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Adoção homoafetiva

Maria Berenice Dias


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As relações sociais são marcadas pela heterossexualidade, e enorme é a


resistência em aceitar a possibilidade de homossexuais ou parceiros do mesmo
sexo habilitarem-se para a adoção. São suscitadas dúvidas quanto ao sadio
desenvolvimento da criança. Há a equivocada crença de que a falta de referências
comportamentais de ambos os sexos possa acarretar sequelas de ordem
psicológica e dificuldades na identificação sexual do adotado. É sempre
questionado se a ausência de modelo do gênero masculino e feminino pode
eventualmente tornar confusa a própria identidade sexual, havendo o risco de o
adotado tornar-se homossexual. Também causa apreensão a possibilidade de o
filho ser alvo de repúdio no meio que frequenta ou vítima do escárnio por parte de
colegas e vizinhos, o que poderia lhe acarretar perturbações psicológicas ou
problemas de inserção social.
Essas preocupações, no entanto, são afastadas com segurança por quem
se debruça no estudo das famílias homoafetivas com prole. As evidências trazidas
pelas pesquisas não permitem vislumbrar a possibilidade de ocorrência de
distúrbios ou desvios de conduta pelo fato de alguém ter dois pais ou duas mães.
Não foram constatados quaisquer efeitos danosos ao normal desenvolvimento ou
à estabilidade emocional decorrentes do convívio de crianças com pais do mesmo
sexo. Também não há registro de dano sequer potencial ou risco ao sadio
estabelecimento dos vínculos afetivos. Igualmente nada comprova que a falta do
modelo heterossexual acarreta perda de referenciais a tornar confusa a identidade
de gênero. Diante de tais resultados, não há como prevalecer o mito de que a
homossexualidade dos genitores gere patologias nos filhos.
Nada justifica a estigmatizada visão de que a criança que vive em um lar
homossexual será socialmente rejeitada ou haverá prejuízo a sua inserção social.
Identificar os vínculos homoparentais como promíscuos gera a falsa idéia de que
não se trata de um ambiente saudável para o seu bom desenvolvimento. Assim, a
insistência em rejeitar a regulamentação da adoção por homossexuais tem por
justificativa indisfarçável preconceito.
O Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a adoção por uma única
pessoa, não fazendo qualquer restrição quanto a sua orientação sexual. Portanto,
não é difícil prever a hipótese de um homossexual que, ocultando sua preferência
sexual, venha a pleitear e obter a adoção de uma criança, trazendo-a para
conviver com quem mantém um vínculo afetivo estável. Nessa situação, quem é
adotado por um só dos parceiros não pode desfrutar de qualquer direito com
relação àquele que também reconhece como verdadeiramente seu pai ou sua
mãe. Ocorrendo a separação do par ou a morte do que não é legalmente o
genitor, nenhum benefício o filho poderá usufruir. Não pode pleitear qualquer
direito, nem alimentos nem benefícios de cunho previdenciário ou sucessório.
Sequer o direito de visita é regulamentado, mesmo que detenha a posse do
estado de filho, tenha igual sentimento e desfrute da mesma condição frente a
ambos. O amor para com os pais em nada se diferencia pelo fato de eles serem
do mesmo ou de diverso sexo. Ao se arrostar tal realidade, é imperioso concluir
que, de forma paradoxal, o intuito de resguardar e preservar a criança ou o
adolescente resta por lhe subtrair a possibilidade de usufruir direitos que de fato
possui.
Caberia questionar se, ao menos, não é invocável a filiação socioafetiva,
instituto que, cada vez mais, é reconhecido como gerador de vínculo parental.
Diante de todas essas similitudes, não há como não visualizar a presença da
filiação que tem origem na afetividade. Impor eventuais limitações em face da
orientação sexual dos pais acarreta injustificável prejuízo e afronta a própria
finalidade protetiva a quem a Constituição outorga especial atenção.
A homoafetividade vem adquirindo transparência e aos poucos obtendo
aceitação social. Cada vez mais gays e lésbicas estão assumindo sua orientação
sexual e buscando a realização do sonho de estruturar uma família com a
presença de filhos. Vã é a tentativa de negar ao par o direito à convivência familiar
ou deixar de reconhecer a possibilidade de crianças viverem em lares
homossexuais.
Tais situações, ao desaguarem no Judiciário, muitas vezes se confrontam
com a ideologia conservadora do juiz, que hesita em identificar a melhor solução,
deixando de atentar no prevalente interesse do menor. Mas não ver a realidade é
usar o mecanismo da invisibilidade para negar direitos, o que revela nítido caráter
punitivo. Posturas pessoais ou convicções de ordem moral de caráter subjetivo
não podem impedir que se reconheça que uma criança, sem pais nem lar, terá
uma melhor formação se integrada a uma família, seja esta formada por pessoas
de sexos iguais ou distintos.
Não arrostar essa realidade resulta numa triste sequela: os filhos ficam à
mercê da sorte, sem qualquer proteção jurídica. Deixar a criança no total
desamparo é negar-lhe o direito à vida, livrando os pais da responsabilidade pela
guarda, educação e sustento de quem é criado e tratado como filho.
Como a lei se nega a emprestar juridicidade às relações homoafetivas, por
óbvio não há nenhuma previsão legal autorizando ou vedando a adoção. Ainda
que se presuma que o Estatuto da Criança e do Adolescente não tenha cogitado
da hipótese de adoção por um casal homossexual, possível sustentar que tal
ocorra, independentemente de qualquer alteração legislativa. O princípio que deve
prevalecer é o do melhor interesse do infante, e não há motivo legítimo para retirar
de uma criança a possibilidade de viver com uma família. Se os parceiros – ainda
que do mesmo sexo – vivem uma verdadeira união estável, é legítimo o interesse
na adoção, havendo reais vantagens em favor de quem não pode ficar ao
desabrigo de direitos.
Fundamentos outros e de ordem constitucional merecem ser invocados.
Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei (inciso II do art. 5º da CF). Sem limitação legal, não se pode negar o
direito de crianças e adolescentes à adoção, que lhes irá assegurar um lar, uma
família, o direito ao afeto e à felicidade, ou seja, o direito à vida. A eles é
assegurado o maior número de garantias, e são os que gozam de mais direitos na
esfera constitucional. Ao depois, é dever da família, da sociedade e do Estado (art.
227 da CF) assegurar à criança, além de outros, o direito à dignidade, ao respeito
e à liberdade. Esses direitos certamente meninos e meninas não encontrarão nas
ruas, quando são largados à própria sorte ou depositados em alguma instituição. A
adoção, mais do que uma questão jurídica, constitui-se em uma postura diante da
vida, em uma opção, uma escolha, um ato de amor, como lembra Maria Regina
Fay de Azambuja, ressaltando a necessidade de compreender as circunstâncias
que acompanham a opção de quem decide adotar uma criança e a de quem
espera, ansiosamente, a possibilidade de uma família substituta.1[1] Essas
expectativas, ao certo, independem da orientação sexual da família que quer
adotar e de quem quer ser adotado.
A adoção não pode estar condicionada à preferência sexual ou à realidade
familiar do adotante, sob pena de infringir-se o mais sagrado cânone do respeito à
dignidade humana, que se sintetiza no princípio da igualdade e na vedação de
tratamento discriminatório de qualquer ordem.
A dificuldade em deferir adoções exclusivamente pela orientação sexual ou
identidade de gênero dos pretendentes acaba impedindo que expressivo número
de crianças sejam subtraídas da marginalidade. Imperioso arrostar nossa
realidade social, com um enorme contingente de menores abandonados ou em
situação irregular, quando poderiam ter uma vida cercada de carinho e atenção.
São preconceituosos os escrúpulos existentes. Por isso, urge revolver
princípios, rever valores e abrir espaços para novas discussões. É chegada a hora
de acabar com a injustificável resistência a que indivíduos ou casais
homossexuais acalentem o sonho de ter filhos.

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