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As Três Vidas de Lucie Cabrol

A partir de “Pig Earth”, de John Berger


Adaptado por Pedro Alves

PRIMEIRA VIDA

JEAN
A Cocadrille nasceu em 1900, no mês de Setembro. Nuvens brancas, como fumo,
entravam pela porta aberta do estábulo. Marius Cabrol estava a ordenhar. A mulher,
Mélanie, estava na cama, no outro lado da parede do estábulo, assistida pela irmã e
por uma vizinha. O primeiro filho tinha sido um rapaz, baptizado Emile. Marius, o pai,
esperava que o segundo também fosse um filho. Seria baptizado de Henri, como o seu
avô.

A quinta dos Cabrol encontrava-se numa encosta acima da aldeia chamada Brine.
Deitada na cama, Mélanie agarrou-se à cabeceira da cama. A água já estava a ferver
no fogão, na cozinha. O bebé nasceu muito depressa. Ao ver a filha, la Mélanie gritou:

MÉLANIE
Jesus! Marquei-a com o sinal do desejo. Ela está marcada com o sinal do desejo.

JEAN
Quando uma mulher está grávida, por vezes, tem desejos de comer, beber ou tocar
em alguma coisa especial. É o direito da mãe – uma espécie de lei natural - ter aquilo
que deseja. No entanto, ocasionalmente, não é possível. E é aí que ela deve ser
cuidadosa porque se um dos seus desejos for negado, na próxima vez que ela toque o
seu corpo, o toque poderá ficar impresso no mesmo local no feto dentro do seu ventre.
Por isso, quando um dos seus desejos fica por satisfazer, é melhor tocar-se,
deliberadamente, no pé ou no rabo: caso contrário, irreflectidamente, poderá tocar-se
na bochecha ou na orelha e, assim, imprimir uma marca desfigurada na criança.

MÉLANIE
Jesus! Marquei-a com o sinal do desejo. Foi quando quis comer peixe fresco!

JEAN
A irmã tentou acalmá-la dizendo-lhe que não era a marca do desejo, que já tinha visto
aquilo antes e que o bebé devia ter roçado a cara ao sair. E tinha razão, já que,
passados poucos dias, a marca vermelha desapareceu e só muito mais tarde La
Mélanie se questionou se a sua filha, no fim de contas, não tinha sido marcada por
outro tipo de desejo. Enquanto criança, havia duas coisas pouco usuais sobre ela.
Ficou sempre muito pequena e, assim que começou a gatinhar e, mais tarde, a andar,
ela tinha o hábito de desaparecer.

MÉLANIE
Perdemo-la tão depressa como se perde um botão.

JEAN
Quando tinha seis anos, Lucie – foi assim que ela foi baptizada – esteve desaparecida
um dia inteiro. Se sair porta fora agora e der alguns passos colina acima, até onde as
vacas estão a pastar, consigo ver o carreiro que ela seguiu.

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À noite, Lucie regressou com o chapéu cheio de cogumelos. Contudo, por essa altura,
já Marius à Brine tinha organizado uma equipa de busca. Lembro-me dos homens a
encher os candeeiros com parafina.

Quando não havia trabalho para fazer em casa, Lucie ia à escola. O professor da
aldeia chamava-se Masson. Ele costumava ler excertos das Memórias da Vida de
Voltaire e o padre-cura pregava contra este livro na igreja. A que hora do dia é que as
pessoas liam, perguntávamos a nós próprios.

Masson foi morto em Verdun. Tem o nome dele inscrito no memorial de guerra. Todas
as manhãs, antes de começar a primeira lição, ele escrevia no quadro o dia da
semana, a data do mês e o ano do século. No memorial de guerra, há apenas o mês e
o ano da sua morte: Março de 1916. Todas as manhãs, depois da data, ele escrevia
uma frase no quadro, que nós, crianças, copiávamos para os nossos livros:

MASSON
Os insultos devem ser escritos na areia da praia
Os elogios devem ser inscritos em mármore.

JEAN
Foi no último ano na escola que a Lucie recebeu a alcunha de Cocadrille. Um
cocadrille vem de um ovo de galo, chocado num monte de esterco. Assim que sai do
ovo, faz o seu caminho para o sítio mais improvável. Se for visto por alguém que ele
não tenha visto, morre. Caso contrário, pode defender-se sozinho e matar tudo o que
escolher matar, excepto a doninha. O veneno com o qual mata vem-lhe dos olhos e
viaja através do seu olhar.

Depois da Lucie nascer, La Mélanie teve outro filho que foi baptizado Henri. Aos dois
anos, ele já era maior do que a irmã, que já se podia sentar no cavalo, procurar lenha
para o fogão e alimentar as galinhas. Podia ser que o pequeno tamanho dela fosse
uma espécie de provocação para a inveja. As crianças atribuem direitos de acordo
com o tamanho. Fosse qual fosse a razão, Henri odiava a irmã. Foi ele que, quarenta
anos mais tarde, disse ao Mayor: Esta irmã não trouxe nada a esta família a não ser
vergonha.

Um dia, Mélanie encontrou três das suas galinhas mortas. O assassino não tinha sido
uma raposa ou uma doninha, porque as galinhas não tinham marca alguma.

Foi a Lucie que as matou! gritou Henri

HENRI
Ela olhou para as galinhas e elas morreram.

LUCIE
Nunca lhes toquei!

HENRI
Ela é uma Cocadrille!

LUCIE
Não sou nada! Não sou!

HENRI
A Cocadrille! A Cocadrille!

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Lutam.

MÉLANIE
Parem com isso.

Ainda abraçados.

JEAN
Dessa vez, a alcunha não pegou. Na vez seguinte, pegou.

Emile tinha partido no Outono, para trabalhar em Paris como carregador de carvão na
caldeira central do novo departamento da Samaritaine.

MÉLANIE
Lucie, lê isto, por favor…

EMILE
Vou voltar para casa. Emile.

LUCIE
O Emile vem para casa! Ele volta no domingo.

Lucie dança.

JEAN
Todas as tardes, o Henri e a Lucie levavam o leite até à leitaria.

Entrega uma grande vasilha a Lucie.

Nessa tarde, depois de ter dormido, o recém-chegado Emile disse que iria com eles.

LUCIE
Viste-a?

EMILE
Consegues vê-la de todo o lado. Tem trezentos metros de altura.

Dá-me o leite, Lucie.

LUCIE
Consegues arranjar-me um emprego em Paris?

EMILE
Podias trabalhar numa padaria.

LUCIE
Vives no mesmo sítio onde trabalhas?

EMILE
Apanho o Metro. O Metro é um comboio, um comboio eléctrico que anda por debaixo
da terra...

HENRI
A que horas os comboios começam a andar de manhã?

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EMILE
Cedo, mas os parisienses não conseguem levantar-se da cama. Por isso, estão
sempre apressados. Devias vê-los a correr nos túneis para apanharem os comboios.

HENRI
Os comboios não param?

LUCIE
Conta-me mais sobre Paris.

EMILE
As pessoas dormem nas ruas.

LUCIE
Porquê?

EMILE
Se pedissem abrigo, os parisienses nunca os deixariam entrar.

LUCIE
Porque é que não controem cabanas?

EMILE
Não há madeira com que possam construi-las.

LUCIE
Não há árvores?

EMILE
É proíbido.

LUCIE
Sabes o que é que o avô Revuz fez? O Mayor disse-lhe que ele não podia cortar uma
acácia. E ele cortou-a na mesma. Depois, ele disse que as folhas daquele arbusto não
davam nem para limpar o rabo! E se eram assim tão pequenas, então, aquilo não
podia ser uma acácia.

EMILE
O avô Revuz pode achar-se muito esperto, mas estaria perdido em Paris. Sabes
quantos cavalos há lá?

HENRI
50 mil!

EMILE
Dois milhões.

LUCIE
Levas-me contigo, na próxima vez?

HENRI
Eles prendiam-te.

JEAN

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Henri e Lucie desapertaram as vasilhas que traziam presas às costas. A leitaria estava
bem localizada porque era fria mesmo durante o verão. A mulher do queijeiro
queixava-se que os pés do marido estavam perpetuamente como gelo.

„Tão o Emile voltou de Paris!, disse o queijeiro.

EMILE
Para o verão.

QUEIJEIRO
Quantos anos tens agora?

EMILE
Dezasseis.

QUEIJEIRO
Nunca demasiado novo!

JEAN
O queijeiro, cuja mulher o encornava regularmente, piscou-lhe o olho.

LUCIE
Subiste até ao topo?

EMILE
Que topo?

LUCIE
Até ao topo da Torre Eiffel.

EMILE
Sobes por um elevador.

LUCIE
Elevador?

EMILE
Sim, um elevador.

LUCIE
O que é um elevador?

HENRI
A Cocadrille não sabe nada. O lugar dela é no esterco.

Lucie atira leite à cara de Henri.

LUCIE
Se não fosses uma doninha, matava-te!

Pausa

JEAN
Leite não é água, gritou o pai.

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PAI
Ah, minha Cocadrille. Nasceste assim, não foi? Não podes fazer nada. Simplesmente,
nasceste assim.

A Cocadrille! A Cocadrille!

JEAN
E, assim, o nome Cocadrille, nascido tanto do ódio como do amor, substituiu o nome
Lucie.

Pausa.

Foi no declive virado para Lapraz, durante o mês de Agosto de 1914, quando a família
Cabrol estava a ceifar, que se ouviu o sino da igeja tocar no vale lá em baixo. A guerra
começou, disse Marius.

MÉLANIE
Começou o massacre do mundo.

JEAN
Normalmente, as mulheres percebem melhor do que os homens a extensão da
catástrofe.

No início de 1916, eu e o Emile fomos chamados. Entre rapazes novos e homens


velhos, não restou ninguém. Não restavam mais vozes masculinas para se ouvirem.
Os cavalos acostumaram-se às ordens das mulheres.

La Mélanie, a Cocadrille e Henri cuidavam da quinta.

Passado o interminável tempo da guerra, na aldeia, ninguém falou em vitória.


Limitaram-se a dizer que a guerra tinha terminado.

Um ano depois da sua desmobilização, Marius anunciou a Emile que La Mélanie


estava à espera de outro bebé.

EMILE
Com a idade dela!

PAI
Será o nosso último.

EMILE
Terá mesmo que ser!

PAI
Durante toda a guerra prometi isto a mim mesmo.

EMILE
E a Mãe?

PAI
Eu sobrevivi.

JEAN

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Então, seremos quatro, respondeu Henri. Mas, na verdade, o que ele queria dizer era
que a herança da família seria dividida por quatro.

PAI
Sim, se contares com a Cocadrille.

EMILE
Já lhe disseste?

PAI
Ainda não.

EMILE
Pergunto-me como é que ela irá reagir.

PAI
A Mãe é que lhe vai dizer.

EMILE
Vai mudá-la.

PAI
Como assim?

EMILE
Vai mudá-la. Eu e a Cocadrille já podiamos estar casados por esta altura. Já podíamos
ter filhos. No entanto, quem é que vai casar com a Cocadrille? E eu estou demasiado
doente para casar. Devia ser a nossa vez e, contudo, tu fizeste outro bebé.

PAI
Chama-lhe o último pecado de um velho homem!

JEAN
A Dezembro de 1919, nasceu o último filho de La Mélanie, que foi batizado Edmond.
Fiquei mais um ano no exército, para aprender mecânica. Voltei para a aldeia no início
de 1920.

No seguinte mês de Junho, quatro homens tomaram o caminho ingreme, até ao


campo de pasto. Eram novos e escalaram depressa. Com eles, levavam um acordeão,
oito pedaços de pão e uma saca de sal grosso para o gado. Tinham trabalhado o dia
inteiro e estava a começar a escurecer.

ROBERT
Consegue ver-se o rebanho do André.

PIERRE
Ele é lento, o André.

MARC
Ficou mais lento depois da morte da Honorine.

PIERRE
Ele devia casar outra vez.

JEAN

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Com quem?

TODOS
Philomène!

JEAN
Eles riram e olharam para a aldeia lá em baixo, com a segurança da juventude: uma
segurança que vem da convicção de que, porque os jovens vêem com clareza, vão
evitar os erros dos velhos.

Philomène já pôs fora de casa homens muito mais fortes do que André!

PIERRE
E também já os pôs fora de si!

JEAN
Quando chegaram lá acima, as pastagens estavam cheias de pequenos pássaros que
voavam baixo, junto à erva. Estes pássaros, a voarem ao nível das suas mãos, fez
com os homens pensassem nos olhos e nos nomes de todas as raparigas que eles já
tinham vindo visitar.

ROBERT
Véronique.

PIERRE
Rosemarie.

MARC
La belle Jacqueline.

PIERRE
La nan Bessons.

JEAN
De tempos a tempos, um arcebispo pregaria um sermão contra a imoralidade de
deixar jovens raparigas sozinhas no campo. As velhas ainda falam dos verões
passados nas pastagens.

Em breve, os pássaros deixariam de voar e a noite viria. Antes de fazerem as suas


visitas, naquela noite, os quatro rapazes tinham planeado cantar. Para que a sua
música fosse uma surpresa, tinham que fugir de um conjunto de chalets e chegar às
rochas em forma de ferradura de cavalo sem serem vistos. Este desvio implicava
passarem apenas por um chalet, que não era relevante, porque era o da Cocadrille.

Enquanto os quatro se aproximavam, a Cocadrille veio à porta. O que enfatizava a sua


pequenez era o facto de não ter ancas e seios, apesar de usar roupas de mulher. Ela
tinha a figura do servente ideal, pequeno mas activo, sem idade ou sexo. Nesse verão,
ela tinha 20 anos.

LUCIE
Têm um acordeão.

PIERRE
Sim, temos.

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LUCIE
Posso dançar.

JEAN
Não nessas galochas, não podes!

Lucie canta e dança.

Párem! A música vai dizer que estamos aqui. Temos que seguir o nosso caminho.

LUCIE
Algum de vocês pode ajudar-me a mover um barril?

TODOS
Força, Pierre!

LUCIE
Tu, não. É melhor que seja aquele de vocês que voltou agora do exército.

JEAN
Pedi aos meus três companheiros para esperarem.

LUCIE
Deixa-os ir.

JEAN
Digam à La Nan que eu a vou visitar!

Os outros cantam a sair.

Sabes o que é que dizem de ti lá na aldeia? É tão pequena que até podia servir para
limpa-chaminés.

LUCIE
Sou uma mulher. E era capaz de lhes cagar nas chaminés.

JEAN
Na mesma luz sombria que quase a tornava invisível, a voz dela soava como a de
uma mulher.

LUCIE
Vais trabalhar para Paris neste Outono?

JEAN
Sim.

LUCIE
Apanho uma marmota para levares contigo.

JEAN
Como?

LUCIE
Isso é o meu segredo.

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JEAN
Escavas para as apanhares quando elas estão a dormir?

LUCIE
Vais subir à Torre Eiffel?

JEAN
Os outros estão à minha espera. Obrigado pelo café.

LUCIE
Eles estão a cantar. Não consegues ouvir?

JEAN
Não.

Os outros cantam.

LUCIE
Vou buscar manteiga.

JEAN
Não precisamos.

LUCIE
Tens assim tanta manteiga em casa?

Ela tira a blusa e despeja leite no peito.

JEAN
O que é que me fez regressar na noite seguinte? Porque é que voltei a subir lá acima,
sozinho, evitando os meus companheiros? Ela reagiu sem surpresa…

LUCIE
Com que então já acabaste com a manteiga!

JEAN
Podes dar-me mais?

LUCIE
Sim, Jean.

Abraçam-se.

JEAN
Parecia que tinha sido ela a inventar aquele nome: Jean. Nunca ninguém o tinha dito
daquela forma. E isso perturbava-me porque me separava de todos os outros homens,
chamados Jean ou Théophile ou François.

LUCIE
Ordenha-me!

Jean grita-lhe. Chama-lhe nomes. Agarra-a. Fazem amor. Param. Grande


pausa. Jean mede Lucie, parte por parte, encostando-a ao seu próprio corpo.

JEAN

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Hoje fiz uma marca na ombreira da porta da cozinha para me lembrar da tua
verdadeira altura, antes que, tal como nós, comeces a encolher na velhice.

LUCIE
Um metro e vinte e cinco.

JEAN
Foi isso que eu medi. Não posso medir o resto.

LUCIE
Falou dela mesma. Falou do seu irmão. Emile. Falou da terra que um dia herdaria.
Falou das vacas. Disse o que achava do padre. Disse que nunca chegaria a casar.

JEAN
Ocorreu-me que ela estivesse a dizer tudo isto porque, provavelmente, aconteceria o
oposto. Convenci-me que ela estava a planear tornar-me o seu marido. Ela estava
convencida que estava grávida e queria obrigar-me a casar. Lucie!

LUCIE
Sim?

JEAN
Não sei porque é que usei o verdadeiro nome dela. Lucie… Eu não vou voltar a subir
cá acima.

LUCIE
Eu não esperava que o fizesses, Jean.

JEAN
A resposta dela só servia para confirmar a minha suspeita. Significava que eu já
estava preso.

LUCIE
Toma a manteiga…

JEAN
Muitas vezes, durante aquele verão, senti-me tentado a subir até à pastagem para
descobrir se ela estava grávida ou não. Todas essas vezes, dizia a mim mesmo que
era melhor não ir. Então, ficava lá em baixo, em suspense. Finalmente, no fim de
Agosto, vi-a à porta da igreja, num casamento, e, para meu grande alívio, ela não me
denunciou de maneira nenhuma.

Em 1924, Marius à Brine ficou doente. Foi no mês de Julho e eu estava de volta à
aldeia, depois de ter passado dois invernos em Paris. La Mélanie sentou-se à
cabeceira da cama do marido, emprestando-lhe a coragem que podia, e a Cocadrille
escalou até à pastagem para ir buscar gelo para colocar sobre o estômago ardente do
pai. Quando regressou, já mais de metade do gelo tinha derretido. Fez mais três
dessas viagens até à gruta lá no alto e, quando regressou pela terceira vez, a meio da
tarde, Marius, o pai, estava morto.

LUCIE
Então, vais deixar-nos outra vez?

JEAN
Sim. Primeiro vou para Paris. Depois, vou para a América do Sul.

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LUCIE
Volta antes de morreres.

JEAN
O facto de ela dizer isto enfureceu-me.

LUCIE
Em 1936, Emile morreu, na sequência das suas feridas de guerra. Dois anos mais
tarde, La Mélanie seguiu o marido e o filho mais velho para a cova. Henri casou com
Marie, uma mulher da aldeia vizinha. A Cocadrille ordenhava as vacas, tomava conta
do estábulo, plantava os vegetais, colhia lenha, levava o gado a pastar. Marie, a
cunhada, queixava-se dela:

MARIE
Ela é tão suja como um galinheiro. E nunca mexe um dedo na cozinha. Que raio de
mulher é esta?

JEAN
Os anos passaram. A Segunda Guerra rebentou.

LUCIE
Um dia, estava a ceifar junto às macieiras, com a minha foice, que nunca deixava
ninguém tocar. Ao olhar para cima, vi dois homens a acenar ao longe. Os meus irmãos
viram que eu tinha parado de trabalhar e seguiram o seu olhar. Os dois estranhos no
limite da floresta devem ter visto aquilo que lhes pareceu uma criança com dois
camponeses, num campo de feno, a apontar para eles. Isto foi em 1944. Merda, disse
Henri. E Edmond respondeu: São resistentes.

HENRI
Que mais podiam ser?

EDMOND
Jesus! Não deixes que mais ninguém os veja.

HENRI
A Marie pode dar-lhes comida e eles podem partir.

LUCIE
Um dos homens aproximou-se e cumprimentou-nos. Nos campos, o silêncio
deliberado é uma arma poderosa. O Henri não disse nada e encolheu a cabeça para
trás, para dentro dos ombros, como um cão a guardar a entrada de uma casa. O
Edmond permanceu com as mãos nas ancas, a olhar insultuosamente. Dois deles
precisavam de abrigo durante 24 horas.

EDMOND
Quem vos disse para virem à nossa quinta?

LUCIE
Ninguém. Simplesmente, sabiam onde não ir.

HENRI
Por amor de Deus!

LUCIE

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O estrangeiro cumprimentou-me: Bom dia, pequena! Depois virei-me para ele e ele
pôde ver que eu era uma mulher de meia idade, de face bem definida, com idade para
ser mãe dele. Eu não vi, desculpou-se ele. Isto também é a minha quinta, respondi.

EDMOND
De onde és?

LUCIE
Do Dranse. As SS tinham queimado a quinta do pai.

EDMOND
Por isso, não tens nada a perder?

LUCIE
Nada.

HENRI
Damo-vos comida e, depois, vocês têm que ir embora.

LUCIE
Não. Precisavam de ficar até amanhã.

HENRI
A melhor maneira de se esconderem é se trabalharem connosco. Precisamos de
meter o feno lá dentro.

LUCIE
O outro camarada tinha uma ferida que precisava de ser tratada.

HENRI
Nós não somos um hospital!

LUCIE
Onde é a tua ferida? Na coxa direita, respondeu o rapaz. Vou tratar dela.

HENRI
E se os Alemães vierem? Ele não pode estar em casa.

LUCIE
Tens razão. Seria melhor ficarmos aqui em cima.

EDMOND
Quer dizer que os Alemães estão à vossa procura?

LUCIE
Provavelmente.

EDMOND
Vieram aqui com um homem ferido e com os Alemães nos calcanhares e ainda
esperam que arrisquemos as nossas vidas para vos salvar!

LUCIE
Podem esconder-se no galinheiro. Mas eles preferiam ficar a trabalhar. Somos os
vossos primos que vieram ajudar-vos com o feno. Está alguém lá embaixo, na casa?

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HENRI
A minha mulher?

LUCIE
Então, vocês são quatro?

HENRI
Com a Cocadrille, sim.

LUCIE
Obrigado, disse ele quando, por fim, eu acabei de lhe ligar o ferimento. Tens mãos
muito gentis. Gentis! Ri-me. Trabalharam demasiado para serem gentis. Já estiveram
em demasiada merda. Que idade tens? Dezanove, respondeu-me ele. A tua mãe está
viva? Creio que sim. E o teu pai? É juiz. Tens dentes tão direitos. Não és de cá. Não.
De Paris, disse ele. Já alguma vez viraste feno, perguntei-lhe. Faço como tu fizeres.
Por muita água que bebas, quando estás a tratar do feno, nunca mijas! Depois, ao
meio dia, um carro chegou à quinta.

EDMOND
Não é a Milícia, são os Alemães.

LUCIE
Em breve, conseguíamos ouvir a pesada respiração dos alemães. O primeiro a
aparecer foi um oficial com um cinto apertado e um chapéu alto que lhe tapava os
olhos. Seguia-o um sargento que segurava uma metralhadora. Todos aqui! Gritou o
oficial. Ele analisou os quatro camponeses e uma mulher anã. Estamos à procura de
seis assassinos. Sabemos quem eles são, disse o oficial. Quem é que passou por aqui
esta manhã?

Pausa.

Eu digo-vos. O cérebro precisa de uma renovação. Deriva. Se tivesse dinheiro para


comprar um novo e se eles o vendessem, trocava-o já amanhã. Vi um carro passar por
aqui hoje de manhã, sim – ou foi ontem de manhã? Podia passar um exército inteiro e
eu não teria certeza. Quando vi este carro, disse para mim mesma: “Estranho”. Ia um
oficial a conduzir, com um chapéu como o seu, senhor. Parecia um homem disfarçado.
Talvez fosse um dos homens que você procura, senhor, um dos assassinos. O chapéu
dele também lhe caía sobre a cara, como o seu. Como se quisesse esconder algo.
Como se estivesse a esconder a cara. Já não me lembro se foi hoje de manhã ou
ontem. Se calhar roubou o carro, está a perceber? Foi ontem? Quem me dera saber.
O melhor que tem a fazer é perguntar aqui aos meus primos. Só vimos moscas,
responderam eles e os alemães partiram. Assim que o carro deles desapareceu, o
mais jovem dos resistentes caiu no chão. Levaram-no até ao celeiro e eu fiquei com
ele. Tens mãos muito gentis, disse-me ele. Gentis! Ri-me. Chamava-se Saint Just. O
que vais fazer quando a guerra acabar, Saint Just? Também vais ser juiz como o teu
pai? Posso fazer-te um curativo? Não, respondeu ele. Senta-te aqui. Tens mãos tão
gentis! Como feno seco.

Pausa.

Os dois homens partiram na manhã seguinte. Vinte e quatro horas depois, ouvimos
notícias de que um grupo de resistentes tinha sido surpreendido num acampamento.
Os homens – entre eles, o homem do Dranse e o Saint Just – foram feitos prisioneiros
e transportados para A… e, aí, foram fuzilados. Algumas pessoas disseram que a
Milícia nunca os encontraria se não tivesse sido informada por alguém.

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MARIE
Pára! Por amor de Deus, mulher, pára! Uma mulher da tua idade devia ter vergonha!

EDMOND
Quem dorme com cães, acorda com pulgas.

HENRI
Essa é boa! Quem dorme com cães, acorda com pulgas.

LUCIE
Nunca lhes perdoou o insulto e começou a desaparecer, tal como fazia quando era
criança. Pouco depois já não falava com ninguém, dormia no estábulo, comia sozinha.
Para evitar comer mais do que uma refeição, enrolava cigarros. Os irmãos
ameaçavam bater-lhe se a vissem fumar no estábulo.

Coloca um cigarro na boca. Finge acendê-lo. Os outros acendem os cigarros.

JEAN
O fim chegou com o fogo. O celeiro dos Cabrol ardeu numa manhã de Outono. O
Mayor não queria envolver as autoridades e foi a mulher que se lembrou da solução
que, finalmente, ele viria a propor ao Henri e ao Edmond. Eles aceitaram com grande
entusiasmo. E, com esta proposta, chegava ao fim a primeira vida da Cocadrille.

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SEGUNDA VIDA
JEAN
O modo como um camponês mede as distâncias depende da forma como cultiva a sua
terra. Se plantar melões no meio de cerejeiras, quinhentos metros é uma distância
considerável. Se criar vacas em pastagem na montanha, cinco quilómetros não é
longe. Para a Cocadrille, que não podia cultivar nada porque agora não tinha terra,
vinte quilómetros tinha-se tornado uma curta distância. Ela caminhava depressa. As
pessoas comentavam a forma como ela, apesar de ser velha, ainda conseguia
desaparecer num ápice.

Numa manhã de Setembro, em 1967, ela partiu cedo para a floresta no planalto, a oito
quilómetros do local onde agora vivia. Os juncos eram mais altos do que ela. Ao
pegar-lhes, ela cantarolava. Isto era para afugentar as cobras. Dobrava os juncos e
apanhava as bagas e guardava-as na mão esquerda. As bagas eram quentes e
granuladas como mamilos. Segurava-as na sua mão enrugada, calejada e suja, sem
as esmagar. Quando já não conseguia guardar mais, voltava-se e esvaziava aquele
punhado de bagas para dentro de um frasco de madeira fina.

Eu estava a observá-la. Para minha surpresa, vi uma velhota muito pequena, vestida
de negro, entre as árvores. Desde o meu regresso, só tinha ouvido falar da Cocadrille
através de outras pessoas.

Quando voltei a olhar na direcção da floresta, ela tinha desaparecido. Nem um ramo
se movia. Uns dias antes, tinha ouvido algumas crianças a falar sobre ela, quando
saiam da escola.

MIÚDO A
Ficas cheio de medo só de a encontrares na estrada.

MIÚDO B
Porque é que ela vive lá em cima, tão longe, junto ao precipício?

MIÚDO A
A minha mãe diz que ela apanha marmotas e que as esfola.

MIÚDO B
O meu pai diz que ela tem uma fortuna escondida, lá em cima.

MIÚDO A
Porque é que ela não tem um cão para, ao menos, lhe fazer companhia?

MIÚDO B
As bruxas não têm cães, têm gatos.

MIÚDO A
Se ela olha para ti, tens que abrir a boca – já reparaste nisso – não consegues mantê-
la fechada!

JEAN
Eu caminhava pela floresta, de cabeça baixa, à procura de cogumelos. Com a idade
acabei por ficar um pouco surdo. Algo fez com que eu olhasse para o lado. A mulher
de vestido negro estava a menos de dez metros de mim, agachada junto a uma
árvore, a segurar o vestido, levantado acima dos joelhos esfolados.

16
LUCIE
O viajante deve sempre tirar o seu chapéu perante aquele que está a cagar!

É o Jean!

Reconheces-me?

JEAN
És a Cocadrille.

LUCIE
Não!

Porque é que me estás a seguir?

JEAN
Vim aqui acima à procura de cogumelos.

LUCIE
Encontraste algum?

JEAN
O quê?

LUCIE
Encontraste algum cogumelo?

Fica sem resposta.

Dá-me.
JEAN
Para quê?

LUCIE
É meu! É tudo meu… Tudo o que cresce aqui é meu. Não foi plantado por ninguém.
Dá-me!

Volta-se para sair. Resmunga.

Sempre voltaste!

JEAN
Sim, voltei.

LUCIE
Estiveste fora demasiado tempo.

JEAN
Lembrei-me do caminho cá para cima.

LUCIE
Vieste cá para me espiar.

JEAN

17
Espiar?

LUCIE
Espiar, sim!

JEAN
Porque é que eu quereria fazer uma coisa dessas?

LUCIE
Então dá-me os cogumelos.

JEAN
Não.

LUCIE
Enquanto estiveste fora, tudo mudou.

JEAN
Deve ter mudado muita coisa quando deixaste a quinta.

LUCIE
Não deixei a quinta. Eles deserdaram-me.

Casaste?

JEAN
Sim.

LUCIE
Então, porque é que voltaste sozinho?

JEAN
A minha mulher morreu.

LUCIE
És viúvo.

JEAN
Sou viúvo.

LUCIE
Tens filhos?

JEAN
Dois rapazes. A trabalhar nos Estados Unidos.

LUCIE
O dinheiro pode mudar tudo. Aquele que não tem dinheiro é como um lobo sem
dentes. E, para aquele que tem dinheiro, o dinheiro pode fazer tudo. O dinheiro pode
comer e dançar. O dinheiro pode tornar o sujo, limpo. O desprezado, respeitado. O
dinheiro até pode fazer o anão, grande.

JEAN
Ela usar a palavra “anão” chocou-me.

18
LUCIE
Eu tenho dois milhões!

JEAN
Espero que os guardes num banco.

LUCIE
Vai-te foder! Vai-te foder e desaparece!

Tirou-lhe o saco das mãos e saiu em direcção à outra parte da floresta, com
passadas exageradamente longas. Jean não protesta.

JEAN
Preciso do meu saco…

LUCIE
Sabes onde eu vivo!

JEAN
Dias mais tarde, fui lá para reaver o meu “haversack”. Meia hora de caminho, através
da estrada que sobe para Este da aldeia, leva-nos até uma coluna de pedra em cima
da qual está uma pequena estátua da Nossa Senhora.

A seguir à curva seguinte fica a casa onde a Cocadrille viveu a sua segunda vida. A
proposta da mulher do Presidente da Câmara era a de que a Cocadrille aí vivesse livre
de qualquer renda. Aí, ela estaria suficientemente longe da aldeia para causar
problemas a alguém e a lei não seria invocada contra ela.

Bate à porta.

LUCIE
Quem é?

JEAN
Jean.

LUCIE
Vens tarde demais.

JEAN
Ainda não são oito e um quarto.

A porta abre-se timidamente.

LUCIE
O que é que queres?

JEAN
Vim buscar o meu saco.

LUCIE
A esta hora!?

JEAN
Não vou entrar.

19
Ela abriu a porta completamente.

LUCIE
Ofereço-te um café.

Ela continua a fazer o que estava a fazer antes de ter ido abrir a porta. Ela
junta as avelãs todas num cesto e pendura-as numa balança.

Merda! Merda! Não consigo ver com esta luz.

JEAN
Seis quilos e trezentos.

LUCIE
Há três anos que não tenho visitas. O último a visitar-me foi Monsieur le Curé, em
Julho de 1964. Puseram-me aqui para me tirarem do caminho. Porque é que não tiras
os óculos? Fazem com que pareças um padreco.

JEAN
Se não consegues ler, tu é que devias usar óculos.

LUCIE
Ler! Ler!

Senta-te na cadeira!

JEAN
O Henri e o Edmond nunca te visitaram?

LUCIE
Os meus irmãos?

Para si.

Quem dorme com cães, acorda com pulgas.

JEAN
Foi aí que ela me contou a história dos irmãos e dos resistentes.

Alto.

LUCIE
Eles são traidores.

JEAN
Traidores?

LUCIE
Foram eles que informaram a Milícia.

JEAN
Tens alguma prova?

LUCIE

20
Não preciso de provas. Conheço-os muito bem.

JEAN
Porque é que eles fariam uma coisa dessas? A guerra estava quase no fim. Toda a
gente sabia que os Alemães estavam a perder.

LUCIE
Que espécie de patriota eras tu? A mil quilómetros daqui.

JEAN
Dez mil.

LUCIE
A única vez que os meus irmãos aqui vieram foi quando trouxeram a minha mobília.
Arranjaram desculpas o dia todo, a dizer que tinham que acabar de plantar as batatas.
Foi em Abril de 1949. Só depois de comerem a sopa é que carregaram a carroça.
Depois, partimos, escondidos pela escuridão. Sabes porquê? À luz do dia, eles tinham
vergonha de serem vistos a mandar a irmã embora. Quando aqui chegámos estava
escuro como está agora. Os meus próprios irmãos, alimentados com o leite da minha
mãe, esperma do mesmo pai, deixaram-me aqui no escuro, uma certa noite. Nem
sequer tinha uma lanterna. Deviam pagar-me todos os meses. Pagar-me o caralho!
Foi a última vez que os vi, através dessa janela. Vi a carroça partir e quando percebi
que já estava longe, segui-a. Fui até à Nossa Senhora.

Esperei e falei com o Papá e com a Mamã. Deviam ter conhecido melhor os vossos
filhos, disse-lhes. Sempre olharam para eles como se fossem crianças. Merda! Não
souberam de onde veio o mal deles, pois não? Morreste, não foi Papá, sem saber que
para fazer uma criança é preciso uma mulher, um homem e o Diabo. É por isso que é
tão tentador! Vocês, carcaças com as costas voltadas para tudo! Não vos vou deixar
sofrer. Juro.

JEAN
No escuro, o quarto cheirava a sacas e terra. No silêncio e na escuridão, nós os dois
podíamos muito bem estar nos nossos caixões.

LUCIE
Queres comer sopa comigo?

JEAN
Tenho uma garrafa de vinho.

LUCIE
Então pensaste que ias ficar!

JEAN
Não, comprei-a para ter em casa.

LUCIE
Depois de quarenta anos de abstinência, o que é que tens para me mostrar? Um litro
de vinho!

JEAN
Um pouco mais.

LUCIE

21
O quê?

JEAN
O suficiente para viver até me mudar para a Grande Avenida dos Desaparecidos.

LUCIE
Então voltaste para morrer.

JEAN
Já não somos novos.

LUCIE
Ainda não estou preparada para morrer.

JEAN
A morte não pergunta se estás pronta.

LUCIE
Vais viver bem?

JEAN
Não sou rico. Não fiz a fortuna que tinha sonhado. Não tive sorte. Sentas-te sempre no
escuro?

LUCIE
O que é que encontraste na América do Sul – electricidade? Vou para a cama quando
não consigo ver. Vais ficar com a casa da tua mãe na aldeia?

JEAN
Comprei-a aos meus irmãos.

LUCIE
Quando é que fizeste isso?

JEAN
Mandei-lhes dinheiro quando o tive.

LUCIE
Foste fiel à tua mulher?

JEAN
O que um homem faz com a sua própria pele é lá consigo.

LUCIE
Há quarenta anos que não falava com ninguém depois de anoitecer a não ser com as
minhas galinhas e o bode, quando ainda tinha um.

JEAN
Devolve-me o meu saco e eu vou-me já embora.

LUCIE
Não! Espera! Vou acender a lamparina. Podes baixá-la? Senão tenho que me pôr em
cima de uma cadeira.

Ela mexe a sopa que estava ao lume.

22
Já estás quente? Não consigo semear uma só batata para ti. Eles levaram-nas todas.

Para ele.

Então, não trouxeste nada contigo?

JEAN
Não trouxe grande fortuna, não.

LUCIE
Isso é óbvio.

Jurei sobreviver e ficar rica e fiquei mesmo. Não há um único homem na terra que
mereça um copo de vinho branco pago com o meu dinheiro! A partir de agora, vou
beber vinho à noite.

JEAN
A que horas te levantas de manhã? Tenho que ir.

LUCIE
A tempo de ordenhar.

JEAN
Não tens vacas.

Levanto-me a tempo de ordenhar. Todas as manhãs, há vinte anos, desde que aqui
estou.

JEAN
Às cinco?

Ela abana a cabeça.

Tens um despertador?

Aponta para a cabeça.


LUCIE
Aqui.

JEAN
E amanhã?

LUCIE
Hoje à noite é uma excepção.

Segura o copo para ele o encher.

Hoje vou contar-te sobre estes vinte anos.

JEAN
O que é que eles têm a ver comigo?

LUCIE
Voltaste pobre mas ao menos viste o mundo.

23
Na primeira noite, dormi aqui em baixo. Levei um ano inteiro para me mudar para o
palheiro. Sentia a falta dos animais no estábulo e a ideia de dormir a meio caminho do
céu, ao frio, não me agradava. Prefiro dormir no chão. E tu, não?

JEAN
Durante uns tempos, dormi no décimo oitavo andar.

LUCIE
E o que é que isso te trouxe?

Na primeira noite aqui, sonhei com a Nossa Senhora. Ela contou-me que tudo o que
as pessoas saíam para apanhar eu deveria apanhar primeiro e levar para a cidade.
Por isso é que as mãos da Nossa Senhora estavam abertas e a apontar para a relva
na margem da estrada.

Lá em cima, colhi cogumelos. Só desci depois de apanhar dois quilos. Ainda sei onde
é que me espera um cogumelo, como uma cadela com o cio, à procura de um cão.

Havia uma canção sobre o comboio que vai até à cidade fronteiriça junto a B.. La
Mélanie costumava cantá-la. O combóio da canção deixava a cidade ao meio dia e
viajava tão devagar e parava tantas vezes que nunca chegava à aldeia antes de
anoitecer. Um facto que deliciava os amantes…

Canta.

JEAN
Quando o combóio chegou ao final da linha, ela seguiu a multidão.

Depois de duas horas à procura, encontrou o mercado.

Escolheu uma esquina, à sombra. Colocou os cestos no chão e esperou que os


clientes aparecessem para comprar. Ficou à espera a manhã toda. A meio do dia, viu
todos os outros comerciantes a arrumar as suas bancas. Ela não tinha vendido nada.
Não tinha aberto a boca.

A caminho da fronteira, entrou num café para pedir um copo de água. Não tinha visto
uma única torneira ou fonte nas ruas. O proprietário do café espreitou para dentro do
cesto. Sem dizer uma palavra, pegou num e virou-o nos dedos.

Dou-te cem pelo cesto todo.

Ela pára de cantar, mas a música continua.

LUCIE
Tem dois quilos aqui. Pode pesá-los.

HOMEM
Não preciso.

LUCIE
Estão a vendê-los a quinhentos ao quilo no mercado.

HOMEM
Quanto é que tu pesas? Ainda podias ganhar uns trocos. Dou-te mil e duzentos.

24
LUCIE
Tinha que aceitar o preço. Era a última oportunidade.

Continua a cantar.

JEAN
Quando chegas a uma cidade, onde tanta coisa está a acontecer e onde tanto está a
ser feito e mudado, apercebes-te, com espanto, que não controlas nada. É como ser
uma abelha contra a moldura de uma janela. Vês os acontecimentos, as cores, as
luzes, no entanto, algo que não consegues ver separa-vos. Com o camponês é a
suspensão forçada dos seus hábitos de trabalho. É por isso que as mãos deles
pendem tão estupidamente.

Numa tarde, foi empurrada, pela multidão, para dentro de um elevador com um grupo
de mulheres.

Faz o sinal da cruz e sussurra.

LUCIE
Emile, se ao menos me conseguisses ver agora!

OPERADOR
Café, chá, chocolate, pastelaria, madame.

O que é que posso fazer por si hoje, madame?

LUCIE
Dê-me oitocentos Marlboro.

OPERADOR
Com estes maços, vermelhos e brancos, do que ela considerava tabaco sem sabor,
ela conseguia duplicar o lucro. Cigarros americanos vendiam-se pelo dobro do preço
no lado dela da fronteira.

Enquanto bebia chocolate, o total das suas economias era tão consolador como a
música que vinha dos altifalantes pendurados no tecto ornamentado. Todas as
semanas, todos os anos, todas as décadas, a quantia aumentava.

LUCIE
Quando tens dinheiro suficiente, podes manter a cabeça erguida mesmo quando estás
toda nua!

JEAN
Repetiu ela para mim, desde o outro lado da mesa.

LUCIE
Em breve será Inverno. Depois fico sozinha. E a neve obriga-me a ficar dentro de
casa. No Natal, levo azevinho para B.... Recebo mil por um bom ramo. No resto do
tempo, faço tricô. Pullovers e gorros para uma loja em B....

Passo o Inverno a tricotar. Não há nada aqui, dia após dia, excepto as duas agulhas e
eu. Quando um carro passa e não pára – e eles nunca param – penso em matar o
condutor. Porque não?

25
JEAN
Porque é que me contas isto tudo?

LUCIE
Para saberes o que eu estou a dizer.

JEAN
Poupaste realmente dois milhões?

Estive a ouvir a noite toda. Não é que estejas a esconder coisas de mim!

LUCIE
Se quiseres ouvir mais, tenho mais para te contar.

Senta-te. Vou comer a sopa.

JEAN
Não posso ficar muito tempo.

LUCIE
Tens tanto que fazer!

O que é que te posso pagar?

JEAN
Um pouco de tinto.

LUCIE
Acarto tudo para aqui às costas!

JEAN
E o vinho branco é mais leve?

Ela ri-se.
LUCIE
Espera.

Ela sai rapidamente e regressa vestida de noiva.

JEAN
Por amor de Deus! O que é que pensas que estás a fazer?

LUCIE
Meu pobre Jean, estás a cagar-te todo!

JEAN
Tens realmente um gosto especial pelo teatro!

LUCIE
Não há teatro em nada do que faço.

JEAN
Então, porque é que te vestes?

26
LUCIE
Da última vez, despi-me!

JEAN
Vestes-te assim de cada vez que convidas um homem da aldeia para vir aqui?

LUCIE
Eu tenho o suficiente. Há vinte anos que “scanveged”. Quero gozar o resto da minha
vida. Quero mudar-me de volta para a aldeia. Tens uma casa na aldeia e pouco mais.
Estou preparada, agora, para comprar uma parte da tua casa para mim até eu morrer.
E pago-te logo. O resto das minhas economias, guardo-as para mim. Estás
interessado nisso?

JEAN
A casa é pequena demais.

LUCIE
Eu sei.

JEAN
O modo como vives não é o modo como eu posso viver. Com a minha idade não vou
mudar.

LUCIE
Eu posso mudar.

JEAN
Porque é que não alugas uma casa só para ti?

LUCIE
Não há nenhuma. E seria um desperdício de dinheiro.

JEAN
Já pediste a mais alguém para te receber?

LUCIE
Só tu me conheces!

JEAN
O que tu queres é que eu case contigo! Foi isso que tu sempre quiseste!

LUCIE
Sim. Na igreja, com este véu.

JEAN
Estás louca!

LUCIE
Não há ninguém que te impeça desta vez. Estás sozinho.

JEAN
Deus me proteja.

LUCIE
Pelo casamento, pago-te à parte. Ofereço-te um dote.

27
JEAN
Não podes ser assim tão rica!

LUCIE
Podemos falar de dinheiro assim que chegarmos a um acordo.

JEAN
Não posso casar contigo.

LUCIE
Jean!

JEAN
Novamente, ela disse o meu nome como tinha dito há quarenta anos atrás e, mais
uma vez, separou-me, diferenciou-me de todos os outros homens. Nas montanhas, o
passado nunca está para trás, está sempre ao lado. Desces da floresta ao anoitecer e
um cão ladra num lugarejo. Há um século atrás, no mesmo local, à mesma hora do
dia, um cão estava a ladrar, ao ouvir um homem descer a floresta, e o intervalo entre
as duas ocasiões não é maior do que uma pausa no ladrar.

Desta vez, o que me separou de todos os outros homens chamados Jean, Théophile
ou François não foi o desejo, que é maior do que as palavras, foi o sentido de perda,
uma angústia profunda. Quando, na primeira vez no chalet, ela disse o meu nome,
ofereceu-me outra vida diferente daquela que eu estava prestes a viver. Olhando para
trás, agora vi a esperança da outra vida que ela me ofereceu e o desespero da outra
que escolhi. Ao dizer o meu nome, na segunda vez, era como se ela apenas tivesse
feito uma pausa por um momento e depois tivesse repetido a oferta; no entanto, a
esperança tinha desaparecido. As nossas vidas tinham-na dissolvido. Eu odiava Lucie
Cabrol. Facilmente a teria matado. Fez-me ver a minha vida como se a tivesse
desperdiçado. E eu odiava-a por isso. No entanto, fui forçado – pela primeira e última
vez nesta vida – a falar-lhe com ternura.

Dá-me tempo para pensar, Lucie!

Ela sorri.

LUCIE
Vem dizer-me quando quiseres, Jean.

JEAN
Antes de lhe ter dado a minha resposta, ela morreu.

O corpo foi descoberto pelo carteiro. Ela tinha sido derrubada por um machado. A
lâmina tinha-lhe aberto o crânio. Os sinais indicavam que ela tinha dado luta. Apesar
das extensas buscas, a sua fortuna nunca foi encontrada. A polícia interrogou quase
toda a gente na aldeia, incluindo eu. No entanto, não fizeram qualquer detenção e o
assassino não foi identificado.

Ela foi enterrada um mês depois do Dia de Todos os Santos. Estavam pouco mais de
cem pessoas no funeral. A sua morte tinha sido uma espécie de desgraça para a
aldeia. Ela tinha sido morta por causa da fortuna e só alguém da aldeia saberia da sua
existência. Havia muitas flores sobre o seu caixão e a grande coroa de flores, que eu
tinha encomendado, não se destacava imediatamente. O caixão era tão pequeno.
Parecia o funeral de uma criança.

28
TERCEIRA VIDA
LUCIE
Queres que te diga quem ele é? Está no meio de vocês, aqui no cemitério, o ladrão.

JEAN
O assassino?

LUCIE
É o ladrão que eu não posso perdoar!

O que é que farias se eu gritasse o seu nome?

JEAN
Eles não te vão ouvir.

LUCIE
Tu vais ouvir-me, Jean. Podes ouvir-me quando eu digo Jean, não podes?

JEAN
Sim.

Não fui eu.

LUCIE
Pensaste em matar-me.

Decidiste não casar comigo?

JEAN
Não tinha decidido.

LUCIE
Então vou deixar-te até te decidires.

JEAN
No Dia de Todos os Santos o cemitério estava cheio de flores e muitas pessoas
estavam aos pés das campas dos seus amados tentando escutar os mortos. Naquela
noite, deitado na minha cama, tornei a ouvir a sua voz. Estava tão perto como se
estivesse na almofada ao lado da minha.

LUCIE
Aprendi uma coisa, Jean. Em todo o mundo, os mortos bebem no Dia de Todos os
Santos. Todos bebem. Ninguém recusa. Todos os anos é a mesma coisa, bebem até
ficarem bêbados. Eles sabem que têm que visitar os vivos. Por isso, embebedam-se!

JEAN
Com o quê?

LUCIE
Com água da vida!

JEAN
Parece que estás bêbada agora.

29
LUCIE
Porque é que pensaste em matar-me?

JEAN
Sabes que não fui eu quem roubou as tuas economias?

LUCIE
Porque é que quiseste matar-me?

JEAN
Estás bêbada.

LUCIE
Já te disse, ninguém vem se estiver sóbrio.

JEAN
A Mélanie veio?

LUCIE
Está a fazer café.

JEAN
Para te pôr sóbria!

LUCIE
O café preto dos mortos não consegue fazer isso.

JEAN
Então, sempre que falas comigo estás bêbada.

LUCIE
Não. Os mortos esquecem os vivos. Eu ainda não esqueci.

JEAN
Quanto tempo demora a esquecer?

LUCIE
Eu sei porque é que pensaste em matar-me.

JEAN
Então porque é que perguntas?

LUCIE
Quero ouvir-te dizê-lo.

JEAN
Estás sozinha, Lucie?

LUCIE
Podes ver.

JEAN
Não consigo ver nada no escuro.

30
LUCIE
Admite-me a verdade e verás.

JEAN
Sim, pensei em matar-te na noite em que te vestiste.

Foste ver o homem que te matou mesmo?

LUCIE
Não me interessa.

JEAN
Disseste que nunca perdoarias o ladrão.

LUCIE
Mudei de ideias. Já não preciso das minhas economias. Porque é que pensaste em
matar-me?

JEAN
Ias forçar-me a casar contigo.

LUCIE
Forçar-te! Forçar-te! Como?

Sai.

JEAN
Ela não regressou na manhã seguinte. Nem à noite. Nem no Inverno seguinte. Depois
o tempo ficou quente. A minha circulação melhorou. O sangue de um velho a
responder um pouco ao sol. Subi a montanha para apanhar amoras.

LUCIE
Jean! Quantas apanhaste?

JEAN
Metade de um balde.

LUCIE
Lento como sempre!

JEAN
Tenho calos debaixo do queixo por, toda a minha vida, o ter repousado na pega de
uma pá.

LUCIE
Queres ajuda para apanhá-las?

JEAN
Se quiseres.

Na última vez que despejei uma mão cheia para dentro do balde, tive a impressão que
o nível da fruta tinha crescido duas vezes mais depressa do que antes.

Endireitei as costas e, pela primeira vez desde a sua morte, vi-a. Ela tinha um lenço
atado à cabeça. Enquanto eu observava, ela escalava a montanha.

31
MÉLANIE
Ela é tão fácil de perder como um botão.

JEAN
Lucie!

LUCIE
Podes ver-me agora?

Que idade tenho?

JEAN
Estava na turma de 1920. Isso faz com que tenhas 68. Não, 67.

LUCIE
Nasci de manhã. O meu pai estava a ordenhar no estábulo. Nuvens brancas, como
fumo, entravam pela porta. A minha mãe tinha a irmã e uma vizinha com ela. Nasci
muito depressa.

JEAN
Agora sabes tudo sobre a tua vida.

LUCIE
Se te contasse tudo o que sei, levaria 67 anos.

Vem comigo.

JEAN
Por oposição ao dia de Santa Lucie, como dia mais curto, há Santa Audrey, como dia
mais longo. Pões uma camisa lavada, acabada de engomar pela tua mãe. Penteias o
cabelo e olhas-te ao espelho. O que tu vês é um jovem de dezasseis anos para quem
tudo poderá acontecer este Domingo. Domingo a seguir a Domingo, estação a seguir
de estação e tu vais de árvore em árvore: ainda não há floresta. Depois vem um dia
em que só há uma floresta e tens que viver nela para sempre: então, todos os dias são
curtos, no Verão ou no Inverno. Nunca pensei emergir dessa floresta.

LUCIE
Reparei em ti, pela primeira vez, na escola. Fazias menos barulho do que os outros
rapazes e eras metódico. Levavas sempre uma faca nas mãos, sempre a esculpir um
pequeno pedaço de madeira. Uma vez cortaste-te e vi-te mijar para cima do corte para
o desinfectar.

JEAN
Onde estamos?

LUCIE
É aqui que vou construir.

JEAN
A quem pertence?

LUCIE
A mim.

32
JEAN
A ti!

LUCIE
Os mortos são donos de tudo.

JEAN
Então agora tens terra.

LUCIE
Terra mas não estações.

JEAN
Como é que plantas?

LUCIE
Não planto. Não há razão para isso.

JEAN
Porque é que não dão batatas para os que têm fome?

LUCIE
Não podemos.

JEAN
Podias passar algumas para o outro lado.

MARIUS
Lucie!

Para JEAN.

LUCIE
Cortaram as árvores no último mês de Setembro, no dia em que fui morta com um
machado.

MARIUS
Quinze para as colunas, uma dúzia para as traves-mestras, quarenta árvores com
vinte anos para as vigas, esqueço-me de quantas foram precisas para o soalho.
Cortámo-las todas quando o machado entrou na cabeça dela. Ela disse-nos mais
tarde que nos tinha ouvido serrar na floresta.

LUCIE
A primeira coisa que fiz foi trazer-vos cidra para todos. E queijo e pão, não foi? Sabia,
exactamente, onde vocês estavam.

ARMAND
Estávamos a começar a ficar com fome. Tudo bem, Lucie?

JEAN
Armand que tinha morrido à fome. Gustave, que tinha caído da montanha. Georges,
que se enforcou porque sabia que ia ficar pobre. Adelin, que tinha sido morto por uma
árvore na floresta. Mathieu, que tinha sido atingido por um raio. Michel, que se perdeu
numa avalanche. Porque é que eles estão todos aqui?

33
LUCIE
Vieram ajudar-nos. Cada um trouxe comida e bebida para o jantar de hoje. Eles são
bons vizinhos.

JEAN
Porquê apenas...

LUCIE
Apenas o quê, Jean?

JEAN
Os que morreram violentamente.

LUCIE
São os primeiros que tu vês.

JEAN
E aqueles que morreram pacificamente?

LUCIE
Não há muitos que morram nas suas camas. É um país pobre.

JEAN
Porquê primeiro...?

LUCIE
Baixa-te.

Ela beija-o.

JEAN
Quem é que vai viver no chalet?

MARIUS
Estás mais quente na cama com uma mulher. Durante toda a guerra não pensei em
mais nada, só pensava em acariciar a Mélanie na cama. Alguns tinham relações com
burros. A mim nunca me interessou. Um animal não é suficientemente meigo. Quando,
finalmente, regressei a casa, levei-a para casa e tivemos o nosso quarto filho. Mesmo
quando já estava velho e tinha perdido o meu calor, pensava em ir para a cama,
quando estava a trabalhar sozinho nos campos. Por vezes, só de pensar nisso, ficava
quente. Alguns chamam-me preguiçoso. Era a minha ideia de felicidade. Vais ver isso
um dia, se ainda não vês agora – é melhor do que dormir sozinho.

JEAN
Mas ela sempre…

MARIUS
Ah! Meu pobre Jean, meu pobre futuro genro, agora é que ela está em idade de casar.
Por que outra razão estaria a construir um chalet para ela?

JEAN
Nunca foste carpinteiro e sessenta e oito não é idade para casar!

MARIUS

34
Podemos ser o que quisermos. É por isso que aqui não pode haver injustiças. O
nascimento pode ser um acidente mas não há nada de acidental na morte. Nada nos
obriga a ser o que éramos. A Cocadrille podia ter dezassete anos, podia ser alta, com
ancas largas e mamas das quais não conseguirias desviar os olhos – só que, assim,
não a reconhecerias, pois não?

Todos os homens que vês aqui a trabalhar casaram com ela!

JEAN
O Georges não!

MARIUS
Georges foi o primeiro. Casaram no dia a seguir ao funeral dela. As damas de honor
tiraram as flores da campa. Aqueles que morrem violentamente caem nos braços uns
dos outros.

JEAN
E eu? Vou morrer violentamente?

MARIUS
Queres casar com ela?

JEAN
A fachada da casa estava no chão, acabada, à espera de ser erguida.

MARIUS
Está tudo pronto!

Música. Começam o trabalho.

Um! Dois! Levanta!

E outra vez. Um! Dois! Levanta!

JEAN
Sempre me disseram que os mortos descansavam depois de uma vida inteira de
trabalho.

LUCIE
Quando recordam o passado, trabalham. Que mais poderiam recordar?

JEAN
Sim, devia ter casado com ela! Disse bem alto. Os mortos estavam perdidos nos seus
próprios pensamentos. Ninguém respondeu.

TODOS
Um! Dois! Levanta!

JEAN
Sim, caso contigo.

Ela pega-lhe na mão. Páram de trabalhar. Os outros continuam.

LUCIE
Não precisas de trabalhar. Eles têm ajuda suficiente. Podemos sentar-nos ao sol.

35
JEAN
E a comida? Está tudo preparado?

LUCIE
Tudo.

JEAN
Não vejo mesas ou bancos.

LUCIE
Então, meu contrabando, consegui trazer-te para aqui.

JEAN
Na catequese, sabias de cor as respostas de que eu não me lembrava.

MASSON
O que é a avareza?

LUCIE
Avareza é um desejo excessivo das coisas boas da vida e, particularmente, de
dinheiro.

MASSON
O amor pelas coisas boas da vida justifica-se?

LUCIE
Sim, existe um amor justificado das coisas boas da vida e este amor inspira
previdência e poupança.

MARIUS
Queres pregar o bouquet?

JEAN
Ela esperou que eu respondesse. Conseguia sentir o seu olhar através dos olhos
entreabertos. A força da minha resposta surpreendeu-me.

LUCIE
Vai.

JEAN
Ao descer a escada, depois de pregar o bouquet, vi que a Lucie tinha desaparecido.
As vacas estavam no estábulo. Uma estava a lamber a cabeça da vizinha. A língua
era tão forte que, quando lhe lambia o olho, forçava-o a abrir, como devemos fazer
quando estamos à procura de algo que nos entrou no olho e está a doer.

Ao ver aquele olho, vi a verdade. A Cocadrille não iria regressar. Ou, se voltasse,
voltaria como nada.

Lucie! Lucie!

Pausa.

Não tinha voltado à casa da Cocadrille desde a noite em que ela desceu do sótão com
o véu de noiva na cabeça. Bati à porta. Empurrei-a porta e entrei. A mesa e a cadeira

36
ainda lá estavam. Abri o forno. Estava cheio com os restos recentes de um
piquenique. Na parede, junto à prateleira, tinham sido gravadas umas iniciais. Não
eram minhas nem dela. E ao lado delas estava um coração desenhado, com a forma
da cabeça de uma coruja. E uma seta atravessava-o.

Subi a escada para o sótão. Ela tinha sonhado com aquela escada. Ela estava na
cama, no sótão, e um jovem rapaz subia a escada e começava a despir-se para se
deitar na cama com ela. Ela podia ver que ele era lindo. Ele deslizava por debaixo dos
lençóis, ao lado dela, e ao sentir o calor do rapaz, ela acordava.

A cama também tinha desaparecido.

Agora, quando acendo o fogão, pela manhã, digo para mim mesmo: eu e o fogo
somos as únicas coisas vivas nesta casa; o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos, o
cavalo, as vacas, os coelhos, as galinhas, todos partiram. E a Cocadrille morreu.

Digo isto e, nem por isso, acredito em tudo. Por vezes, parece que me aproximo do
limite da floresta. Nunca mais terei dezasseis anos; se deixar a floresta será no lado
mais distante. O velho animal, quando sente a sua força desaparecer esconde-se
mesmo no centro da floresta, não sonha em deixá-la. Há momentos em que vejo algo
diferente. Momentos em que o céu azul me faz recordar a Lucie Cabrol. Nestes
momentos, torno a ver o telhado que erguemos, construído com as árvores. E então
convenço-me que será com o amor da Cocadrille que irei deixar a floresta.

37

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