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Análise Psicológica (2006), 2 (XXIV): 235-245

Abordagem multidisciplinar no
acompanhamento de uma criança com
Traumatismo Crânio-Encefálico (*)

MARIA TERESA LOBATO DE FARIA (**)

1. INTRODUÇÃO ficuldades comportamentais e de aprendizagem.


Estima-se que 80% das crianças com traumatis-
O Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE) cons- mo grave1, tem necessidades educacionais espe-
titui um dos maiores problemas de saúde pública ciais ou necessitam modificações no seu ambi-
nos EUA, Europa e outros países desenvolvidos. ente educacional nos dois anos após o acidente
Antes dos 15 anos, metade das mortes devidas a (Leikman, 2001), e que 61% dessas crianças desen-
traumas são de lesões no crânio (EUA). A inci- volve uma nova perturbação psiquiátrica nesse
espaço de tempo, apresentando, na sua maioria,
dência de crianças e adolescentes com trauma-
comportamentos de desinibição e socialmente
tismos aumentou, e as lesões na cabeça tornaram-
inadequados (Shaffer, 1995, citado por Leikman,
-se a maior causa de morte antes dos 35 anos 2001). No caso de TCE moderado a grave esti-
(EUA). Entre as crianças que não moorem, existe ma-se que 20% das crianças irão necessitar de
uma percentagem significativa que apresenta di- algum apoio escolar devido a défices residuais
(Kraus et al., 1990, citado por Leikman, 2001),
prevalecendo também problemas de comporta-
mento. Nestes casos, uma boa recuperação muitas
(*) Artigo baseado num trabalho realizado em cola- vezes não significa uma recuperação total e muitas
boração com a Drª Alexandra Mendes, neuropsicóloga das crianças que sofrem de TCE apresentam di-
do Hospital de S. José (Lisboa), e a Drª Ana Isabel ficuldades temporárias ou permanentes ao nível
Dias, neuropediatra do Hospital de Dona Estefânia da cognição, da memória ou da deficiência física.
(Lisboa) e apresentado no III Congresso da Sociedade Apesar de frequentemente difíceis de quantificar,
Portuguesa de Neuropediatria “Neurologia nas Pertur-
bações do Desenvolvimento”, Lisboa, 2003.
Agradecimentos: A autora agradece à Doutora Isabel
Sá, Investigadora Auxiliar da Faculdade de Psicologia
e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa,
assim como ao Doutor Serge Gulbenkian, os seus con-
selhos e dedicada disponibilidade colocados no acom- 1
Fletcher et al. (1990) definiram TCE Grave quando
panhamento deste trabalho. a Glasgow Coma Scale (Teasdale & Jennett, 1974) atinge
(**) Psicóloga, Assistente Principal de Saúde – Con- um valor menor ou igual a 8, e TCE Moderado para
sulta de Psicologia, Serviço 1 (Pediatria Médica), Hos- valores entre 9 e 12 (citado por Taylor, Wade, Stancin,
pital de Dona Estefânia, Lisboa. Yeates, Drotar, Minich, 2002).

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as sequelas psico-sociais afectam significativa- quentava o 1.º ano do 1.º ciclo, com 7 meses de
mente a qualidade de vida das crianças que so- escolaridade e rendimento na média, quando em
frem de TCE. Estes problemas incluem as mu- 4 de Abril de 2002, após queda de cerca de 6
danças na forma como a criança expressa os seus metros de altura, em sua casa, sofre poli trauma-
sentimentos, no seu comportamento, no seu auto- tismos e TCE moderado com perda de conheci-
-conceito e nas suas interacções sociais. Os efeitos mento. Recorreu ao Serviço de Urgência do Hos-
psico-sociais do TCE têm mais probabilidade de pital de S. José apresentando à entrada uma Glas-
durar e perturbar do que os seus efeitos físicos. gow Coma Scale de 11, hemiparésia direita e mu-
O TCE raramente melhora os problemas ante- tismo que manteve cerca de 17 dias. Os exames
riores ao acidente, muitas vezes piora-os. Uma de imagens efectuados, revelavam múltiplos focos
criança que era irritável antes do traumatismo, de contusão hemorrágicos nas regiões fronto-tem-
pode tornar-se mais irritável e mesmo agressiva porais bilaterais e hematoma temporo-parietal
depois do TCE. esquerdo.
As consequências de longo alcance de um TCE A.M. vive com os pais e um irmão, 6 anos mais
são inúmeras e podem alterar totalmente uma vida. velho, que se encontrava sozinho em casa com a
O TCE pediátrico apresenta um desafio maior na irmã na hora do acidente. Não foi possível pro-
prova de evidência de lesão, devido aos trauma- ceder a uma avaliação da situação familiar pré-
tismos que só se tornam evidentes no comporta- -mórbida2, pois o tempo ideal para a sua rea-
mento e raciocínio da criança na adolescência. lização estava perdido na altura em que A.M. é
Os TCE moderados podem apresentar menos se- referenciada para a primeira avaliação psicoló-
quelas e, embora com necessidade de mais inves- gica. Antes do acidente, A.M. tinha um desen-
tigação, os resultados demonstram que nas crian- volvimento normal, sem evidenciar problemas em
ças com traumatismos menos graves, muitas das qualquer das áreas de desenvolvimento. Entrou
funções podem melhorar após um ano (Taylor, aos 16 meses para um infantário onde permane-
Wade, Stancin, Yeates, Drotar, Minich, 2002). No ceu até aos 6 anos, ingressando seguidamente no
entanto, há que ter em atenção que um TCE mo- 1.º ciclo sem nunca apresentar problemas ao ní-
derado, pode muitas vezes ser descurado e/ou vel da adaptação. A professora afirma que A.M.
diagnosticado erradamente como sintomas de dis- antes do acidente era uma aluna interessada, um
funções do desenvolvimento infantil, tais como pouco desatenta, mas nada de preocupante, acom-
défice de atenção, dificuldades de aprendizagem panhando o ritmo da aula sem ainda ter adqui-
e depressão. A criança mal diagnosticada como rido a técnica da leitura.
possuindo um problema de comportamento, nunca O mutismo de 17 dias após o TCE levou os pro-
recebe a ajuda de que necessita para lidar com as fissionais de saúde responsáveis por A.M. a darem
consequências cognitivas do TCE. O impacto mais prioridade ao discurso verbal, e a sua primeira
subtil do TCE inclui precisamente a forma como avaliação foi efectuada 1 mês após o traumatis-
altera as relações entre a criança traumatizada, a mo pela Terapia da Fala. Os resultados desta ava-
sua família e a comunidade onde vive. Neste con- liação apontaram para um quadro de tipo afásico
texto, torna-se premente consciencializar todos caracterizado por discurso pouco fluente, défices
os profissionais implicados no seguimento de de expressão, nomeadamente presença de ano-
casos de TCE pediátrico da importância de um
mia, parafasias semânticas e fonéticas e défices
estudo mais cuidado destas situações. A apresen-
de compreensão. Apresentava ainda perda das
tação deste estudo de caso, tal como se tem vindo
aquisições básicas da escrita e leitura efectuadas
a verificar na literatura internacional, surge como
um alerta para esta problemática que, no nosso
país, injustificadamente, pouca ou nenhuma aten-
ção tem merecido.

2
É também importante reconhecer a contribuição
2. ESTUDO DE CASO das dificuldades familiares já vividas antes do aci-
dente na adaptação da família à situação de traumatis-
A.M. tinha 6 anos e 11 meses de idade e fre- mo (Leikman, 2001).

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até então e, na sequência desta avaliação é ini- Entre Junho e Outubro de 2002, verificou-se
ciado o apoio da Terapia da Fala. melhoria a nível do comportamento registando-
Um mês e meio após o TCE regressou à es- -se progressivamente um padrão de maior auto-
cola (meados de Maio) sem qualquer avaliação -controlo com a implementação de técnicas de
neuropsicológica e sem apoio do ensino especial, auto-monitorização e de auto-instrução. Segundo
tendo a professora apontado dificuldades nas apren- reavaliação da Terapia da Fala verificou-se signi-
dizagens da escrita e leitura com significativa re- ficativa melhoria das capacidades de compreen-
dução do rendimento escolar, dificuldades de con- são e de expressão com o desaparecimento das
centração, memória, fadiga, lentificação, social- dificuldades de nomeação e das parafasias. Em
mente conflituosa e desmotivada em termos es- Outubro de 2002, na sequência da avaliação neu-
colares. Na sequência da preocupação com o ren- ropsicológica, inicia-se o apoio do ensino espe-
dimento escolar surge a primeira avaliação neu- cial na escola.
ropsicológica efectuada no Hospital de S. José, 3 Em Novembro de 2002 (7 meses após o TCE),
meses depois do acidente. As provas aplicadas a criança é avaliada na consulta de psicologia
incluiram: o Token Test, as Matrizes Progressi- pediátrica do Hospital de Dona Estefânia onde
vas de Raven – Coloridas; o California Verbal Lear- são aplicadas as seguintes provas: Escala de In-
ning Test – Children; as provas de Memória de teligência de Weschler para crianças (WISC), Prova
Dígitos e Aritmética da WISC; a Figura Complexa de Desenvolvimento da Percepção Visual de Ma-
de Rey (cópia); a Torre de Hanoi e a Child Beha- rianne Frostig e Desenho da Família. Os resulta-
vior Checklist (CBCL) de Achenbach. Os resul- dos revelaram, a presença de um bom rendimento
tados apontaram para um discurso fluente, ver- intelectual global (Normal Brilhante)4, no entanto
a diferença entre o rendimento verbal e de reali-
borreico, com digressões, alterações da escrita e
zação era significativa, sendo o rendimento verbal
da leitura, alteração da memória verbal com in-
inferior (Médio) ao de realização (Normal Brilhante).
terferência, alteração das capacidades visuo-cons-
Revelou também um bom desenvolvimento da
trutivas, alteração das funções executivas (tipo
percepção visual, com algumas alterações a nível
“pré-frontal”), fadiga e lentificação ligeira, desi-
da visuo-motricidade e da discriminação figura-
nibição, diminuição da tolerância às contrarieda-
-fundo. Contudo, mantinha dificuldade de orga-
des e aos outros, agressividade, impulsividade, nização temporal e sérias dificuldades na escrita
egocentrismo aumentado e diminuição da capa- e leitura. O contacto com a Professora revelou que
cidade de auto-crítica em relação ao seu próprio A.M. estava atrasada um período e avançava devagar.
comportamento.3 Através destes resultados foi Tinham sido experimentados vários métodos de
evidente que o impacto do TCE ia muito para além ensino de leitura e escrita por A.M. não conse-
dos problemas no discurso verbal que constituí- guir acompanhar o método que já lhe era fami-
ram a prioridade de intervenção e avaliação logo liar e que anteriormente a colocava na média da
após o TCE. Era necessário iniciar um processo turma (Método das 28 palavras), e encontrava-se
de reabilitação com vista à diminuição do impacto a utilizar o método silábico. O seu comportamento
que este quadro já estava a produzir no seu ren- tinha melhorado significativamente, e a interven-
dimento escolar, e no seu relacionamento socio- ção psicológica iniciou-se num seguimento men-
-familiar. Na opinião da neuropsicóloga, este pro- sal, com o objectivo de afastar o mínimo possí-
cesso de reabilitação devia incluir: consulta de vel A.M. do seu meio escolar, enquanto se man-
Neuropsicologia, consulta de Psicologia Pediá- tinha uma supervisão da sua evolução.
trica, Terapia da Fala, Psicomotricidade, e apoio Ao fim de cerca de 8 meses após o TCE, de-
do ensino especial. nota-se episódio de agravamento dos sintomas

3
As dificuldades nas funções executivas estão fre-
4
quentemente presentes nas crianças com TCE (Begali, As crianças dotadas e com elevados níveis de inte-
1992, citado por Savage, 1995; Lezak, 1994, citado ligência serão capazes de compensar em provas gerais
por Leikman, 2001). de avaliação (Leikman, 2001).

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apresentando perda de capacidades básicas como série de provas com o objectivo de identificar com
por exemplo o desconhecimento de um alimento o máximo rigor as capacidades que se encontra-
favorito. Após imediata observação neurológica vam afectadas: Token Test, Matrizes Progressi-
e subsequente realização de exames complemen- vas de Raven – Coloridas; California Verbal Lear-
tares de diagnóstico (RNM-CE a qual revela as- ning Test – Children; Figura Complexa de Rey
pectos sequelares de focos contusionais a nível (cópia); Torre de Hanoi; Child Behavior Checklist
temporal e frontal do hemisfério direito e temporo- (CBCL) de Achenbach; Memory for Design Test;
-parietal no hemisfério esquerdo e lesões axonais Nomeação; Discurso; Diagnóstico Informal de
difusas; EEG dentro da normalidade), verificou- Linguagem Escrita (DILE); Pseudopalavras; Di-
-se uma remissão espontânea indicativa de uma tado e Cópia; Prova de Cálculo Simples; Prova
perturbação com características ansiosas. Tendo de Iniciativa Verbal; Wisconsin Card Sorting Test;
em conta a avaliação psico-social então efectuada, Prova Gráfica de Organização Perceptiva de Bender/
esta alteração emocional foi atribuída a uma me- /Santucci; Bateria Piaget-Head por Galifret-Gran-
lhoria cognitiva, com o consequente reconheci- jon; Prova de Ritmo (M. Stanback); The Pictoral
mento dos seus próprios défices, às dificuldades Scale of Perceived Competence and Aceptance
de relacionamento com a sua família, pares e for Young Children (Harter & Pike); Matching Fi-
professora, devido aos seus comportamentos gures Test-20 (MFF-20) adaptado de Ed Cairns e
conflituosos e de imposição e às alterações Tommy Cammock. Através dos resultados, pode-
emocionais no seio da própria família, sobretudo mos concluir que se assistia à manutenção das me-
a depressão reactiva da mãe ao acidente e a lhorias cognitivas, demonstrando:
culpabilização injustificada do irmão, única - Manutenção do bom rendimento intelectual
testemunha do acidente (já em acompanhamento - Ausência de perturbação da memória verbal
complexa com interferência, a curto e longo
psicológico no seu estabelecimento de ensino).
prazo e da memória visual imediata
A depressão da mãe revelou-se nesta fase e o seu
- Manutenção da capacidade de atenção
acompanhamento por especialista foi indicado
- Ausência de perturbação da linguagem ao
para o Hospital de S. José.
nível das capacidades de nomeação, compre-
O processo de reabilitação foi decorrendo de
ensão e repetição, com discurso fluente e ade-
forma desintegrada, com grande dispersão
quado.
geográfica, e a psicomotricidade foi apenas
conseguida em Dezembro de 2002/Janeiro de Apesar deste bom desenvolvimento intelectual
2003. geral, persistiam as alterações na leitura e, atra-
Um ano após o acidente, e tendo em conta as vés desta avaliação foi evidente que A.M. não
dificuldades de aprendizagem que persistiam – o fazia a associação fonema-grafema, não lia pseudo-
método silábico demonstrou-se ineficaz, estando -palavras, identificava as letras pelo tacto mas
após 8 meses de escolaridade sem conseguir havia uma maior dificuldade na identificação fo-
identificar letras de forma consistente apesar do nológica das letras, evidenciava uma melhor lei-
apoio do ensino especial – reavaliou-se com tura de palavras familiares, apresentava erros de
grande cuidado a situação.5 Foram aplicadas uma normalização (lê a pseudo-palavra como se a conhe-
cesse) e alterações da escrita por ditado e espon-
tânea.6 Verificou-se uma melhoria das funções exe-
cutivas (capacidade de planeamento e de execu-
ção sequenciada da acção), uma melhoria das
5
Para conseguir diagnósticos com pouca margem de
erro, o neuropsicólogo ou psicólogo pediátrico neces-
sita passar bastante tempo com a criança pois, só após
muito tempo de observação das suas reacções e dos seus
desempenhos em diversos tipos de tarefas, em con-
junto com a aplicação de uma série de provas e testes, 6
Crianças com TCE demonstram dificuldades na
pode determinar os padrões desviantes e chegar a con- linguagem e leitura, cálculo aritmético, escrita, e no so-
clusões válidas sobre o grau e profundidade do trau- letrar (Lewin, Ewing-Cobbs, Einsenberg, 1995, citado
matismo (Fisher, 2002). por Leikman, 2001).

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alterações das capacidades visuo-construtivas, uma decorreu de forma muito positiva, houve melho-
lateralidade assumida à direita para a mão e pé, e rias significativas no seu comportamento, com
esquerda para olho, graves dificuldades na estru- ausência de queixas escolares e familiares. A mãe
turação, orientação e organização temporal e uma iniciou um seguimento regular em psicoterapia
orientação esquerda-direita, por comando verbal em Maio de 2003, e afirma sentir-se mais equili-
alterada. O seu comportamento durante a avalia- brada. A avaliação de A.M. em Outubro de 2003,
ção caracterizou-se por uma redução significativa através do Diagnóstico Informal de Linguagem
da agressividade, da impulsividade, da desinibi- Escrita (DILE), de pseudopalavras, de ditado e
ção, do discurso verborreico, da fadiga e da lenti- cópia, revela a identificação visual de todas as
ficação. letras, dificuldades em reconhecer foneticamente
Segundo a mãe e a professora, houve agrava- apenas 6 letras, leitura de vogal-consoante conse-
mento, registando-se comportamentos de oposi- guida, bem como cópia e ditado com alguns êxitos
ção/imaturidade, isolamento, irritabilidade e pro- em conjuntos de sílabas Vogal/Consoante.8 A evo-
blemas de relação com colegas que reagem ne- lução é evidente e a sua motivação escolar é agora
gativamente ao facto de A.M. não os acompa- excelente.
nhar em termos curriculares. Denotou-se ainda um No sentido de evitar os efeitos negativos de um
aumento da insegurança em A.M., evidenciada trabalho desarticulado entre os vários técnicos im-
pela utilização da idealização da sua auto-com- plicados, foi realizada, em Outubro de 2003, uma
petência escolar/física e da sua percepção da acei- reunião na escola de A.M., onde estiveram pre-
tação pelos pares, não existindo esta necessidade sentes a professora do ensino regular, a professora
quanto à aceitação pela mãe. Assiste-se a uma de ensino especial, a psicóloga da escola, a neuro-
progressiva desmotivação académica evidenciada psicóloga e a psicóloga pediátrica. A terapeuta da
pelas primeiras manifestações de desejo de absen- fala não pôde estar presente, mas a importância do
tismo escolar. Este quadro de alterações psico- seu contacto para coordenação do trabalho peda-
-sociais poderá ser atribuído a vários factores entre gógico e curricular foi acentuada e ficou prevista.
os quais: as lesões resultantes do TCE, a melho- Nesta reunião, foram discutidos os problemas psico-
ria dos défices cognitivos e consequente cons- -sociais e as dificuldades cognitivas de A.M., a forma
ciencialização das suas limitações; o impacto das de os trabalhar e todas as situações de risco a evitar.
consequências do TCE na sua vida socio-fami- A.M. irá continuar com apoio da terapia da fala e
liar e escolar; o agravamento da situação emo- do ensino especial, a psicomotricidade foi dispen-
cional da mãe por ausência de apoio psicológico, sada por A.M. se encontrar recuperada em termos
a qual teve que ser reencaminhada para o Hos- motores. O seguimento psicológico por ambas as
pital da sua área de residência; a ausência de acom- profissionais nesta área (neuropsicóloga e psicó-
panhamento psicopedagógico adequado e à reacção loga pediátrica) continuará, pois o caso está longe
negativa dos seus pares em relação à permanên- de se considerar terminado. A sua lesão frontal leva
cia dos seus défices por incapacidade de compre- esta criança a ser considerada um caso de risco até
ensão da sua origem. à adolescência.
Estando no final do ano lectivo (Abril/Maio),
a professora inicia um processo de incompreen-
são em relação às persistentes dificuldades de CONCLUSÕES
A.M., estando a criança “tão bem de saúde”.7 É
conseguida a retenção de A.M. no 2.º ano e a trans- Durante muitos anos existiu, na medicina, a
ferência para outra escola, onde tudo poderá co- ideia de que as crianças têm mais possibilidades
meçar de novo. O início do ano lectivo 2003/2004,

8
Os TCE moderados podem apresentar menos se-
7
As crianças com traumatismos moderados podem quelas e, embora com necessidade de mais investiga-
ter mais sorte em relação à proporção de reentrada em ção, os resultados demonstram que nas crianças com
classes normais, mas têm frequentemente o fardo da traumatismos menos graves muitas das funções po-
expectativa irrealista de que estão já recuperadas apenas dem melhorar após um ano (Taylor, Wade, Stancin,
uns meses após o acidente (Deaton, 1995). Yeates, Drotar, & Minich, 2002).

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de recuperar de um TCE do que um adulto. Esta tência à frustração, egocentrismo visto através da
ideia veio a chamar-se “Princípio de Kennard” e insensibilidade aos outros, falta de noção do seu
baseou-se em estudos com macacos (Kennard, impacto nos outros, e um aumento no comporta-
1940, citado por Savage, 1999). Segundo este prin- mento de exigência. Deaton (1995), acrescenta o
cípio, o cérebro de uma criança, enquanto em de- comportar-se de forma imatura para a idade, a
senvolvimento, exibia uma “neuroplasticidade”, desinibição, a labilidade emocional, a fadiga, a
que lhe permitia ultrapassar ou adaptar-se a se- negação de problemas, a impulsividade, o isola-
quelas orgânicas. No entanto, recentemente, muitos mento, a passividade, a agressividade, a ansiedade
estudos têm demonstrado que o “Princípio de Ken- e a depressão, a procura de atenção através de
nard” está errado, e que de facto, face ao mesmo comportamentos negativos e uma interpretação
tipo de traumatismo, as consequências para as cri- errada das próprias capacidades. O comportamento
anças são mais graves do que para os adultos (An- de A.M. após o acidente ilustra de forma clara
derson & Moore, 1995; Edwing-Cobbs, 1989, 1994; estes efeitos psico-sociais e o seu impacto nas
Roberts, 1995; Laurent-Bannier, 2000; Webb, 1996; relações familiares e sociais.
Nybo, 1999, citados por Savage, 1999). As crian- A.M. apresentava, entre outras lesões, múlti-
ças podem experienciar disfunções significativas plos focos de contusão hemorrágicos nas regiões
e problemas cogntivos, que só se tornam eviden- fronto-temporais bilatetrais. Um estudo de caso
tes na adolescência ou alguns anos depois do aci- de uma criança com TCE devido a queda de es-
dente. O facto de o resultado dos exames imagé- cadas aos 3 anos, afirma que a presença de se-
ticos ser normal, não invalida o facto de existir quelas e as consequências cognitivas do TCE, es-
uma lesão cerebral. É comum aparecerem pro- pecificamente lesão frontal, não foram diagnos-
blemas em exames radiológicos feitos muitos anos ticadas até à idade de 12 anos; isto porque os exa-
depois do TCE, problemas esses que não apare- mes precedentes não utilizaram uma avaliação
ceram na altura do TCE ou a curto prazo. A idade suficientemente extensiva para medir os desvios
em que o TCE ocorre tem implicações diferentes presentes, a criança era suficientemente inteli-
na criança. Quando mais nova pode parecer efec- gente para ultrapassar os défices com estratégias
tuar uma melhor recuperação do traumatismo, compensatórias para produzir um funcionamento
mas está em maior risco de desenvolver novos dentro da média, e o traumatismo afectou áreas
problemas a longo prazo. Com a chegada à idade do cérebro, tais como o lobo frontal e as áreas asso-
escolar, a criança envolve-se no domínio das re- ciativas, que só se desenvolvem por volta dos 12
lações sociais, das aquisições académicas e das anos, e cujos défices só podem ser totalmente
actividades competitivas e cooperativas, e o con- observados na adolescência. Assim, foi apenas na
trolo sobre estas variáveis contribui para o desen- adolescência que a diminuição no sistema de re-
volvimento da sua auto-estima. Assim, a criança gulação se tornou observável no seu comporta-
em idade escolar, tal como A.M., terá mais pro- mento e processos cognitivos, apresentando desi-
babilidades de sentir frustração ao experienciar o nibição, incapacidade em controlar as suas emo-
contraste entre as capacidades que possuía antes ções, em tomar decisões correctas, e padrões de
e depois do traumatismo. Nos adolescentes, a perca aprendizagem/uso da linguagem aberrantes (Fisher,
de independência, da auto-confiança e da sensa- 2002). A maturação tardia dos lobos frontais (±12
ção confortável de invulnerabilidade, pode re- anos), em conjunto com as exigências do meio,
sultar na depressão, isolamento ou rebeldia. Al- características destas idades, apela para a impor-
guns destes problemas psico-sociais podem ser tância de efectuar um seguimento longitudinal e
efeito do TCE, outros reflectem uma exacerba- uma monitorização até à adolescência/idade adulta
ção das características ou comportamentos pré- (Kolb & Whishaw, 1990, citado por Leikman, 2001).
-mórbidos, e ainda outros ocorrem em reacção A.M. apresentou durante aproximadamente o
ao traumatismo e às modificações subsequentes. primeiro semestre após o acidente, muitas das
Segundo Lehr (1990, citado por Deaton, 1995) características de uma lesão do lobo frontal e,
incluem-se nos efeitos psico-sociais de um TCE: um psicólogo que não esteja familiarizado com
actuar de forma socialmente inapropriada, irrita- os sinais de um défice frontal terá tendência a
bilidade, emotividade aumentada, motivação e crí- diagnosticar a criança como possuindo um pro-
ticas reduzidas, preseveração, diminuição da resis- blema de comportamento e/ou um Défice de Aten-

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ção por Hiperactividade. Há que levar as pessoas evitar a participação em actividades, resultando
que trabalham com este tipo de crianças a com- em menos oportunidades de aprendizagem de inter-
preender que, depois de um TCE, as modifica- acção social e de re-desenvolvimento da auto-estima
ções comportamentais emergentes podem ser efecti- (A. Deaton, 1995).
vamente uma consequência e não uma perturba- O nível de coesão e os padrões de comunica-
ção psicológica paralela. As crianças que sofrem ção dentro da família são um importante predictor
de consequências de um TCE, muitas vezes não dos resultados; assim, é muito importante que
têm controlo sobre o seu comportamento e quando exista um apoio à família por parte do pessoal de
são acusadas de um determinado incidente, não saúde e da escola, para que actuem como um todo
conseguem recordar-se especificamente do seu neste processo de recuperação.
comportamento. Como resultado, têm tendência Existem pouco estudos sobre o funcionamento
a não admitir a responsabilidade do acto, ou do familiar antes do acidente, no entanto existem vá-
mau comportamento, levando à falsa sensação de rios que analisam o efeito familiar do TCE e as
falta de remorso ou de amor, e ao diagnóstico de suas conclusões apontam para que passado um ano
anti-social, de desafiante e Perturbação de Opo- muitos casais estão à beira do divórcio, e surgem
sição. No entanto, o tratamento não deve centrar- problemas com os irmãos. Wade et al. (1998), de-
-se apenas na redução do comportamento inde- pois de um estudo em que tentaram compreender
sejado, mas sim no impacto em estruturas ce- os factores familiares facilitadores de uma melhor
rebrais, nas sequelas neurológicas e nos défices recuperação, sugerem que os pais devam receber
cognitivos directamente relacionados com o TCE. informação sobre as tensões e preocupações emo-
Tem vindo a ser provado que a devida atenção cionais que surgem com este tipo de traumatismo,
aos problemas cognitivos tem tendência a dimi- e que devam ser orientados no sentido de aprender
nuir os problemas comportamentais. a lidar com eles. Lezak (1988, citado por Leikman,
Cada vez existe mais literatura e investigação 2001) sugere a importância dos pais compreen-
sugerindo que o principal predictor de um bom derem que o processo de recuperação não é um
resultado após um TCE, pode não ser a natureza processo de “tudo ou nada”; há algumas capaci-
da lesão mas sim o ambiente onde a criança está dades que recuperam rapidamente enquanto outras
inserida depois do acidente. Sabemos que as fa- podem aparecer mais lentamente e, ainda, outras
mílias atravessam estádios durante a recuperação podem nunca ser recuperadas. Além disto, os pais
da criança ou do adolescente. Tal como na doença devem ser levados a compreender que precisam de
grave ou crónica, no TCE a primeira preocupa- olhar para a sua própria saúde emocional. Os pais
ção é a sobrevivência da criança; quando a sobre- estão em alto risco de desenvolver problemas afecti-
vivência está assegurada, começam as questões vos e, tal como já foi mencionado, podem ocorrer
sobre a eventual funcionalidade do doente; quando discussões conjugais e até divórcio. A terapia fa-
a funcionalidade do paciente está significativa- miliar deve ser introduzida quando a situação fa-
mente comprometida, os membros da família passam miliar se torna muito difícil.
por um processo de luto semelhante ao experi- É também importante reconhecer a contribui-
mentado após a morte de um ente querido. Este ção das dificuldades familiares já vividas antes
processo é também iniciado quando, normalmente do acidente na adaptação da família à situação de
após 6 a 12 meses, as capacidades sensorio-mo- traumatismo (Leikman, 2001). Um estudo lon-
toras são recuperadas e os défices nas capacida- gitudinal entre 1990 e 1995, demonstrou que as
des cognitivas e comportamentais começam a ser crianças com TCE apresentavam mais frequen-
evidentes. A família conclui que a criança, tal como temente comportamentos agressivos e de hiper-
era, não sobreviveu. Quando a família não con- actividade antes do acidente e tinham mães com
segue lidar com as dificuldades que este processo índices mais altos de depressão (Leikman, 2001).
implica, os resultados estão significativamente Os resultados de um outro estudo demonstram
comprometidos e os problemas de comportamento que o funcionamento da família e da criança an-
aumentam. Logo na fase após o traumatismo, os tes do acidente, em conjunto com a gravidade do
membros da família podem desvalorizar os pro- traumatismo são factores importantes na previ-
blemas da criança e pressioná-la a esforçar-se mais. são da adaptação geral da criança no período pos-
Outras tornam-se demasiado protectoras e podem terior ao TCE. Estes resultados sugerem que os

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factores pré-mórbidos e a gravidade do trauma- estes também podem ficar confusos e sobre-pro-
tismo diferem na forma como contribuem para a tectores, interagindo mais como pais do que como
previsão dos resultados das crianças nas áreas de irmãos. Tal como se verificou no caso do irmão de
funcionamento académico/cognitivo e nos pro- A.M., muitos sentem-se responsáveis pelo acidente,
blemas de comportamento, após um ano. A gra- outros desejam que fossem eles os traumatizados,
vidade do traumatismo tem mais influência nos ainda outros podem sentir-se ressentidos, culpando
resultados académicos e cognitivos, em contraste, o irmão com TCE de ter alterado a vida familiar e
o funcionamento pré-mórbido da família foi iden- os seus próprios sentimentos de segurança e pre-
tificado como um melhor predictor dos proble- visibilidade. Também pode surgir o ciúme relati-
mas comportamentais. Assim, para o processo de vamente à atenção dispensada à criança aciden-
identificação de uma criança com um grau de risco tada e sentimentos ambivalentes em relação a esse
pós-traumático superior, seria necessário proce- irmão. Os cuidados, o tempo e a energia necessá-
der a uma avaliação precoce do nível pré-mórbi- ria à criança com TCE, pode resultar na exclusão
do de funcionalidade da família. Tal como já foi das necessidades das outras crianças e este
dito, o facto de A.M. ter surgido tardiamente na fenómeno deve ser reconhecido. O seguimento da
consulta de psicologia levou a que fosse impos- actuação na escola dos irmãos, assim como do seu
sível avaliar este nível pré-mórbido. No entanto, desenvolvimento em geral, constituem formas im-
desde que um caso deste tipo seja seguido desde portantes de assegurar que o irmão com TCE não
início, torna-se viável aceder a este tipo de infor- os impede de continuar a atingir metas no seu de-
mação. Independentemente do facto de se possuir senvolvimento. Conseguir ter algum tempo de qua-
uma avaliação pré-mórbida, no trabalho com a lidade sem a criança traumatizada e utilizar uma es-
família devem ser identificados e reforçados os cuta activa podem também constituir formas vá-
seus pontos fortes, encorajando os pais a utilizar lidas de apoio aos irmãos.
activamente as suas aptidões de confronto. Devem As crianças com traumatismos moderados po-
também ser ensinadas novas estratégias de reso- dem ter mais sorte em relação à proporção de
lução de problemas e os pais devem ser orienta- reentrada em classes normais mas, tal como ocor-
dos no desenvolvimento de novos meios eficazes reu com A.M., têm frequentemente o fardo da
de gestão de comportamentos. O objectivo prin- expectativa irrealista de que estão já recuperadas
cipal, tanto nas famílias disfuncionais como nas apenas uns meses após o acidente. Nestas crian-
que possuem uma criança com traumatismo grave, ças, os testes de inteligência podem demonstrar
é aumentar a percepção de competência, melho- poucas dificuldades em contraste com os proble-
rar a auto-estima e estabelecer expectativas rea- mas que se observam na classe (Leikman, 2001).
listas congruentes com as limitações e forças da As crianças dotadas e com elevados níveis de inte-
criança (Rivana, Jaffe, Fay, Polissar, Martin, Shurt- ligência, serão capazes de compensar em provas
leff, & Liao, 1993). gerais de avaliação, tais como provas de inteli-
Tal como já vimos, o TCE pediátrico não afecta gência, e parecer que se estão a desenvolver adequa-
apenas a criança, mas tem um impacto em toda a damente. Quanto mais inteligente é a criança mais
família. Começando nos pais, que se concentram tempo demorará a observar-se os défices e estes
nesta criança e nos cuidados a ter com todas as só se tornam evidentes quando a escola se torna
crianças da família, resultando numa exclusão na- mais complexa e exigente, e quando já não é pos-
tural das suas necessidades, assim como da sua re- sível compensar. É importante compreender que
lação marital, tornando-se o “tempo” um privilé- as notas obtidas nos primeiros anos de escolari-
gio inatingível. As consequências naturais do que dade não nos fornecem uma medida correcta do
foi descrito levam à culpabilidade parental, aos nível de afectação pelo TCE, pois durante estes
sentimentos de falha, a uma infelicidade gene- anos o trabalho exigido não apela ao cérebro como
ralizada, e à diminuição da qualidade de vida para um todo.9 Partes do cérebro que podem ter ficado
todo o sistema familiar. É neste contexto que vi-
mos a mãe de A.M. desenvolver uma depressão
que beneficiou de um acompanhamento psicoló- 9
Foram encontrados défices na leitura, escrita e aritmé-
gico. Ocorrem também outro tipo de reacções noutros tica até 5 anos após TCE ligeiro/moderados (Bloom et
membros da família, nomeadamente nos irmãos; al., 2000, citado por Leikman, 2001).

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afectadas só serão necessárias mais tarde; só no cada vez mais relutante a persistir no esforço para
final do 1.º ciclo do secundário início do 2.º, é que atingir o sucesso. Mais tarde, quando as capa-
a criança tem de funcionar de forma mais inde- cidades cognitivas melhoram e a criança já po-
pendente, organizar o seu trabalho, realizar rela- deria atingir o sucesso escolar, ela pode não querer
tórios e escrever artigos, assim como responder a arriscar a sua auto-estima ao tentar. Uma das queixas
perguntas de desenvolvimento.10 Como se veri- mais frequentes das crianças com TCE e das suas
ficou no caso de A.M., para conseguir diagnós- famílias é que os pares não parecem saber como
ticos com pouca margem de erro, o neuropsicó- interagir com a criança e, em consequência, mo-
logo ou psicólogo pediátrico necessita passar bas- vem-se gradualmente para novos amigos. Se a
tante tempo com a criança, pois só após muito entrada de A.M. na escola tivesse sido realizada
tempo de observação das suas reacções e dos seus tendo em conta estes princípios, ter-se-iam evitado
desempenhos em diversos tipos de tarefas, em con- algumas situações problemáticas que foram difi-
junto com a aplicação de uma série de provas e cultando o processo de recuperação.
testes, pode determinar os padrões desviantes e É importante não esquecer a extrema relevân-
chegar a conclusões válidas sobre o grau e pro- cia de, no regresso à escola, realizar uma par-
fundidade do traumatismo. ceria entre os pais e o pessoal escolar. É impor-
A altura de regresso à escola é uma variável muito tante que o pessoal escolar tenha consciência que
importante para o sucesso escolar. Para planear um programa de intervenção com uma criança
devidamente a reentrada da criança na escola, é com TCE muda com frequência de acordo com
imperativo avaliar não apenas o seu desempenho os progressos da criança e com as respectivas ne-
em provas estandardizadas (Savage, 1991); reco- cessidades. Os factores escolares que mais influen-
menda-se que, antes de regressar à escola a cri- ciam os resultados da integração são a qualidade
ança consiga funcionar num contexto escolar, es- dos professores, a interacção com os pares e o
teja preparada para seguir instruções (Clark, 1996, ambiente da própria escola. Fornecer aos pares
citado por Leikman, 2001), tenha capacidade para uma forma estruturada de interagir com a criança
dar assistência a estímulos simultâneos em vá- tornando a interacção mais confortável, e algu-
rios sentidos (táctil, visão, audição, etc.), consiga mas oportunidades para reconhecerem as capaci-
trabalhar autonomamente durante períodos supe- dades da criança, assim como aquelas que foram
riores a 30 minutos (Mira & Tyler, 1991, citado alteradas, tem provado ser de extrema utilidade.
por Leikman, 2001), possua capacidades para rea- O professor deve ser informado de que constitui
lizar as tarefas da classe, para compreender e reter uma das peças fundamentais na recuperação da
informação, capacidade de raciocínio e expressão criança; para assegurar um bom ajustamento da
de ideias, de resolução de problemas, de planea- criança, é importante dar assistência ao professor
mento e de auto-controlo (Cohen, 1996, citado por no planeamento de acções e na organização do
Leikman, 2001). Em muitos casos, devido à fadiga, apoio de outros profissionais. O professor pode
a criança terá necessidade de uma transição gra- ajudar a criança a melhorar a sua auto-estima,
dual para a escola, começando possivelmente por conseguindo que esta avalie os seus progressos
uma permanência de metade do dia, aumentando no tempo e fornecendo o encorajamento para que
posteriormente este período de acordo com a sua tente novas tarefas que, apesar de desafios, po-
situação e evolução. As sequelas obtidas num pla- dem ser atingidas. Para os estudantes que neces-
neamento desajustado da reentrada na escola são sitam de várias terapias, o tempo na aula pode
incalculáveis; os falhanços precoces depois de voltar ser substancialmente reduzido, tornando o pro-
para a escola, podem levar a criança a tornar-se gresso mais difícil. Por esta razão, os terapeutas
devem consultar os professores e os técnicos para
determinar a altura ideal para a sua intervenção,
podendo sempre que possível, ser considerada a
10
A maturação tardia dos lobos frontais (±12 anos), hipótese de esta ocorrer dentro da sala de aula.
em conjunto com as exigências do meio, caracterís- Foi com o objectivo de efectuar um seguimento
ticas destas idades, apelam para a importância de efec-
tuar um seguimento longitudinal e uma monitorização articulado a nível escolar que se realizou, no iní-
até à adolescência/idade adulta (Kolb & Whishaw, cio do ano lectivo de 2003/04, uma reunião na
1990, citado por Leikman, 2001). escola de A.M. onde estiveram presentes a maio-

243
ria dos técnicos implicados no seu plano de recu- evitar envolver-se em situações problemáticas com
peração. adultos significativos. O TCE pode frequente-
Podemos então concluir que mesmo um TCE mente ser invisível a olho nu, o que não o torna
moderado produz alterações no desenvolvimento ausente. Pode ser subtil, embora poderoso, re-
cognitivo e neurocomportamental que levam a sultando em grandes e profundas consequências
problemas escolares e de integração socio-fami- para as crianças e adolescentes. O seu poder não
liar. As crianças e adolescentes que sofreram um deve nunca ser subestimado.
TCE moderado a grave, deverão ser submetidas
a uma avaliação neuropsicológica, tão precoce quanto
possível, para a obtenção de uma caracterização
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
inicial do quadro e estabelecimento de uma linha
de base, de forma a dar resposta e a prevenir riscos Deaton, A. (1995). Psychological Effects of TBI: What
de problemas futuros. Essas avaliações deverão to Expect and What to Do. Spring Edition of TBI
ser detalhadas, específicas, abrangentes e perió- Challenge.
dicas até à idade de jovem adulto. A avaliação Fisher, B. C. (2002). Traumatic Brain Injury in Children
padronizada de uma criança com TCE só com re- and Adolescents. In Current Trends in Traumatic
curso à WISC é insuficiente e pode levar a falsos Brain Injury, 11th Annual Seminar. Detroit, MI: Char-
diagnósticos. Nesta avaliação, não deve ser dada les N. Simkins.
demasiada ênfase aos problemas comportamen- Laroi, F. (2000). Treating Families of Individuals with
tais em detrimento dos cognitivos. É de extrema Traumatic Brain Injury: Presentation of Cases
importância realizar o diagnóstico diferencial entre Approch from a Structural Therapy Perspective.
Journal of Family Psychotherapy, 11 (4), 69-78.
os problemas de comportamento e cognitivos sub-
Leikman, M. (2001). Traumatic Brain Injury in Chil-
sequentes a lesões do TCE e outros quadros neu- dren and Adolescents. New York: Guilford Press.
rológicos como, por exemplo, o Distúrbio Hiper- Max, J. E., Castillo, S., Bokura, H., Robin, D., Lindgren,
activo de Défice de Atenção e a Perturbação de S., Smith, W., Jr., Sato, Y., & Mattheis, P. (1998).
Oposição. Oppositional Defiant Disorder Symptology After
A família constitui um poderoso mediador da Traumatic Brain Injury: A Prospective Study. The
estabilidade emocional, e é fundamental para um Journal of Nervous and Mental Disease, 186 (6),
bom desempenho/crescimento social, cognitivo e 325-332.
pessoal da criança. É de salientar o meio familiar Rivana, J., Jaffe, K., Fay, G., Polissar, N., Martin, K.,
como primordial numa boa evolução do caso, sendo Shurtleff, H., & Liao, S. (1993). Family Functio-
o seu funcionamento pré-mórbido um elemento ning and Injury Severity as Predictors of Child
Functioning One Year Following Traumatic Brain
preditor dos problemas comportamentais da cri-
Injury. Archives of Physical Medicine and Rehabi-
ança. A reentrada na escola deverá obedecer a
litation, 74, 1047-1055.
certos critérios e não deve ser efectuada antes da Rivana, J., Jaffe, K., Fay, G., Polissar, N., Martin, K.,
criança ser devidamente avaliada por especialis- Shurtleff, H., & Liao, S. (1993). Family Functio-
tas. A escola no seu todo (professores, colegas, ning and Children’s Academic Performance and
etc.) necessita de informação/formação sobre como Behavior Problems in the year Following Traumatic
lidar com esta problemática e os pais devem ser Brain Injury. Archives of Physical Medicine and
incluídos neste processo. Uma boa evolução passa Rehabilitation, 74, 369-379.
por um processo de reabilitação cognitiva, com- Savage, C. R. (1991). Identification, Classification, and
portamental e social, com recurso a uma equipa Placement Issues for Students with Traumatic Brain
multi e interdisciplinar, com vista à integração Injuries. Journal of Head Trauma Rehabilitation, 6
social, escolar e familiar, de forma a prevenir/ (1), 1-9.
Savage, C. R. (1999). The Child’s Brain: Injury and De-
/minorar possíveis consequências no rendimento
velopment. Wake Forest, NC: L&A Publishing/
escolar e no desenvolvimento geral. Training.
Muitas vezes, as crianças com TCE sofrem Taylor, H., Wade, S., Stancin, T., Yeates, K., Drotar,
em silêncio, sem consciência das profundas mo- D., & Minich, N. (2002). A Prospective Study of
dificações que ocorreram no seu pensamento e Short- and Long-Term Outcomes After Traumatic
comportamento; a sua vida torna-se numa tenta- Brain Injury in Children: Behavior and Achieve-
tiva infinita para manter o ritmo dos seus pares e ment. Neuropsychology, 16 (1), 15-27.

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Wade, S., Taylor, H., Drotar, D., Stancin, T., & Yeates, Palavras-chave: Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE),
K. (1998). Family Burden and Adaptation During lobo frontal, alterações psico-sociais, défice de atenção
the initial Year After Traumatic Brain Injury in Chil- por hiperactividade, perturbação de oposição, interven-
dren. Pediatrics, 102 (1), 110-116. ção multi e interdisciplinar.

RESUMO ABSTRACT

Quer pela mortalidade, quer pelo número de indiví- Traumatic Brain Injury (TBI) leads to death, long-
duos que resulta de alguma forma incapacitado, o Trau- term disabilities and constitutes a major public health
matismo Crânio-Encefálico (TCE) constitui um dos problem in Europe, United States and other countries.
maiores problemas de saúde pública nos EUA, Europa Cognitive, behaviour and emotional changes as possible
e outros países desenvolvidos. As alterações cogniti-
consequences of TBI are responsible for main impair-
vas, comportamentais e emocionais são, entre as con-
ments in children’s lives, including family disfunctions,
sequências das lesões focais ou difusas do TCE, as que
causam maior incapacidade na criança, maior desta- social disabilities and school unachievement. These la-
bilização nas suas famílias e maior dificuldade no seu ter problems are more persistent than physical inca-
meio social e escolar. Mais persistentes no tempo que pacities and influence children’s development by con-
os défices físicos, estas alterações interferem no desen- ditioning their ability to learn, to perform behaviours
volvimento global, podendo condicionar a capacidade previous to TBI and to develop socially adequate rela-
da criança na realização das suas aprendizagens es- tionships. Thus, these TBI sequels require a long rehabi-
colares, limitar a prossecução de actividades prévias e litation process, which has to include all the professio-
constituir um obstáculo às relações interpessoais. Este nal help needed. A.M. is an 8 years-old child attendind
quadro requer um longo processo de reabilitação e um a 2nd grade class who in April 2002, aged 6 years old,
acompanhamento profissional tão diversificado quanto suffered a moderate TBI following a 6 meters height
necessário. Apresenta-se o caso A.M. com 8 anos de fall. Consequently, A.M. presented motor, linguistic,
idade, frequentando o 2.º ano de escolaridade que, em cognitive, behavioural and emotional disabilities, which
Abril de 2002, aos 6 anos, após queda de cerca de 6 me- required a multi professional intervention. During one
tros de altura, sofreu um Traumatismo Crânio-Encefá-
year and a half, numerous neuropsychological and de-
lico (TCE) moderado. Em consequência, apresentou al-
velopmental evaluations were performed allowing the
terações motoras, da linguagem, cognitivas, comporta-
mentais e emocionais, que obrigaram a uma interven- description of the child’s clinical progression, inclu-
ção terapêutica multidisciplinar. Durante um ano e meio ding the effects in family functioning, school perfor-
foram efectuadas várias avaliações neuropsicológicas mance, social behaviour and emotional adaptation.
e de desenvolvimento que nos permitiram descrever a Key words: Traumatic Brain Injury (TBI), psycho-
progressão do quadro clínico, incluindo as repercussões social effects of TBI, Attention Deficit and Hyperacti-
ao nível da reintegração familiar, escolar e socio-emo- vity Disorder (ADHD), Oppositional Defiant Disorder
cional. (ODD), multi professional team intervention.

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