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Mal estar na escola:

alguma possibilidade de diálogo entre a psicanálise e a educação?

Leandro Alves Rodrigues dos Santos

A Psicanálise, especialmente a de corte lacaniano, aponta para o quão polêmica é a idéia de


um diálogo entre dois sujeitos. E essa polêmica aumentaria ainda mais no caso da hipótese de
uma tentativa de diálogo entre a Psicanálise e a Educação, campos aparentemente
antinômicos – onde um lado deveria reprimir a explosão pulsional e adaptar o sujeito, enquanto
o outro caminha num sentido inverso – que nos deixaria com a sensação de que o diálogo
seria ainda mais complicado. Seria mesmo essa missão "impossível"?

Não é o que as pesquisas nesse campo apontam, pois, desde Sigmund Freud e Oskar Pfister,
parceiros nas discussões sobre essa temática, há uma sólida tradição de investigação no
campo educativo, animando àqueles que vislumbram alguma interlocução entre os
psicanalistas e educadores.

Jean Claude Filloux (1999{1988}), em seu artigo "Psicanálise e Pedagogia ou: sobre considerar
o inconsciente no campo pedagógico" promove um extenso recenseamento nas pesquisas
européias que, desde Ferenczy* em 1908, numa conferência intitulada "Psicanálise e
Pedagogia" já investigava a influência da educação na formação das neuroses nas crianças da
época. Freud também compartilhava desses pressupostos, chegando inclusive a imaginar que
a Educação, assim como o veneno das cobras, poderia produzir um antídoto, ou seja, ao invés
de provocar neuroses, atuar como agente profilático, esclarecendo as crianças sobre as
curiosidades sexuais. O tempo demonstrou que Freud estava equivocado, mas evidenciou um
aspecto que parece pouco explorado; teria Freud imaginado realmente uma sociedade com
sujeitos livres da miséria neurótica, através de uma educação não repressiva?

Mas, para efeito de referência, Oskar Pfister, pastor protestante e educador suíço, chega à
Viena em busca de Freud com questões clínicas derivadas de seu contato com estudantes
prejudicados pelos sintomas neuróticos que Freud já pesquisava com vigor. O que acontece
então? Freud o estimula a investigar em profundidade a possibilidade de intersecção entre a
Psicanálise e a Educação, tarefa que Pfister cumpriu com brilhantismo, com seu projeto de
uma Pedanálise, desde sua base na Suíça, com colaboradores do naipe de Zulliger, Roschach,
Bovet, Ainchorn entre outros. Em 1926, ocorre o lançamento da revista de pedagogia
psicanalítica*, com duração até 1937, com mais de 300 artigos publicados, sempre com o
objetivo de "aplicar" algo do referencial psicanalítico no campo pedagógico.

As temáticas abordadas nesses artigos variam desde um educador "psicanalítico" diante do


aluno, enfoques na personalidade do educador e seu inconsciente na relação com o aluno,
investigações sobre a possibilidade de uma pedagogia inspirada na concepção psicanalítica de
homem, além de orientações à partir da Psicanálise para a Psicopedagogia, educação
psicoterapêutica para os casos difíceis, orientações institucionalistas tendo como alvo os
aspectos de funcionamento da escola na inter - relação com o dinamismo psíquico de seus
atores.

Nas décadas de 70 e 80, há então uma crítica à abordagem do campo pedagógico a partir da
Psicanálise, especialmente na obra de Catherine Millot, intitulada "Freud:
antipedagogo"(1987{1978})*, onde aponta a "...oposição radical entre o processo educacional e
o processo psicanalítico, e a da impossibilidade estrutural da utilização do saber obtido na
experiência psicanalítica no contexto da relação pedagógica..."(p.120). Porém, em
contrapartida, devemos também citar a obra de Mirelle Cifalli(1982)*; que defende uma posição
contrária, verificável em "Freud: Pedagogo?".

Mas, e em terras brasileiras, se olharmos retrospectivamente, como se deu esse processo?


Infelizmente, como é comum em nossa cultura, importamos acríticamente o modelo
anteriormente citado e o implantamos no cotidiano escolar, e com nada menos que Durval
Marcondes (interlocutor e difusor pioneiro das idéias de Freud no Brasil) ocupando o lugar de
idealizador e orientador da implantação das "Clínicas de Higiene Mental Escolar", que nada
mais eram do que extensões dos nascentes consultórios psicanalíticos, influenciados
fortemente pelo saber médico, pois, nos idos de 30 e 40, somente integrantes de uma classe
social privilegiada poderiam alcançar o diploma de Medicina, e uma parcela destes, a
Psicanálise. E o que faziam com esse saber? Aplicavam-no em situações descontextualizadas,
com um viés ideológico que certamente deixaria de cabelos em pé o criador da Psicanálise.
Uma pesquisadora influente nesse campo, Maria Helena Souza Patto da Universidade de São
Paulo, se dedicou a esmiuçar essas ligações e, por meio de documentos oficiais, chega à
conclusão de que:

"(...) as clínicas de orientação detinham-se sobretudo na investigação de problemas situados


nos alunos (neurológicos, psicológicos, fonoaudiológicos, psiquiátricos), o que permite
caracterizá-las como consultórios clínicos baseados num modelo médico de atuação. A
dinâmica institucional, a relação professor-aluno, os métodos e conteúdos de ensino, enquanto
dimensões inscritas num todo social marcado por relações de poder, não eram levados em
conta em suas atividades e reflexões. Em outras palavras, a escola, seus procedimentos e
objetivos não eram objeto de questionamento, nem mesmo enquanto variáveis que poderiam
gerar problemas de aprendizagem e de ajustamento. Cabia aos serviços terapêuticos nas
várias áreas levar a criança a adquirir condições de adequar-se a exigências escolares não
questionadas ou trabalhadas. A orientação dos professores era feita com a finalidade precípua
de obter sua colaboração junto às crianças-problema."(1984, p.11)

Trocando em miúdos, esse uso questionável dos conceitos psicanalíticos servia muito mais aos
propósitos de uma elite intelectual que, ao governar e ditar os rumos do país, imaginava uma
educação aos moldes da educação francesa, com acesso irrestrito à escola, para toda as
camadas da população. Portanto, todo aquele que apresentasse algum distúrbio ou
inadaptação deveria ser "tratado", e nos casos que supostamente pertencessem a quadros
psicogênicos, segundo os cânones da Psicanálise que aqui era transmitida. E então, entravam
em cena interpretações, discursos, estratégias e atos que correm ao largo do espírito da real
Psicanálise, a de que colabora para que o sujeito ultrapasse sua miséria neurótica e não,
aprisionando-o ainda mais, como esse modelo da época aparentemente alcançava com
maestria.

Mas, ocorre então uma mudança significativa nos rumos e na pesquisa da intersecção entre
Psicanálise e Educação, o pensamento da escola francesa – e aqui falamos de Jacques Lacan
– começa a influenciar pesquisadores que, atentos aos aspectos mais ideológicos e movediços
da questão da educação escolar em nosso país, iniciam um caminho que, desta vez se
diferencia radicalmente dos modelos importados que a Psicanálise tupiniquim sempre
referendou, numa posição quase sempre passiva e acrítica. Esse movimento certamente não
caiu na ingênua tentação de se levar o divã para a sala dos professores ou ainda pior, para
uma salinha onde pudesse ser usado em consonância com os indefectíveis testes
psicométricos, largamente utilizados por psicólogos que acreditavam estar fazendo uso de uma
Psicanálise científica, mas que na verdade apenas estavam calando a criança e selando
destinos, como as pesquisas nesse campo apontam.(Patto, 2000).

Os pesquisadores que se filiam a essa tradição são quase sempre identificados com o nome
de Maria Cristina Machado Kupfer, também da Universidade de São Paulo, que nos últimos
vinte anos tem se debruçado sobre essas questões e, por meio de seu percurso acadêmico,
tem produzido um consistente material para os interessados no alcance e no limite da peste
dentro da escola, em especial a escola pública brasileira, com suas especificidades.

Kupfer lança em 1989 um livro chamado "Freud e a Educação: o mestre do impossível", onde
dá os primeiros passos no sentido de aproximação entre o referencial freudiano e a Educação,
sendo talvez a produção mais marcante na década de 80 em terras brasileiras. O livro tem boa
aceitação e arregimenta interessados no tema, além de aglutinar outros pesquisadores que
trafegam nos mesmos caminhos. Surge então a "Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida" ,
experiência institucional que oferta escolarização a partir de uma inspiração psicanalítica, para
crianças psicóticas, autistas, sindrômicas ou ainda enredadas em neuroses graves, população
sabidamente desassistidas em nossa nação, especialmente as de baixo poder sócio
econômico, clientela característica da instituição em questão.

Maria Cristina Kupfer, do Instituto de Psicologia e Leandro de Lajonquière, da Faculdade de


Educação, editam então a revista "Estilos da Clínica", com textos que abordavam
prioritariamente a intersecção entre a Psicanálise e a Educação, com um olhar atento para as
características sócio culturais da realidade escolar brasileira. Esse é o diferencial que
gostaríamos de demarcar; até então, a realidade européia e americana influenciava a produção
teórica dos pesquisadores que ora centravam na criança, ora na relação entre o professor e o
aluno, ou ainda no professor, quase nunca na positividade que a instituição escolar apresenta
e, que claramente atravessa as relações ente os atores da cena escolar, gerando à partir disso
problemas de aprendizagem, comportamentos, desmotivação, etc. E estamos falando
especialmente da escola pública, que desde o Império, tinha como ideal uma escola asséptica,
sem problemáticas individuais e garantidora do lema "Ordem e Progresso", que talvez devesse
ser questionado enquanto significância. Quem demanda pela escola pública brasileira?
Certamente não os vinte por cento da população que pode arcar com os custos da escola
particular, supostamente de boa qualidade no imaginário popular, mas sim os oitenta por cento
restante que, condicionados a aceitar quase que como um favor à oferta dos serviços públicos,
não questiona tampouco exige uma melhor qualidade, onde as singularidades de sua clientela
pudessem ser compreendidas como algo positivo e quiçá desafiador, ao invés ser olhado como
desvios e/ou distúrbios.

E onde entra Lacan nisso tudo? Com sua obra e, especialmente com sua genial visão do
legado freudiano, proporcionou condições excepcionais de leitura dos fenômenos fortemente
influenciados pelo cunho social, fornecendo conceitos, como o dos discursos, que ampliam a
compreensão e as possibilidades de pensar intervenções dentro da própria escola, no cotidiano
institucional, sem tornar-se um cúmplice acrítico dos mecanismos que fomentam e cristalizam o
fracasso escolar de um sem número de alunos, pois os problemas de aprendizagem,
comportamento e a inadaptação passam a ser encarados como vicissitudes inerentes a
qualquer laço social, permitindo interrogar e, afortunadamente, implicar a partir daí, as partes
sobre sua responsabilidade no processo.

Se pensarmos num processo psicanalítico, especialmente se bem sucedido, espera-se que


este colabore para a desvitimização do sujeito, implicando-o na tarefa de alterar algo de seu
sofrimento, especialmente na parcela de sua responsabilidade subjetiva. Portanto, se
imaginamos alguma possibilidade de diálogo entre a Psicanálise e a Educação, certamente
esse diálogo terá que se erigir a partir dessas bases, alicerçado em uma ética que atravessa os
atos, os discursos e o lugar destinado ao outro – quer seja professor ou aluno.

Aliás, é na direção da singularidade de cada sujeito que a Educação deveria caminhar,


opondo-se ao rumo homogeneizante que o mundo globalizado tenta impor às relações e às
tarefas da vida cotidiana, onde parece ser necessário calar o sujeito para que a engrenagem
funcione, sendo a escola um ótimo treino para os alunos que irão, no futuro, alimentar essa
mesma engrenagem. Não, certamente a Psicanálise – e os psicanalistas – teriam algo a dizer
sobre esse momento peculiar da cultura. Kupfer(2000) já sinaliza nessa direção quando afirma
que "... a clínica e a prática escolar cotidianas, aliados ao incoercível do desejo, continuam
empurrando muitos psicanalistas e educadores a buscar, incessantemente, modos de fazer da
Educação um instrumento que torne mais digna a sustentação do mal-estar na civilização".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Filloux, Jean Claude (1987) Psicanálise e Pedagogia ou: sobre considerar o inconsciente no
campo pedagógico. In Anais do I Colóquio do Lugar de Vida/Lepsi – A Psicanálise e os
impasses da Educação. São Paulo, SP: IP/FE – Universidade de São Paulo, 1999.

Kupfer, Maria Cristina Machado (1989) Freud e a Educação: o mestre do impossível. São
Paulo, SP: Scipione, 1989.
Kupfer, Maria Cristina Machado (2000) Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São
Paulo, SP: Escuta, 2000.

Patto, Maria Helena Souza Patto (1984) Psicologia e ideologia.Uma introdução crítica à
Psicologia Escolar. São Paulo, SP: T. A Queiroz, 1984.

Patto, Maria Helena Souza Patto (2000) Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política.
São Paulo, SP: Hacker Editores/Edusp, 2000.

* Estas obras e textos estão citadas no artigo de Jean Claude Filloux, que encabeça essa
referência bibliográfica.

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