You are on page 1of 7

Dialéctica do iluminismo, “Elementos do anti-semitismo”, VI (excerto)

(tradução de João Pedro Cachopo)

[ADORNO, Th. W. & Max HORKHEIMER, Dialektik der Aufklärung, Gesammelte


Schriften, Band 3, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2003 (1944), pp. 211-
214]

«O anti-semitismo baseia-se na falsa projecção. Esta é o contrário da


mimese autêntica, semelhante à que profundamente foi reprimida, sendo
mesmo talvez o traço de carácter em que a primeira se deteriora. Se a
mimese se torna semelhante ao mundo em volta, a falsa projecção torna
o mundo em volta semelhante a si mesma. Se, para a primeira, o fora se
torna um modelo, ao qual o dentro se deve conformar, tornando o
estranho familiar, então a segunda desloca o interior para o exterior e
cunha o íntimo como hostil. As impulsões que o sujeito não admite serem
suas, embora lhe sejam próprias, são atribuídas ao objecto, a vítima
potencial. A escolha do paranóico típico não é livre; ela obedece à lei da
sua doença. No fascismo este comportamento é captado pela política. O
objecto da doença é determinado em conformidade com a realidade,
sendo o sistema alucinado transformado em norma racional no mundo e o
desvio desta norma reduzido à nevrose. O mecanismo assumido pela
ordem totalitária é tão antigo como a civilização. As mesmas impulsões
sexuais que o género humano reprimiu puderam conservar-se e realizar-
se – quer nos indivíduos, quer nos povos – por meio da metamorfose
imaginária do meio ambiente em sistema diabólico. O assassino cego
sempre viu na vítima um perseguidor, contra o qual devia
desesperadamente lançar-se em legítima defesa, e os reinos mais
poderosos sempre consideraram o vizinho mais fraco como uma ameaça
intolerável, antes de o assaltarem. A racionalização foi um pretexto, e foi-
o de modo simultaneamente compulsivo. O escolhido como inimigo é à
partida percepcionado como inimigo. O erro reside na diferenciação
lacunar do sujeito entre o que inere ao próprio e ao outro no material
projectado.

Num certo sentido, toda a percepção é projecção. A projecção de


impressões dos sentidos é uma herança da pré-história animal, um
mecanismo com os fins da protecção e da alimentação, um órgão
prolongado da combatividade, com o qual as espécies animais superiores
reagiam, querendo ou não, ao movimento, independentemente da
intenção do objecto. A projecção é automatizada no homem como outras
funções de agressão e protecção, que se tornaram reflexos. Assim se
constitui o seu mundo objectivo, como produto daquela “arte escondida
nas profundezas da alma humana, cujas verdadeiras manobras
dificilmente arrancaremos alguma vez à natureza, pondo-as a descoberto
perante os olhos.” O sistema das coisas, o universo fixo, do qual a ciência
constitui simplesmente a expressão abstracta, é, ao empregar-se
antropologicamente a crítica kantiana do conhecimento, o produto
inconscientemente realizado do órgão animal na sua luta pela vida, ou
seja, daquela projecção espontânea. Na sociedade humana, porém, onde
a vida afectiva e intelectual se diferenciam com a formação do indivíduo,
este precisa de um controlo crescente da projecção, deve aprender a
afiná-la e simultaneamente a refreá-la. Na medida em que, sob a pressão
económica, aprende a distinguir entre pensamentos e sentimentos de si
próprio e de outrem, surge a diferença entre o fora e o dentro, a
possibilidade do distanciamento e da identificação, a consciência de si e a
consciência moral. Para compreender a projecção tomada sob controlo e a
sua degeneração na falsidade (que pertence à essência do anti-
semitismo), carece o indivíduo de uma reflexão mais exacta.

A teoria fisiológica da percepção, que foi desprezada pelos filósofos desde


Kant como ingenuamente realista e como círculo vicioso, explica o mundo
da percepção como uma imagem reflectida, controlada pelo intelecto, de
dados que o cérebro recebe dos objectos reais. Segundo esta visão, cabe
ao entendimento a ordenação do índice pontual recebido, das impressões.
Os defensores da teoria da Gestalt insistem também no facto de a
substância psicológica receber não apenas pontos, mas também a
estrutura. Tanto ou mais haviam sabido Schopenhauer e Helmoltz – por
causa e contra o círculo vicioso – acerca da relação cruzada entre sujeito e
objecto do que a concepção oficial da escola dos neuropsicólogos e dos
neokantistas: a saber, que a imagem perceptiva contém na verdade
conceitos e juízos. Entre o objecto real e o dado sensível indubitável, entre
o interior e o exterior, abre-se um abismo que o sujeito, com perigo para si
mesmo, tem de transpor. Para espelhar a coisa tal como é, deve o sujeito
devolver-lhe mais, do que dela recebe. O sujeito recria o mundo fora de si
a partir de vestígios que o mundo deixa nos seus sentidos: a unidade da
coisa nas suas propriedades e estados variados. E assim se constitui em
retorno o “eu”, na medida em que este aprende a atribuir uma unidade
sintética, não só às impressões externas, mas também às internas que
progressivamente se separam das primeiras. O “eu” idêntico é o produto
mais tardio da projecção constante. Num processo que só pôde consumar-
se historicamente com as forças desenvolvidas pela constituição
psicológica do homem, o “eu” desenvolveu-se como função
simultaneamente unitária e excêntrica. Mesmo enquanto autonomamente
objectivado, ele é na verdade apenas aquilo que o mundo dos objectos é
para ele. A profundidade interior do sujeito não consiste noutra coisa
senão na subtileza e na riqueza do mundo perceptivo exterior. Se o
cruzamento é interrompido, o “eu” paralisa. Se se limita, à maneira
positivista, a registar o dado, retrai-se num ponto; e se projecta o mundo,
de modo idealista, a partir da origem insondável de si próprio, esgota-se
numa repetição obstinada. Em ambos os casos, desiste-se do espírito.
Somente pela mediação, em que o dado sensível vão conduz o
pensamento à mais ampla produtividade de que é capaz, e, por outro
lado, por um abandono do pensamento sem reservas à impressão
irresistível, se ultrapassa a solidão mórbida, na qual toda a natureza se
acha retraída. A possibilidade da reconciliação desponta, não na certeza
irrevogável do pensamento, não na unidade pré-conceptual entre
percepção e objecto, mas na sua oposição reflexiva. A diferenciação
acontece no sujeito, que tem o mundo exterior na sua própria consciência
e, no entanto, o reconhece como algo “outro”. Por isso se realiza uma tal
reflexão, a vida da razão, enquanto projecção consciente.

O carácter mórbido do anti-semitismo não é o comportamento projectivo


enquanto tal, mas o declínio da reflexão nele. (...)»

Dialéctica negativa, excertos do Prefácio e da Introdução


(tradução de João Pedro Cachopo)

[ADORNO, Th. W., Negative Dialektik, Gesammelte Schriften, Band 6,


Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2003 (1970)]

Do prefácio:

«A formulação da dialéctica negativa peca contra a tradição. A dialéctica


pretende, já em Platão, que por meio da negação se produza um
“positivo”; mais tarde a figura de uma negação da negação designou-o de
modo crucial. O livro pretende libertar a dialéctica de uma tal essência
afirmativa, sem nada perder do seu carácter determinante. O
desdobramento do seu título paradoxal é um dos seus objectivos.»

Da introdução:

«(...) A contradição é o “não-idêntico” sob o aspecto da identidade; o


primado do princípio da não-contradição na dialéctica mede o
heterogéneo pela bitola do pensamento da unidade. Ao colidir com o seu
limite, este é ultrapassado. A dialéctica é a consciência consequente da
não-identidade. Ela não adopta à partida um ponto de vista.

(...)

A dialéctica desdobra a diferença entre particular e universal ditada pelo


universal. Se uma tal diferença – a cisão entre sujeito e objecto que
penetrou na consciência e é indissociável do sujeito – atravessa tudo o
que este pensa, mesmo quando se acha próximo do “objectivo”, ela teria
um fim na reconciliação. Esta libertaria o “não-idêntico”, desembaraçá-lo-
ia da pressão espiritualizada, abriria finalmente a multiplicidade do
diferente, sobre o qual a dialéctica já não teria poder. A reconciliação seria
a recordação de um múltiplo já não hostil, sobre o qual pesa o anátema da
razão subjectiva. A dialéctica serve a reconciliação.

(...)

Uma confiança, como sempre discutível, na ideia de que a filosofia é por


certo possível, na convicção de que o conceito é capaz de ultrapassar o
conceito – que reúne e divide – ao ponto de atingir o não conceptual, é tão
indispensável à filosofia como uma certa parte da ingenuidade de que
padece. Senão a filosofia teria de capitular e com ela todo o espírito. Nem
a mais simples operação se deixaria pensar, nenhuma verdade haveria,
enfaticamente, tudo seria nada. Mas aquilo que os conceitos encontram
na verdade, para lá da sua extensão abstracta, não pode ter nenhum
outro palco senão o que é oprimido, desprezado e rejeitado pelos
conceitos. A utopia do conhecimento consistiria em abrir o não-conceptual
através de conceitos, sem equiparar o primeiro aos segundos.

(...)

O conhecimento que pretende o conteúdo, pretende a utopia. Esta – a


consciência do possível – agarra-se ao concreto, como ao não desfigurado.
Trata-se do possível, não do imediatamente real que veda a passagem à
utopia; é por isso que o possível aparece abstracto no meio do existente.
A cor inextinguível vem do não-ente. Ao seu serviço está o pensamento –
um pedaço de existência – que aflora o não-ente de modo como sempre
negativo. Somente a mais extrema distância seria a proximidade; a
filosofia é o prisma que capta a sua cor.»

Teoria Estética, excertos sobre o enigma

(tradução de Artur Morão: Teoria Estética, Lisboa, Edições 70, 2006, pp.
138-148)

«As obras de arte não devem ser compreendidas pela estética como
objectos hermenêuticos; na situação actual, haveria que apreender a sua
ininteligibilidade. (...)

O carácter enigmático das obras de arte permanece intimamente ligado à


história. Por ela se tornaram outrora enigmas, por ela continuam a sê-lo e,
inversamente, só esta, que lhes conferiu autoridade, mantém delas
afastada a penosa questão da sua raison d’être. A condição do carácter
enigmático das obras de arte é menos a sua irracionalidade do que a sua
racionalidade; quanto mais metodicamente são dominadas tanto maior
relevo adquire o carácter enigmático. (...)

Todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas; isso desde


sempre irritou a teoria da arte. O facto de as obras de arte dizerem
alguma coisa e no mesmo instante a ocultarem coloca o carácter
enigmático sob o aspecto da linguagem. (...)

Em confronto com o carácter enigmático, a própria compreensão é uma


categoria problemática. Quem compreende as obras de arte pela
imanência da consciência nelas, não as compreende verdadeiramente; e
quanto mais aumenta a compreensão tanto mais se intensifica também o
sentimento de insuficiência, cegamente inscrito no sortilégio da arte a que
opõe o próprio conteúdo de verdade. (...)

A compreensão no sentido mais elevado, a resolução do carácter


enigmático que ao mesmo tempo o mantém, está ligado à espiritualização
da arte e da experiência estética, cujo medium primordial é a imaginação.
Mas a espiritualização da arte não se aproxima imediatamente do seu
carácter enigmático mediante a explicação intelectual, mas ao conretizar
o carácter enigmático. Resolver o enigma equivale a denunciar a razão da
sua insolubilidade: o olhar com que as obras de arte vêem o
contemplador. (...)

Em debates recentes especialmente sobre as artes plásticas, o conceito


de écriture tornou-se relevante, debates suscitados por páginas de Klee
que se aproximavam de uma escrita gatafunhada. Esta categoria da
modernidade arroja como projector luz sobre o passado; todas as obras de
arte são uma escrita, e não apenas as que aparecem como tais, e
certamente hieroglíficas, para as quais se perdeu o código e para cujo
conteúdo contribui acima de tudo a ausência de tal código. As obras de
arte são linguagem só enquanto escrita. (...)

O carácter enigmático é algo que brota. A arte subsiste após a perda do


que nela devia outrora exercer uma função mágica e, depois, cultual.
Perde o seu ‘para quê’ – em termos paradoxais: a sua racionalidade
arcaica – e transforma-o num momento do seu em-si. Torna-se assim
enigmática ; se já ali não está para o que ela imbuía de sentido como seu
fim, então, que pode ela ser em si mesma? O seu carácter enigmático
incentiva-a a articular-se imanentemente de tal modo que, através da
configuração da sua absurdidade enfática, adquire um sentido. Sob este
aspecto, o carácter enigmático das obras não é o seu ponto último, mas
toda a obra autêntica propõe igualmente a solução do seu enigma
insolúvel.»

You might also like