A série de fotografias “After Walker Evans” de Sherrie Levine
Pedro França
Neste texto, analisaremos brevemente alguns aspectos do trabalho
da fotógrafa norte-americana Sherrie Levine. Seu trabalho mais famoso, realizado em meados dos anos 80, consiste em fotografar fotografias de fotógrafos clássicos do modernismo norte-america- no, como Walker Evans e Edward Weston, a partir de reproduções em catálogos ou em revistas. Sherrie Levine também fez cópias perfeitas de desenhos de Matisse e de Willem de Kooning, além de fotografar desenhos de Egon Schiele e criar réplicas em ouro da “fonte” de Marcel Duchamp. Trataremos aqui de sua série de fotografias feita a partir de Walker Evans, e discutiremos rapidam- ente alguns aspectos importantes deste trabalho. Iniciaremos com uma discussão sobre o significante e o significado na fotografia, empreendida por Roland Barthes em “O óbvio e o obtuso” , que nos fornece recursos teóricos para pensar particularidades da obra de Sherrie Levine. Em seguida, falaremos especificamente de sua série “After Walker Evans”, concluindo com uma reflexão sobre o que a obra da artista Americana nos diz sobre o papel do artista na contemporaneidade.
Para Roland Barthes, o significante na fotografia não é o referente,
o “real”, mas o que se pode perceber ou descrever, de forma simples, dentro da própria imagem. É o que há de denotativo na imagem, sua mensagem literal. Evidentemente, tal percepção não é apenas “natural”, ou fisiológica. Esta primeira instância da imagem, sobre a qual está fixado o simbólico (o sentido conota- tivo) é, para Barthes, aquilo que pode ser descrito, excluindo-se o significado. Para tanto, é preciso estar inserido na linguagem, é preciso saber fazer recortes no mundo e denominar objetos, é preciso saber o que é uma imagem, conhecer os objetos represen- tados (pela experiência ou por narrativas) e reconhecer a relação analógica entre tais objetos “do mundo” e as formas e cores pre- sentes na imagem. O significante da mensagem fotográfica, por- tanto, não é o objeto fotografado, posto que não é o objeto em si que produz significado, nem as manchas de cores presentes no espaço bidimensional. O significante da imagem não está naquilo 1- Sherrie Levine que chamamos de “real”, mas no que, inseridos na linguagem, no Nº 1 After Egon Schiele imaginário e na cultura,somos capazes de perceber. 1982. Fotografia A fotografia seria, portanto, composta basicamente de dois sen- tidos, um denotativo (o significante, que acabamos de descrever) e um conotativo, que é da ordem do significado. Ora, as foto- grafias de Sherrie Levine parecem forçar mais voltas no parafuso da mensagem fotográfica. Concluímos que o significante não é a referência do “real” da imagem, mas o recorte que, por analogia ao mundo da experiência, somos capazes de criar na imagem. No entanto, isso não é suficiente para dar conta das imagens que Levine nos apresenta. Nelas, temos significante e significado ap- ropriados de forma direta, quase mecânica. Parece não ter havido interferência humana. Suas fotos são idênticas às de Walker Evans. No entanto, se partimos do pressuposto acima mencionado sobre o significante na fotografia, deveremos concluir que o gesto de apropriação não importa, que o significante não está na fotografia fotografada, mas naquilo que nos é mostrado na planaridade im- placável da imagem. O significante, portanto, é o mesmo, para as fotos de Evans e para as de Levine.Onde está, portanto, a diferen- ça? Para começarmos a perceber o trabalho de Levine, é preciso, como já apontava Marcel Duchamp, olhar o conexto em que está inserido o objeto.
O que parece é que temos dois atos muito distintos presentes,
que produzem duas camadas de sentido diferentes e que se nos mostram ao mesmo tempo: o primeiro é o de fotografar. O se- gundo é o de mostrar. O ato artístico de Levine, ao contrário do de Evans, não está em fotografar, mas em mostrar.Não está na ima- gem, mas no texto: cada fotografia tem o título “Nº --, after Walker Evans”, tornando declarada a “pirataria” (termo usado não pejo- rativamente pela crítica Rosalind Krauss para tratar do trabalho de Levine)
Por um lado, há uma operação duchampiana de deslocamento,
misturada a um procedimento fotográfico clássico: apreender o “real”. As fotografias apresentadas foram feitas a partir de revistas e catálogos. São, portanto, fotografias de partes de páginas impres- sas. No entanto, o recorte feito não permite que se identifique a página. O simulacro é perfeito, e a imagem então reproduzida na revista ou no livro renasce como imagem pura, e, o mais curioso, volta a seu lugar de origem , o museu. Este é, portanto, o ciclo que Levine faz completar as imagens que fotografa. Uma fotografia, exposta num museu ou galeria, é reproduzida num catálogo, que vai para as livrarias. Esta publicação é comprada por Levine, e a reproduçãoda obra é fotografada. Essa imagem de “3a ordem” volta então ao espaço de arte, e é identica à imagem original.. Ao contrário de Duchamp, que pôs num espaço de arte algo 2- Sherrie Levine que lhe era totalmente estranho, tornando evidente o desloca- Nº 14 After Walker Evans mento, Levine desloca para dentro do campo da arte algo que já 1981. Fotografia a ele pertencia. Com isso, levantam-se as questões sobre plágio, 3- Sherrie Levine originalidade, autenticidade e subjetividade, e sobre a atuação do Nº 10 After Walker Evans artista em nossos dias. 1981. Fotografia Para discutirmos este último aspecto da obra de Levine,o da sua discussão sobre o papel do artista hoje, faremos referência ao pensador francês Edmound Couchot fala de um confronto entre dois tipos de subjetividade que, surgido no Renascimento, ganha uma nova dimensão com a fotografia e com a autonomia cada vez maior dos processos automáticos de configuração da ima- gem. Haveria uma negociação constante entre um sujeito pessoal, portador de uma subjetividade “irredutível a todo mecanismo técnico e a todo hábito perceptivo”, e um sujeito impessoal, modelado pela experiência tecno-estética. Do confronto entre esses dois sujeitos e, sobretudo, da resistência do sujeito pessoal ao predomínio tecnológico e à redefinição da própria identidade, se originam crises sucessivas “que afetam violentamente o mundo da arte”. Esta contradição está presente no trabalho de Walker Evans, que procurava fazer do ato fotográfico o mais impessoal possível, acreditando numa missão simples do fotógrsafo de expor o mundo tão objetivamente quanto possível. Esta abordagem se opunha à de alguns de seus famosos contemporâneos como Whitman e Stieglitz, cujo projeto dependia de uma crença no ego heroico do artista. Estes fotógrafos acreditavam que o papel do artista era mostrar à sociedade a beleza secreta do trivial, do cotidiano, o sublime nas coisas mas inesperadas. Como diz Paul Rosenfeld em texto sobre a obra de Steinglitz, “Não existe, em todo o mundo, nenhum tema tão tosco, banal e humildeque esse homem da caixa preta não consiga utilizar para expressar-se por inteiro”. Evans, por sua vez, tendia a tratar com mais indiferença o objeto fotografado, sem a inflexão heróica deWhitman. Não é a toa, portanto, que Levine escolhe Walker Evans como tema de uma obra que afirma radicalmente a impessoalidade, ou, pelo me- nos, desloca a atuação intelectual do sujeito para longe do objeto artístico.
Sherrie Levine nos apresenta o problema exposto por Couchot de
forma ainda mais sutil, e menos conflitante Sem dúvida, a atuação intelectual do sujeito sobre o mundo ainda existe: na iniciativa de fotografar uma fotografia, e, sobretudo, na iniciativa de mostrar tais fotos com arte. No entanto, com este gesto, a artista não só coloca em xeque as noções de autoria, obra e originalidade, como traz para o primeiro plano a problemática da mediação tec- nológica e, logo, de um universo cultural no qual a mitologia do gênio está sendo erodida junto com as idéias de originalidade e valor. Que isso não seja entendido como uma contradição, como uma consciência que nega categoricamente a si mesma, que quer esvaziar-se por completo: Levine, muito influenciada pelo con- ceito de “simulação” de Jean Baudrillard (que diz respeito a uma cópia sem original, à perda do referente, à ausência do “real ou” do “verdadeiro”), contribuiu, assim como inúmeros artistas de sua geração, para recente redefinição da atuação do artista, ao com- preender que trabalha num mundo em que a realidade foi substi- 4- Sherrie Levine Nº 1 After Walker Evans tuída por narrativas e imagens, prontos para serem apropriados. 1981. Fotografia Como nos diz belamente O crítico norte-americano Hal Foster, o artista contemporâneo não é mais um criador de objetos, mas um “manipulador de signos”.
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1990. BAUDRILLARD, Jean.A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à reali- dade virtual. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003. FOSTER, Hal. Recodificações. Rio de Janeiro: Novas Fronteira, 1993. HEARTNEY, Eleanor. Postmodernism. Londres: Tate Gallery Pub- lishing, 2000. SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.