antiguidade, a representação da imagem encontra sua origem na escultura, a


qual era considerada um substituto do corpo para a alma desabrigada, até que esta
pudesse encontrar o seu caminho.

A escultura prestava-se também a servir tanto de corpo aos deuses, como de elo de
comunicação entre eles e os homens.

A convicção nesta crença era tão forte que muitas estátuas eram feitas com os olhos
fechados e cercadas, para que não houvesse a possibilidade de criarem vida e
caminharem.

As esculturas retratísticas serviam também como meio de sacralização do homem


após a morte ou mesmo durante a vida.

Muitas estátuas eram erigidas para que se prestassem cultos a um ente querido que
se fora. Outra vezes, retratos de imperadores romanos, como foi o cas o de
Constantino, eram colocados em moedas, cujas faces alternavam sua imagem com
a imagem de Deus, numa forma de divinizar o imperador em vida.

Com o Cristianismo, o corpo, considerado prisão da alma, não era reproduzido. O


rosto era representado de modo a lembrar a imagem de Jesus impressa no pano
com o qual Verônica enxugou sua face. Esse modo de representação não indicava
falta de habilidade por parte do artista, mas, numa alusão a Cristo, configurava -se no
desejo de fazer do retrato um meio de vencer a morte física.

Segundo Platão, filósofo grego, a imagem não enganadora tinha que possuir um
índice do modelo, ou seja, a marca de sua presença, o que reforça a idéia na crença
na conexão mágica entre modelo e imagem, como o homem das cavernas que, para
desenhar sua mão, colocou-a na superfície da parede para contorná -la, fazendo da
imagem, memória (AZARA, 2002).

Contrariamente a Platão, outros filósofos do final da antiguidade acreditavam que


uma imagem que não guardasse seu índice tinha tanto valor qualque r outra, pois
para eles era positivo alcançar novas realidades. A Igreja, alicerçada neste
pensamento, usa a imagem como consolo à humanidade.

Considerando-se que a escultura relacionava -se à substituição do corpo, o retrato


pintado corresponderia à preser vação da própria alma.

Segundo a lenda sobre o surgimento do retrato, a pintura do gênero surgiu quando


uma jovem apaixonada contornou em uma parede a sombra do rosto do amado que
iria partir. A origem do auto -retrato é contada por meio de uma variação da mesma
história, referindo-se a um homem que, ao observar sua sombra produzida na
parede por uma fogueira, registrou -a com carvão.

A sombra é o testemunho mais verdadeiro da presença do modelo, pois é a


revelação do corpo exposto à luz. Captar a sombra e r egistrá-la em um plano é
imortalizar a presença do modelo. Contudo, o perfil desenhado na superfície através
da sombra revela a criação pelas mãos do artista. Por meio do retrato, artista e
modelo deixam-se revelar. No entanto, o artista, na antiguidade, era considerado
simples artesão, e a qualidade artística do retrato era desvalorizada perante a
argumentação religiosa de que existia uma ligação mística inquestionável entre
imagem e modelo. Tal era a força com que se acreditava nesta relação, que muitos
dos retratos da antiguidade serviam de culto aos mortos, cujas tumbas eram
decoradas com representações naturalistas de seus rostos.
Os retratos de Fayyum (figuras 12 e 13), região do Cairo, são belíssimos exemplos
históricos de pinturas funerárias sobre m adeira. Existe a possibilidade desses
retratos terem sido executados durante a vida do modelo com o propósito de serem
usados após a sua morte. Em sua maioria, são feitos em encáustica sobre madeira,
entretanto, existem algumas pinturas realizadas em têmpe ra sobre tecido (VANÇAN,
2003).

Figura 13 – Fayyum
Rapaz barbado,, século II
Figura 12 – Fayyum Encáustica
Sarcófago e retrato, século II 43X22 cm
Encáustica
s.m.

O retrato naturalista era fixado sobre o sarcófago (na altura da cabeça), onde era
depositado o corpo mumificado, com a provável intenção de que sua alma não
ficasse sem rosto, o qual mirava serenamente a mo rte, revelando apenas uma leve
melancolia pela despedida deste mundo (AZARA, 2002).

Os retratos funerários do final da antiguidade, como os bustos de Palmira,


apresentam grandes olhos, os quais incitam ao abandono deste mundo e à
preparação da última viag em.
Com o florescimento do Cristianismo, a concepção mágica do retrato teria de ser
negada. A ligação entre imagem e modelo que a pintura da sombra vinha a sublinhar
deveria ser rompida, já que a fé cristã pregava o monoteísmo baseado na crença em
Deus uno e trino. Deus Pai em essência é divino e, portanto, pode ser representado
por meio de figuras alegóricas. Contudo, Cristo, por ter -se feito homem, passa a ter
representações naturalistas, as quais, pela crença na conexão entre imagem e
modelo, deveriam aproximar-se o máximo possível da verdade. Ora, sendo assim,
as pinturas referentes a Cristo, diferenciando -se entre si, estariam representando
não um único Deus feito homem, mas muitos. Sendo Cristo divino, cada retrato,
naturalista, também o seria. Temia -se que a fartura de imagens acentuasse a crença
em uma pluralidade de divindades.

Contrariamente aos iconoclastas bizantinos do século VIII e, posteriormente, outras


seitas puritanas do século XVI e XVIII, os que aceitavam as imagens não
acreditavam que os retratos guardassem alguma relação substancial com o modelo.
Ademais, se o próprio Cristo deixara sua imagem impressa no tecido que Verônica
(Vera icon) utilizara para enxugar -lhe o rosto durante sua subida ao calvário, não
seria o homem que se atreveria a condenar a arte do retrato (AZARA, 2002).

Sendo assim, a imagem do véu de Verônica converteu -se no modelo de todo o


retrato.

Os ícones bizantinos e a pintura medieval seguiram os cânones da verdadeira


imagem: os rostos mostrados de frente, esquematizad os e planos, os olhos bem
abertos, sugerindo o olhar confiante e derradeiro do Filho, a uniformização da cor e
da luz (AZARA, 2002).

2.2 O retrato no Renascimento e no Barroco

As inquietações trazidas pelo Cristianismo em relação ao modo de representaçã o de


Deus, cuja essência divina e humana eram realidades irreconciliáveis à luz da
compreensão do homem, foram perdendo sua magnitude à medida que as
contribuições de São Francisco de Assis ganhavam força, mudando a visão da arte
definitivamente. A partir de São Francisco surge a convicção de que o amor de
Cristo alcança todas as criaturas. “Mesmo a matéria, toda a matéria, está
impregnada de Deus” (SARTORIUS apud TREVISAN, 2003, p.150).

Se a carne está impregnada de Deus, não há impedimentos à valorização do


homem e a arte do retrato encontra na recuperação da imagem física o seu meio de
expressão.

O homem, cujo valor é reconhecido pela fé cristã, transforma -se em um ser novo, e,
à medida que acontecem importantes invenções e descobertas, adquire a certeza
em sua capacidade de, à semelhança de Deus, criar. Tais acontecimentos culminam
no Renascimento, período no qual os retratos, de modo geral, apresentam imagens
idealizadas e distanciadas das imperfeições humanas. Cresce, por conseqüência do
humanismo, o desejo do artista de se auto -retratar.

O crescimento da indústria do vidro no período renascentista proporciona o


aprimoramento da técnica de fabricação de espelhos. Tal fato, aliado à disposição
do artista para a auto-representação, configura-se em um aspecto favorável ao
aumento da produção de auto -retratos enquanto gênero. Muitos artistas fazem do
auto-retrato um instrumento de equiparação em relação às pessoas que lhe fazem
encomendas.

Dürer (1471-1528), artista alemão do Renascimento setentrional (nort e da Europa),


buscava, por meio de seus auto -retratos, o reconhecimento de sua posição como
artista, em detrimento ao pensamento alemão generalizado, advindo da Idade
Média, que nivelava o artista ao artesão.

Por meio da auto-representação aristocrática e altiva, em seu auto-retrato de 1498


(Figura 14), Dürer sugere desfrutar das regalias que o prestígio como artista
reconhecido lhe traz.
Figura 14 – Albrecht Dürer
Auto-retrato, 1498
Óleo e pastel sobre tela
52X40 cm

No “Auto-retrato com Peles” (1500), Dürer baseia -se na representação iconográfica


medieval do sudário de Verônica, o que reflete o anseio do artista em elevar sua
individualidade a um plano superior da existência humana (VANÇAM, 2003) (figura
15).

As motivações que levam um artista a retratar -se vão além da auto-representação


narcisista.

No período Barroco, a repressão imposta pelo Estado com o aval da Igreja, cerceia
as ações do homem, cuja visão de si mesmo muda de perspectiva. Ciente de sua
impotência diante dos acontecimentos da vida, tenta voltar -se a Deus e aos
aspectos existenciais.
Figura 15 – Albrecht Dürer
Auto –retrato Com Peles - 1500
Óleo sobre tela
67X49cm

A crise existencial do homem deste período determina uma atitude dialética que se
manifesta na arte por uma estética do conflito.

Os retratos, e em especial os auto -retratos, tornam-se relatos contundentes das


verdades e misérias humanas.

Os auto-retratos do pintor holandês do século XVII, Rembrandt Van Rijn (1606 -1669)
executados ao longo de sua vida, documentam, impiedosa e cruelmente, o
perecimento do corpo humano. A altivez e o vigor retratados nas imagens auto -
referentes da juventude vão sendo substitu ídos por auto-retratos que revelam
qualidades adquiridas na dura caminhada pela vida. Diante da decadência da carne,
desnudam-se a paciência, a reflexão, a sabedoria de um profeta (AZARA, 2002).
O Rembrandt da juventude (figuras 16, 17 e 18), cujos auto -retratos conferiam-lhe
uma forma de exercitar expressões faciais diversas, dá lugar a um outro no qual a
decadência pessoal e financeira refletem -se nos olhos cansados, porém dotados de
uma serenidade renovada pela confiança em Deus (figura 19).

Figura 17 – Rembrandt
Figura 16 – Rembrandt Auto-retrato com a boca aberta, 1630
Auto-retrato, 1629 Água forte
Óleo sobre madeira 8,3X7,2 cm
15,5X12,7 cm

Figura 18 – Rembrandt
Auto-retrato com olhos esbugalhados, 1630 Figura 19 – Rembrandt
Água forte Auto-retrato, 1661
5,1X4,6 cm Óleo sobre tela
114X94 cm
Um século depois, Goya (1746 -1829), artista espanhol do século XVIII que também
realizou auto-retratos durante toda sua vida, neles representa, tanto quanto
Rembrandt, mostras de exaltação e declínio ao longo de uma existência (figuras 20
e 21).

O auto-retrato para artistas como Rembrandt e Goya ultrapassa o desejo de


expressão das emoções e torna -se registro irrefutável da passagem do tempo.

Figura 21 – Goya
Figura 20 – Goya Auto-retrato, 1815
Auto-retrato, 1795-1797 Óleo sobre tela
Desenho 46X35cm
s.m.

2.3 O retrato na modernidade e contemporaneidade

A categoria auto-retrato permanece com o forma de expressão artística na


modernidade e avança pela contemporaneidade. Diversas são as intenções do
artista quando realiza a auto -representação. Käthe Kollwitz (1867 -1945) é um
exemplo de artista cuja proporção de auto -retratos é extraordinária em relação ao
conjunto de sua obra. Ela deixou um legado de mais de cem auto -retratos.
“Essa presença tão constante da figura do artista na própria obra faz pensar em um
engajamento entre vida e obra fora do comum” (BASTOS, 1990, p.64).

O auto-retrato vivenciado de tal forma no trabalho de uma artista não pode deixar de
levantar a questão do tempo.

Artista nascida na Prússia (Império Alemão), Käthe Kollwitz realizou, durante toda
sua carreira, cerca de cento e trinta auto -retratos entre desenhos e gravura s, sem
mencionar seu trabalho escultórico e algumas obras que, apesar de guardarem
semelhança com a fisionomia da artista, não foram identificadas por ela como auto -
retratos (figuras 22, 23, 24, 25 e 26).

Figura 23 – Kollwitz
Figura 22 – Kollwitz Auto-retrato de frente, 1900
Auto-retrato, 1889 Desenho em pastel colorido
Desenho em nanquim e sépia 58X47,5cm
31,2X24,2 cm

Figura 24 – Kollwitz
Auto-retrato desenhando, 1933
Desenho a carvão
47,9X63,3cm
Figura 25 – Kollwitz
Auto-retrato com Karl Kollwitz, 1940
Desenho a carvão
60X44cm
Figura 26 – Kollwitz
Auto-retrato, 1943
Desenho a carvão
61,2X48cm

Kollwitz sempre trabalhou sozinha, ao contrário de muitos artistas de seu tempo.


Para que se compreenda a própria personalidade é preciso realizar uma busca
profunda dentro de si e estabelecer o confronto interior. Somente escapando da
acomodação é que se torna possível crescer. Essas lutas devem ser travadas na
solidão. O trabalho individual é condição indispensável para o artista que lida com a
auto-representação.

Kollwitz foi considerada uma artista social, contudo, julga -la somente sob este
aspecto é desconsiderar o conjunto de sua obra. Para compreender a grandiosidade
de seu trabalho, é preciso partir do estudo de seus auto -retratos, já que todo o
restante de sua produção é reflexo de sua vida cotidiana, de seus
autoquestionamentos, da empatia com mulheres que vinh am ao consultório médico
de seu marido, da perda de um filho e de um neto na guerra.
O diálogo que a artista travava consigo é evidente não só pela quantidade de obras
auto-referentes, como também por seus escritos em diários, os quais, durante trinta
e cinco anos, coincidiram com a própria obra de Kollwitz. Os diários não se
limitavam a relatos de ordem pessoal. Também descreviam experiências artísticas,
planos de trabalho, impressões sobre exposições realizadas, frustrações
profissionais, inseguranças re lativas à comparação com o trabalho de outros artistas,
já que Kollwitz era bastante crítica em relação à própria obra.

Käthe Kollwitz, por meio de sua arte, muito contribuiu para a valorização da mulher,
sendo esta o foco central de seu trabalho. Grande parte das mulheres, por ela
retratadas, faziam parte de seu convívio. Eram mulheres cuja luta pela sobrevivência
as tornou fortes ou obstinadas. Em seus diários Kollwitz descrevia suas histórias, as
quais correspondiam imediatamente às imagens executadas p ela artista.

“Käthe Kollwitz retiraria a matéria prima de suas obras, não com a distante
objetividade naturalista da maioria de seus contemporâneos, mas com tomada de
posição e engajamento” (SIMONE, 2004, p. 32).

A maneira pela qual Kollwitz via o mundo foi herdada de sua família, entretanto suas
obras sociais continham uma subjetividade que a diferenciava da maioria dos
artistas. Tal subjetivismo correspondia mais ao resultado autoconsciente de uma
reflexão pessoal do que a um individualismo vazio. Depo is da perda do filho, grande
parte de suas obras, que não eram auto -retratos propriamente ditos, relacionavam -
se à morte. O conteúdo dessas produções remete -se à Pietá, todavia desprovido do
simbolismo religioso. Trata -se muito mais do sofrimento de uma mu lher real. Em
tempos de guerra, essas obras iam além do cunho pessoal para tratar questões da
humanidade.

O modo pelo qual um artista pensa sua arte manifesta -se em toda sua obra. No caso
de Kollwitz, a preocupação em transmitir uma mensagem ao povo estend e-se
também aos seus auto-retratos. O auto-retrato de um artista ultrapassa sua vaidade
pessoal para lidar com as questões humanas comuns a todos os indivíduos.

Devido ao predomínio de trabalhos em xilogravura (figuras 27 e 28), os quais


constituem um segmento mais impetuoso do conjunto da obra apresentada, a
exposição de Käthe Kollwitz, realizada em 1933 em São Paulo, foi interpretada
erroneamente como expressionista, cunho que não agradou a artista, cuja proposta
sempre foi a de uma arte que falasse à hu manidade, fortemente relacionada à
origem naturalista/realista.

“O expressionismo é arte de ateliê (...) estéril (...) certamente não sou expressionista
(...) para mim só existe a forma humana, mas que deve ser destilada, reduzida à
essência” (KOLLWITZ, 1 917 apud SIMONE, 2004, p. 186).

Figura 28 – Kollwitz
Figura 27 – Kollwitz Auto-retrato com a mão direita erguida, 1924
Auto-retrato de frente, 1923 Xilogravura
Xilogravura 40X30cm
15X15,5cm

Há, evidentemente, uma faceta expressionista na obra de Käthe Kollwitz, no entanto,


a artista trabalha por meio de seus auto -retratos usando uma linguagem estética
mais franca, com o componente tempo, que é o ma ior responsável pelas mudanças
no corpo e na alma.

Em um de seus últimos escritos Kollwitz registra as palavras derradeiras de um


amigo antes de morrer, as quais justificam a disposição da artista em lidar com o
tempo por meio do auto-retrato: “Na verdade, não somos nós que vivemos, a vida é
que nos vive” (SIMONE, 2004 p. 168).

Os auto-retratos de Käthe Kollwitz podem ser subdivididos em três grupos: auto -


retratos da juventude (1888 -1903/04); auto-retratos da maturidade (1904 -1923/24);
auto-retratos da velhice (1924-1943). O primeiro grupo é o que compreende mais
obras deste gênero, sendo grande parte desenhos à nanquim, gravuras em metal e
desenhos realizados, provavelmente para exercício da técnica, em folhas de estudo,
cada uma delas comportando vários au to-retratos.

A maior parte destas obras concentravam -se no busto – rosto e mãos – remetendo
ao Renascimento. O destaque é dado à expressão do rosto em detrimento de um
fundo neutro. A precisão dada aos detalhes do rosto é realizada com a pena em
contraste com o fundo largo e solto obtido com o pincel. Essa tendência acentua -se
nos auto-retratos tardios. Os únicos objetos a serem retratados são instrumentos
referentes ao trabalho da artista: lápis, pincéis. Os retratos em que aparece
acompanhada são escassos . Observa o trabalho gráfico de Rembrandt,
especialmente em relação ao contraste entre luz e sombra.

Geralmente Kollwitz não faz uso da cor, a qual foi empregada em poucas obras a
óleo e alguns pastéis. Alguns retratos não são indicados como auto -retratos,
entretanto é possível perceber suas feições em figuras femininas que compõem
essas obras (BASTOS, 1990).

O segundo grupo de auto -retratos constitui-se de desenhos a carvão e giz negro e


predominantemente de obras litográficas. Desenho e gravura integram -se nas obras
deste período. O trabalho apresenta uma mudança importante em relação aos auto -
retratos anteriores, pois aqui o vigor da juventude vai sendo substituído pelo
desalento e pela incerteza.

Em 1908, iniciam-se os primeiros registros nos diários de Kollwitz que confirmam as


dúvidas retratadas em seus trabalhos. Mostra em seus auto -retratos o sentimento de
envelhecer, apesar da pouca idade. Suas produções refletem o estado depressivo
em que vive tanto pela morte do filho na guerra, como pela insatis fação conjugal.

Os auto-retratos do último período compõem -se de xilogravuras e algumas


esculturas. Esses trabalhos possuem uma carga expressionista, evidenciada pelos
traços de envelhecimento acentuados, correspondentes mais ao retrato psicológico
do que físico da artista. Na busca pela essência da expressão, as obras em xilo
apresentam uma simplificação de traços a partir da estilização quase geométrica e
da redução formal (SIMONE, 2004).
A partir de 1930, volta a realizar auto -retratos em lito e carvão.

Em 1940, realiza um auto -retrato com o marido, o qual morre neste ano. Supõem -se
que tenha sido uma homenagem a ele, já que Kollwitz via o auto -retrato como um
símbolo da solidão humana (SIMONE, 2004).

Datam de 1943 seu último auto -retrato e seus últimos relatos nos diários. Como em
um retrato da antiguidade, seus olhos parecem contemplar serenamente a morte,
numa espécie de despedida de uma jornada difícil. Kollwitz foi uma artista
independente, numa época em que poucos ousavam ser. Graças a sua
personalidade, seu trabalho é único e consistente.

A obra auto narrativa de Käthe Kollwitz é de valor inestimável – retrato de uma


mulher fascinante que está além de seu tempo – tem muito a transmitir hoje. As
incertezas da artista sobre feminilidade, sensualidade , erotismo, o seu compromisso
com a humanidade, as dúvidas relativas ao trabalho, os planos entusiasmados, as
decepções com os resultados, as dores, são todos questionamentos vívidos no
artista da contemporaneidade.

O artista contemporâneo tem consciência de sua fragmentação enquanto sujeito,


portanto, seu retrato lida com a decomposição do ser e da alma. Todavia, por mais
diversas que sejam as auto -imagens, essas devem estabelecer, mesmo que
sutilmente, uma conexão. Cada auto -retrato revela um personagem, que, como num
espelho, contém uma versão da verdade. Instrumento que alimenta a vaidade, o
espelho estimula o gesto narcisista de auto -reconhecimento, gesto este que se
materializa sob a forma de auto -retrato. Caberá ao artista estabelecer um vínculo
entre cada obra autonarrativa na busca da essência de sua personalidade
multifacetada.

2.4 A entrada da fotografia

O processo fotográfico é resultante de uma série de descobertas anteriores, as quais


correspondem à apreensão e registro da imagem. Os dispositi vos óticos para
apreensão da imagem remontam ao Renascimento e possibilitam ao pintor a
“transposição direta do referente para o suporte” (DUBOIS, 2004 p. 129). Tais
dispositivos (câmera escura e câmera lúcida) exigem a presença física do referente
(paisagem, pessoa ou objeto).

A câmera escura, utilizada como auxilio ao desenho e à pintura, caracteriza -se por
um cubo de grandes dimensões, o qual pode abrigar uma pessoa e onde a luz não
entra, a não ser por um único orifício localizado na parede. A parede ou tela oposta
a este orifício é branca e nela é projetada a imagem que aparecerá invertida em
relação ao objeto localizado do lado de fora do cubo, próximo ao orifício.

A câmera clara (lúcida), utilizada para o mesmo fim da câmera escura, funciona
como uma espécie de telescópio composto por um prisma, espelhos e lentes, e por
ela o pintor foca seu olhar e enquadra o objeto à sua frente, enquanto realiza o
desenho.

Os dispositivos para captar a imagem, tais como a câmera clara e a câmera escura,
aliados às invenções relacionadas ao registro da imagem, estabelecem o caminho
que leva ao surgimento da fotografia. Tais invenções são descobertas de natureza
química, que possibilitam a impressão automática da imagem em suportes
revestidos por uma camada de nitrato de prata, substância susceptível à luz.

Finalmente, são os experimentos que permitem a fixação da imagem no papel,


definidores da fotografia.

Após muitos testes, Niepce, Daguerre e Talbot dão o passo final para a consumação
do processo fotográfico, tornan do-se os responsáveis pela conservação da imagem
independentemente da presença da luz. Daguerre e Talbot realizaram experiências
paralelas, ambas com bons resultados.

Daguerre cria o daguerreótipo e Talbot, um dispositivo fotográfico semelhante.

O daguerreótipo foi muito utilizado nos anos de 1840 a 1850, tendo sido
redescoberto por alguns artistas contemporâneos que se interessam pelo efeito que
a definição da imagem produz. É o caso do artista Chuck Close (1940 -) que realizou
uma série de daguerreótipos (figura 29) com o propósito de explorar a agudeza do
foco das imagens obtidas. O daguerreótipo permite os efeitos de hiperdetalhe e
hiperacuidade, no ponto central (foco) da imagem.

Figura 29 – Chuck Close


SP Triptych, 1999
Daguerreótipos
14X11,4 cm

Tudo o que se distancia do foco próximo torna -se embaçado. Um retrato feito por um
daguerreótipo chama a atenção pelo excesso de detalhes no rosto (olhos, nariz e
boca são realçados por poros, imperfeições, marcas, pêlos), em contraposição ao
restante da cabeça (orelhas, pescoço e cabelos) que perdem a nitidez. A agudeza
da imagem é “puxada” para o centro, enquanto o redor se esvaece no fundo.

O caráter indiciário - presença do referente no momento da captação da imagem -


do ato fotográfico remete às histórias lendárias que ilustram o surgimento da pintura
de retratos e auto-retratos, os quais teriam surgido do desenho do contorno da
sombra do referente em uma parede.

A sombra, outrora desenhada da parede, traduz -se em tentativa de satisfazer o


desejo irresistível de perpetuação da imagem – memória. A invenção da fotografia
representa para o homem do século XIX a superação desta necessidade primordial
indispensável. Com a crença de que as questões referentes ao registro da verdade
ficarão reservadas à fotografia, surgem incertezas relativas à pintura de cunho
naturalista, as quais motivam a realização de novas experiências estéticas. Este
novo olhar, mais amplo e condescendente, permite que fotografia e pintura possam
coexistir e na busca por soluções inéditas, vários artistas encontram justamente na
fotografia um instrumento de grande valia para a criação de sua obra.
O surgimento da fotografia no século XIX desobriga o artista do registro documental,
já que, diante do senso comum, é a fotografia que possui perfeição analógica em
relação ao real.

A despeito de muitos artistas corresponderem à previsão e abandonarem a


representação figurativo-naturalista, outros tantos adotam uma postura hiperrealista
no modo de executarem o desenho ou pintura, utilizando a fotografia como um
atalho para obtenção da semelhança tão almejada. Out ros ainda valem-se do teor
documental que a fotografia possui e utilizam -na como produto final.

Tamanha liberdade gera bifurcações, nas quais o artista sente -se compelido a
caminhar, acentuando ainda mais as criações auto -referentes como forma de
afirmação de sua identidade, alicerçada num eu universal.

Diversos artistas, que procuram com o auto -retrato atingir a universalidade,


acreditam que buscar a impessoalidade seja o caminho viável. Chuck Close é um
artista que trabalha com auto -imagens que considera impessoais. Uma imagem
“neutra” desvia a atenção do observador para detalhes formais da produção, se não
anulando, ao menos diminuindo o risco de uma análise subjetiva da obra (figura 30).

Figura 30 – Chuck Close


Auto-retrato, 1995
Silkscreen sobre papel
163,8X137,2 cm
Para Close, uma imagem supostamente desprovida de emoção desfavorece
possíveis distorções interpretativas ou uma leitura psicológica mais profunda por
parte do observador, algo não aspirado pelo artista. A objetividade que ele busca é a
mesma que deseja a quem observa seus trabalhos. “Eu rejeito as questões
humanas em minha produção... Eu não posso ter o trabalho de pensar sobre elas!”
[tradução nossa](CLOSE, 2004 p. 28).

Chuck Close estudou em Yale em uma época na qual a abstração permeava todas
as formas de linguagem artística. Insatisfeito, Close encaminhou s ua produção
artística na direção oposta ao que aprende na universidade, realizando retratos e
auto-retratos hiperrealistas com dimensões gigantescas, utilizando a imagem
fotográfica como ponto de partida em suas criações artísticas, dentre as quais
pinturas, desenhos e impressões.

Por quase quarenta anos, mais que qualquer outro artista, Chuck Close usa sua
própria imagem como tema principal em sua obra.

A maneira com que posa para seus auto -retratos fotográficos – expressão do rosto
em repouso, cabeça pree nchendo a maior parte do plano – impede a percepção de
elementos, por vezes simbólicos, como roupas e objetos pessoais. A expressão
impassível do artista busca erguer uma barreira entre o que se vê e o que está além
disso. Ainda assim, o auto -retrato, pela natureza que lhe é inerente, abrange a
subjetividade humana, o que torna impraticável observar essas obras auto -
referentes com desinteresse.

Ainda que Close convide o espectador somente à superficialidade que a imagem


revela, a este é permitido observar a s alterações que a passagem do tempo
provoca, que embora superficiais, refletem a influência da moda (corte de cabelos,
barbas, óculos), o envelhecimento do corpo e, mais sutilmente, a mudança no modo
como o artista encara a câmera.

O auto-retrato de 1967 (figura 31) apresenta um olhar de superioridade –


provavelmente a câmera estava abaixo do nível de seus olhos – que sugere uma
certa agressividade, inexistente nos auto -retratos atuais, cuja serenidade e
autoconfiança são associadas ao olhar firme e direto . Entretanto, como todo artista
Figura 31 – Chuck Close
Auto-retrato, 1967-68
Acrílica sobre tela
273,1X212,1 cm

que passa um longo período da vida produzindo auto -retratos (figura 32 e 33),
Chuck Close estabelece uma constância entre as obras, que mantêm viva a
essência de sua personalidade. O modo como o artista realiza se us trabalhos revela
muito dessa personalidade. “Suas pinturas são produto de um temperamento muito
particular – tenacidade e trabalho pesado, agilidade e espírito indagador,
honestidade e tempo próprio” [tradução nossa] (GRYNSZTEJN, 2005).

Figura 32 – Chuck Close Figura 33 – Chuck Close


Auto-retrato, 1995 Auto-retrato, 2004-2005
Tinta indiana sobre papel Óleo sobre tela
152,4X102,9cm 259,1X218,4 cm
O acaso na obra de Close não se constitui em uma procura. Seus trabalhos, dentre
os quais grandes pinturas, desenhos, impressões, trabalhos em massa, fotografias e
daguerreótipos, revelam a necessidade de um planejamento que atenda às
exigências de um resulta do previsto. No entanto, não há rigor em sua obra, em
especial em seus trabalhos grandiosos, em que a imagem final é composta quadro a
quadro, diferenciando-se um do outro. A opção pelo auto -retrato partiu, a princípio
de uma necessidade prática. Ao prepar ar o local onde realizaria suas fotografias,
Close checava a luz fotografando a si mesmo, obtendo assim centenas de auto -
imagens fotográficas.

Para a realização de seus trabalhos, Close parte de uma fotografia sobreposta por
uma grade quadriculada. Trata -se de uma representação esquemática em escala
reduzida que será ampliada no suporte.

O caráter atual da obra de Close dá -se graças ao conhecimento que o artista possui
a respeito do olhar fotográfico e à utilização da imagem que fornecesse os subsídios
necessários à obtenção dos efeitos pertinentes à linguagem fotográfica.

Ao relacionar duas linguagens aparentemente distintas, pintura e fotografia, o artista


não lida somente com o tempo biográfico, mas com o congelamento do instante
obtido pela máquina fotog ráfica e o prolongamento do tempo durante a realização da
pintura. Na visão do fotógrafo e no gesto do pintor está contida a dicotomia dos
ritmos da vida. (GRYNSZGTEJN; ENGBERG 2005).

Close brinca com a dialética: o segundo do “click” fotográfico e a duraç ão da pintura,


o mecânico e o manual, o subjetivo e o sistemático, as partes e o todo e leva o
observador a “jogar” também. A distância do apreciador em relação à tela irá
influenciar completamente a percepção da obra. Aproximar -se da tela significa
perder a visão do todo, penetrar num mundo de abstração. Distanciar -se dela é ser
absorvido pelo olhar do artista.

“A visualização tradicionalmente passiva transforma -se na interação prazerosa do


processo de ilusão, que nos faz recuar e avançar, pois não é poss ível ter as duas
experiências simultaneamente” (GRYNSZGTEJN; ENGBERG, 2005).
Inversamente a Close, que procura a impessoalidade, Vik Muniz (1961 -), artista
brasileiro que vive nos Estados Unidos, vê na sedução a ponte entre o individual e o
universal. “ O artista não tem de agradar, mas deveria sempre seduzir e desafiar o
observador a ser fiel a seu compromisso, e não deve nunca dizer que está
trabalhando somente para si” (MUNIZ, 2007 p. 17).

Ao contrário das expressões imperturbáveis de Chuck Close, Vik Mu niz brinca com
estados de humor, explorando ao máximo, numa atitude performática, suas
expressões faciais, capturadas em auto -retratos fotográficos (figura 34).

Figura 34 – Vik Muniz


Auto-retrato, s.d.
Fotografia
s.m.

Assim como Close, Vik Muniz é consciente das diferença existentes entre o olhar
fotográfico e o olho humano, contudo, faz da imagem fotográfica a etapa final de sua
produção estética: “ O mundo é plano” (MUNIZ, 2007 p. 19).
Por realizar pinturas com materiais perecíveis (açúcar, molho, caviar, chocolate,
geléia) ou criar retratos jun tando minúsculos objetos sem colá -los (soldadinhos de
plástico, cristais), Muniz lida com a questão do efêmero em seus trabalhos. Usa a
fotografia como solução para dotá -los de perenidade e em sua autobiografia
menciona sentir-se confortável com o fato de que a fotografia tenha um propósito em
sua obra (figura 35).

Figura 35 – Vik Muniz


Auto-retrato (estou triste demais para te contar),2003
Montagem com soldadinhos de plástico
s.m.

Posturas à primeira vista antagônicas, como as de Chuck Close e Vik Muniz


legitimam o auto-retrato como reduto da atuação. “Os auto -retratos, e não importa o
quanto eles nos convençam de estarmos mais próximos do artista vivo que os fez,
são inevitavelmente representados” (ROSEMBLUM, 2004 apud LABRA, 2005 p. 13).

Ao se reinventar, o artista não se abandona completamente, entretanto, seu retrato


passa a comunicar algo que não corresponde unicamente a si próprio, mas a
qualquer um ou a todos, daí o auto -retrato contemporâneo ir além das questões
intimistas.

“O espaço do auto-retrato se abre como território de ‘outridade’, de


constituição em ato, em puro processo do ‘eu’ como algo fabricado e
portanto como algo homologado a qualquer um que seja, ao ‘eu’ que é
nenhum e todos, ao sujeito multidão.”

Brea (2004) apud Labra (2005) p.78


2.5 Colcha de retalhos

A utilização da costura e do bordado como procedimentos na criação artística


resgata valores alicerçados numa cultura em que o fazer manual conferia poder ao
artesão, cujo talento proporcionava -lhe o meio de subsistência. Sendo, de fato,
tarefa tradicionalmente feminina, a colcha de retalhos contemporânea tem sua
história construída no passa do de muitas mulheres que depositaram em cada
quadrado de tecido um anseio de liberdade.

Numa época em que o homem detinha o papel de chefe da família, as colchas de


retalhos guardavam um paradoxo: em parte responsáveis pelo resguardo da mulher
no ambiente doméstico, configuravam -se em exercícios de rebeldia, por meio dos
quais surgia sempre uma nova possibilidade de recriação da própria história.

No século XIX, os quilts americanos continham narrações sobre a vida cotidiana,


reivindicações, experiências s onhos dotados de carga simbólica.

No mesmo período, Dom Pedro II incentivou a vinda de plantadores de algodão dos


Estados Unidos (derrotados da Guerra Civil), os quais fundaram a cidade de
Americana (SP), onde foi fundada a primeira fábrica brasileira de tecidos de algodão,
bem como surgiram os primeiros quilts, cuja confecção obedecia a padrões pré -
estabelecidos.

Por serem acolchoados, os quilts não fizeram sucesso em um país de clima tropical,
entretanto, influenciaram a produção de colchas de retalhos, especialmente em
locais mais pobres da zona rural.

Diferentemente dos quilts, as colchas de retalhos eram confeccionadas sem que


houvesse preocupação formal com a criação de imagens.

Durante o regime militar (1964 -1984), novas técnicas de patchwork foram trazidas
por norte americanos e difundiram -se principalmente em Minas e
Goiás.
A colcha de retalhos no Brasil sempre esteve relacionada à população mais pobre e
à questão do reaproveitamento, fato que permite uma aproximação com a história da
chita.

Originária da Índia medieval, a chita, outrora 100% algodão, atualmente possui uma
trama mista, em geral com 50% poliéster.

Ao contrário da diversidade de estampas hoje existentes, originalmente, a chita


restringia-se a estampas florais, o que veio a definir sua s denominações: chita para
o tecido com flores médias, chitinha para as flores miúdas e chitão para as flores
maiores, com cores fortes e geralmente contornadas por um traçado negro.

A chita adquiriu o estigma de pano popular graças a acontecimentos anteri ores à


composição do tecido. A palavra chita é uma variação do termo indiano chint que
significa “pinta” ou “mancha”. O tecido era tingido por meio de um processo
inteiramente artesanal e para fixação da cor, utilizava -se urina, que acelerava a
fermentação dos pigmentos naturais para a obtenção de um tingimento de melhor
qualidade.

Algumas regiões de Minas Gerais ainda utilizam este processo, todavia, no século
XVI, os tintureiros da Índia eram considerados impuros por trabalharem com urina e,
sendo assim, faziam parte das castas inferiores (MELLÃO; IMBOISI, 2005).

Outro aspecto histórico que remete a chita às camadas inferiores da população data
da época da proibição do fabrico do tecido pela Rainha Dona Maria I em 1785 no
Brasil e, especialmente em Minas G erais.

Os melhores tecidos produzidos eram mineiros e ofereciam concorrência aos


tecelões portugueses. Junto à proibição, vinha a ordem que determinava o consumo
restrito aos tecidos produzidos em Portugal. Usar tecidos brasileiros tornou -se, em
Minas, um ato de protesto (MELLÃO; IMBOISI, 2005).

A produção têxtil restringiu -se, assim, para o consumo dos índios, negros e
empregados: o que pode ter determinado a relação entre chita e classe popular,
associação que ainda faz parte do senso comum.
Com exceção das esposas de senhores de engenho, o trabalho de tecelagem cabia
unicamente aos escravos. Assim, como tantos outros preconceitos que impregnam o
imaginário popular, o julgamento desfavorável em relação ao trabalho manual
certamente advém desse período.

Com a vinda da família real para o Brasil e o rompimento de negociação com


Portugal, a abertura dos portos contribuiu ainda mais para que a imagem da chita
fosse associada imediatamente à gente do povo.

A elegância dos tecidos ingleses, mesmo que impróprio s para o clima brasileiro,
contrastava com as cores vibrantes e estampas ingênuas da chita.

Nos anos 60 e 70, o chitão ganha um novo enfoque por causa do movimento hippie,
contudo, não perde o caráter de tecido “alternativo”, já que o próprio movimento
enfatizava o desprendimento das coisas materiais e a liberdade de expressão.

O espírito folclórico popular que envolve a chita permeia inclusive a criação das
estampas do tecido. A idéia de “reaproveitar” os motivos impossibilitava que se
descobrisse o autor da criação original. Um mesmo desenho podia ser ampliado ou
reduzido de forma a ser utilizado em diversas estampas. Hoje, existem designers
que criam novas estampas, dentro dos padrões da chita tradicional.

Com a intenção de elevar o status do tecido, alguns estilistas e decoradores utilizam -


no em suas criações, sem, contudo, angariar adeptos suficientes para que a opinião
geral que se tem sobre a chita seja alterada.

Alguns artistas, sem a intenção de valorizar o tecido, mas sim toda a brasilidade que
lhe é inerente, fazem com que a chita seja o cerne de suas produções plásticas.

Segundo Glória Kalil, o que move estes artistas é a busca da construção de uma
identidade nacional.

“As coisas com cara brasileiras deixaram de ser encaradas como caipiras.
Passou a ser sofisticado ter outro olhar para isto. A chita faz parte de nosso
imaginário e está vivendo uma recuperação. Esta recuperação tem a ver com
o medo que a globalização trouxe da perda da identidade tribal, local.”

Mellão; Imboisi (2005, p.178)


Hoje, apesar de baratos, poucos são os objetos feitos de chita que continuam a ser
produzidos, sugerindo a possibilidade de que, num futuro próximo, não sejam nada
além de “reminiscências da infância de quem tem mais de 30 anos” (MELLÃO;
IMBOISI, 2005, p. 208).

A valorização do artesanato brasileiro não constitui uma preocupação para a


maioria de nossa gente, como é o caso de outros povos. Muitos artistas nacionais
são cautelosos em assumirem a utilização de linguagens ditas artesanais em suas
produções artísticas.

Retomando a questão dos quilts, um exemplo consistente de edificação do


artesanato ao nível da arte é a Exposição Nacional de Quilts Contemporâneos que
acontece bienalmente nos Estados Unidos (figuras 36, 37 e 38). Na exposição
americana são apresentado s trabalhos em que pintura, impressão, desenho,
costura e bordado interagem harmoniosamente na composição da obra.

Figura 36 – Linda MacDonald


So many people I,2006
Tinta acrílica sobre algodão
119,4X91,4 cm

Figura 37 – Mary Ann Tipple


Our dads at war ,2006
Tinta acrílica sobre algodão
91,4X94 cm.

Figura 38 – Judith Plotner


Are we safer now?,2006
Tinta sobre algodão
101,6X116,8 cm
A fotografia está ligada a
uma opinião, o que, aliás, a faz mais humana do
que mecânica. Ela não revela o mundo como um
todo, mas como uma versão dele,
cuidadosamente editada.
Vik Muniz

3 PRODUÇÃO: OS AUTO -RETRATOS

3.1 Fotografia

Para a realização de uma série de pinturas de auto -retratos, foi preciso obter
primeiramente uma quantidade considerável de retratos fotográf icos.

A fotografia é utilizada com o objetivo de obter -se maior precisão no traçado da


forma, não havendo preocupação com proporções e trajetos das linhas, o que
desviaria a atenção da observação da luz.
A imagem fotográfica é projetada na tela a ser pin tada e são delineados apenas os
traços principais necessários para o entendimento da figura. O fundo ou o que
houver em torno da cabeça é desprezado e o desenho segue, no máximo, até a
linha dos ombros.
O envolvimento com o estudo sobre os desenhos e pintu ras da modelo Helga (figura
39) realizados pelo artista Andrew Wyeth (1917) certamente influenciou as poses
para as primeiras fotografias. A apreciação da linguagem formal utilizada pelo artista
nas produções referentes à Helga levaram à tentativa de aprox imação, no ato
fotográfico, com as expressões da modelo. Entretanto, o desenvolvimento do
trabalho exigiu a realização de novos retratos fotográficos.

A segunda série fotográfica constituiu -se unicamente de auto -retratos, os quais, por
serem realizados sem a presença de outra pessoa, adquiriram um caráter muito
mais performático que a primeira.
Figura 39– Andrew Wyeth
Crown of flowers - 1974
Lápis sobre tela
45X60cm

Nenhuma das séries foi descartada, já que ambas ofereciam material favorável à
pintura.

Entre retratos e auto-retratos fotográficos, obteve -se um acervo de sessenta


fotografias, tiradas durante um período de dois meses.

A máquina fotográfica utilizada foi a mesma em ambos os casos, uma câmera digital
Olympus D-435 com resolução de 5.1 megapixel.

Inexiste a preocupação com a qualidade das imagens, impor tando apenas a


dimensão de sua expressividade. As fotos foram realizadas em ambiente externo,
dispensando-se o uso do flash.

De posse de todas as imagens fotográficas, foi feita uma seleção prévia, a qual foi
alterada mais de uma vez. A princípio, as esco lhas seguiram o critério da variedade
fisionômica, entretanto, com o progresso da produção, a escolha da fotografia a ser
pintada ficou delegada à disposição emocional do momento da realização da
pintura, a fim de que essa regesse o fazer artístico.
Pintura de auto-retratos

A apreciação das obras do pintor vienense Gustav Klimt (1862 -1918) direcionou o
projeto de construção de uma colcha de retalhos de auto -retratos pintados (figura
40).
Figura 40 – Klimt
O Beijo – 1907/1908
Óleo sobre tela
180X180cm

Klimt desenhava motivos para estampas têxteis que eram utilizados por sua
companheira Emilie Flöge na confecção de roupas de alta costura. Esses motivos
caracterizavam-se por ornamentos florais e geométricos, os quais, nas pinturas do
artista, envolviam as modelos retrata das.

Por se tratarem de referências para estampagem de tecidos, os desenhos de Klimt


aplicados na pintura permitiram uma associação com uma colcha de retalhos, que
passou a ser o fio condutor para a produção dos auto -retratos. Com a convicção de
que a pintura de auto-retratos deveria submeter -se à construção da colcha, a cor
tornou-se o elemento fundamental na produção.

Antes de iniciar o trabalho, a imagem fotográfica era examinada com minúcia a fim
de que a expressão dos olhos, lábios e músculos da face direcionassem a
associação a uma cor, a qual comandaria a escolha da paleta.

A opção pela tela quadrada, com dimensões de 40 x 40 cm, foi uma decisão que
buscava atender a duas exigências, a primeira a serviço da coerência formal do
conjunto, a outra em f unção do auto-retrato isolado.
A dimensão da tela foi pensada de modo que não interferisse na observação do
retrato pelo expectador, a fim de que o trabalho pudesse ser observado em seus
detalhes, mas que, quando visto de longe, fosse harmonioso e não a mera
acumulação de informações indecifráveis. O tamanho escolhido permite que o
desenho do rosto possa aproximar -se da medida real, ou ultrapassá -la sem
exageros, para que a apreensão do todo não seja prejudicada.

Para a realização das pinturas, os modos t radicionais de produção foram mantidos,


optando-se por telas esticadas no chassi e presas ao cavalete, para só
posteriormente serem retiradas e costuradas umas às outras.

Ao realizar a pintura de um retrato ou auto -retrato, o compromisso é com a


identidade da pessoa retratada. Deste acordo íntimo, definem -se dois elementos
concernentes ao processo criativo: o primeiro refere -se à pintura retratística do rosto
em detrimento de outras partes do corpo e o segundo relaciona -se ao modo de
execução das pinceladas durante a feitura do retrato. Da preferência pela pintura do
rosto em relação a outras partes do corpo, decorre a primazia do olhar. Os olhos
estão sempre presentes na imagem, mesmo que semicerrados ou oblíquos. As
fotografias, cujas imagens apresentavam -se de costas ou que, de alguma forma,
escondiam o olhar, foram logo descartadas. A expressão do olhar é tão importante,
que jamais a pintura de um rosto é iniciada por uma região que não sejam os olhos.
Somente depois de, na pintura, alcançar a mesma exp ressão do olhar percebida na
imagem fotográfica, é que se dá prosseguimento aos demais elementos da face.

A fotografia é minuciosamente observada durante toda a execução da pintura. É por


meio da fotografia que se definem luzes e sombras no retrato. A obs ervação da
imagem, produzida pela agudeza do olhar, é que conduz o gestual. As linhas,
desenhadas a lápis na tela, estabelecem limites às pinceladas, que buscam a
liberdade sempre que lhes é permitido. Neste momento, é pertinente definir o
segundo elemento relativo ao processo criativo: o modo de execução das pinceladas
durante a pintura.

Os pincéis empregados possuem uma numeração baixa, ou seja, são finos. Para a
feitura de alguns detalhes dos olhos ou da boca, são utilizados pincéis que,
normalmente, são usados para contorno. Para a pintura da pele, faz -se uso de
pincéis chatos com poucos pêlos. As pinceladas são leves e controladas. Após a
realização da pintura de uma pequena região, um pincel seco, extremamente macio,
geralmente com pêlos de pônei é ut ilizado para “pentear” o local pintado, ou, retirar -
lhe as marcas do pincel. A pintura torna -se pouco densa, apesar da aplicação de, no
mínimo, duas camadas de tinta.

Óleos secante ou de linhaça nunca são utilizados. A tinta a óleo é aplicada na tela
sem nenhum diluente.

Contudo, mesmo realizando uma pintura pouco matérica, a morosidade da secagem


da tinta impediria que os retratos pintados fossem manuseados durante a costura. A
manipulação das telas sem a secagem apropriada das tintas poderia danificar as
pinturas, assim como utilizar secantes à base de cobalto seria impraticável, dada a
sua grande toxidade e ao prejuízo que causa à própria pintura. Para sanar estas
inadequações, a pesquisa de materiais apontou como solução a utilização do Liquin,
um gel composto por diluentes e secantes menos agressivos à saúde e que
permitem um deslizar muito mais solto da tinta pela tela, além de proporcionar maior
transparência e rapidez na secagem. Com o uso deste produto, ampliaram -se as
possibilidades para novas e xperimentações. Acrescido a isto, a marca das tintas
utilizada foi alterada em favor de outra de consistência mais delgada, bastante
favorável à nova proposta.

As primeiras pinturas iniciavam -se pela feitura do fundo. Entretanto, os


conhecimentos adquiridos durante o desenvolvimento da produção induziram à
experiência de iniciar a pintura pelo rosto e só quando finalizado, passar à pintura do
fundo e dos cabelos num só gesto. Desta forma, a incorporação do cabelo ao fundo
elevava a pintura a um gestual ma is expressivo, ao mesmo tempo em que dava
destaque à emoção do rosto. Desde então, o crescimento do trabalho tornou -se
mais evidente.
1ª Pintura

Figura 41 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Acrílica sobre tela
40X40cm

Alguns vestígios de insegurança são perceptíveis nesse retrato. A começar pela


escolha da imagem, de uma neutralidade notadamente trabalhada: uma feição
sorridente, suavemente inclinada, sem, no entanto, comprometer a centralização da
figura.

O desenho também é tímido, um pouco menor que nos demais retratos.

A pintura, em tons de carne, foi rea lizada mantendo a cisão entre figura e fundo. A
dureza das pinceladas na produção dos cabelos é percebida em alguns pontos.
Esse retrato não foi executado com a utilização do Liquin, a não ser na camada
branca superior.
Porém, mesmo que alguns procediment os não constituam parte do processo criativo
atual, esse retrato foi mantido como presença viva da construção de um fazer,
consciente de suas limitações, mas que, como toda construção, vislumbra a criação
de uma nova forma, tornada melhor.

A aplicação da veladura no retrato aconteceu posteriormente, durante a realização


de novos auto-retratos, conduta que enriqueceu muito o trabalho em função do
conjunto.
2ª Pintura

Figura 42 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

A força desta pintura advém da intensidade do olhar, sublinhada pelo ret esamento
do músculo da sobrancelha, dotando a imagem de uma certa severidade, que é
enfatizada pelo uso da sombra que invade os cabelos. Porém, a figura impõe -se
através da materialidade da carne que se nega a confundir -se com o fundo, já seco.

É um dos poucos auto-retratos que apresentam, marcadamente, uma diferença


cromática entre figura e fundo, o qual recusa -se a ser contestado.

Nota-se, ainda neste retrato, a ausência do Liquin que acrescenta à tinta maior
fluidez, proporcionando maior desenvoltura às pinceladas.
3ª Pintura

Figura 43 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

Esse auto-retrato marca o início da produção com a utilização dos novos materiais.
O estranhamento inicial provocado pela diluição da tinta com o Liquin foi logo
substituído pelas sensações de liberdade e desembaraço que os pincé is passaram a
experimentar ao deslizarem pela tela.

A escolha da imagem e das cores não foi aleatória, mas alusivas ao caráter de
descoberta. As ondulações dos cabelos por sobre o rosto e a pele que se mesclava
ao fundo representavam a conformação da ima gem às novas possibilidades que a
pintura passou a oferecer.
O corte fotográfico é valorizado nesse auto -retrato e acrescenta mais informalismo à
pintura.
4ª Pintura

Figura 44 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

Essa pintura traz um diferencial: apresenta os olhos fechados e a boca bem aberta.
É o primeiro auto-retrato fotográfico a ser utilizado nas pinturas.

Pela primeira vez, o dinamismo do gesto transmitido por meio das pinceladas na
execução do fundo foi preservado.
5ª Pintura

Figura 45 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

O caráter experimental dessa pintura refere -se à ousadia da cor, que, associada à
expressão facial do retrato, tem a função de dotar a imagem de uma feminilidade
estereotipada, referência ao inconsciente coletivo. Dentro desse pensar, o fundo da
pintura revela a batalha perdida do masculino para o feminino quand o o azul, em
conflito com o rosa, adquire uma tonalidade lilás.
6ª Pintura

Figura 46 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

Na pintura foi introduzida, pela primeira vez, o uso de uma veladura branca, a qual
volta a ser aplicada no primeiro auto -retrato. Outra inovação caracterizou -se pelo
traçado de algumas linhas a lápis que recusaram a pintura, a qual só se deu no
momento da veladura.

A escolha da imagem deu -se de forma que tais ousadias do desenho pudessem
acontecer em outra região que não o rosto. Sendo assim, o lápis manifestou -se no
traçado do braço e do colo e em algumas ondulações dos cabelos.
A veladura nessa pintura foi realizada com pinceladas que formavam faixas verticais
e horizontais, diferentemente da veladura executada no primeiro auto -retrato, com
pinceladas mais livres e irregulares .
7ª Pintura

Figura 47 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

A partir desse trabalho, todos os demais auto -retratos passaram a buscar a


monocromia.

Essa pintura foi a primeira a ter o fundo trabalhado simultaneamente à figura. Mais
uma vez, buscou-se uma imagem que favorecesse este fa zer, cuja projeção na tela
proporcionaria a exploração do corte fotográfico. Desta forma, os cabelos tornaram -
se fundo e fundo transformou -se em cabelo.

A gravidade do olhar na imagem incentivou a pintura em tons de cinza.


8ª Pintura

Figura 48 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

Nessa pintura, a cor sépia foi trabalhada no grau máximo de diluição que a tinta
permitiu, suavizada ou aprofundada com o uso das tintas branca e preta,
respectivamente.

Poucas linhas definiram o desenho, a fim de que fosse permitida uma flexibilidade
maior por parte da pintura.
Figura e fundo foram pintados concomitantemente.

O confronto entre luz e sombra é evidente neste auto -retrato e define sua forma,
tanto ou mais que o desenho.
9ª Pintura

Figura 49 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

A pintura dos traços definidores do rosto foi executada primeiramen te, sendo velada,
a seguir, por uma camada de tinta nas tonalidades ouro e cobre.

A segunda camada de pintura referente à face foi tratada com maior liberdade,
restringindo-se somente às linhas mais expressivas.
O movimento das linhas dos cabelos foi obtid o pelo uso do pastel oleoso, que
substituiu as pinceladas usuais.

A imagem escolhida revela características marcantes do rosto, como boca e nariz,


que tornam-se ainda mais evidentes pela presença do dourado.
10ª Pintura

Figura 50 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

Com o intuito de repetir a ut ilização do pastel oleoso, como no retrato anterior, a


escolha primou por uma imagem que fosse propícia a esta proposta, que previa o
uso do pastel não só limitado ao traçado das linhas da mão, como também dos
cabelos e, com menos vigor, algumas linhas do rosto.
11ª Pintura

Figura 51 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

Com a intenção de manter o desenho de algumas linhas em evidência, a imagem


escolhida apresentava uma quantidade considerável de traços conflitantes, que
cederiam ao desenho sem comprometer a identidade do retrato.

A preferência por fotografias cujas imagens causavam um certo estranhamento em


relação ao reconhecimento da própria aparência, foi tornando -se mais evidente a
cada escolha feita.
A cor predominante na pintura carregou o auto -retrato de significados, até então
inexistentes na imagem fotográfica.

O uso do pastel oleoso na determinação das linhas das mãos fez -se notar com mais
firmeza.
12ª Pintura

Figura 52 – Rosana Lopes


Auto-retrato
Óleo sobre tela
40X40cm

A fotografia parece ter sido tirada de um plano superior causando a impressão de


que o corpo estava rodopiando livremente com os braços abertos, o que é apenas
sugerido, graças ao corte fotográfico. No entanto, à pintura é permitido lidar com a
ilusão, pois a observação da imagem fotográfica contradiz essas impressões.

A cor intenciona reforçar a sugestão de dinamismo e liber dade.

Toda esta descrição constrói -se de idéias particulares, mas, segundo Matisse (1869 -
1954), o espectador somente é tocado através da ilusão à medida que o artista se
auto-sugere e transmite esse estímulo à sua obra e ao espírito do espectador.
O uso do pastel oleoso também acontece nesta pintura,

no traçado de algumas linhas soltas e sem pretender alcançar a precisão. Isto lhe é
permitido, pois coube à tinta a constituição da forma.

3.3 Estampas

O projeto da colcha de retalhos previa a execução de u ma estampa para cada auto -


retrato. Assim sendo, tomei a decisão de fotografar estampas de tecidos cujas
imagens seriam passadas para a tela de modo similar às imagens dos auto -retratos.

Por apreciar o ofício da costura possuo uma considerável quantidade de retalhos.


No entanto, a quantia não era suficiente para que eu tivesse liberdade de escolha.

Recorri, portanto a uma loja especializada e solicitei permissão para fotografar


alguns tecidos, apelo que foi prontamente atendido.

Fotografei quarenta estampa s, entre as que estavam à venda e as do estoque, além


de trinta e seis estampas de meu arquivo pessoal. Das setenta e seis estampas
foram selecionadas, coincidentemente, seis de cada grupo, entre motivos florais e
geométricos.

Descartei a possibilidade de realizar uma pesquisa sobre a origem das estampas


dos tecidos, visto que meu objeto de interesse referia -se ao que existia na memória,
ou seja, os tecidos populares, de baixo custo, cuja significação erudita
provavelmente fosse inexistente e cuja pretens ão não ultrapassava o desejo de
agradar ao gosto do povo.

Em capítulo anterior, tornou -se explícito que a pintura dos auto -retratos, apesar de
respeitar as solicitações de cada imagem escolhida, tinha como principal objetivo
atender às exigências da colcha de retalhos.

A pintura de cada estampa, por sua vez, relacionava -se unicamente com o auto -
retrato que iria contornar, negligenciando a composição final.
Portanto, a quantidade de alterações referente às escolhas das imagens para a
pintura de auto-retratos corresponde às mudanças realizadas na seleção das
imagens dos tecidos.

Assim como na pintura dos auto -retratos, as cores das estampas foram modificadas
a fim de que ambas se harmonizassem.

A escolha das estampas seguiu o mesmo preceito de harmonização: um motivo


floral ajusta-se mais a um auto-retrato romântico ou de teor mais feminino, já um
motivo geométrico atende às imagens mais fortes ou com menos particularidades
femininas.

Esse tipo de combinações descreve, na maioria das vezes, o senso comum, do q ual
nunca mantive distância durante o processo criativo.

Todas as estampas foram pintadas somente a partir do término da pintura dos auto -
retratos. O caráter de liberdade é bem mais explícito na produção dessas pinturas,
pois o comprometimento com a identi dade é inexistente.

Não há diferença formal no gestual, contudo, as pinceladas são mais flexíveis e


menos trabalhadas. O acabamento de diversas dessas pinturas foi dado com a
aplicação de veladuras suaves.
Fotografias das estampas dos tecidos utilizado s

Figura 53– Rosana Lopes


Fotografias das estampas dos tecidos utilizados
Fotografia
9X12cm
Pinturas das estampas dos tecidos escolhidos

Figura 54 – Rosana Lopes


Pinturas das estampas dos te cidos escolhidos
Óleo sobre tela
30X60 cm
3.4 Colcha de retalhos I

Quando tomei a decisão de conceber uma colcha de retalhos com diversos auto -
retratos pintados, não tinha consciência da dimensão dessa escolha, tão pouco dos
conceitos nela envolvidos, os quais jamais poderiam ser desprezados, visto que são
eles a essência de minha poética.

A elaboração de vários projetos para a colcha deixou -me muito excitada e dominou
meus pensamentos por um bom tempo, até que eu tomasse a decisão do caminho a
seguir.

O projeto final previu que a colcha seria composta por doze auto -retratos de 40 x 40
cm, que quando emoldurados pelas estampas, passariam a medir 60 x 60 cm. Os
quadrados prontos seriam disp ostos em uma configuração de 4 x 3 correspondendo,
respectivamente, à quantidade de quadrados na altura e na largura da colcha.
Mantida a previsão, a colcha pronta mede 2,40 x 1,80 m. As pinturas das estampas
foram realizadas de modo que pudessem ser recor tadas para emoldurarem os auto -
retratos com acabamento em meia esquadria.

A costura da colcha foi feita à máquina, pelo avesso das telas. As tiras estampadas
foram costuradas aos auto -retratos separadamente. Não tive a preocupação de
conjugar os desenhos d as estampas no momento da costura. Valorizei o seu
desencontro, tal qual nas colchas de retalhos populares.

Somente quando todos os quadrados ficaram prontos é que foram costurados


formando três tiras verticais com quatro quadrados cada uma, as quais, por fim,
foram unidas para a composição final.

O projeto apenas estabeleceu a harmonização entre auto -retrato e estampa


correspondente, o que impossibilitou a execução de um planejamento para o arranjo
prévio das partes na composição do todo, circunstância pos itiva no que se refere à
expressão. A junção dos quadrados percorreu o caminho da visualidade. Dispostos
no chão eram trocados segundo a concepção, por vezes intuitiva, de harmonia
cromática, cuidando para que nenhuma obra se sobressaísse em demasia ou, ao
contrário, fosse enfraquecida por outra, ao mesmo tempo em que forçava o olhar do
espectador a vaguear pela obra em sintonia com os olhares dos auto -retratos.

As pinturas de estampas que, inicialmente, só tinham que ajustar -se aos seus
respectivos auto-retratos, passaram a pactuar entre si, comprometidas com o que há
de fundamental em uma colcha de retalhos: realizar a melhor combinação possível
dentre as possibilidades existentes.
Figura 55 – Rosana Lopes
Planejamento da estrutura da Colcha de retalhos I
Figura 56 – Rosana Lopes
Colha de retalhos I
Óleo sobre tela
240X180cm
3.5 Colcha de retalhos II

Desde a concepção da primeira colcha de retalhos, novos anseios direcionaram o


segundo trabalho. O cerne da obra continua sendo a auto -referência, entretanto,
quis que outras questões fossem trazidas à superfície.
Evocando a idéia de “marca”, fiz um auto-retrato de costas (figura 57), no qual
ressalto minha tatuagem, marca indelével que implica em escolha e decisão. Essa
pintura traz um diferencial importante em relação à primeira produção, na qual optei
por realizar somente auto-retratos frontais, que privilegiavam o olhar.

Figura 57 – Rosana Lopes


Auto-retrato de costas
Acrílica sobre tecido
30X30cm
À pintura da flor tatuada (figura 58), marca individual, contrapus pinturas de
estampas florais de chita (figuras 59 e 60), tecido que carrega a marca de pertencer
ao povo brasileiro.

Figura 58 – Rosana Lopes


Detalha do Auto-retrato de costas
Acrílica sobre tecido

Figura 59 – Rosana Lopes Figura 60 – Rosana Lopes


Estampa de Chita Estampa de Chita
Acrílica sobre tecido Acrílica sobre tecido
30X30cm 30X30cm

O auto-retrato frontal (figura 61), eixo do trabalho, é uma pintura realizada a partir de
um auto-retrato fotográfico e diferentemente da primeira produção, é a única imagem
de rosto a compor o trabalho.
Figura 61 – Rosana Lopes
Auto-retrato
Acrílica sobre tecido
30X30cm

Busquei dirigir o olhar para o céu, numa al usão à busca pela espiritualidade, mais
uma vez traçando um paradoxo com o retrato de costas em que o corpo é
evidenciado pela marca (cicatriz) da tatuagem.

As pinturas abstratas foram realizadas com o propósito de estabelecer uma


associação com o retrato da antiguidade. Refletindo sobre a influência que o Sudário
de Verônica exerceu na iconografia primitiva, realizei “pinturas – impressões” (figuras
62 e 63) em tecidos bem finos (morim e cambraia). Devido a sua composição e
consistência, a tinta vitral, qu ando derramada num recipiente com água, sobe à
superfície. Tendo conhecimento deste fenômeno, derramava a tinta que subia à tona
rapidamente, a qual entrava em contato com o tecido e, imediatamente, aderia a ele,
marcando-o definitivamente.

A primeira vista, lidar com o acaso não parece estabelecer conexões com o modo de
produção costumeiro, contudo, as exigências do próprio trabalho provocaram
mudanças na forma de expressão.
Figura 63 – Rosana Lopes
Figura 62 – Rosana Lopes Sem título
Sem título Emulsão de tinta vitral sobre tecido e
Emulsão de tinta vitral sobre tecido e bordado
bordado 15X15cm
15X15cm

Os suportes das pinturas sofreram variações em relação à primeira pr odução. Com o


objetivo de facilitar a realização de bordados posteriores, as telas foram trocadas por
tecidos quadrados, com diferentes dimensões e texturas.

Para as pinturas dos retratos, o brim foi escolhido como suporte, por ter uma trama
mais próxima à tela. Para a pintura das flores e demais estampas, foram utilizados
tecidos mais finos como popeline, cambraia, morim.

As tintas a óleo foram substituídas por acrílicas, mais adequadas aos tecidos. Pintar
com tinta acrílica sobre tecido requereu um esforç o bem maior do que a pintura a
óleo sobre tela exigia. O tecido, não preparado para receber a pigmentação, oferecia
grande resistência ao deslizamento da tinta acrílica, cuja secagem rápida, por sua
vez, dificultava a homogeneização das pinceladas.

Os bordados foram realizados após todos os retalhos estarem costurados uns aos
outros e alinhavados sobre o linho que serviu de suporte. A aplicação dos bordados
objetivou acrescentar mais humor à composição, além de valorizar a problemática
do fazer artesanal. Foram explorados pontos soltos, de pluma e de cadeia,
tomando-se o cuidado de respeitar as formas pré -estabelecidas pelas pinturas.
As pinturas abstratas dos quadrados menores permitiram mais ousadia por parte dos
bordados. O retrato frontal, tal qual uma imagem sagrada, não autoriza a
interferência do bordado a não ser que se respeite o entorno da imagem.

No retrato de costas, o bordado executado na linha do ombro enfatiza ainda mais a


questão da marca, que se estende além da pintura para o tecido escuro q ue lhe
serve de suporte.

Cada vez que a agulha fura o tecido, deixa seu índice e a linha ocupa o lugar desse
corpo que se foi.

Outro diferencial em relação à primeira produção trata das dimensões dos


quadrados, bem como da simetria. Na primeira produção, c om a intenção de tornar
óbvia a repetição da forma, todos os retratos foram realizados em telas 40x40 cm e
emoldurados em meia-esquadria.

A última produção mantém a forma quadrada (mesmo o retângulo possui as


medidas de dois quadrados juntos), contudo, as diferenças entre os quadrados (30 x
30 cm e 15 x 15 cm) geram uma hierarquia entre eles, cuja força é medida não só
pelo tamanho do retalho, como também pela textura do tecido.

As estampas, por sua vez, ganham um novo status quando deixam de ser cortadas
para emoldurar os retratos.

Mesmo tendo sido utilizados procedimentos artesanais que guardam aproximações


com o quilt, artistas que se propõem à realização deste obedecem a regras
específicas para que o trabalho seja considerado como tal. A obra a que se re fere o
presente estudo não apresenta preocupações semelhantes – trata-se de uma
produção que busca valorizar os meios de expressão popular, referência importantes
no meu trabalho artístico.
Figura 64 – Rosana Lopes
Colcha de retalhos II
Emulsão de Vitral, acrílica e bordado sobre tecido
150X150cm

Figura 64 – Rosana Lopes


Colcha de retalhos II
Óleo sobre tela
105X105cm
(...) quero atuar em meu tempo, no qual a
humanidade está tão desorientada e precisando de
ajuda (...)
Käthe Kollwitz

4 CONCLUSÃO

A discussão que norteou a pesquisa girou em torno do auto -retrato, visto que o tema
estabelece estreita relação com a produção apresentada.

Verificou-se que mais que um exercício narcisista, o auto -retrato contemporâneo é


uma ponte que liga o individual ao coletivo.

A utilização da fotografia durante o processo de criação da obra faz -se necessária


pela busca da semelhança na construção do retrato, objetivo comum a muitos
artistas contemporâneos.

Além de conduzir as linhas definidoras da imagem, o olhar fotográfico orienta toda a


luminosidade da pintura. Muitos artistas contemporâneos encontram na fotografia
um meio de lidar com a questão da semelhança. As fotografias uti lizadas na
produção em destaque, podem ser consideradas neste contexto, já que, os auto -
retratos, em especial, foram importantes porque auxiliaram a captura de expressões,
de olhares.

Na primeira produção, as cores influenciam e dialogam com as expressões faciais.


No primeiro conjunto, a valorização do olhar sobressai. No segundo painel, surge a
questão da pele tatuada que coloca em foco a sensualidade. A ênfase sobre a pele
é transmitida também pela referência que as pinturas fazem ao Sudário de Verônica,
no qual a marca do rosto (pele) de Cristo fica registrada no tecido. Mais uma vez ao
relacionar a flor tatuada às flores das chitas, busquei, de maneira metafórica, por
meio da pintura sobre diferentes texturas, converter os tecidos em pele.

As duas produções em destaque apresentam conduta semelhantes ao reunir


pinturas numa colcha de retalhos, revelando, em ambos os casos, a atualização de
memórias do passado. Tornadas “presente”, as lembranças das costuras
corporificam minha poética, no trabalho minucioso e lento da agulha e linha,
costurando e emendando tecidos.

Enfatiza-se que o trabalho não visa encerrar as discussões sobre o tema, tão pouco
se considera a produção como terminada, pois a criação artística é um processo em
constante transformação. Com a pesquisa de mestrado, as reflexões intercaladas à
prática possibilitaram vislumbrar um território vasto e rico, o do auto -retrato como
expressão artística.
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