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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1. Abastecimento urbano e regulamentação concelhia

Já na Grécia Antiga um dos elementos fundamentais da Pólis era o designado


ideal de autarcia, ou seja a cidade–estado deveria ser auto-suficiente para
garantir a sua independência, relativamente ao estrangeiro. Na Idade Média e
por influência das teorias aristotélicas, o ideal de auto-suficiência foi igualmente
defendido.

Sem dúvida que o auto – abastecimento seria o desejo de qualquer centro


urbano medievo, contudo isso não se verifica: “ a cidade, sob o ponto de vista do
seu abastecimento alimentar, era uma estrutura frágil, artificial mesmo,
impossível de bastar-se a si própria...”1.

O abastecimento urbano, nomeadamente no que concerne a bens de primeira


necessidade, é uma das grandes preocupações dos concelhos em geral.

Muito mais dependentes dos caprichos da natureza, do que actualmente, as


produções agrícolas eram inconstantes, assim como os próprios preços
praticados e a ameaça de fome, várias vezes se tornou realidade2.

De forma a assegurar o aprovisionamento da vila, o concelho adoptava medidas


de carácter proteccionista, que visavam fomentar as importações, e dificultar as
exportações.

Ao assegurar a quantidade suficiente de bens alimentares para abastecer o


centro urbano, o governo concelhio garantia, de igual modo o preço justo dos
mesmos, evitando, assim a especulação e a inflação, características de períodos
de carestia, que em contexto medieval pode mesmo significar morrer à fome.

1
Iria GONÇALVES, in: “Defesa do consumidor na cidade medieval: Os produtos alimentares (Lisboa – séculos
XIV - XV)”, Um olhar sobre a cidade medieval, Patrimonia, Cascais, 1996, p. 98.
2
Em Portugal houve uma grande fome no ano de 1331, que se agravou em 1348. Vide José MATTOSO, História
de Portugal, Vol. II, Círculo de Leitores, 1993, p.249.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

São pois preocupações do concelho garantir a todos os seus habitantes o acesso


ao sustento básico e a um preço justo3. Para que tal fosse possível, o concelho
tinha que controlar, de forma sistemática, as actividades económicas. O
funcionário responsável por tal tarefa era o almotacé, funcionário de indiscutível
ascendência islâmica.

Os locais de venda eram fixos e não era permitida a venda de produtos fora da
vila. Para garantir que os seus habitantes obtinham os produtos necessários para
o seu sustento, os preços eram tabelados e os pesos e medidas eram
regularmente fiscalizados pelo governo municipal, devendo apresentar a marca
do concelho, caso contrário eram considerados fraudulentos.

É pois evidente o forte controlo exercido pelo poder concelhio sobre as


actividades económicas, sempre com o objectivo fundamental de garantir o
abastecimento pleno da vila e a defesa do consumidor comum; tal como iremos
verificar ao longo da análise das actas de vereação do concelho de Loulé.

As preocupações com o abastecimento da vila de Loulé no período em estudo,


relatadas nas actas de vereação, fornecem importantes elementos no que
concerne aos hábitos alimentares dos louletanos de então.

3
Sobre o assunto veja-se Iria GONÇALVES, “art. cit.”, para Lisboa e Beatriz Arizaga BOLUMBURU, “El
abastecimiento de las villas vizcaínas medievales: política comercial de las villas respecto al entorno y a su
interior”, in: La Ciudad Hispanica Durante Los Siglos XIII Al XVI, Tomo I.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1. Bens alimentares regulamentados

1.1.1. Pão

No concelho de Loulé, bem como no Algarve, de um modo geral, a carência de


cereal (pão)4 é notória. A falta de pão não é um problema apenas desta região,
outras zonas do país também sofrem de tal deficiência e por este motivo, visto
que a produção nacional não é suficiente para abastecer o reino, por vezes é
necessário importar este bem tão precioso, que constitui a base alimentar
medieval.

Face à necessidade de cereal, os homens do concelho reuniam-se, muitas vezes


em vereação para decidir como agir para obter o “pão nosso de cada dia”. Por
vezes a solução passava mesmo por recorrer ao poder central, solicitando
medidas proteccionistas que garantissem o aprovisionamento em pão. Entre
estas medidas destaca-se a autorização para adquirirem pão no Campo de
Ourique e na comarca de Entre Tejo e Odiana ou mesmo a importação de trigo
proveniente da Bretanha5.

À semelhança do que sucede actualmente, já na época, o mercado obedece à lei


da oferta e da procura e por isso mesmo, por vezes o preço do trigo atingiu
preços muito elevados. O concelho interveio então, e regulamentou o preço de
tal produto com base no preço do trigo praticado em Évora ( 20 soldos o
alqueire), decidindo que, em Loulé, o bom trigo não ultrapassará os 25 soldos.
Além disso, os vendedores ficavam obrigados a vendê-lo nas fangas ou no
mercado tradicional de cereais6.

4
A. H. de Oliveira MARQUES, Introdução à História da Agricultura – A Questão Cerealífera durante a Idade
Média, Cosmos, Lisboa, 1978, pp. 79-80.
5
Actas de Vereação de Loulé, acta de 1385, pp. 26-29; acta de 1403, pp.113-114; acta de 23 de Abril de 1468,
pp. 204-205 e acta de 4 de Junho de 1468, pp. 210-211.
6
Ibidem, acta de 1385, pp. 29-30
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Uma moeda de troca utilizada pelos concelhos de Loulé e Faro, para obterem
cereal da Bretanha foi o figo. Para incentivarem a importação de trigo desta
região, acordaram entre si conceder aos vendedores uma peça de figos por cada
moio de trigo trazido aos ditos concelhos7.

Para além de se preocuparem com a quantidade de cereais panificáveis, os juizes


e vereadores zelavam pela qualidade do produto final, o pão cozido, devia ser
alvo e bem feito. Portanto as padeiras que amassavam e vendiam estavam
sujeitas a uma série de coimas no caso de não produzirem “boo pam branco
stremado e bem fecto”8, como convinha a uma terra onde viviam tantos homens
honrados e onde afluíam gentes estrangeiras. A qualidade do pão consumido era
o espelho da nobreza do concelho.

1.1.2. Fruta e produtos hortícolas

O figo era um produto de exportação internacional, daí que se justifique o facto


dos figueirais serem, constantemente, protegidos na legislação municipal9.

Contudo, os figueirais não eram as únicas espécies alvo de protecção e controlo


por parte do governo camarário, como refere Maria Ângela Beirante:
“verificamos que as propriedades ou espécies mais protegidas são, por ordem
decrescente: vinhas, figueirais, pães, olivais, ferragiais, hortas e pomares,
arvoredo espontâneo e espartal.”10.

Esta preocupação com a protecção do verde, traduz-se nas várias posturas


elaboradas pelos homens-bons nas reuniões camarárias e que funcionavam como
leis locais.

7
Ibidem, acta de 4 de Junho de 1468, pp. 210-211.
8
Ibidem, acta de Maio de 1408, p. 193.
9
Vide Maria Ângela BEIRANTE, “Relações entre o Homem e a Natureza nas mais Antigas Posturas da Câmara
de Loulé (Séculos XIV-XV)”, in: Actas das 1ªs Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia, Câmara
Municipal - Universidade do Algarve, Loulé,1987, pp. 231- 242.
10
Idem, ibidem, p.232.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

As pesadas coimas para quem não as cumprisse (que constituíam a renda do


verde), reflectem a importância do equilíbrio entre o centro urbano e o seu
termo, isto é o equilíbrio que deveria existir entre a natureza e a acção do
homem.

Na vereação de 21 de Abril de 1408, são ordenadas muitas posturas referentes à


protecção do verde: “olhando pello prool e boo regimento da dicta villa per que
era dicto que as ordenações e pusturas que era [m] fectas ates o que per razom
da renda do verde nom andavam atam bem ordenadas e fectas segudo comprya
pera proll e boo regimento da dicta villa.”11.

Os animais à solta, que danificam as culturas são uma constante e por isso
mesmo são várias as actas que prevêem castigos para os donos dos animais12,
prova da extrema importância desta matéria para o “bom regimento ” do
concelho.

A importância dos bens alimentares que as hortas13, cortinhais e a própria serra


forneciam à população do concelho está bem patente ao longo da leitura das
actas de vereação. Estes bens constituíam uma parte significativa no
abastecimento do centro urbano. Como é típico na Idade Média, o diálogo e a
interdependência que se estabelece entre o mundo urbano e o mundo rural
reflecte-se na legislação camarária.

O controlo do abastecimento de Loulé não se limita, contudo à renda do verde,


para utilizar o termo medieval. No entanto, torna-se evidente, que o regimento
do verde decorre das necessidades de aprovisionamento local.

11
Ibidem, p. 177-188.
12
Ibidem, acta de 15 de Novembro de 1402, p. 106; acta de 26 de Maio de 1403, pp. 126-129; acta de 1 de
Dezembro de 1403, p. 148; acta de 12 de Janeiro de 1404, p. 152 e acta de 22 de Fevereiro de 1404, p. 159.
13
De notar que o concelho encontrava-se envolvido por uma faixa de hortas, da qual se destaca a horta d’El-Rei,
que abasteciam o mercado urbano. Loulé seria, pois um concelho rico em produtos hortícolas.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1.3. Carne

Um dos produtos fundamentais para o abastecimento da vila era a carne. Ao


longo da leitura das actas de vereação encontrámos várias referências a esse
respeito e até punições (prisão) aos carniceiros que se mostraram negligentes no
abastecimento de carne de vaca14.

De facto, garantir o abastecimento de carne em quantidade e a um preço justo,


são duas preocupações que assaltam o governo concelhio. Para isso a edilidade
contratava, anualmente, dois carniceiros que se comprometiam a fornecer e
talhar a carne desde a Páscoa até ao Entrudo seguinte. É o que vemos na
vereação de 26 de Março de 1385, na qual estes se comprometem a respeitar o
tabelamento dos preços da carne15.

A carne mais cara é a de carneiro (a quatro soldos). Ao que tudo indica, esta
seria a carne mais apreciada na época, mas não parece significar que fosse a
mais acessível. Talvez a grande procura fizesse o seu preço subir, de acordo,
uma vez mais com a lei da oferta e da procura. Logo abaixo encontrava-se a
carne de vaca – a três soldos – e por fim a carne de cabra e “cabron” a dois
soldos e quatro dinheiros16.

Como já referimos, os vereadores puniam os carniceiros que não cumprissem o


seu dever, podiam ser presos, podiam ficar privados de exercer o ofício ou até
ser expulsos da vila. Na verdade não encontramos nenhum caso de expulsão,
pois o concelho reconsiderou e permitiu aos carniceiros, que não conseguiram
abastecer a vila de carne nesse Natal, de permanecerem em Loulé, pois eram
bons e naturais da vila e se obrigaram a fornecer a dita carne17.

14
Actas de Vereação de Loulé, acta de 28 de Junho de 1402, pp. 90-91.
15
Ibidem, pp. 40-41.
16
Note-se que não é especificada a unidade de medida a que se refere o preço. É provável que se trate do
arrátel, equivalente a 340 g.
17
Actas de Vereação de Loulé, ob. cit., acta sem data, p. 68.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Não interessa, contudo, apenas a quantidade da carne, é fundamental a


qualidade do produto e a relação entre a qualidade e o preço praticado. O
concelho adverte os carniceiros de que não podem vender a carne toda ao
mesmo preço do primeiro dia que é talhada; ou seja nos dias seguintes ao talhe
da carne o seu preço baixava para metade e quem não cumprisse tal postura
pagaria de coima duas libras18.

Outra disposição que demonstra a preocupação do concelho em defender o


consumidor, prende-se com o talhar a carne no Verão. A carne destinada a ser
vendida no domingo devia ser talhada no sábado à tarde e não de manhã, para
evitar que se deteriorasse com o calor19. Trata-se, pois de uma medida de saúde
pública.

Apesar de se considerar a cidade medieval uma cidade suja, a verdade é que, já


então existiam medidas que visavam prevenir doenças, epidemias, pestes e que
traduziam uma preocupação com a higiene e saúde pública20.

Em relação às condições em que a carne é vendida, encontramos uma postura


que proíbe quer a mistura dos diferentes tipos de carne, quer a mistura de
unhas, pés e cabeças dos respectivos animais expostos no talho 21. Para além da
questão higiénica, a postura visa de igual modo evitar que o consumidor compre
“gato a preço de lebre”.

18
Ibidem, acta de 12 de Maio de 1403, pp. 125-126.
19
Ibidem, acta de 23 de Junho de 1403, p. 133.
20
Encontramos medidas desse género tanto em Loulé, como nas posturas antigas de Lisboa, como por exemplo
a postura datada de 28 de Junho de 1458 – Ordenação do varrer as Ruas na qual o corregedor e vereadores de
Lisboa mandam que todos os seus habitantes, desde a Páscoa até S. Miguel em Setembro varram a rua em
frente à sua porta e levem diariamente o lixo para a ribeira. Quem não o fizesse pagaria cinquenta libras de
coima. Este é apenas um exemplo, que recai sobre um período concreto, que é o mais quente do ano, logo o
que representa um maior perigo de propagação de epidemias, in: Livro das Posturas Antigas da Câmara de
Lisboa, Leitura paleográfica e transcrição de Maria Teresa C. Rodrigues, Lisboa, 1974.
21
Actas de Vereação de Loulé, acta de 17 de Novembro de 1403, pp. 146-147.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

A vida económica concelhia é controlada e regulamentada pelo próprio poder


local, porém a crescente centralização e afirmação régia reflecte-se nos
concelhos, que acabam por ocupar um lugar “entre poderes”22. Por um lado são
um apoio do monarca; por outro contestam o seu poder. Na realidade é o rei
que, através dos seus regimentos, tem a última palavra a dizer sobre as
actividades económicas locais. É o que nos mostra o Regimento régio de 148723,
registado no livro de actas do concelho, onde na primeira coluna surgem as
carnes de talho, pela seguinte ordem: cordeiros, cabritos, leitões, patos,
galinhas, frangos, perdizes, capões, ovos e caças. Através desta extensa
listagem podemos conhecer e deduzir quão variada seria a alimentação
medieval, neste caso no que se prende com espécies animais disponíveis no
mercado.

1.1.4. Pescado

Loulé não é propriamente uma vila do litoral, no entanto, a proximidade da costa


faz com que o pescado seja um produto importante na dieta alimentar dos
louletanos na época em estudo.

Tanto assim é que são várias as actas que contemplam tal assunto,
nomeadamente no que respeita aos preços, às formas de venda, ao
abastecimento suficiente de pescado, matérias que estão sob alçada do poder do
município, à semelhança do que já verificámos para a carne.

O local de venda devia ser sempre o mesmo, na praça, para que fosse possível o
controlo do concelho. Porém alguns habitantes da vila tentavam vender
sardinhas e outros pescados em casa, certamente para ficarem longe do olhar
fiscalizador do almotacé.

22
Vide: Maria Helena da Cruz COELHO, “ «Entre Poderes»- Análise de alguns casos na Centúria de
Quatrocentos”, Separata da Revista da Faculdade de Letras, Porto, 1989, pp. 103-135.
23
Actas de Vereação de Loulé, acta de 28 de Setembro, p. 229.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Para garantir que tal não acontecia, a vereação decidiu, por postura, que aqueles
que trouxessem o pescado até à vila, seriam obrigados a dirigir-se à praça –
local onde se efectuaria a venda – e mostrá-lo aos almotacés 24. Garantir que o
pescado se vendesse sempre na praça era extremamente importante, em
primeiro lugar, porque assim todos sabiam onde adquirir o produto e, por outro
lado, os almotacés também conseguiam controlar os vendedores mais
facilmente, evitando fraudes e enganos.

O pescado era comprado em Faro e em Tavira, mas segundo o número de


referências a Faro parece que este era adquirido maioritariamente nessa cidade,
o que é normal, pois Faro situa-se muito mais perto de Loulé do que Tavira. Em
Faro, as cabeças de peixota (pescada), eram oferecidas, mas em Loulé chegaram
a vendê-las. O concelho ao tomar conhecimento de tal “negócio”, proibiu, por
postura a venda das cabeças do referido peixe25.

O pescado fazia parte da dieta alimentar de Loulé nos séculos XIV e XV, nos
“dias do pescado”, que eram três dias por semana - quarta-feira, sexta-feira e
sábado - os regatães tinham de garantir o “mantimento de suas jentes” 26; uma
vez mais o concelho demonstra a enorme preocupação com o abastecimento da
vila, desta vez em matéria de peixe, como já objectámos para o pão e para a
carne.

Os preços do peixe também eram tabelados por postura27. Essa postura oferece-
nos uma preciosa informação sobre as espécies de peixe vendido em Loulé. As
mais apreciadas e que não se vendiam a peso, mas segundo a avaliação dos
almotacés, eram as corvinas, os pargos e as pescadas. Entre as espécies
vendidas a peso destacavam-se os linguados e os sáveis, tabelados a 6 reais o
arrátel. Seguia-se o pescado de escama, a 4 reais o arrátel e por fim, o pescado
de coiro, como a raia e o cação, a 3 reais o arrátel.

24
Ibidem, acta de 22 de Dezembro de 1403, p. 149.
25
Ibidem, acta de 2 de Fevereiro de 1404, pp. 154-155.
26
Ibidem, acta de 4 de Fevereiro de 1408, p. 162.
27
Ibidem, acta de 17 de Março de 1408, p. 167.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1.5. Vinho

São apenas três as actas que mencionam a questão do vinho28. O facto de não
existirem mais referências a este produto, não significa escassez de produção ou
consumo reduzido do mesmo. A vinha, como já mencionámos, era a cultura mais
protegida no concelho e era sem dúvida uma cultura importante, visto que o
vinho era a bebida mais consumida na Idade Média, sacralizada no ritual da
eucaristia onde se transforma em sangue de Cristo.

Duas destas actas tratam do relego, direito régio que estava consagrado no foral
de 126629. Correspondia ao monopólio da venda do vinho do rei, durante três
meses do ano, o que podia prejudicar os demais produtores porque punha em
perigo a conservação do vinho e diminuía a procura no mercado. No entanto sem
licença do relegueiro, em Loulé, ninguém tinha o direito de vender o seu vinho
antes da data estabelecida, sob pena de pagar uma coima. A necessidade de
relego é sintoma de produção abundante de vinho.

Um dos pedidos levados pelo concelho louletano às cortes de Coimbra, foi


exactamente, para que o relego nessa vila não fosse superior ao de Faro e de
Tavira. Preocupações de carácter económico, demonstradas por tal pedido em
cortes30.

A forma de venda do vinho é igualmente regulamentada por postura. Nenhum


vendedor de vinho devia vender o produto sem o auxílio do funil, “qualquer
pesoa que vinho medir sem fonil que pague de coima pera o Concelho (...) dez
reaaes”31. O objectivo desta postura era, sem dúvida, proteger o consumidor.

28
Ibidem, acta de 9 de Janeiro de 1385, pp. 25-26; acta de 2 de Abril de 1385, pp. 41-43; acta de 4 de Agosto de
1403, p. 138.
29
Isilda Maria Pires MARTINS, O Foral de Loulé de 1266, Câmara Municipal de Loulé, 1989, p. 25.
30
Actas de Vereação de Loulé, ob. cit., acta de 2 de Abril de 1385, pp. 41-43.
31
Ibidem, acta 4 de Agosto de 1403, p. 138.
10
A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1.6. Azeite

Geralmente associado ao cultivo da vinha está o cultivo da oliveira, espécie


difundida pelos muçulmanos e que marca, indiscutivelmente, a paisagem
meridional.

O aumento do cultivo da oliveira, que traça um caminho inverso ao da


Reconquista, sem, contudo, ultrapassar muito a linha do Mondego, está
associado à produção de azeite.

O azeite é a gordura mais utilizada na Idade Média, quer por cristãos, quer por
muçulmanos. É utilizada na cozinha e também na iluminação.

Loulé, concelho situado a sul, antigo centro urbano muçulmano, como não
poderia deixar de ser, possuía lagares de azeite.

Através das posturas municipais referentes aos lagares de azeite 32, sabemos que
os donos dos lagares não eram os donos dos olivais. As azeitonas não deviam
ser moídas sem que o concelho dissesse qual a quantidade a moer, para evitar o
desperdício da azeitona.

No caso dos lagares de azeite o concelho adquire uma posição conciliadora entre
os produtores da azeitona e os donos dos lagares. Uma vez mais a preocupação
é o cumprimento da ordem de forma justa, para ambos os intervenientes neste
negócio do azeite, vital para o consumo da vila.

Como foi possível verificar, ao longo da nossa análise o abastecimento de bens


alimentares é um assunto sempre presente no psicológico colectivo medieval.

32
Ibidem, actas de 20 de Novembro de 1402, p. 107 e de 28 de Outubro de 1487, pp. 237-241.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Tanto que quando algum mester não abastece a vila com os bens essenciais é
punido, como no caso dos carniceiros que quase foram expulsos de Loulé ou
daqueles que chegaram mesmo a ser presos33.

Há o controlo e fiscalização dos preços, pesos, medidas, locais de venda, enfim,


tudo o que esteja relacionado com actividades comerciais, pois só assim o
governo concelhio consegue garantir ao consumidor comum o seu sustento
diário, quer em quantidade, quer em qualidade!

33
Ibidem, acta sem data, p. 68 e acta de 28 de Junho de 1402, pp. 90-91.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

2. Hábitos alimentares dos louletanos nos tempos medievos

A alimentação continua a ser um aspecto mal conhecido da vida do homem


medieval, devido, essencialmente à falta de fontes directas. O primeiro livro de
cozinha português conhecido, remonta já ao século XVI34.

Os banquetes, as festas da realeza e até os livros de despesas dos conventos35 e


da casa real36 permitem uma análise em relação ao que as camadas sociais mais
altas comiam. No que respeita à dieta alimentar do povo, as informações são
mais escassas, não sendo, no entanto, inexistentes37.

Através das actas de vereação de Loulé dos séculos XIV e XV, podemos conhecer
os alimentos que constituíam a dieta alimentar de então.

Outros documentos que nos forneceram elementos relativos à alimentação, são


os forais da vila; quer o foral de 1266, quer o foral manuelino de 150438. Apesar
deste último ser já do século XVI, acreditamos que o tipo de produtos
alimentares consumidos nos dois séculos precedentes não seriam muito díspares
dos referidos no Foral Novo39.

Ao que tudo indica, já em tempos medievais, a carne era muito apreciada e por
isso mesmo muito consumida, e estaria maioritariamente presente nas mesas
mais abastadas40.

34
Estudado por Maria José AZEVEDO, “O Mais Antigo Livro de Cozinha Português ”, in: A Alimentação em
Portugal na Idade Média, INATEL, Coimbra, 1997, pp. 35-66.
35
Para Santarém o estudo de Maria Ângela BEIRANTE, “A Alimentação”, Santarém Quinhentista, pp. 247-252.
36
Maria José AZEVEDO, ob. cit., “O Peixe e a Fruta na Alimentação da Corte de D. Afonso V”, pp. 1-33 e ainda
Iria GONÇALVES, “Acerca da Alimentação Medieval”, in: Imagens do Mundo Medieval, Livros Horizonte, Lisboa,
pp. 201-217.
37
Maria Helena da cruz COELHO, “Apontamentos Sobre a Comida e Bebida do Campesinato Coimbrão em
Tempos Medievos”, in: Homens, Espaços e Poderes, Séculos XI – XVI – I – Notas do Viver Social, Livro
Horizonte, Lisboa, pp. 9-22.
38
CMLLE / A / 001 / LV001.
39
O Foral Novo torna-se quase num foral de portagem, havendo a preocupação de contemplar todos os produtos
que entravam e saíam da vila. Sobre o assunto veja-se: Maria Ângela BEIRANTE, Introdução à Edição
Facsimilada do Foral Manuelino de Évora, Câmara Municipal de Évora, Imprensa Nacional Casa da Moeda,
Évora, 2001, pp.11-40.
40
Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., p. 247 e Iria GONÇALVES, ob. cit., p. 203.
13
A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Como foi possível constatar através das actas de vereação, a variedade de


espécies disponíveis no talho era vasta, desde carneiro, porco, vaca, a aves de
criação e caça.

Apesar de conhecermos as carnes que constituíam a alimentação medieval, nada


podemos adiantar quanto ao modo como estas seriam confeccionadas.

Não podemos esquecer que os animais não fornecem somente a carne, isto do
ponto de vista alimentar. A manteiga, o queijo e a banha, faziam, igualmente,
parte do quotidiano alimentar dos homens medievais41. Os ovos, embora não
sendo carne de talho, são mencionados no regimento régio junto das carnes de
talho, tal era a estreita relação entre os animais e os seus derivados.

Como já foi referido o pescado também está presente na mesa do homem


medieval. Há autores que sublinham a preferência pelo consumo da carne,
limitando deste modo o consumo de peixe às prescrições religiosas42, isto por
parte das camadas sociais mais elevadas, porque para as camadas populares o
pescado constituía um alimento comum.

O pescado podia ser consumido fresco, o que provavelmente acontecia na vila de


Loulé, visto que em três dias da semana era vendido peixe fresco no mercado da
vila. Encontrámos, na documentação consultada, referência à secagem do
pescado43 (não é especificada a espécie) antes deste ser levado para Castela.
Ora, para Castela era exportada pescada seca44, donde se conclui que, para além
do consumo interno de pescado este, depois de seco, era vendido para Castela.

41
Sobre o assunto veja-se: Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., e Maria José AZEVEDO, ob. cit..
42
Vide A. H. Oliveira MARQUES, A Sociedade Medieval Portuguesa – Aspectos da Vida Quotidiana, “A Mesa”,
5.ª Edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987, pp. 9-10.
43
Actas de Vereação de Loulé, ob. cit., acta de 1468, pp. 199-200.
44
A. H. Oliveira MARQUES, ob. cit., p.11.
14
A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Para além da secagem, um outro método de conservação muito difundido na


época medieval é a salga. No foral medieval da vila, o monarca guarda para si o
monopólio de todas as salinas de Loulé e seu termo, construídas e a construir 45.
Ao lado dos frutos secos, o sal era um dos principais produtos de exportação.

Ainda no primeiro foral de Loulé, o rei reserva para si a pesca à baleia46,


salientando deste modo a fonte de riqueza que constituía tal actividade
piscatória.

Em relação ao marisco, o foral manuelino refere apenas o “que se leva pera


Castella ”, contudo não nos diz qual. Ao que tudo indica a amêijoa, o berbigão e
as ostras47 eram “petiscos” já apreciados na época.

Os legumes, hortaliças e frutas eram abundantes na Idade Média. Em Loulé, nas


actas surgem inúmeras referências a hortas e a pomares, o que nos remete para
a riqueza do concelho quanto aos produtos dai provenientes, mas não fornecem
referências concretas aos mesmos.

Na carta de foral do século XIII, o rei retêm para si: “a horta que costumava
deter D. Martim Gil”48, que passou a designar-se de Horta d’El Rei; bem como o
figueiral que pertencera a Domingos Rodrigues. A detenção destas propriedades
por parte do rei mostra o papel fundamental dos legumes, hortaliças e frutas, em
particular do figo, quer no abastecimento e economia locais, quer no que
respeita à exportação.

Tal como acontecia com o pescado, os legumes e hortaliças não eram muito
apreciados pelas camadas sociais mais ricas, no entanto, na mesa dos menos
favorecidos estes produtos eram muito consumidos e constituíam um
complemento alimentar importante49.

45
Isilda Maria Pires MARTINS, ob. cit., p. 31.
46
Idem, ibidem, p. 32.
47
A. H. Oliveira MARQUES, ob. cit., p. 10 e Maria José AZEVEDO, ob. cit., “O Peixe e a Fruta na Alimentação da
Corte de D. Afonso V”, p. 6.
48
Isilda Maria Pires MARTINS, ob. cit., p. 33.
49
Maria Helena da Cruz COELHO, ob. cit., p.12.
15
A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Curiosamente encontrámos, em duas sessões de vereação, o pedido de férias


por parte dos oficiais do concelho, para apanhar, num dos casos as suas
“novidades”50 e no outro para a apanha do pam51.

As “novidades” a que se referem os oficiais são os figos e passas, produções de


extrema importância económica, pois como mencionámos anteriormente o figo
era um produto de exportação, assim como as passas, nomeadamente para
exportação de longa distância, para: Flandres, Brabante ou as cidades alemãs da
Hansa52.

No foral de 1504 são referidos: castanhas, nozes verdes e secas, ameixas,


alfarrobas, amêndoas, azeitonas, laranjas, avelãs, pinhas e pinhões, bolotas,
romãs, grãos, favas secas, lentilhas e feijões. Como se pode verificar a
variedade, quer de fruta, quer de legumes, era já quase tão vasta como a actual.

Os alhos secos e cebolas já eram utilizados na cozinha da época, apenas para


temperar – adubar – ou, juntamente com o azeite para a confecção do
tradicional refogado53. No Foral Novo54, encontrámos referências a estes
produtos, certamente presentes na cozinha louletana de então.

Na confecção dos doces medievais o mel era de uso generalizado, e mais barato
que o açúcar55. O mel era um produto que existia em Loulé, pois encontramos
várias referências, tanto nas actas, como no Foral de 1504.

A produção da vinha, como ficou dito atrás, surge inúmeras vezes referida nas
actas de vereação, sendo as vinhas a espécie mais protegida no concelho de
Loulé durante o período em estudo56.

50
Actas de Vereação de Loulé, acta de 10 de Agosto de 1394, pp. 58-60.
51
Actas de Vereação de Loulé, acta de 8 de Junho de 1408, pp. 196-197.
52
Vide: Manuela Santos SILVA, “Para o Estudo da Produção Frutícola do Concelho de Loulé”, in: Actas das III
Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia, Câmara Municipal de Loulé, 1989, pp. 255-264.
53
Iria GONÇALVES, ob. cit., p. 207.
54
CMLLE / A / 001 / LV001.
55
Sobre a utilização do açúcar na doçaria portuguesa, vide: Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., p. 252.
56
Maria Ângela BEIRANTE, “art. cit.”, pp. 231 – 242.

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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Apesar de não encontrarmos referências directas ao consumo de vinho, sabemos


que este é a bebida medieval por excelência; podia ser bebido simples ou
misturado com água, bebia-se às refeições, ou apenas para matar a sede. O
verbo beber, na Idade Média significa beber vinho!

Lado a lado com o vinho, encontramos, para a época medieval, o pão! O pão é
um dos alimentos base da alimentação medieva.

Devido à falta de cereal, “pão” não era sinónimo de pão de trigo. O pão dos ricos
era alvo, feito de trigo, o cereal nobre; enquanto que o pão dos pobres era
escuro, de mistura, por vezes até com mistura de três cereais: centeio, milho-
miúdo e cevada. Era um pão de segunda. O pão de trigo para os mais
desfavorecidos era apenas consumido em dia de festa!

A base da dieta alimentar medieval é constituída pelo pão e pelo vinho. O pão é
sem dúvida alguma, presença obrigatória, quer na mesa dos ricos, quer na dos
pobres, com as respectivas diferenças. De facto, o enorme cultivo que se faz de
cereal por todo o país, inclusivamente em zonas onde os solos não se mostram
férteis para tal cultura e a necessidade de importar pão do estrangeiro, só se
justifica devido ao seu enorme consumo, consumo esse associado ao consumo
de vinho.

Para além destes dois elementos básicos a nível da alimentação na Idade Média,
vimos ainda que a carne, principalmente no que respeita aos gostos dos mais
abastados, era muito apreciada, com destaque para a carne de carneiro.

Por outro lado o povo, tentava complementar a sua pobre dieta alimentar com
pescado, legumes e fruta fresca. Esses legumes e frutos eram provenientes de
pequenas hortas situadas nos próprios quintais, denunciando deste modo a
existência de uma produção de auto-suficiência, que por vezes podia ser
excedentária e por isso vendida no mercado da vila, ou ser mesmo exportada
servindo, também, como um complemento económico e não apenas alimentar.

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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

2.2. Aculturações alimentares

Não podemos esquecer que a Europa Mediterrânea, nomeadamente a Península


Ibérica, sofreu uma profunda aculturação, devido à longa permanência dos
muçulmanos, nos actuais territórios da Andaluzia e Algarve.

A herança árabe, como é sabido, reflecte-se nos mais diversos campos; reflecte-
se de igual modo na alimentação.

Afinal a fronteira entre o mundo cristão e o mundo muçulmano é por vezes


ténue, neste território que é hoje Portugal e Espanha.

Em relação à alimentação medieval portuguesa, encontram-se algumas


semelhanças com a alimentação árabe57, o que denuncia, desde já uma certa
continuidade e não, necessariamente uma ruptura entre estes dois mundos em
confronto no movimento designado de “Reconquista Cristã”.

Pelo que se conhece da cozinha árabe, à semelhança do que verificámos no mais


antigo livro de receitas portuguesas58 as receitas de carne são as mais
numerosas, sendo as carnes de talho, aves de capoeira e de caça, a grande
diferença reside na carne de porco, que não é consumida pelos muçulmanos.

O carneiro é, nas duas dietas, a carne mais apreciada. As aves de capoeira


também eram muito consumidas e a sua criação bastante frequente, até mesmo
nos centros urbanos.

Uma herança directa da cozinha árabe são as almôndegas, como Maria Ângela
Beirante evidência no seu estudo sobre Santarém Quinhentista59.

57
Sobre este assunto: História da Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, Dir. de Jean – Louis Flandrin e
Massimo Montanari, XX Capítulo, Bernard ROSENBERGER, “A Cozinha Árabe e o Seu Contributo para a
Cozinha Europeia ”, Terramar, Lisboa, 1998, pp. 305 – 323.
58
Maria José AZEVEDO, “O Mais Antigo Livro de Cozinha Português ”, ob. cit., pp. 35-66.
59
Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., p. 251.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

O número de receitas de peixe conhecido é reduzido, quando comparado com as


receitas de carne, certamente por se tratar de um alimento menos apreciado,
como atrás foi dito.

Os legumes, que variam bastante de região para região, como é evidente,


desempenham um papel importante na alimentação dos grupos sociais mais
baixos, tal como já tínhamos referido para o caso português dos séculos XIV e
XV. Não podemos, no entanto, deixar de sublinhar o consumo da fava e do
feijão, sem dúvida, de tradição muçulmana mencionados no Foral Manuelino de
Loulé.

De acrescentar ainda o enorme uso do alho e da cebola, considerados


ingredientes básicos na cozinha árabe. Apesar de não se consumir vinho, o
vinagre é muito utilizado, assim como o agraço e o sumo de citrinos,
exactamente como acontece na Europa cristã.

Ao contrário do que se possa pensar, a vinha era cultivada pelos muçulmanos,


que utilizavam o vinagre para tempero e confecção de pratos e apreciavam
também as passas e as uvas quando estas eram muito doces.

Os figos são igualmente apreciados, tanto por cristãos como por muçulmanos.
Aliás as uvas e os figos eram os únicos frutos considerados bons para a
alimentação. Geralmente os demais frutos eram cozinhados, serviam de
acompanhamento aos pratos de carne ou podiam ser transformados em
deliciosas geleias e xaropes.

Não podemos ficar indiferentes à enorme importância da uva e do figo na


alimentação muçulmana, sem esquecer a importante produção de passas, figos e
amêndoas no concelho de Loulé nos século XIV e XV, e sua posterior exportação,
prática enraizada nesta tradição muçulmana.

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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Nos costumes muçulmanos entronca, sem dúvida, a doçaria regional algarvia


que tem como base o maçapão, massa (lawzinadj) feita de amêndoas moídas e
açúcar60 e os doces que têm como base fundamental: amêndoas, nozes,
pistácios, tâmaras, açúcar, mel e canela61, as filhós, exemplo da herança árabe a
nível culinário, ainda fazem parte da doçaria portuguesa, perpetuando desde
modo as nossas raízes muçulmanas!

Uma outra prova da forte ligação entre as cozinhas árabe e portuguesa


encontramo-la no Livro de cozinha da Infanta Dona Maria, do início do século XVI
que “apresenta várias receitas cuja origem árabe é evidente. Entre elas
aparecem doces: o alfitete, gulodice de farinha e mel cozida a vapor (árabe
alfitât), as almojavenas, onde se reconhecem facilmente os mujabbnât, aquelas
filhós com queijo fresco que os habitantes de al – Andalus adoravam, alfeloas (al
- halâwat) e maçapães. Também aparecem duas receitas de galinha: uma
galinha mourisca, com um nome revelador, em que entra contudo, toucinho, o
que revela uma adaptação, e uma galinha albardada (do árabe al – barda’),
cujos pedaços são fritos depois de serem mergulhados em ovos batidos”62.

Como ficou evidenciado muito ficou da alimentação árabe em Portugal, quer de


forma directa, quer com algumas adaptações à nova realidade, como é o caso da
utilização de toucinho, numa receita certamente mourisca!

A gordura animal – banha e toucinho – frequentemente utilizada no mundo


cristão, não fazia parte da cozinha árabe, pois era proveniente do porco, assim
sendo a gordura mais utilizada era o azeite.

Ao lado do azeite surge a manteiga, que era muito utilizada na cozinha árabe.
Para adubar usava-se uma manteiga de conserva, fundida e clarificada. A
manteiga fresca era comida no pão.

60
In: História da Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, “art. cit.”, p. 318.
61
Vários destes ingredientes são, também, grandemente utilizados no século XVI pelas freiras de St.ª Clara de
Santarém, na confecção de doces.
62
História da Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, “art. cit.”, p 321.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Utilizavam-se do mesmo modo outros lacticínios na culinária. O leite servia para


cozer o arroz, e azedo entrava em numerosas receitas. O queijo fresco ou seco
servia para dar gosto, ou simplesmente para ligar os outros ingredientes.

Os ovos serviam, basicamente, para ligar ingredientes, à semelhança dos


referidos anteriormente. Na Europa cristã os ovos são largamente consumidos, o
que não é de estranhar devido à criação de aves de capoeira ser uma prática
bastante difundida em período medieval, como já foi evidenciado.

As aculturações alimentares, nomeadamente no que respeita às influências


árabes na nossa culinária, devem ser abordadas numa perspectiva multifacetada,
sem nunca esquecer que para além das influências exercidas durante os séculos
de ocupação islâmica, houve uma evolução regional da cozinha.

Não podemos, negar a introdução de novos produtos, pelos mouros, que criaram
deste modo novos gostos, novas tendências, como a utilização de especiarias, o
açúcar63 e de algumas espécies de legumes e frutos.

Até ao século XV foram os muçulmanos a ditar o gosto pelo doce e pelo picante,
mas com a chegada, ao, que os europeus de então baptizaram de, Novo Mundo,
houve uma alteração do gosto, consequência da busca pelo exótico e
desconhecido e com a introdução de novos produtos – milho, tomate, pimento,
batata – doce... – enfim todo um novo mundo de sabores a descobrir!

Após esta nossa viagem por entre os paladares de Loulé medieval, sem esquecer
os condimentos deixados pelos árabes no nosso património culinário, resta-nos
deixar o mote para a continuação da investigação e de trabalhos de divulgação
neste campo da alimentação, campo este fundamental para a História, pois a
alimentação é parte integral da condição humana e também ela sofreu uma
evolução, acompanhando o percurso do próprio homem.

63
Note-se que a utilização de especiarias e do açúcar, em contexto medieval, é limitado, devido ao elevado
custo destes produtos. Com a expansão marítima o consumo de especiarias e de açúcar difundiu-se um pouco
por todo o Velho Continente.
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A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Bibliografia

Fontes

- Actas de Vereação de Loulé Séculos XIV-XV, Separata da Revista Al’Ulyã,


N.º 7, Loulé, 2000.

- O Foral de Loulé de 1266, ed. de Isilda Maria Pires Martins, Câmara


Municipal de Loulé, Loulé, 1989.

- Foral Manuelino – CMLLE / A / 001 / LV001

- O “Livro de Cozinha” da Infanta D. Maria de Portugal, ed. de G.


Manupella e Salvador Dias Arnaut, Coimbra, 1967.

Estudos

- AZEVEDO, Maria José – A Alimentação em Portugal na Idade Média,


INATEL, Coimbra, 1997.

- BEIRANTE, Maria Ângela – Santarém Quinhentista, Lisboa, 1981.

- “ Relações entre o Homem e a Natureza nas mais Antigas Posturas da


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Medieval do Algarve e Andaluzia, Câmara Municipal – Universidade do Algarve,
Loulé, 1987.

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Municipal de Évora, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Évora, 2001.

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vizcaínas medievales: política comercial de las villas respecto al entorno y a su
interior”, in: La Ciudad Hispanica Durante Los Siglos XIII Al XVI, Tomo I,
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- COELHO, Maria Helena da Cruz – “ «Entre Poderes»- Análise de alguns


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Letras, Porto, 1989.

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Tempos Medievos”, Homens, Espaços e Poderes, Séculos XI – XVI – I – Notas do
Viver Social, Livros Horizonte, Lisboa, 1990.

- FLANDRIN, Jean – Louis e Massimo Montanari (Dir.) - História da


Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, Terramar, Lisboa, 1998.

- GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: Os


produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV - XV)”, Um olhar sobre a cidade
medieval, Patrimonia, Cascais, 1996.

- “Acerca da Alimentação Medieval” – Imagens do Mundo Medieval, Livros


Horizonte, Lisboa, s/d.

- MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura – A


Questão Cerealífera durante a Idade Média, Cosmos, Lisboa, 1978.

- A Sociedade Medieval Portuguesa – Aspectos da Vida Quotidiana, 5.ª


Edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987.

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- MATTOSO, José (Dir.) – História de Portugal – A Monarquia feudal, Vol.


II, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993.

- SILVA, Manuela Santos – “Para o Estudo da Produção Frutícola do


Concelho de Loulé”, Actas das III Jornadas de História Medieval do Algarve e
Andaluzia, Câmara Municipal de Loulé, 1989.

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