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RICI – Projecto Interdisciplinar: ‘O Estatuto do Singular’

FCSH-UNL, 2 de Julho de 2005

O Estatuto do ‘Individual’ na Lógica Temporal


Gil Santos

Apresentação geral:

1. A noção de «indivíduo» introduz-se na Lógica ao nível da teoria da quantificação e


da lógica dos predicados. Ou seja, no domínio onde a Lógica opera já sobre «um mundo
determinado» de indivíduos e atributos (propriedades ou relações), que transcende o nível
em que se situa a lógica proposicional, no qual os únicos objectos lógicos são apenas
proposições susceptíveis de receber um valor de verdade, concebidos independentemente de
qualquer determinação (l’object quelconque, na expressão de F. Gonseth). Nesta lógica,
opera-se, em suma, uma redução dos objectos a proposições, permitindo assim a
interpretação directa do cálculo como uma metalinguagem. É lícito, por conseguinte, afirmar
(com G. Granger) que estamos, nesse nível interproposicional, no «grau zero do conteúdo
formal», uma vez que o conteúdo (o complexo de regras que definem o sistema) está
reduzido ao sistema de operações (à forma, portanto). Ao invés, a lógica dos predicados de
primeira ordem conduz-nos já ao «grau-1» da relação forma/conteúdo – neste nível, o lógico
não trabalha já com objectos quaisquer, mas com objectos sob uma certa determinação 1.
A emergência do problema do ‘singular/individual’ coincide, assim, com a introdução
de ‘objectos’ como elementos já particularmente distinguíveis da operação, na escala
hierárquica dessa ‘dualidade operação/objecto’ que, em «graus relativos de formalidade»,
constitui e estrutura – de acordo, ainda, com G. Granger – todo o conhecimento e todo o
pensamento simbólico 2.
1
Cf. G. GRANGER, “The Notion of Formal Content”, Social Research, 42/2 (1982), pp. 359-382.
2
idem. Refira-se apenas que o facto de se reconhecer uma graduação da dualidade operação/objecto em níveis
relativos de «formalidade», significará que não há formas, nem conteúdos, em si mesmos: cada elemento
desempenha, simultaneamente, o papel de forma relativamente aos conteúdos que ele subsume, e de conteúdo
em relação às formas superiores. Este entendimento da natureza relativa da dualidade ‘operação (forma)/objecto
(conteúdo)’ tem uma importância nuclear: (a) quer para a comprensão da dupla dimensão da Lógica, enquanto
2

Porém, as noções de ‘objecto’ e de ‘indivíduo’ não se deixam confundir 3. Na verdade,


podemos mesmo dizer que, tal como a proposição é, ao nível da lógica proposicional, um
«object quelconque», assim o ‘indivíduo’ que virtualmente corresponde, ao nível da lógica
dos predicados, à variável ‘x’, é um «indivíduo» quelconque. Um exemplo qualquer.
A noção de indivíduo à luz da lógica standard dos predicados tem também (ou
sobretudo) por esta razão essencial, um alcance claramente local. A categorização natural da
percepção, bem como a sua expressão linguística, dão-nos outros tantos modos (que
reflectem a existência efectiva de diferentes níveis) de inteligibilidade e de expressão do
individual, que a língua formular de um sistema formalizado (i.e., de um cálculo) não
representa, nem sobre os quais logra impor a sua jurisdição.
Ao nível lógico-linguístico, o problema do individual emerge numa espécie particular
de discurso proposicional: a frase declarativa singular. Nela se encontram inter-
relacionadas duas operações fundamentais do pensamento e do discurso: a referência singular
e a predicação singular. Ora, significativamente, esta espécie particular do discurso
proposicional encontra-se fora do domínio restrito da «linguagem lógica canónica» ou, mais
propriamente, fora da língua formular do cálculo, limitada às fórmulas proposicionais gerais
(quantificadas). Pode-se assim observar, mais concretamente, que o problema do individual
intervém na Lógica, quer a respeito da concepção das operações semânticas de referência
4
singular e de predicação singular 5, quer relativamente à interpretação da generalização
existencial e universal, enquanto regras de inferência da teoria da quantificação.

«sistema simbólico» e «sistema operatório»; quer (b) para a definição da Lógica como «teoria formalizante»:
“Chaque structure est à la fois construction (forme), à l’égard des formes inférieurs, et application (contenu) par
rapport aux supérieurs. C’est pourquoi la notion du «formel», qui caractérise la logique, se réfère à un
processus continu de formalisation et non pas à une situation statique” [J. PIAGET, Essai de Logique
Opératoire, Paris, Dunod, 1972 (2ª ed., établie par J.-B. Grize), p. 40]. De acordo ainda com G. Granger, a
codeterminação e a dependência recíproca da operação e do objecto, embora presentes em todo o tipo de
conhecimento, podem ser melhor apreendidas na noção matemática de «grupo»: esta noção designa
originalmente um conjunto de operações sobre objectos numéricos; porém, no quadro da ‘teoria dos grupos’,
esses objectos são susceptíveis de serem tratados como regras independentes das operações originais (idem).
Para um melhor entendimento acerca do papel e do valor dessa dualidade na constituição do conhecimento –
vide G. GRANGER, “Contenus formels et dualité”, Manuscrito, X, 2 (1987); e Pour la Connaissance
Philosophique, Paris, Odile Jacob, 1987. Os dois artigos citados de 1982 e de 1987 viriam a ser inseridos em
GRANGER, Formes, Opérations, Objects, Paris, Vrin, 1994 (caps. 2 e 3, respectivamente).
3
Tal como os seus símbolos denotantes – num sistema formal e na linguagem natural, respectivamente – não
são equivalentes. Cf. GRANGER, “À quoi servent les noms propres?”, Langages, 66 (1982), pp. 21-36.
4
Vide o programa de eliminação dos termos singulares (Russell, Quine), bem como a controvérsia em torno das
teorias da referência rígida (Kripke) e directa (Kaplan).
5
Vide a concepção das relações entre predicação, instanciação e/ou exemplificação. Cf. N. WOLTERSTORFF,
On Universals, Chicago Univ. of Chicago Press, 1970, pp. 89-95; e D.W. MERTZ, Moderate Realism and its
Logic, New Haven-London, Yale Univ. Press, 1996, p. 176.
3

O problema «(meta-)lógico» do individual não se esgota, porém, aqui. A par da


problemática lógica, semiótica e epistémica, existe ainda um núcleo de problemas
metafísicos clássicos, como os relativos ao essencialismo, à reificação e ao substancialismo,
modernamente associados às teorias da referência rígida (Kripke) e directa (Kaplan), à defesa
da irredutibilidade e à refutação da possibilidade da eliminar teorica e praticamente, pelo
menos, certos termos singulares (Strawson vs. Quine), e por essa via, à defesa de uma não
traduzibilidade e/ou eliminabilidade da operação de predicação individual, da estrutura
semântica da frases singular ou, ainda, da natureza proposicional (do sentido) das frases
singulares.
Como lidar com esses problemas habitualmente atribuídos ao reconhecimento de um
estatuto próprio – e, por conseguinte, irredutível – a uma referência aos, e a um pensamento/
discurso sobre, ‘individuais’?

2. Uma primeira observação que deve ser feita é que os ‘indivíduos’ da nossa
experiência natural que a linguagem expressa são, prototipicamente, entidades espacio-
temporais, contingentes e descontínuas. À pergunta «nos nossos esquemas de pensamento e
de discurso quais são os objectos básicos e primeiros da referência e da identificação
linguística singular?», Peter Strawson respondeu que esses objectos são os ‘indivíduos’ – ou
seja, os particulares espacio-temporais e relativamente persistentes: físicos (corpos),
fenoménicos (sons) e as pessoas. Estes ‘indivíduos’ constituem, todavia, uma subclasse dos
‘particulares-em-geral’, entre os quais se incluem também os particulares substancialmente
dependentes, como eventos e processos 6.
Estes indivíduos são naturalmente temporais, contingentes e mutáveis. Aplicam-se de
um modo geral a estes individuais os quatro tipos de devir ou movimento (metabolê, kinêsis)
que Aristóteles atribuía às «substâncias físicas sensíveis e móveis do mundo sublunar»: i)
substancial – engendrados e corruptíveis; ii) qualitativo – alteráveis; iii) quantitativo –
sujeitos ao aumento e à diminuição; e iv) local – deslocáveis 7.
Uma análise atemporal, estática e generalizante (como o é a da lógica extensionalista
standard pós-fregeana) dificilmente se adequará ao modo de expressão e de inteligibilidade
do ‘individual’ que a linguagem natural parece veicular.

6
Peter STRAWSON, Individuals – An Essay in Descriptive Metaphysics, London, Methuen & Co., 1959, Parte
I: ‘Particulars’, pp. 15-134. Cf., igualmente, P. STRAWSON, “Individuals”, in G. Fløistad (ed.), Philosophical
Problems Today, vol. 1, Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 1994, pp. 21-44.
7
Estas substâncias distinguem-se das «substâncias físicas sensíveis e móveis, mas incorruptíveis e sempiternas:
os corpos celestes (as esferas e os astros), e das «substâncias não-sensíveis, imutáveis e sempiternas (os motores
imóveis)». Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, XII, 1069 a 30 - b 15; Física, III, 201; e V, 224 a-225 b.
4

3. Um outro tipo de lógicas (desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX)


afiguram-se mais aptas a dar conta desta natureza dinâmica da expressão linguística da
experiência natural: as lógicas do tempo (Arthur Prior), da acção e da mudança (George
von Wright). O inegável progresso lógico e filosófico que o nascimento dessas lógicas
representou, fez-se, não obstante, por um movimento refráctario à extensionalidade da lógica
standard, bem como por uma reinterpretação da moderna teoria da quantificação. A estes
factos, acresce ainda que a consideração do individual no tempo – ou a consideração da
expressão temporal de um facto relativo a um individual – viria bem cedo a provocar uma
revitalização dos estudos em torno de uma «filosofia do indivíduo», trabalhada agora em
directo confronto com uma «filosofia do tempo» 8. Trata-se, a nosso ver, de determinar as
condições de possibilidade de um pensamento, de uma representação e de uma expressão da
experiência temporal do individual.

Depois de reacção de J.N. Findlay (1941 9) ao tratamento dos enunciados temporais


10
preconizado por B. Russell , as investigações lógicas de W. Quine – sobretudo na
elaboração do seu método de ‘regimentação’ em Word and Object (1960, § 36) – e de Arthur
Prior (entre 1950 e 1969) traçam o ‘referencial problemático’ originário da controvérsia
contemporânea em torno das diferentes concepções de indivíduo, de tempo, e do modo como
a Lógica as deve encarar.
É sobre essa oposição fundadora entre as abordagens de Prior e Quine que iremos
começar por incidir a nossa atenção. Ela servirá de ponto de apoio para uma consideração de
um problema lógico-filosófico específico: como pensar a oposição entre as perspectivas
perduracionista e duracionista da persistência temporal dos indivíduos – face às noções de
(i) ‘mudança’ e de (ii) ‘identidade’ trans-temporal; e face (iii) à própria concepção de
Lógica?

Torna-se assim útil antecipar, desde já, alguns dos principais temas e problemas que
mobilizam contemporaneamente a filosofia e a lógica do tempo e do individual:

8
Em “Le nom propre et la prédication dans les langues naturelles” [in Langages, 66, 1982, pp. 37-65], Jean-
Claude PARIENTE retoma o problema das relações entre a linguagem e o individual (trabalhado já por si nessa
notável obra, Le Langage et l’Individuel, Paris, Armand Colin, 1973), alargando porém a problemática à
consideração de uma «filosofia do indivíduo e do nome próprio», à luz da expressão linguística do tempo e da
mudança.
9
J.N. FINDLAY, “Time: A treatment of some puzzles”, Australasian Journal of Psychology and Philosophy,
1941, pp. 216-235 [reimpr. in A. Flew (ed.), Logic and Language, Oxford, 1961].
10
Desde 1914, em Knowledge of External World (especialmente, cap. IV), e posteriormente em 1936 (em “The
order of Time”, reimpresso em Logic and Knowledge, 1956).
5

a) a natureza tridimensional ou quadri-dimensional dos objectos físicos típicos;


b) o tipo de persistência temporal que é própria aos individuais físicos: a perduração
[perdurantism] – i.e., a persistência do indivíduo quadri-dimensionalmente perspectivado, em
virtude de possuir partes temporais a par de partes espaciais; e a duração [endurantism] – i.e.,
a persistência do indivíduo tri-dimensionalmente considerado que, enquanto existe, está
inteira e totalmente presente em cada momento.
c) a concepção do tipo de identidade trans-temporal dos indivíduos;
d) a possibilidade, ou não, de intemporalizar o discurso temporal;
e) o estatuto ontológico e/ou a representação lógica conferida a ‘eventos’, ‘instantes’,
‘intervalos’, ou ainda a ‘indivíduos presentes’, ‘passados’, ‘futuros’, etc.

Por sua vez, o problema propriamente relativo à noção de ‘tempo’ implicará:


f) – quer uma elucidação das relações categoriais que constituem a filosofia geral do
tempo: ‘tempo’ / ‘devir’; ‘devir’ / ‘movimento’ / ‘mudança’; ‘mudança’ / ‘acção’ /
‘sucessão’;
g) – quer, a oposição entre as perspectivas estática e dinâmica do tempo.
h) – quer, ainda, uma concepção acerca dos diferentes modos de ordenação temporal:
«anterioridade-posterioridade» e «simultaneidade», «passado-presente-futuro»;

i) A avaliação de todo este conjunto de questões conduz por fim, e necessariamente, a


um outro problema fundamental – a saber: o problema do estatuto teórico e epistemológico
da própria disciplina Lógica 11, no contexto do qual se pode responder ao problema particular
da relação da Lógica face ao tempo e ao pensamento/discurso temporais.
W. Quine e A. Prior representam, face também a este último problema, perspectivas
bem distintas e verdadeiramente exemplares. Algo que de resto não pode espantar. O tema da
lógica temporal só vem ilustrar a este propósito um facto histórico e teórico por demais
11
Por exemplo: dever-se-á conceber a Lógica como um sistema unidimensional e fechado de leis e regras, ou
como uma teoria susceptível de receber uma natureza pluridimensional (lógicas modais, polivalentes, naturais,
etc.)? Dever-se-á entender a Lógica como ciência puramente, ou sobretudo, normativista e/ou descritivista? No
caso de a Lógica solidarizar essas duas vertentes, como estabelecer essa articulação?, que peso terá cada uma
delas?, em que circunstâncias, ou face a que «objectos» ou domínios, deverá prevalecer uma em detrimento da
outra? Como interpretar a «análise lógica» da linguagem natural? Descreve-se, explica-se, interpreta-se, traduz-
se, formata-se? Deve a Lógica subordinar-se à «linguagem» e ao tipo de conhecimento exclusivamente
científicos? Em caso afirmativo, que disciplina científica, que concepção teórica dessa mesma ciência
particular, ou que «modelo» de ciência em geral, deverá servir de referencial e de guia à Lógica? A resposta a
este tipo de questões são verdadeiramente nucleares e subjazem (mesmo quando não explictadas, ou mesmo
quando conscientemente ignoradas) à fundamentação de uma Filosofia e de uma Epistemologia da Lógica e, a
fortiori, de uma Lógica Temporal – seja esta perspectivada do ponto de vista do «tempo gramatical» (tense
logic), ou do tempo da datação (time logic).
6

evidente: é que não obstante a inegável autonomização científica da disciplina Lógica, a


compreensão e a concepção teórica e epistemológica da Lógica são profundamente solidárias
(e em larga medida condicionadas) por posições e motivações de índole filosófica. Por
maioria de razão, o caso específico de uma lógica temporal não constitui excepção. No caso
de uma lógica temporal intra-proposicional, a sua elaboração e compreensão são processos
intimamente relacionados com as concepções científica e filosófica, não apenas do tempo,
mas também do individual.
Como lucidamente observou Arthur Prior, o desenvolvimento “satisfatório” de uma
lógica temporal dos predicados só será possível “until much more work has been done [...] on
the whole notion of an individual thing, and of the same individual thing” 12.

12
A. PRIOR, Papers on Time and Tense, Oxford, Clarendon Press, 1968, p. 86.

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