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ALBERTO VIEIRA
Para o madeirense a época mais festiva é sem dúvida a que abrange o Natal e Fim de Ano.
Deste modo o Natal é apenas designado de AFesta@, isto é, como que a querer dizer que o grande
momento festivo acontece sempre em Dezembro. Na ilha as festividades religiosas do nascimento
de Cristo aliam-se às profanas que marcam a mudança do ano. A tradição local, alia-se à alheia,
expressa na presença habitual de milhares de turistas. Em qualquer dos casos o espectáculo, as
tradições que o envolvem, inebriam-nos num misto de luz e cor. As iluminações públicas, o fogo de
artifício são as evidências deste folguedo que assume sempre um carácter colectivo de catarse para
residentes e forasteiros. Esta última folia no século XX foi apropriada pelas festas da cidade e
acontecia pela congregação do turismo com a vivência local. Para o madeirense a grande evidencia
foi sempre o Natal, mas paulatinamente o fim-de-ano foi-se impondo deixando de ser só para os
turistas. A tradição do fogo de artifício aliado às manifestações que assinalavam o momento com o
cortejo, contribuíram para esta mudança de atitude.
Foi a partir da década de trinta do século que começou a ganhar maior importância esta
manifestação festiva, uma vez que em 1932 foi criada uma Comissão das festas da cidade, que
tinha por missão coordenar todas as suas actividades de diversão. A partir daqui os festejos,
apoiados pelos comerciantes da cidade, ganharam uma nova dimensão na passagem do ano da
cidade. A manifestação espontânea de populares e hotéis no lançamento do fogo de artifício, que já
em 1911 era usual, passa a estar subordinada a esta estrutura que paulatinamente a transformou no
maior cartaz turístico da cidade e da ilha. Por outro lado, os festejos passaram a contar com um
momento solene no dia 30 ou 31, que constava sempre da recita ou concerto no teatro e de um
cortejo folclórico regional pelas ruas da cidade. O colorido da luz ganhou cada vez mais adeptos e
em 1938 houve mesmo uma Amarcha luminosa@. Estava aberto o caminho para a plena afirmação
das lâmpadas que passam a abrilhantar os espaços públicos, a iluminar as árvores e a definir o
contorno dos edifícios públicos e igrejas. Mais tarde o avanço tecnológico permitiu a estilização
figurativa que atinge no presente o clímax.
Os festejos do fim do ano, que estão agora sob a alçada da Secretaria Regional do Turismo e
Cultura, são o corolário das múltiplas vivências do passado em que o madeirense se mistura com o
forasteiro. Deste modo o historial do fogo de artifício do fim do ano, das iluminações e as tradições
natalícias locais não são fenómenos isolados e enquadram-se no fenómeno turístico que marcou a
vida da ilha a partir do século XVIII.
A 31 de Dezembro celebra-se a passagem do ano de acordo com o nosso calendário
gregoriano. E tal como os rituais pagãos de passagem nós continuamos a celebra-los do mesmo
modo. O fogo, a luz são elementos fundamentais e apresentam um poder de purificador e de
estigmatização do mal. Não temos dados seguros sobre a data exacta em que se começou a
comemorar a passagem de ano, mas certamente deve ser uma manifestação muito remota que se foi
adaptando às exigências dos tempos e às aportações dos forasteiros. O Padre Fernando Augusto da
Silva refere-nos estes festejos em 1923, explicando que era costume não muito antigo. Todavia
dados avulsos apontam que esta é mesmo uma vivência muito antiga.
Aos poucos esta festividade espontânea foi criando a sua estrutura organizativa e aquilo que
era o capricho de alguns transformou-se nas festas da cidade. Para isso foi necessária uma comissão
que desde 1932 teve a seu cargo a organização dos principais actos. A folia que assinalava a
passagem do ano tinha por palco os salões e hotéis, nomeadamente Reids e Savoy, mas iniciativa
desta “Comissão de Festas da Cidade” saiu para a rua. Esta abertura dos festejos do fim do ano
sucedeu em 1932 com um cortejo luminoso. Entretanto em 1936 foi criada a Delegação de Turismo
da Madeira que passará a ter a seu cargo os festejos. A Madeira era uma estância privilegiada de
turismo invernal e a aposta nestes festejos contribuiu para reforço dos aliciantes oferecidos aos
visitantes.
Pompa e circunstância dominaram as passagens do ano da década de trinta até que a II
Guerra Mundial, a partir de 1939, veio apagar a alegria esfuziante do madeirense. O Natal de 1939 e
os que se seguiram foram de luto. As dificuldades no campo e na cidade eram evidentes. Os hotéis
fecharam por falta de turistas pelo que ninguém se lembrava de evocar a passagem do ano, estando
todos de olhos postos no que se passava no centro da Europa. Deste modo até 1946 não se celebrou
oficialmente a passagem do ano. Apenas em 1945, já acabado o pesadelo da guerra, tivemos os
primeiros festejos com fogo de artifício. O retomar das festas da cidade sucedeu apenas em 1946.
Mesmo assim estas eram quase só reservadas aos madeirenses uma vez que os hotéis permaneciam
encerrados e os turistas teimavam em não aparecer. O Reid=s Hotel só abriu as portas em 8 de
Dezembro de 1949. No ano anterior a Casa da Madeira em Lisboa havia trazido ao Funchal um
grupo de 600 excursionistas para assistir aos festejos do fim-do-ano.
Durante muito tempo os festejos do fim-do-ano resumiram-se ao fogo de artifício, aos saraus
dançantes e desfiles etnográficos. O colorido das lâmpadas é uma novidade, já entrados no século
XX. A luz eléctrica havia chegado ao Funchal em 1897 por mão dos ingleses. Em 1949 terminada a
concessão aos ingleses a câmara criou os serviços municipalizados de electricidade que não foram
capazes de assegurar um adequado serviço. Deste modo em 1952 tal missão passa para a alçada da
Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, um serviço público com a
função de proceder à produção, transporte e distribuição de energia eléctrica em toda a ilha. O
consumo e a exigência da energia eléctrica aumenta de acordo com o incremento do turismo e
obrigam a elevados investimentos. As décadas de cinquenta e sessenta marcadas crise da energia
foram fatais.
Para o madeirense o NATAL e o FIM DO ANO, foram sempre um momento comum,
conhecido como a FESTA. Aos poucos tivemos que seguir o exemplo dos demais para não
perdermos o processo dito de modernização. Com o tempo tudo foi mudando até atingirmos o
patamar da globalização que hoje entra pelas nossas casas adentro sem dó nem piedade.
Todos estamos contagiados por estas circunstâncias e ninguém fica alheio aos apelos da
publicidade e do mercado, mesmo em tempos de “crise”. Para muitos, como nós, que lutam
pela diferença e preservação da nossa senha de identidade, a convivência com estes momentos
apresenta-se com algum estranho e sentimo-nos extra-terrestres nesta histeria colectiva. Mas,
mesmo assim, não devemos manter-nos apenas como espectadores deste sazonal espectáculo
que nos rodeia, pois que deveremos lutar para manter e estabelecer a diferença, com algum
sacrifício ou o comentário ingrato de alguns. Mesmo assim, este apelo e reavivar, ainda que só
pela escrita, poderá ser um oásis neste deserto que a massificação e a sociedade global nos
impõem e nos quer arrastar para o turbilhão das multidões.
Cabral do Nascimento
NATAL... NATAIS
Voz de menino.
Natal... Natais...
Um ramo de oliveira;
Natal... Natais...
Cabral do Nascimento
POEMA DO NATAL
(Aos que sonham, amam e sofrem)
tão triste.
carregando o sofrimento,
pesado,
negro,
violento,
em alegrias desfeitas,
vibrantes,
suspensas
—Natal! Natal!
pobre e desgraçado
eternamente cuspido
eternamente ultrajado.
Cristo!—eis o amor,
João França
O natal na voz dos poetas madeirenses. Antologia organizada por José António
Gonçalves, Funchal, 1989
A FESTA NA VOZ DOS LITERATOS MADEIRENSES
TEXTOS EM PROSA SOBRE A TRADIÇÃO MADEIRENSE DO NATAL
Funchal. 1999
Cabral do Nascimento
Eduardo Pereira
Jayme Câmara
Maria Lamas
O NATAL DE HA TRINTA ANOS
Diz-se que é festa de todos e, em especial, da família: nada, portanto, mais favorável à
ideia de colectividade. Contudo, na Madeira, o sentimento que ela gera é perfeitamente
individualista. Cada pessoa tem o «seu» Natal, isto é, sente-o à sua maneira; e,
comungando embora com os mais nessa euforia ecuménica, guarda no íntimo, para si
apenas, recordações particulares, anseios próprios, -saudades intransmissíveis, um
mundo de coisas imponderáveis e inexplicáveis.
Em que difere dos outros este Natal isolado no meio do Atlântico? Por ser mais florido,
mais tépido? Por ser aquecido por um sol que transluz entre nuvens, e embalado por um
mar cor de pérola, que se move sem pressa, como um desdobrar lento de sucessivas
folhas de estanho? Por ter festoes de giestas e grinaldas verdes de alegra-campos, e
frutos da flora tropical, e presépios de conjuntos anacrónicos? Por causa daquele
silencio de chumbo, soturno e opressivo, abafado e elástico, entrecortado aqui e além
pelo rebentar dos petardos? Pela circunstancia rara de toda a gente ficar de portas
adentro, no dia principal, a gozar a sua festa num egoísmo quase feroz que parece
excluir toda a ideia de comunicação com os estranhos ?
Quando eu nasci ainda havia freiras entre os muros arruinados de Santa Clara e das
-Mercês, em cujas cercas, à tarde, se abriam as longas campânulas das alturas para
espalhar na atmosfera esse perfume insidioso, denso, perturbante, que ao mesmo tempo
envenena e delicia. Elas, as monjas velhas, é verdade que já não tinham este nome:
intitulavam-se recolhidas e estavam para ali abandonadas como as pedras dos claustros.
Quem diria pertencerem à mesma congregação que no princípio do século anterior
festejara o Natal com uma ceia em que se consumiram vinte e três galinhas para um
total de trinta bocas, e se gastaram cento e noventa libras de açúcar no confeito da
argolinha ? Todavia, dali emanavam ainda as melhores espécies de bolo de mel, os
segredos do farte e da raspadeira, do cuscuz para o desfeito, dos sonhos pelo Entrudo da
Quaresma, da talhada de amêndoa em Quarta-feira de Cinzas, do manjar preto, do arroz
doce em Domingo de Ramos. Extintos os conventos, laicizaram-se as receitas da copa
regional. As donas de casa rivalizaram, nesse ponto, com as franciscanas. Mais uma
razão para que a quadra festiva decorresse entre penates—e que as ruas, finda a labuta
do mercado, tombassem numa sonolência de três dias, sob um sossego morno e
extenuante.
«Se o Natal se estendesse a todos os meses, o mundo seria muito diverso», escreveu
algures Charles Dickens, a quem o advento do Menino Jesus inspirou tão belas páginas
de prosa. Diverso, sem dúvida, mas também fastidioso. Penso, pelo contrário—e sejam
quais forem as razões pelas quais se ambiciona, com tamanho afã, esse regresso ao ciclo
natalício—que o seu maior encanto reside precisamente no caso de ser só uma vez em
cada ano. Ai de nós, se não esperássemos por qualquer coisa, certa ou incerta! Aguardar
o Natal constituía para as crianças do meu tempo a mais bela expectativa da sua vida.
Quando ele chegava não direi que se produzisse o desengano, mas uma tal ou qual
saciedade insatisfeita, por mais paradoxal que isto pareça.
Das vésperas as festas, diz o rifão. Esta, de que falo, principia com tão complicados e
minuciosos preparativos que chega a parecer, no fim de contas, pretexto para reformas
domésticas em vez de glorificação duma data célebre. Nas casas, a limpeza a que se
procede não exclui a própria caiação das paredes; nos diversos arranjos que se seguem
está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da
mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em
primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, cm especial de
tangerina e amêndoa. Aquela constitui uma das mais fortes tradições insulanas, e dir-se-
ia inventada por um espírito faceto que porfiasse em misturar os ingredientes mais
antagónicos, desde as especiarias— canela, pimenta, noz moscada, cravinho _ ao
açúcar, à farinha, à manteiga, à banha de porco Há, na sua confecção, como que um
ritual: depois de amassado, o bolo de mel, com uma cruz desenhada a toda a sua altura e
largura, fica a levedar durante três dias dentro de um alguidar, antes de ser cozido. E,
por mais estranho que isto se afigure, ninguém, ao comê-lo, terá dúvida em confessar
que lhe parece muito bom.
Se alguma diferença existe entre estes preparativos do Natal ilhéu e os que se faziam
para o enterro dum faraó do Egipto, ela repousa apenas no facto de o sono dum
Tutacamão ou dum Ramezes durar uma eternidade, em lugar das setenta e duas horas
que se precisam para o recolhimento do português da Madeira nas suas festas
consagradas ao nascimento de Cristo. Fora disso, há os mesmos cuidados escrupulosos
nos pormenores da limpeza e decoração do interior, a mesmas exigências quanto às
provisões de boca, o mesmo zelo no vedar de todas as fendas por onde possa, acaso,
transmitir-se qualquer comércio com a vida externa.
O padeiro forneceu o pão destinado ao consumo que deva fazer-se no dia 25 e nos
seguintes, que têm o nome de oitavas. A carne de porco está de há muito nas
salgadeiras, coberta de vinho, vinagre, malagueta c folhas de louro. As hortaliças são
constantemente refrescadas, a fim de não perderem o viço. Distribuiu-se a fruta pelos
sítios mais arejados. Tudo está a postos. Desgraçado daquele que se esqueceu de
adquirir com antecedência algumas dessas pequeninas coisas indispensáveis ao manejo
culinário, um dente de alho, pimenta, sal fino ou grosso. Infeliz de
quem, sendo fumador, não teve a previdência de se munir de alguns maços de cigarros,
ou de quem; sendo atreito a enxaquecas, não soube precaver-se com um tubo de
aspirinas.
Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silencio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está
imóvel. Nenhum pássaro se atreve a riscar o espaço, não adeja nenhuma borboleta, a
água não cai nas fontes, o mar não se mexe, o Sol descansa num leito de nuvens
opalescentes, os lagartos dormem nas brechas dos muros, os ralos não cantam, as flores
sustem a custo o seu aroma. Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba
de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada.
No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou
menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns nossos pastores de barro
policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirigem para
Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projectam, pelas chaminés, fumo compacto
de algodão branco, belos c complicados transatlânticos ingleses que sulcam oceanos de
areia ou de serradura, mesmo aos pés de S. José e da Virgem Maria. O Menino Jesus
tem um ar do século XVI veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a
mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha,
e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos. Das
escarpas fluem águas de vidrilho, entre fetos e avencas naturais, e nos promontórios
mais inacessíveis equilibram-se, por milagre. casas de papel com muitos andares c
janelas de- venezianas, e igrejas de altos campanários amarelos ou vermelhos. Por toda
a parte, nos recôncavos da lapa, sobem e descem pastores e pastoras, em cujos ombros
se ostentam cabazes com laranjas, anonas, maçãs, galinhas, patos e perus. Há peixes
fora de água, indiferentes à circunstância de se encontrarem num elemento que não é o
seu, e animais de climas antagónicos, reunidos com tanta naturalidade como se
estivessem na própria arca de Noé. Em baixo, sobre a mesa, rodeando a toalha de linho,
corre uma fila de searas dentro de xícaras—trigo, lentilha, centeio, milho, alpista; estão
verdes e pujantes, mas as raízes, sem terra para se expandirem, já se entrelaçaram de tal
modo que formam como que um bloco duro e redondo.
Cada pessoa tem o seu Natal, disse eu ha pouco. Neste momento, em volta de mim,
agita-se a multidão numa pressa febril. O frio e intenso, caem flocos de neve de vez em
quando. As árvores ostentam a copa branca, e delas escorrem fios de água. Há muitos
dias que não se vê o Sol, as ruas estão brilhantes da humidade. Todos se refugiam nos
teatros e nos restaurantes, em procura de convivência, de ruído, de movimento. Ouvem-
se, pelas portas entreabertas, as orquestras que atordoam com o seu entusiasmo
profissional; vêem-se pinheiros dentro de vasos de madeira, dos quais pendem inúmeros
brinquedos e de onde se elevam no ar, presas a cordéis, bolas coloridas cheias de gás.
Dança-se com frenesi. Estalam as rolhas das garrafas de champanhe. Os automóveis
atravessavam as ruas, buzinando de contínuo, cruzando-se com os eléctricos e
aumentando o estridor e a confusão desta noite festiva. No átrio dum hotel de luxo,
ornamentado a primor, passa um velho de - barbas brancas e capuz encarnado; segura
no braço um cesto repleto de brinquedos, que ele vai distribuindo no meio de risos, de
aplausos, de guinchos, de serpentinas que esvoaçam, de tambores que rufam.
Distinguem-se figuras de adultos entre a revoada dos pequenos. Há uns que enfiam na
cabeça barretes de papel, verdes, amarelos, azuis, vermelhos, roxos, doirados; outros
que pulam ao compasso da música; pares que dançam, criados que servem bebidas,
mulheres que fumam, crianças que deliram de alegria ..
Detenho-me à porta, indeciso. E digo de mim para mim: Para que todo esse rumor, toda
essa vertigem? Para que vos afadigais dessa maneira, incitando-me em vão? 0 meu
Natal não é esse.
Durante a noite da véspera de Natal, a população das ilhas formiga Funchal para a
compra de fruta e hortaliças, flores, verduras, figurantes de barro e outros enfeitos para
os presépios. O mercado não comporta os abastecimento desta quadra, e uma multidão
de vendedores ambulantes improvisa em feira várias artérias da cidade. Na antevéspera
daquele dia, outrora, cada vendedor escolhia o local preferido perante um fiscal do
Município, e assinalava-o com o chapéu, casaco, botas ou qualquer peça de vestuário do
seu uso, ficando abandonados na via pública, mas respeitados por todos os transeuntes,
enquanto não fornecia de produtos esse restrito mercado. O movimento de carros e
peões entre o Funchal e as povoações rurais é extraordinário e constante, de dia e de
noite. Vive-se três dias de inusitada vida em que o povo da Madeira aparece com uma
psicologia nova. A Festa modifica-lhe temporariamente o carácter concentrado e
mazombo dando vibração à alma; o júbilo brota-lhe expontâneo sem o estímulo da
bebida de que se socorre nas demais festas e romarias.
A quem desconhece a virtude doméstica desta Festa parecerá, talvez, que o povo se
prepara para uma ágape pagã, mas o espirito religioso que ele adapta ao seu lar,
colocando-o sob a égide do Menino Jesus, e o esplendor litúrgico de que o reveste com
revivescências poéticas, rústicas e pastoris da Idade-Média dir-lhe-ão que o nosso Natal
não é mais do que festa de família em companhia de Deus. A abundância como que
provoca alguns excessos, mas tudo se faz de portas a dentro sem escândalo nem ofensa
para ninguém, porque dia de Natal é dia de alegria e de indulgência. E porque o Deus
Menino entronizado dentro de casa preside a todos os actos da família, tributam-se-lhe
loas e orações em Comum.
Este Menino é uma imagem que existe em todas as casas da cidade e dos campos,
destinada ao presépio. Sobre uma mesa, «com túnica de seda espiguilhada a ouro (ou
brocado), no seu gesto de bênção e a sopesar o mundo», um resplendor de prata na
cabeça e na boca um sorriso de divina bondade, se entroniza Jesus no cimo duma
escadinha ou no topo duma rochinha miniaturais, feita esta de arrumação de tufos ou de
rizomas de carriços, cobertos de tela acinzentada, e no sopé uma gruta para a
representação figurada do seu Nascimento. A típica composição do presépio é a história
da natureza, da vida social e da psicologia de cada época que passa, deixando de ano
para ano, entre as suas incongruências profanas e religiosas. Lembranças que ficam e
servem muitas vezes de documentário a uma ou outra geração. A orografia acidentada
da ilha é ali representada com a ingenuidade da arte popular: montes e vales revestidos
de árvores de papel, atravessados por caminhos ásperos e tortuosas, serpenteando-os
arroios e cachoeiras de algodão a dar-lhes movimento e frescura. Casas de cartão e
colmo coroam as elevações e espreitam à beira das rochas. Seguindo os caminhos e
torcicolando as encostas sobem pastores minúsculos de barro, em tamanhos diferentes,
vestidos de cores garridas, figurantes de todos os costumes, cenas da vida, indumentária
regional e folias populares com oferendas para o Deus Infante. Um galo canta aos pés
do Menino, a vaca e a jumentinha fazem guarda à manjedoura de Belém, e para lá se
encaminham os Reis Magos montados em ajaezados dromedários e guiados por uma
estrela rutilante. Na planície, por entre mares e lagos de fragmentos de espelho, com
frotas de papel, peixes e aves aquáticas de celulóide, saem procissões, marcha a tropa,
bandas de musica dão concerto, passeiam figuras de ontem e de hoje; faz-se alusão aos
principais actos da vida social, e arremedo a figuras populares. Não faltam engenhosos
mecanismos para movimentação de figurantes grotescos e fazer girar a água em canais e
repuchos. Até a decência e a religião são por vezes beliscadas por figuras e atitudes que
só por ignorância ou simplicidade se justificam e toleram. A mistura com pastores e
demais figurantes, germina o trigo, o milho, a lentilha e o tremoço em pires e tijelinhas
de barro ou porcelana. As cabrinhas ( Davallia canariensis L. ) debruam e refrescam
toda a mesa. Fiadas de laranjas, peros, ouriços e castanhas entremeiam as figuras,
ladeando a lapinha canas de açúcar verdejantes. E inseparável desta ornamentação o
brindeiro ou merendeira, minúsculo pão que o povo guarda, depois de desarmada a
lapinha, com a superstição dum sacramental ou pão-bento para remédio de certas
doenças, como a pneumonia, fazendo ingeri-lo o doente aos pedacinhos. Sendo este pão,
quando usado, já bolorento, parece que o povo viu nele, desde há ,séculos, o precursor
da penicilina. Serpentinas de fios de prata e de ouro sobem e descem por entre um docel
de alegra-campo (Semele-Ruscus androgynus L.) e esparto (Aspargus umbellatus Lk.)
delineando no espaço caminho a anjos de asas abertas sobre essa terra miniatural qual
Belém cosmopolita.
A verdade histórica e o senso estético da arte do barro não acrescentam valor a estas
figurinhas de fabrico local e popular, mas a expressão e a forma que as animam dão-lhes
vida e graça singulares. «Se toleramos ao Génio notas tão incongruentes, de todo o
ponto inverosímeis, não havemos de perdoar à lapinha madeirense, obra do povo inculto
e de inocentes crianças, os seus erros de tempo e desvios de lugar, sua falta de unidade
em acção e proporções, toda a ingenuidade de meios que é o seu mais alto encanto—
uma vez que ela, tão nossa, docemente retém, como nenhuma outra forma intrusa, a
piedosa alma do povo sobre a Virgem e Jesus, e desperta sã ternura e alegria nos olhos
dos nossos filhos, deste modo iniciados no fundo da fé cristã?» (1). Mal estudado e mal
compreendido, o presépio nem sempre tem recebido do sentimento religioso e estético o
apreço condigno ao valor que representa. Não é, geralmente, para muitos, mais do que
um simples e rotineiro simbolismo do Natal. Vive-se junto dele, em volta dos
sentimentos e emoções que desperta, mas nem sempre se compreende nem se vive com
ele e com a sua expressão real e verdadeira. E:, todavia, a psicologia do seu motivo
cristão, o sentimento que todos os anos o ressuscita e anima, a arte ingénua com que a
alma popular cria e trabalha os seus figurantes de barro, os veste, os distribui, os agrupa
e movimenta nesse minúsculo cenário; o espírito religioso da vida doméstica enquanto
existe armado o presépio dentro do lar; o espirito de indulgência, de paz, de alegria e de
união entre parentes e vizinhos, entre sítios e povoações, que dele se desprende, são
elementos apreciáveis de estudo e de ensinamento para a História, para a Arte e para a
Religião.
Um dos barristas mais populares, no último século, foi Fernando Perry. Outros houve,
em tempos mais afastados, que da modelação rudimentar do barro tiraram arte e nome,
deixando obras de valor dispersas como relíquias por mãos alheias, e de que ainda
existem numerosos exemplares.
A Missa do Galo nestas ilhas tem lugar depois deste auto. Ao regressar o povo a casa,
como reminiscência certamente da consoada portuguesa, inicia a função doméstica do
Natal, comendo e bebendo do que tem de melhor para aquele dia e suas oitavas. Ao
amanhecer do dia seguinte, cheira a fritadas de carne de vinho-e-alhos por toda a parte,
e não se sente vida, por assim dizer, nas povoações. O povo guarda de portas a dentro o
Natal no convívio isolado da família, porque não é costume sair de casa por tradição.
Instrumentos, foguetes e bombas são as únicas vozes que saem fora dos casais. O
turismo, porém, vem quebrando de ano para ano, na cidade, este costume levando muita
gente a animar um pouco as ruas, na maior parte desertas, a abrir estabelecimentos e a
frequentar à noite os cinemas. A hora das refeições, todos de pé e mãos postas invocam
os parentes mortos e ausentes, havendo lágrimas e orações em comum.
No primeiro dia da oitava visitam-se os parentes, reunindo os pais seus filhos casados e
netos à mesma mesa em festa de família; os afilhados vão tomar a bênção aos
padrinhos, cortesia de boa educação antiga e cristã que serve hoje de pretexto para
lembrar o brinde de Natal. Estas recepções são feitas em geral junto da lapinha. O vinho
não falta à discrição, e o bolo-de-mel, partido à mão segundo o estilo, coagulando pratos
e bandejas, roda por todos os visitantes até se esgotar. Obedecem a esta regra de
etiqueta todas as visitas, durante o tempo da Natividade. Animados pelo vinho e com a
ajuda duma viola e dum rajão passam horas seguidas a cantar louvores ao Menino ou
trovam ao desafio em transportes de alegria, ferindo frequentemente a nota sentimental
e religiosa. Todos os dias, antes de se deitar, a família ajoelha e reza diante do presépio
agradecendo a Deus o bem-estar, a paz e a comunhão doméstica do seu Natal. Enquanto
dura este período litúrgico, desde a Missa do Galo até a festividade dos Reis, congrega-
se de dia e de noite o povo na permuta de visitas a famílias e lapinhas. No Porto Santo, a
dança regional da meia-volta aquece e anima extraordinariamente estas reuniões. Em S.
Martinho, no Seixal e noutras localidades aparecem em público grupos de mascarados,
relembrando uma antiga usança da col6nia inglesa na Madeira.
O velho habito de consagrar todo o dia de Natal à vida e festas recatadas da familia
tende a desaparecer, e as ruas da cidade, desertas outrora naquele dia, apresentam-se
hoje quasi tão movimentadas como na primeira, segunda e terceira oitavas. É, no
entretanto, durante estes três dias, que o povo continua a santificar não obstante ter sido
dispensado disso pela Igreja, que principalmente se realizam as visitas e os
cumprimentos de boas festas, os quais entre o povo rude são acompanhados quasi
sempre de abundantes libações, descantes e outros folguedos, que se estendem até horas
mortas da noite. Desde a vespera do Natal até á Epifania, estrugem por toda a parte as
bombas e busca-pés, com grave risco não só dos transeuntes, mas também daqueles que
os atiram, muitos dos quais tem sido vitimas das suas loucuras e imprudencias.
O habito não muito antigo, de despedir o ano velho e receber ao ano novo com toda a
especie de fogos de artificio, é aquêle que mais chama a atenção dos forasteiros, sendo
na verdade um espectaculo imponente e belo o que oferece a cidade do Funchal e seus
suburbios ao avizinhar-se a hora da meia noite do dia 31 de Dezembro, quando por tôda
a parte se acendem os fosforos de côres e sobem aos ares os milhares de foguetes e
granadas com que os madeirenses festejam a passagem dum para outro ano, na
esperança de que aquêle que principia lhes traga tôdas as venturas que lhes negou o que
vai sumir-se na voragem dos tempos. A noite de 31 de Dezembro é muito animada no
Funchal, sendo a cidade percorrida por grandes ranchos que se dirigem para varios
pontos dos arredores, ao som de machetes e violas, para daí contemplarem os festejos da
meia noite.
Vid. Lapinha.
Fernando Augusto da Silva, Elucidario Madeirense , vol. II, Funchal, 1965, pp.211, 406-407
«Antigamente o presépio das Mercês, com suas alamedas e ingénuos pastores
modelados por barristas indigenas, a alapinha» do Bertholdo, que ocupava uma vasta
quadra engalanada a festões de alegra-campo (semele andrógina), esparto e amarelidas
flores de «bigónia venusta», e onde se admirava as maquinarias pacientemente ideadas,
repuxos espadanantes em meio de rendilhadas avencas, eram locais onde mais amiúde
se aglutinava a multidão dos curiosos. A «rocha», vértebras artisticamente formadas de
socas de cana-da-roca, com seus outeiros, sinuosidades de lombas e vales ferazes, tudo
pinturilado a rôxo-terra e faiscante de pó de mica, apresentava um interessantíssimo
aspecto. Aqui, desciam zagalas e pegureiros com as suas oblátas de frutos lampos,
anhos recentemente desmamados, gavelas de trigo anafil, um galo tinto de azeviche, e
de experimentados esporões. Além, avistavam-se louçanias de padeiras com seu fôrno
portátil, vendedeiras de guelros e taínhas em frigideiras de barro, tanoeiros com o chaço
e o malho, calafates arqueando a querona e o capiteu dos galeões, sapateiros em rítmicas
zumbaias, puxando o fio e trescalando a ceról.
(...) como o Bom Jesus, onde ainda se lobrigam, actualmente, vilões e viloas modelados
em barro escuro por imaginários da ilha, a «lapinha» do sineiro da Sé, com suas sanefas
acaireladas de oiro, camélias soerguerdo-se de areia fina e opulentando as jarras de
louça, «ouriços» em meio de saiões vivazes e~ umas anonas temporãs; adrêde colocadas
em desafio ao pecado da gula.
Vários destes presépios, por deliberação de seus detentores, deixa ram de ser armados,
ou foram subdivididos por herdeiros e legatários em mesquinhas parcelas»
Para o madeirense, a festa do fim do ano é a conclusão natural das Festas—o Natal—
que toda a ilha celebra com entusiasmo e amor. Não há casa, por muito pobre que seja,
onde o Natal não seja assinalado por uma limpeza maior, um arranjo mais cuidado, uma
«lapinha» ou, simplesmente, a imagem do Menino Jesus exposta sobre a cómoda ou
sobre a mesa e rodeada de flores e de «alegra-campo», de mistura com todos os objectos
a que se atribua um valor decorativo. É, todavia, no Funchal que as Festas assumem o
seu esplendor máximo: na animação das ruas, desde semanas antes; na especial
decoração das montras; no fulgor da iluminação, intensificada pelas casas comerciais,
que iluminam as suas fachadas e armam, algumas, os seus «pinheiros» no passeio que
lhes fica defronte; numa indefinível euforia que se espalha no ambiente. Tudo toma um
ar festivo; gastam-se as economias corajosamente amealhadas durante o ano para estrear
qualquer coisa nas Festas ou gastar em presentes. Bolos-de-mel, broinhas; anonas e
abacates, já fora da sua época e por isso mais apreciados; «carne de vinho e alhos» —
palavras de todos os dias que têm, porém, um sentido mais forte, imediato, quando
chega o Natal, mesmo até para aqueles que se limitam a pensá-las, sem possibilidades
de lhes dar concretização... O Natal faz nascer uma esperança em cada coração. Não
apenas a dum Mundo em Paz—aspiração natural, constante e veemente de todos os
homens e mulheres de boa-vontade—mas a esperança humaníssima de qualquer coisa
que melhore a vida, conforme as necessidades de cada um. Quantos se contentariam
com um bom jantar, um mimo, um agasalho, um brinquedo que lhes alegrasse os filhos .
. . O Natal traz, a alguns, essa probabilidade. Tudo isso conta na claridade que irradia da
palavra Natal. Tudo isso conta na alegria difusa das Festas da Madeira.