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Rogério Almeida
-2006-
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Dedicado aos homens e mulheres do Bico do Papagaio que conspiram por dias
melhores no campo e na cidade.
Agradecimentos
Quantos braços podem somar na travessia de uma canoa à outra margem do rio? Na
modesta travessia que se realiza através deste livro sou grato a Rildo Brasil, que cedeu o
desenho da capa. Brasil é artista radicado no município de Marabá, sudeste do Pará.
Não é menor a gratidão a Luciana Carla, que fez a revisão, e ao chapa Francisco
Junior, que se empenhou no processo de edição, e ainda fez a orelha do livro. Seria um
herege em não ressaltar o talento do punk e quadrinhista Joacy Jamys na diagramação.
Bem como à gentileza da cessão de fotos por parte do Centro de Educação e Cultura
do Trabalhador Rural (CENTRU-MA), Centro de Educação Pesquisa e Assessoria Sindical
e Popular (CEPASP-PA), Comissão Pastoral da Terra (CPT/Marabá-PA), Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI- Regional Sudeste do PA),
Antônio Marques (Gordo). Enfim, aos homens e mulheres das terras do Araguaia-
Tocantins.
EXPEDIENTE
Capa: Caboclo quebrando ouriço da Castanha do Brasil - Rildo Brasil
Fotos: CENTRU, CEPASP, CPT de Marabá, FETAGRI, Antonio Marques (Gordo)
Referência bibliográfica
Índice
1. Movimentos Sociais – História – Araguaia, Rio (PA) –
Tocantins, Rio (PA). 2. Camponeses – Jornalismo – Araguaia, Rio
(PA) – Tocantins, Rio (PA). I. Título.
Sumário
Sobre o autor
Apresentação
Antes do primeiro ato
Capítulo I – Chão palmilhado: 40 anos de militância de Manoel da Conceição Santos
Capítulo VII – Visões do Estreito: uma peleja em torno de uma hidrelétrica no rio
Tocantins.
Sobre o autor
Rogério Almeida veio ao mundo no fim de agosto do ano de 1967, na cidade de São
Luís, Maranhão. É graduado em Comunicação Social, habilitação em rádio, pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mas prefere se indispor com a palavra escrita.
Desde 1999 está radicado no Pará. Entre 1999 a 2003, morou em Marabá, trabalhando para
o Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP). Atualmente
reside em Belém e cursa o mestrado em Planejamento no Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde fez especialização
na mesma área. É colaborador do MST/PA e do Fórum Carajás. Nutre afeição pelo samba,
choro, maracatu, tambor de crioula, coco, bumba-meu-boi, e deseja um dia ter a elegância
de Paulinho da Viola.
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Apresentação
O trem que vai, o trem que vem!
Jorge Néri*1
A maioria expressiva dos paraenses nunca viu de perto um trem. Uma outra parte
considerável sequer sabe que um trecho de aproximadamente 1000 Km de terras, entre o
Pará e o Maranhão, é costurado por uma ferrovia que rasga a parte oriental do coração da
Amazônia rumo aos portos do Atlântico, de onde partem cargueiros para quase todos os
pontos do mundo, levando para além-mar ferro, cobre, ouro...
Estas pessoas não sabem também que, agregado às riquezas minerais incalculáveis,
esta ferrovia leva também suor, lágrimas, dor, sangue, fantasmas da miséria social e da
catástrofe ambiental que assola a população amazônica, que apesar disso ainda resiste, seja
ela ribeirinha ou extrativista, que paga às vezes com a vida a busca do sonho dourado nos
garimpos, e vê sua esperança definhar feito o sorriso das meninas prostituídas nas
corrutelas de beira de estrada.
Posseira, sem terra, quebrando coco. Escravo branco nas fazendas, cercadas por
marcas medievais do atraso e violência contra os direitos humanos. Rebelde como cabanos,
e balaios. Sorridentes como os Onalícios e Expeditos. Meninos como os do Araguaia. Com
traços de Fonteles, Oziel, Dezinho, Zé Goiano e tantos outros combatentes mortos. Vivos
como Manuel da Conceição e legiões inteiras de sem-terra que cortam para lá e para cá com
suas bandeiras vermelhas, sobre terras e história, como locomotiva vindo na contramão da
neocolonização, com a velocidade dos sonhos pintados de pátria, soberania, independência
e nação.
E aqui estamos. Fincados no coração da Amazônia, como um empecilho aos
grandes projetos dos “milicos do atraso“ ou do “Avança Brasil” dos ditadores
subservientes ao capital internacional.
Aqui estamos por séculos no coração da Amazônia. Aqui estamos, quem sabe, há
milênios antes que a história conhecesse o registro e a palavra portuguesa, com seus
códigos judaico-cristãos. Aqui estamos, e ficaremos pelos séculos que inda virão. E quando
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*Jorge Néri integra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST Pará).
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acreditarem todos que já não mais existimos, crentes de nosso extermínio, ainda assim
estaremos, feito memória, que há de cutucar um presente que desconhece a importância
civilizatória de nosso papel na história. Pretensão?
Em cada registro jornalístico de elementos de nossa realidade, produzido pela
pena crítica de Rogério Almeida, há dor e indignação. Há opressão violenta, mas também
lampejos de subversão. Há morte gotejando sangue em noites chuvosas, e vida,
conspirando nas madrugadas dos acampamentos.
É dessa matéria que são forjados os homens e mulheres da Amazônia do amanhã,
do Brasil do amanhã. Pretensiosamente seremos – ao destruir, sepultar o último símbolo da
opressão do capital sob os escombros da velha sociedade – aqueles cuja generosidade e
visão humanizadora e socialista do mundo, já presente em nossa herança, na vida comunal
de nossos antepassados, poderá ser um componente sem igual para a formação da grande
nação, do porvir de uma nova humanidade.
“Araguaia-Tocantins: fios de uma história camponesa” é lâmina de navalha
afiada e flor poética de resistência. Ligeireza da escrita de Rogério Almeida, que crava
profundo nos dados e na suavidade da palavra. Palavra escrita, que deve ser o registro
histórico daqueles que a escreveram com sangue nas terras dos Carajás, com águas do
Tocantins, com sonhos dos meninos do Araguaia.
Ói o trem... está passando...
Em quase dez anos de atuação nesta região, realizando trabalhos para entidades do
movimento social e popular, ele resolveu documentar neste livro, momentos cruciais da
trajetória de lutas, dores e conquistas de milhões de brasileiros que resolveram desafiar a
violência dos coronéis e palmilhar às custas de sangue o caminho da Reforma Agrária e da
Justiça Social, em um terra onde a lei da bala ainda impera, protegida pela vergonhosa
omissão do poder público.
Tive o prazer de ajudar “Pixote” na edição deste livro e pude constatar em cada
palavra, um grito de alerta sobre as sementes de impunidades, plantadas nos assassinatos de
trabalhadores rurais, cujos processos adormece na burocracia do Judiciário. Estas e outras
mazelas inerentes não apenas à região do Araguaia-Tocantins, e construídas por décadas de
abandono e impunidades são retratadas de forma incisiva, sem rodeios nem meias palavras.
Francisco Junior
Jornalista
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1. O Fórum Carajás é uma rede de organizações populares dos Estados do Pará, Maranhão e Tocantins, que debatem o
processo de colonização da região de Carajás, e a construção de propostas que viabilizam a reprodução econômica, social
e cultural das organizações populares.
oriental. As suas marcas podem ser encontradas nas estatísticas de dirigentes sindicais,
assessores, advogados, religiosos assassinados ao longo de três décadas de registros
organizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade vinculada à Igreja Católica e
criada em 1975.
O capítulo seguinte, Políticas Públicas para a Amazônia: na contramão da
vida, desnuda uma inquietação quanto ao modelo de desenvolvimento adotado na região. O
capítulo tem como fonte de interpretação da agenda de projetos para o vale do Araguaia-
Tocantins e a experiência do Programa Grande Carajás. Um dos desdobramentos é
internalização de passivos sociais e ambientais. Se na década de 1970 a inserção da região
ao resto do país orientava os planejadores, desde 1980 com a inauguração da Ferrovia de
Carajás para o escoamento do minério da serra do mesmo nome, o mundo passou a ser o
parâmetro.
O sexto capítulo, intitulado Cerrado: um solo fértil de sonhos e lutas, tenta
traçar a trajetória do que foi a experiência de ocupação do cerrado no sul e oeste do
Maranhão. Ele foi produzido a partir da leitura de trabalhos de pesquisa produzidos pelo
Fórum Carajás e da vivência com os camponeses do oeste e sul do Maranhão. Também
subsidiaram a elaboração deste texto a participação em espaços de discussão sobre o bioma
cerrado, além de visitas de campo, coletas de relatos diretos, produção de jornais murais
para as diversas entidades que atuam nesta região e a leitura do projeto Cerrado é Vida.
Durante o processo de debate sobre os textos pré-selecionados e revisão,
participei de audiências públicas no Maranhão e Tocantins. As mesmas tinham como tema
central a implantação da usina hidrelétrica de Estreito, município do oeste do Maranhão. O
acompanhamento destas audiências resultou na inclusão de mais um capítulo – Visões do
Estreito: uma peleja em torno de uma hidrelétrica no rio Tocantins. O texto traz
informações que podem ajudar a elucidar a assimetria do poder nos sertões do Brasil,
quando um projeto de grande porte envolve interesse de empresas multinacionais.
Novidade?
Já o oitavo, Apanhados do chão: folhas sobre a história recente do
campesinato no sudeste do Pará batizou a monografia de especialização em planejamento
no NAEA/2004. O capítulo tenta recuperar a história dos grandes acampamentos de
trabalhadores rurais realizados a partir de 1997.
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“O fim da ditadura militar não pôs fim ao cerco e esvaziamento das lutas camponesas
na Amazônia nem ampliou as possibilidades políticas de os trabalhadores rurais da
região construírem ou efetivarem um modelo alternativo de agricultura. Em princípio,
o enfraquecimento político e a repressão privada e pública contra os trabalhadores
rurais, ao longo do regime militar, deixou feridas que levarão muito tempo para
fechar. Enfraqueceu-os politicamente, enfraquecimento agravado pela já mencionada
fratura, que divorcia a luta camponesa e os grupos políticos. Ao mesmo tempo,
enfraqueceu em conseqüência de política deliberada de forçar o consórcio entre a
propriedade da terra e o grande capital, gerando as bases sociais e políticas de uma
nova elite da região”.
Mário Quintana
Nascido no colo de um dos estados mais pobres da nação, ele conseguiu escapar
das muitas enfermidades que vitimaram milhares de crianças pelos sertões do Brasil. No
Vale do Pindaré iniciou a construção de uma história de 41 anos de trabalho aprumada em
princípios humanistas e socialistas.
“São quarenta e um anos de estrada. Para a história, esse tempo não significa
nada”, sentencia Mané, um dos colaboradores na organização do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Maranhão. O militante histórico do PT
reconhece a importância do MST, mas admite que se desligou do mesmo por divergir de
metodologias. Mané avalia que os segmentos de oposição devem equacionar as diferenças.
“Ninguém deve queimar ninguém. Ato comum em algumas relações internas do
movimento popular. Devemos entender que o adversário se encontra do outro lado”, indica
Mané.
quando o PT ainda não havia chegado ao poder ainda hoje o respeitam e admiram. Para o
guerreiro de tantas batalhas, a ditadura não acabou. Só ganhou um novo colorido.
Sobre o cenário atual do movimento sindical (MS), faz a seguinte leitura:
“A conjuntura tem empurrado o MS para a prática que considero como o
novo peleguismo. O peleguismo da negociação, fechar a boca. Devemos
trabalhar a edificação da socioeconomia solidária. Pois é certo que se o
capitalismo puder arrancar o nosso olho, ele arranca. Já está
acontecendo isso”.
O SEMEADOR DE SONHOS
No chão palmilhado por Mané surgem marcas de prisão, tortura, sangue, amor,
exílio, trabalho com educação popular, construção do Partido dos Trabalhadores (PT) e da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), militância na Ação Popular Marxista Leninista
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(AP), entidade formada por jovens oriundos da Igreja Católica, onde chegou a exercer a
coordenação, além da fundação do primeiro sindicato de trabalhadores rurais no Maranhão,
o de Pindaré-Mirim.
Arando sonhos de um Brasil mais justo, ele colheu quatro filhos, oriundos de
dois casamentos e de um namoro e traz cravadas em suas lembranças as cicatrizes do exílio,
ocorrido entre 1976 a 1979 na Suíça. Para um dirigente camponês, que dedicou parte dos
seus dias pela garantia de dignidade, sair obrigado do país era uma humilhação, mas não
havia alternativa. Passar alguns anos fora do Brasil era a única opção para salvar sua vida,
que até hoje é dedicada ao movimento popular.
Poucos jovens que se identificam como de esquerda nunca ouviram falar ou
leram algo sobre o autor do livro Essa Terra é Nossa, resultado de 20 horas de depoimento
colhido em Paris, em 1979, por Ana Maria Galano, e publicado pela Editora Vozes em
1980.
sustentável, tem funcionado como motivador do trabalho realizado por “Mane” nos últimos
anos.
Apesar de reconhecer a importância da militância durante a ditadura militar,
quando se consolidou como um dos maiores expoentes da esquerda brasileira, ele prefere
conversar sobre o que vem fazendo atualmente e esbanja um entusiasmo juvenil ao falar de
projetos preocupados com o meio ambiente, organização popular, desenvolvimento de
sistemas agroflorestais, discussão e proposição de políticas públicas voltadas para o
pequeno produtor rural.
Manoel da Conceição semeia tudo isso em uma região marcada pela presença
de grandes projetos como a Ferrovia de Carajás, e vitimada pela destruição do cerrado, seja
para a implantação de soja ou para alimentar os fornos das siderúrgicas situadas na Ferrovia
de Carajás, além de uma floresta de eucalipto da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD),
que deveria desaguar na implantação de uma fábrica de papel celulose, hoje sem
perspectiva.
A perspectiva é o socialismo, acredita Manoel Conceição. “Não basta ganhar
governo. Temos que trabalhar organicamente,’ avalia. É com os pés na terra, aliás, o pé na
terra, e alma nas nuvens que participou da construção do Centro de Estudos do Trabalhador
Rural (Cetral), espaço de realização de encontros e seminários de trabalhadores rurais
situado no município de João Lisboa, situado as uns 18 km distante de Imperatriz. Nessa
perspectiva percebe-se uma organização centrada nas seguintes organizações: CENTRU,
CCAMA e CETRAL que irradiam o Projeto “Cerrado é Vida”
Mané e sua luta foram o foco da dissertação de mestrado da jornalista e
professora universitária, Helciane Araújo. O trabalho que traça um raio-x do líder
camponês foi apresentado, em 2000 no Mestrado em Políticas Pública/UFMA, com o tema
“Memória, mediação e campesinato: estudo das representações de uma liderança (Manoel
Conceição) sobre as formas de solidariedade assumidas por camponeses na chamada Pré-
Amazônia Maranhense”.
Helciane Araújo explica que em seu estudo sobre Manoel Conceição, ela
procurou analisar como o líder camponês a partir da posição do presente interpreta o seu
passado e quais as representações que ele tem da história que viveu. “Vejo que Manoel hoje
fala não apenas de uma posição, mas de múltiplas posições: do partido, da ONG, da
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A CADEIRA DO DRAGÃO
Um dos momentos mais dramáticos desta trajetória elogiada por Helena Helluy
e que deixou cicatrizes físicas e psicológicas foram as atrocidades sofridas por Manoel da
Conceição nos quartéis durante os governos Médici e Geisel. O período é marcado pelo
acirramento da repressão e da violência contra os opositores do regime. Uma parte desta
trágica experiência vivida por “Mané” está registrada no livro do cardeal D. Paulo Evaris
Arns, Tortura Nunca Mais, que narra algumas da muitas atrocidades cometidas pelos
militares .
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partes do corpo. Nu e sem a perna mecânica, seu corpo não resistia em pé, e sofria várias
quedas. Em uma delas, sofreu uma fratura no maxilar do lado direito.
Em uma dessas sessões de tortura, ele foi colocado em um carro e levado para
um local que tinha piscina, onde foi amarrado com os braços atados às pernas. Em seguida,
jogaram-no três vezes na água até que ele ficasse sem fôlego. Não satisfeitos com as
atrocidades, os torturadores de Manoel colocaram-no em um poste com os braços atados
para trás, as mãos algemadas ainda sem a perna mecânica. Ele permaneceu neste local,
onde foi espancado por várias horas e ao ser retirado teve de ser hospitalizado, tomando
banho de gelo para espalhar o sangue coagulado no corpo.
Após sair do hospital, Manoel foi levado para o quartel onde as torturas
continuaram com a mesma brutalidade. Os agentes, de capuz na cabeça, amarram-no em
uma grade e prenderam seu pênis com uma corda para impedi-lo de urinar. Ele foi deixado
nessa situação por vários dias, sem direito a água e comida.
Manoel em sua casa no exílio em Genebra, Suíça, com Dom Fragoso, bispo de Cratéus.
Quando foi retirado da cela, estava com o corpo cheio de dor e não conseguia
dar um passo. Mesmo assim, as sessões de torturas prosseguiam. Mal seu corpo
apresentava os sinais de uma melhora, ele era novamente dependurado no mesmo lugar, nas
mesmas condições e espancado com os mesmos aparelhos e com a mesma violência
durante horas.
Ao final de cada sessão de tortura, ele perdia até a noção do tempo e sempre era
levado para um hospital, onde tomava banho de gelo e recebia tratamento com antibióticos.
O DOUTOR “CLÁUDIO”
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então presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Eu era um
cabra marcado para morrer. Doente, ameaçado de morte e precisando de tratamento
médico, o bispo possibilitou a minha vinda para São Paulo, onde fui recebido pelo Dom
Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano Jaime Wrigth, que providenciaram a minha
internação no hospital Santa Catarina”, relembra.
Após recuperação no hospital, Manoel foi levado para descansar em Vinhedo, e
depois para Osasco, ficando na casa do padre Domingos Barbe, de onde foi seqüestrado por
policiais do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), no dia 28 de outubro de
1975.
Com Mário Carvalho de Jesus, advogado da Frente Nacional do Trabalho (FNT), São Paulo, em frente à
casa do padre Dominique Barbé, Osasco, onde foi preso em 1975.
Católica e Presbiteriana e da Anistia Internacional, ele deixa a prisão e segue para o exílio
na Suíça.
O EXÍLIO
A escolha da Suíça foi motivada pela solidariedade demonstrada por um grupo
de militantes de esquerda deste país, que organizou o Comitê Internacional Manoel
Conceição, sediado em Genebra. Marguerit Emirie ocupava a coordenação do comitê, que
por sugestão de Manoel, passou a ser chamado de Comitê em Solidariedade ao Povo
Brasileiro. Além da Suíça, ocorreram manifestações organizadas na Inglaterra, França,
Alemanha, Itália e Estados Unidos pela libertação do líder camponês.
A preocupação internacional com a situação dos presos políticos no Brasil, a
qual foi decisiva para a libertação de Manoel da Conceição, bem como a sua ida para o
exílio são comprovadas em um documento da Comissão Internacional de Direitos Humanos
(CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), datado de 1972.
O documento requere ao Estado Brasileiro informações sobre a detenção de
Manoel da Conceição Santos e do militante Luiz dos Santos, atualmente desligado da luta
popular, e morando em Goiás.
Ao responder à solicitação da OEA, o governo militar classifica Manoel como
elemento de elevada periculosidade e ameaçador da ordem estabelecida, definindo-o ainda
como terrorista, produtor de panfletos e de documentos subversivos. Na resposta à
solicitação, os militares voltam a negar as acusações de tortura e violação dos direitos
humanos nos quartéis do Brasil.
Enquanto a imprensa no Brasil era obrigada a silenciar, por conta da censura, as
atrocidades praticadas contra Manoel da Conceição e outros opositores do regime militar
começam a ganhar destaque na imprensa internacional.
Na edição de 05 de outubro de 1972, o The New York Review of Books, editado
nos Estados Unidos, publica as arbitrariedades do regime militar brasileiro. Sobre o caso de
Mané, o periódico noticia: “O exemplo de Manoel Conceição e Luiz dos Santos é uma
amostra dos milhares de casos do povo brasileiro, de todas as classes, que estão nas mãos
dos executores da ditadura brasileira, sendo torturados e assassinados, às vezes a sangue
frio”.
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Ele também cita nomes como do Rui Frazão, dado como desaparecido pelo
regime militar; Betinho, o Herbeth de Souza, de quem fala com extremo carinho, o mesmo
externado ao comentar sobre Jair Ferreira de Souza, ex-secretário geral da Ação Popular, já
falecido. “Cabra porreta. Muito solidário. Nutro grande respeito por ele.”, comenta.
Uma rede de solidariedade formada por sindicatos, igrejas, Anistia
Internacional e governo suíço colaboraram para a manutenção de Mané, da sua filha
Mariana e da sua companheira Denise durante o exílio. O período em que passou fora do
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A FAMÍLIA
Com as idas e vindas de uma vida dedicada à coletividade, sobrou pouco tempo
para a família, porém o rosto de Manoel da Conceição é pequeno para comportar o brilho
de orgulho nos olhos quando ele fala dos quatro filhos. “Amo e admiro todos. Mariana foi
concebida em São Paulo após a saída do cárcere e nasceu na Suíça. Acaba de concluir o
curso de Agronomia em São Luís”, confessa. Fruto do segundo casamento, com a advogada
Denise Leal, Mariana foi a cria de que o líder camponês mais esteve próximo. “Acredito
que ela siga as pistas deixadas por mim”, revela.
Os outros dois filhos de Mané nasceram do primeiro casamento, com Maria
Rita. Manoel Filho é pedagogo, Raquel é dirigente sindical em Boqueirão, cidadã sitiada no
interior do Piauí e mãe dos cinco netos que Mané possui.
Rosa Rocha Albuquerque é o nome da caçula nascida do relacionamento com a
alagoana Neide, na época secretária da Diocese em Recife, Pernambuco. Ele se alegra ao
falar que a “Rosinha” deseja cursar História e Antropologia.
Manoel da Conceição lamenta ter ficado tanto tempo longe dos filhos sem
poder ajudá-los, colaborar na educação, ou simplesmente acalentá-los durante a noite
quando eram crianças. Ele admite que isto lhe provoca profunda dor. Sobre as mães de seus
filhos, as considera guerreiras e reconhece que tiveram um papel fundamental na educação
das crianças, enquanto seguia a vida de militante, ou estava foragido ou preso.
O PARTIDO
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Manoel Conceição na sede onde Centru desenvolve o Sistema Agroflorestal (SAF), João Lisboa-MA.
comprometeram sua memória. Ele lembra da conversa que teve com Mao Tse Tung, líder
comunista chinês. O encontro ocorreu em 1969, em Pequim, quando Mao presenteou
“Mané” com uma perna de madeira, repleta de ideogramas (símbolo usado no alfabeto
chinês).
Assim como outras lideranças de esquerda vindas do movimento camponês,
Manoel tem pouca escolaridade, mas a labuta do movimento popular serviu de faculdade e
o graduou como referência na luta pela Reforma Agrária.
Ele reforça que sempre sonhou e trabalhou por uma sociedade diferente. Em
São João das Mangabeiras, cidade situada na região sul do Maranhão, Mané atua junto com
outras famílias na luta para a construção de uma área de uso coletivo da terra. “Na área há
terra reservada para uso das famílias e uso da cooperativa. Nada de história de posse.”
Ele lamenta que alguns companheiros de caminhada tenham perdido o “prumo
da luta”, mas se alegra ao citar os nomes dos que ainda dividem com ele o mesmo sonho na
construção de um mundo menos desumano. “Não podemos labutar tanto e o atravessador
ganhar tudo. Na minha cabeça não cabe essa história de propriedade da terra. A terra para
nós é dos animais que nela vivem. Quando chegamos tava tudo aí. Que história é essa de
propriedade privada? Essa terra é nossa!”, finaliza.
Ele ressalta que uma das grandes virtudes de seu pai é ter construído uma vida.
A única que por opção desconheceu o sentido da particularidade.
Manoel Conceição é, seguramente, um dos poucos companheiros que não
apenas aderiu ao coletivo como causa maior, mas que efetivamente abdicou,
conscientemente, de sua dimensão pessoal, para decididamente assumir a identidade da
Classe Trabalhadora. ”MINHA PERNA É MINHA CLASSE”, frase proferida por ele,
quando em 1965, teve sua perna amputada, conseqüência da voracidade do regime militar;
traduz com muita propriedade o significado vital de seu compromisso com o então
aspirado Movimento Popular.
Seu filho recorda que a imagem guardada da infância, na curta convivência que
teve com Mané é a de um pai totalmente ausente, absorvido em intermináveis reuniões
secretas com outros companheiros e algumas companheiras de semelhantes perfis.
“Lembro-me também, de meu estado permanente de reclusão, pelo fato de apresentar
fortes traços de semelhança fisionômica com meu pai, o que se convertia em natural
ameaça à minha segurança e à segurança de minha família; isso, uma criança com apenas
quatro anos de idade.”, revela.
Manoel Filho conta que antes de completar seis anos, foi, juntamente, com sua
irmã Raquel, que era dois anos mais velha, e com Maria Rita totalmente separado do
convívio com seu Mané; só voltando a reencontrá-lo onze anos depois – em 1979 – quando
ele retornou do exílio, com igual ou maior disposição para dar continuidade à luta em prol
da causa da classe trabalhadora.
O momento histórico do início dos anos 80 transpirava esperança. Finalmente,
vinha à tona o grito da classe trabalhadora que por mais de 20 anos ficara abafado nos
porões da ditadura militar. As mais legítimas forças do Movimento Popular culminaram
com a constituição de dois instrumentos sócio-políticos estratégicos para a construção de
um novo país – o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores
(CUT), dos quais Manoel Conceição foi co-fundador, juntamente com outros valorosos
companheiros.
Fazia parte da estratégia de luta de classes, expressa nos fundamentos, tanto da
CUT como do PT, a construção de um Movimento Popular autônomo e autêntico,
traduzido sob forma de um sindicalismo classista e combativo e de um partido político
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e à classe, só é igual à que ele atribui à sua própria vida, e deixa bem claro que a esperança
ainda pulsa forte no coração do seu pai.
Recebendo título de cidadão imperatrizense e medalha Frei Epifânio d´Abadia do Prefeito Jomar
Fernandes
interior do Estado. “O coitado não conhecia nada. Tava em nossa assembléia. Quando
começaram os tiros correu varando cerca. Caiu dentro do mato umas dez horas da manhã.
Só apareceu umas três da tarde. Morto de fome”, relata.
Após o atentado, três secretários do governo Sarney o procuraram oferecendo
assistência médica, casa, emprego, uma perna mecânica e carro. A permuta consistiria em
ajuda política e foi recusada por Manoel da Conceição que respondeu à proposta com uma
frase transformada em palavra de ordem na sua militância: “Minha perna é minha classe”.
A perna mecânica só foi obtida mais tarde graças ao dinheiro arrecadado junto
ao movimento popular.
Ferreira Gullar
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História de um valente
castanha, erguiam pequenos comércios. Como conta Glênio Sá, na publicação Araguaia:
relato de um guerrilheiro.
A maioria dos camponeses se solidarizou com a luta do PC do B, uns deram
guarita, e outros decidiram entrar no combate armado. As cicatrizes deixadas pela repressão
à guerrilha explicam o receio em falar sobre o assunto na região de Xambioá, cidade do
Estado do Tocantins, separada de São Geraldo, no Pará, pelo caudaloso rio Araguaia, e
coração das atividades realizadas pela guerrilha.
Usando diversos instrumentos de repressão, dentre os quais a prisão e a tortura,
sem deixar de lado a tática da cooptação, muitos camponeses acabaram por colaborar com a
Guerra Suja, nome dado à última ação das forças armadas destinada sufocar o movimento.
Helicópteros, aviões, barcos e até o uso de Napalm, – produto químico para
desfolhamento utilizado pelos americanos na guerra do Vietnã – foram empregados na
operação. Nas lembranças dos moradores mais antigos desta região ainda estão vivas as
lembranças das execuções a sangue frio, usadas para espalhar o terror entre os camponeses
e acelerar o processo de “entrega” dos guerrilheiros.
Em 2001, após a visita de representantes da Comissão de Direitos Humanos da
Câmara Federal à região, com o intuito de encontrar vestígios que indicassem a localização
das ossadas dos guerrilheiros mortos, a população do Araguaia recebeu novamente a visita
de militares, que neste período decidiram realizar na área a Ação Cívico Social (ACISO).
Nesta atividade o exército promoveu a extração de dentes e a emissão de
documentos à população camponesa, buscando a simpatia de pessoas que ainda trazem na
memória recordações da guerrilha. Após a visita dos parlamentares, motivada por uma série
de notícias publicadas na imprensa, sobre a existência de ossadas de guerrilheiros
desaparecidos, o Exército Brasileiro decidiu engavetar o assunto e em 10 de março de 2004,
o ministro da Defesa, José Viegas, declarou a ausência de documentos oficiais nos arquivos
das Forças Armadas brasileiras sobre a Guerrilha do Araguaia, ressaltando que eles teriam
sido incinerados.
O ALGOZ
Em leituras de documentos, livros, depoimentos, um nome se sobressai. Trata-
se do major Curió, hoje coronel da reserva. Ele é colocado como um dos protagonistas da
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finalidade: não caracterizar, jamais, perante a opinião pública nacional como também
perante a internacional de que havia uma situação de guerrilha no nosso país”, relata.
No depoimento, ele conta que a operação durou uns 10 dias, e sua missão era
pilotar um dos dois helicópteros que teriam transferido os corpos dos guerrilheiros para um
local conhecido como clareira de Manoel das Luas, na Serra das Andorinhas, entre
Xambioá (TO) e Marabá (PA). O aviador não soube precisar a quantidade de viagens,
ressaltando que transportava de dois a três corpos em cada vôo.
CHAFURDO NA SELVA
poderes para mandar e desmandar. Marco Antonio Luchini, doutor “Paulo” e doutor
“Tibiriçá”, foram alguns pseudônimos usados para se aproximar dos posseiros. A missão de
Curió no Araguaia era sufocar a Guerrilha, tendo na sua retaguarda o apoio da Polícia
Federal e do Exército.
Sufocar a Guerrilha foi o primeiro passo para a fama de Curió correr o país.
Não é difícil encontrar nos arquivos de entidades populares no Pará recortes de jornais,
revistas, livros, cópias de documentos que narram as peripécias do homem de confiança de
General Figueiredo. Com o respaldo dos generais, Curió tinha amplos poderes e encarnava
o Estado em lugar desprovido de todo tipo de serviço público. Em terra de ninguém, o
Estado vinha do céu, de helicóptero, como um milagre. Era assim que Curió percorria a
região.
42
meta de Curió no Araguaia era livrar os colonos da “ameaça” comunista que, na visão
tosca dos militares, era manifestada principalmente pelos religiosos envolvidos com a luta
pela reforma agrária. A faceta autoritária e violenta do major é retratada com nitidez no
livro A Justiça do Lobo : posseiro padre no Araguaia, de autoria do Pe. Ricardo
Rezende. No livro, Curió justifica a sua intervenção na região alegando: “Minha atuação
ali, daquela forma, se deu porque sou homem do sistema”.
Ricardo Rezende coordenou a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Conceição
do Araguaia, sul do Pará. Esteve na região por duas décadas, onde chegou em 1977. É uma
pessoa que possui um bom registro da história do lugar. Conheceu de perto o drama do
povo de Rio Maria, da família Canuto e do sindicalista Expedito Ribeiro, composta por
lideranças sindicais executadas pelo latifúndio. Rezende analisa a permanência de Curió na
região do Araguaia, após o desaparecimento da guerrilha, como a necessidade de o regime
militar ter naquele local um homem de confiança disposto a atuar em uma guerra ainda
maior do que aquela que havia terminado: a luta pela terra.
Essa é uma das chaves para a compreensão do fenômeno Curió. Com sua
chegada, via-se nele o “doutor da mata”, aquele que restou após a Guerrilha para
concretizar a promessa e vigiar a região. O “justiceiro”. A época era a de expansão do
capitalismo na região Amazônica. A doutrina de segurança nacional endossava qualquer
excesso dos militares. Configurava-se assim a concentração fundiária na região, construía-
se o cenário perfeito para o que é hoje a principal área de conflito na luta pela posse da terra
no país. Uma história escrita pela prepotência, violência e impunidade.
Não foi só na região Norte que Curió exercitou seus conhecimentos militares na
repressão contra dirigentes populares. Os colonos do Paraná e Rio Grande do Sul também
conheceram as táticas do coronel Sebastião Rodrigues de Moura década de 1980. O boletim
da Campanha de Solidariedade aos Trabalhadores Sem Terra de Porto Alegre, datado de 07
de agosto, conta que Curió aportou nos Pampas no dia 23 de julho de 1981. Seu destino era
o acampamento Encruzilhada Natalino, embrião do MST, (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra), que dava ali seus primeiros passos. Sem perder tempo, Curió, monta
barraco no acampamento. Estrutura sistema de alto-falante e começa a promover trabalho
de coerção e cooptação de colonos. Na retaguarda, vários policiais à paisana. O discurso é
44
O FIM DO ANONIMATO
O anonimato de Curió caiu quando ele foi escalado para pôr ordem no maior
garimpo do mundo, Serra Pelada. João Baptista Figueiredo governava o país há dois anos
quando visitou o garimpo. Em Serra Pelada, elogiou a disciplina imposta pelo seu braço
direito, segundo Figueiredo, rara em muitos quartéis. Falando aos garimpeiros, o general
agradeceu: “desejo estender meu agradecimento ao amigo Curió, que tem conseguido ser,
junto dos senhores, o meu intérprete leal, que tem conseguido trazer aos senhores aquilo
que eu desejaria fazer todos os dias pessoalmente.” Contam as páginas do jornal de Belém,
“O Liberal”, de 19 de julho de 1981. No mesmo período, a Câmara Municipal de Marabá,
junto com a Maçonaria, outorgaram ao homem que livrou a região da “ameaça comunista”
o título de cidadão marabaense, revogado posteriormente.
Homenagens como esta são duramente criticadas pelo padre francês Roberto de
Valicourt, uma das pessoas que sentiu na pele as atrocidades do Major Curió. Hoje com 67
anos de idade, ele chegou à região no mesmo período de Curió. Residindo em Marabá,
sudeste do Pará, padre Roberto mora numa casa simples, onde trabalha com seis jovens
interessados em sacerdócio. Cinco são da própria da região e um é baiano. Sem receios de
falar sobre o que sofreu, ele ressalva que sua história daria para encher vários livros.
Padre Roberto analisa Curió como um homem esperto, que nunca se expunha
nas sessões de tortura, apenas ordenava a missão. Ele lembra com detalhes do dia 02 de
45
junho de 1972, quando teve a igreja invadida pelo Exército e foi levado para Palestina do
Pará, uma pequena cidade às margens do rio Araguaia, onde foi torturado.
Em outubro do mesmo ano a truculência seria maior e alcançaria mais almas.
300 pessoas foram detidas na região do Araguaia e encaminhadas para interrogatórios na
comunidade de Bacaba e no município de Marabá. O padre Roberto narra que ali sofrera
uma das piores torturas já praticadas contra o ser humano. Amontoados em cubículos, os
prisioneiros foram obrigados pela sede a tomarem a urina uns dos outros. O episódio
ocorreu na antiga delegacia de Marabá, também conhecida pelo nome de “Casa Azul”.
Padre Roberto recorda que o local possuía vários equipamentos destinados à prática de
torturas e interrogatórios.
Ele define Curió como um homem com extrema habilidade em falar com as
pessoas simples. O religioso aponta o sistema de delação, tática aplicada para detonar com
o embrião das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) no Araguaia, como uma das
metodologias aplicadas por Curió no combate aos “padres comunistas”. Ele baixou a ordem
que não queria ver ninguém nas missas, nem recebendo os padres comunistas. As pessoas
eram obrigadas a delatarem umas às outras, sob pena de perderem os lotes recebidos, prisão
e tortura. Os que não morreram guardam seqüelas. Tem gente que até se matou”, relata.
Outra pessoa que tem na memória lembranças de Curió é Emanuel Wambergue,
55 anos. Compatriota do padre Roberto, “Mano”, apelido recebido ao chegar a região, é
filho de pequenos produtores na França e chegou ao Araguaia em 1975. Desde sua chegada
até 1987, foi detido onze vezes para interrogatórios.
O motivo para tantas prisões foi a atuação de Mano no papel de animador na
organização de vários sindicatos de trabalhadores rurais no sul e sudeste paraense. Ele
também participou da fundação e foi um dos coordenadores da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) de Marabá e da CPT regional Norte. Em todos estes anos de militância escapou de
várias emboscadas, mas lamenta a morte de colegas, que não tiveram a mesma sorte e
acabaram executados.
A MORTE DE LAÉRCIO
46
“O inimigo da gente
é o latifundiário
que submete nós todos
a esse calvário.
Pense um pouco, meu amigo,
não vai seus filhos matar.
É contra aquele inimigo
Que nós devemos lutar
Que culpa têm os seus filhos?
Culpa de tanto penar?
Vamos mudar o sertão
pra vida deles mudar.”
Ferreira Gullar
João Boa Morte- Cabra Marcado pra Morrer
4
1. Os registros organizados pela Comissão Pastoral da Terra dão conta que nos últimos 31 anos (1971-2002), no Estado
do Pará, foram assassinados 726 camponeses. Na primeira metade do período mencionado (1971-1985) foram registrados
340 assassinatos em conflitos fundiários. Na segunda metade do período (1986-2002) foram vitimados 386 camponeses,
demonstrando assim a persistência no tempo do padrão de violência existente no Estado. Se isso estarrece, impressiona
ainda mais os dados da impunidade. 2.De todos esses crimes houve apenas 07 condenações, sendo três mandantes
(Jerônimo Alves de Amorim, Edílson Laranjeiras e Vantuir de Paula); um intermediário, Francisco de Assis Ferreira; e
três pistoleiros, Péricles Ribeiro Moreira, José Serafim e Ubiratan Ubirajara. O massacre de Eldorado do Carajás
configura-se como o caso mais emblemático de impunidade, onde 19 camponeses foram assassinados e depois de 07 anos
nenhum dos policiais envolvidos foi para a cadeia, apesar dos dois comandantes terem sido condenados. (VIOLÊNCIA E
CONFLITO AGRÁRIO NO ESTADO DO PARÁ. Desafios e enclaves que se colocam na pauta de discussão do
Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio.Jax Nildo Aragão Pinto, Belém, Pará, 2003).
49
montado em Marabá, cidade, onde se concentra a sede de entidades atuantes na luta pela
Reforma Agrária. A descoberta de um QG de “arapongas” em plena região do Araguaia-
Tocantins foi destaque no noticiário nacional e rendeu uma série de reportagens publicadas
pelo Jornal “Folha de São Paulo”.
A primeira reportagem da série, divulgada em 02 de agosto de 2001, apresentou
documentos secretos do serviço de inteligência do Exército, montado em local estratégico.
A residência dos “arapongas” foi uma cortesia da Eletronorte. Uma agência de notícias com
o nome de “RP Free Lance” era o disfarce usado pelos militares. Entre os papéis,
considerados confidenciais pelo exército, foram encontrados cartilhas, manuais, relatórios,
fitas de vídeo, fichas de informantes e colaboradores.
A reportagem da Folha de São Paulo revelou a existência de 541 arapongas
operando no país e até no exterior. Informou que desde o início do governo FHC, que
entrava no terceiro ano do seu segundo mandato, o serviço de espionagem já havia
consumido mais de 31 milhões de reais.
Os documentos encontrados revelam que o serviço de inteligência nutre
especial interesse por entidades ecológicas, de defesa dos direitos humanos, e aquelas
dedicadas à questão indígena, com atuações na Amazônia. Relatórios encontrados no QG
revelam a aversão aos partidos de oposição e às organizações que militam na luta pela
Reforma Agrária.
O MST é elevado à categoria de ameaça à ordem pública e principal alvo dos
serviços de espionagem. A criminalização dos movimentos sociais camponeses marcou os
anos do governo de Fernando Henrique Cardoso. Num ambiente onde a
impunidade dos crimes contra dirigentes camponeses no Pará beira a totalidade, a
continuação da truculência e mesmo a elaboração de uma tabela de preços para cada tipo de
“serviço” é motivada pela omissão. Durante sua visita a Marabá, os parlamentares da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara (CDH), receberam a lista com o nome de
pessoas, “marcadas para morrer” (ver quadro no fim do texto).
A eficácia na montagem de uma estrutura de inteligência com agilidade judicial
na emissão de liminares de reintegração de posse de áreas ocupadas, além de aparato
policial para cumprimento das ações judiciais, por parte do Estado, não se reflete na
apuração dos crimes cometidos contra trabalhadores rurais. A regra tem sido a carência de
50
recursos para realizar as tarefas mais básicas. Como o transporte de corpo de sindicalistas
assassinados. Um exemplo desta situação aconteceu no caso do assassinato do sindicalista
Manoel Messias Colono de Souza, cujo corpo só foi removido para o Instituto Médico
Legal (IML) em carro fretado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá. A
viatura da Delegacia de Polícia Civil Regional de Marabá só executou diligência ao local
do crime depois que o sindicato conseguiu litros de gasolina para a polícia.
A LEI DA BALA
Associação de Trabalhadores Rurais de Ipaú, foi morto por dois pistoleiros em Tucuruí. Pai
de oito filhos, Miguel foi executado na porta de casa por dois pistoleiros que estavam em
uma motocicleta. Uma filha de Miguel presenciou o crime.
BARRIL DE PÓLVORA
5
Dos 19 sem terra mortos na Curva do “S” no Massacre de Eldorado do Carajás, 11 eram do Maranhão.
53
José Brito, dirigente sindical de Rondon do Pará em audiência pública em 2001, Marabá-PA.
Josimar, outras se repetem. Com menor ou maior grau de violência. Desfecho diferente.
Pisando na própria sombra: trabalho escravo no Brasil contemporâneo, livro do Pe.
Ricardo Rezende, resultado do doutorado realizado na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), investiga a questão da escravidão por dívida.
A COLHEITA DE LÁGRIMAS
Ednaldo Pinheiro em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal em 2001,
Marabá-PA.
para morrer. “Tenho mais medo da polícia do que outra coisa. Às vezes recebo três
telefonemas por dia de fazendeiros me ameaçando de morte. O delegado de Parauapebas
sabe quem quer me matar, ele tá envolvido em muita coisa errada em Parauapebas. Acho
que estou assinando minha sentença de morte quando falo isso.”, confessou.
Um dos depoimentos mais contundentes foi o de Ednaldo, filho de José
Pinheiro Lima, o “Dedé”, executado com esposa e o filho caçula de 15 anos, no dia 09 de
julho de 2001 em Marabá. O jovem de corpo franzino, trajes simples de filho de
trabalhador rural, portava em uma das mãos uma cartolina com fotos da família executada.
Três irmãos ladeavam Ednaldo durante a fala dele. Revoltado, ele denunciou o fazendeiro
João Davi de Melo Souza, “Joãozinho”, como sendo o mandante do crime. O fazendeiro,
que chegou a ter a prisão temporária decretada, mas acabou ficando em liberdade, chegou a
oferecer dinheiro para seu pai deixar de lado a luta pela reforma agrária. Sobre esse
episódio, Ednaldo desabafa:
“Joaozinho chegou a oferecer 50 mil reais, seis meses de supermercado, casa
em Marabá para o meu pai deixar o movimento pela reforma agrária. O pai não
aceitou e pagou com a vida. O pior é que a morte de meu pai poderia ter sido
evitada. A Polícia Federal havia avisado a Secretaria de Segurança do Pará
quatro meses antes da execução de minha família. A omissão do estado matou
meu pai, minha mãe, e meu irmão.”
Um caso escabroso envolve o delegado Aquino. “No dia 18 de maio de 2001,
Aquino, mais alguns fazendeiros, pistoleiros, sem mandado de segurança chegaram a
fazenda Talimã/Remanso, em Marabá, para desocupar a área. Destruíram toda a plantação
de milho, arroz , mandioca às vésperas da colheita. 50 famílias foram expulsas da fazenda,
quatro prisões foram efetuadas. Foram presos eu, meu pai e mais dois companheiros. A
acusação é a de sempre, formação de quadrilha, que não admite fiança, esbulho
possessório. Apesar da acusação de formação de quadrilha não admitir fiança, fomos soltos
depois do pagamento de R$ 400, 00. Hoje a área vem sendo destruída com a exploração das
castanheiras.”, afirma o trabalhador rural Sebastião Rodrigues.
O banqueiro socorrido pelo governo federal, Ângelo Calmon de Sá, possui
terras por essas paragens da Amazônia. Terra guardada por milícia. Milícia particular
travestida de empresa de segurança é o verniz que os fazendeiros estão criando para
oficializar a pistolagem. Marca e Master são duas das muitas empresas inventadas. Em
58
Ferreira Gullar
Uma voz - Toda poesia
O pistoleiro Wellington Silva, “O Baiano”, foi o autor dos disparos. Ele havia
chegado em Rondon há cinco dias a convite do seu tio, Gilson Silva, produtor de carvão e
pequeno pecuarista. O intermediário na contratação do pistoleiro foi Ygoismar Mariano
Silva, o “Ygor”, que recebeu 15 mil reais pela empreitada. A Wellington caberia a quantia
de R$ 2 mil reais, recebidos somente depois da tarefa cumprida. O pistoleiro foi preso, mas
não revelou os nomes dos mandantes do crime, segredo guardado por Ygor, que nunca foi
encontrado pela polícia.
As suspeitas recaem sobre alguns fazendeiros da cidade e o motivo seria a
ocupação da fazenda Tulipa Negra, realizada por trabalhadores rurais sem terra, com a
apoio da Fetagri. Testemunhas ouvidas pela polícia afirmaram que antes do crime, Ygor e
Wellington rondaram a casa de Dezinho por várias ocasiões, numa moto CG Titan. As
incursões eram para que o pistoleiro memorizasse a face do sindicalista.
Após saber quem era o homem a ser morto, o assassino chegou a casa da
vítima, buscando informações sobre aposentadoria rural. Localizado na vizinhança por uma
de suas filhas, Dezinho não teve tempo de dizer uma palavra ao pistoleiro, sendo atingido
por três tiros. Mesmo ferido, ele ainda conseguiu travar uma luta com o assassino,
atrasando sua fuga. Preso por amigos e vizinhos da vítima, o pistoleiro chegou a ser
espancado e correu risco de linchamento, sendo salvo por Maria José Dias, viúva do
sindicalista. Ela disse que ele não poderia morrer, pois teria que informar os nomes dos
mandantes do crime.
No decorrer das investigações, fotos e fitas cassetes entregues por um irmão de
um pistoleiro executado em praça pública 16 dias antes do assassinato de José Dutra,
levaram a juíza Iacy Salgado Vieira, da comarca de Rondon, a decretar a prisão de José
Décio Barroso Nunes, o “Delsão”. O fazendeiro é natural de Minas Gerais, há 21 anos
radicado na região e possui quatro fazendas e duas indústrias madeireiras .
A fita cassete, gravada pelo ex-testa de ferro e pistoleiro de Delsão compromete
o fazendeiro em mais seis execuções, além de apontá-lo como o mandante do assassinato
de Dezinho, cujo nome sempre esteve na lista de sindicalistas rurais marcados para morrer
no sul e sudeste do Pará.
62
OMISSÃO E IMPUNIDADE
Ferreira Gullar
Peleja de Zé Molesta com Tio Sam
UM PREÇO AMARGO
O discurso de desenvolvimento, geração de emprego e renda, apresentado na
defesa destes projetos, esconde debaixo do tapete a manipulação dos laudos de impactos
ambientais, como é caso da Hidrovia Tocantins – Araguaia, que deve atingir a área dos
estados do Tocantins, Maranhão, Mato Grosso, Goiás e Pará. Os antropólogos André Toral,
Eduardo Carrara, Luís Roberto de Paula e Paulo Serpa, especialistas em estudos nessa área,
denunciam que o cálculo dos prejuízos ambientais e culturais que serão provocados com a
implantação desta hidrovia na região amazônica foi manipulado nos relatórios de Estudo de
Impacto Ambiental (EIA). Eles acusam a Administração da Hidrovia Tocantins-Araguaia
66
“Foi assim com a construção de Tucuruí, Estrada de Ferro Carajás, vários projetos
de mineração, implantação das fábricas Albrás, Alunorte, pólos siderúrgicos e de pecuária.
A lógica é a mesma, a única lei respeitada é a de mercado, ancorado num discurso de
desenvolvimento que só incentiva a concentração de poder, renda e terra”, analisa
Raimundo Gomes, coordenador do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e
Popular (Cepasp), uma organização não-governamental (Ong) de Marabá/PA.
Motivados pela ameaça de extinção, oito nações indígenas que vivem ao longo
das margens dos rios Araguaia, Tocantins e das Mortes, declararam, no início do ano de
2001, oposição ao projeto. Lideranças dos Xavante, Karajá, Apinajé, Xerente, Tapirapé,
Krikati, Krahô e Javaé afirmaram em documento que o projeto “só prevê produção de soja,
isso só serve para engordar porco e galinha na Europa. Será que isso vale mais do que
nossos rios, nossas vidas, matas, peixes?”
LEMBRANÇAS DE CURUMIM
década de 80, ainda nos anos de repressão militar, um total de vinte e sete projetos desta
natureza já circulava nos corredores de Brasília.
Os projetos de construção de Hidrelétrica trazem consigo algo que representa
sempre uma ameaça às populações nativas e ao ecossistema da região amazônica: as
barragens. Erguidas para principalmente para sustentar projetos de geração de energia, as
barragens provocam a inundação de áreas para a agricultura, o deslocamento de populações
indígenas e ainda provocam a alteração de todo o ciclo de vida na região, onde a barragem
é implantada, como é o caso da redução do pescado e morte de animais que ficam
desprovidos da floresta.
Pepkuakte Koncarti recorda os prejuízos que este tipo de construção pode
provocar em uma população indígena. Embora fosse um “curumim” quando houve a
implantação da Tucuruí, no rio Tocantins, no sul do Pará, ele é testemunha de
acontecimentos como a inundação de vários municípios do sul paraense, que diminuiu a
produção do peixe e também resultou em morte e extinção de muitos animais. A
hidrelétrica foi pensada durante a ditadura militar para abastecer com energia elétrica
empresas de outros países na área de produção de alumínio. São elas a Alunorte e Albrás no
Pará e Alumar, no Maranhão.
Boa parte da dívida externa do Brasil, 40%, deve-se ao empréstimo do governo
brasileiro, realizado para a construção de barragens. A regra dos grandes projetos
implantados tem sido o benefício de grandes grupos empresariais nacionais estrangeiros,
com a conta desta fatura sendo paga pela coletividade e traduzida em passivos ambientais e
sociais. A geração de emprego, renda, desenvolvimento e riqueza têm figurado somente na
propaganda.
LONGE DE TUDO
Aguiarnópolis é uma típica cidade do interior do estado de Tocantins. Pouco
calçamento, vida pacata, calor escaldante e uma população de no máximo três mil
habitantes. Uma ponte a separa de Estreito, Maranhão, cenário escolhido para abrigar uma
das hidrelétricas na bacia do Araguaia/Tocantins. Esta cidade, longe de Palmas, Belém,
Marabá, Imperatriz e outros centros que sediam entidades engajadas na luta ambientalista
69
foi palco de uma das audiências públicas destinadas a discutir a implantação da hidrelétrica
de Estreito.
A ausência de representantes de universidades para se contrapor à propaganda
de geração de emprego e renda, divulgada na cidade durante a convocação para a audiência,
deixam claro que o interesse de seus organizadores é evitar qualquer debate sobre o
assunto.
“Não posso falar, a minha família já sofreu perseguição aqui no município por
causa dessa história de se manifestar em público. O senhor vem, é de fora, pode falar. A
gente que mora aqui, não”, relata um morador da cidade que preferiu o anonimato.
As razões de tanto silêncio são justificadas pelo ocorrido em uma audiência
pública realizada em julho de 2002 no município de Estreito, oeste do Maranhão, quando o
representante da multinacional do Alumínio ALCOA se irritou com o questionamento de
um dos participantes que alertou sobre os impactos ambientais e sociais ocorridos em
Tucuruí.
Apesar desta tática de isolamento das “audiências”, as entidades ambientalistas
que atuam na região do Bico do Papagaio, que compreende o norte do Tocantins, sul do
Pará e oeste do Maranhão, reforçaram a mobilização no combate à implantação destes
projetos. Um deles, a hidrelétrica de Marabá, tem um custo estimado de U$ 2 bilhões de
dólares, com um prazo de construção médio de oito anos e deve atingir uma área que inclui
onze municípios.
O projeto da hidrelétrica afetará ainda as comunidades indígenas Gavião, aldeia
Mãe Maria e Suruí Aiwekar no Pará. Uma população de 16.465 pessoas dos estados do
Pará, Tocantins e Maranhão serão deslocadas de seus locais de origem. Paraísos
ecológicos, como o Parque Estadual do Encontro das Águas, onde os rios Tocantins e
Araguaia se encontram, poderá sumir. A Pedra de Amolar, o marco geográfico da divisa
entre os três estados, deverá ter a mesma sina.
Estudos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) indicam que a
hidrelétrica de Marabá está inserida na zona de transição do rio Araguaia, onde se verifica,
entre abril e setembro, a migração de espécies de peixes que deixam o reservatório de
Tucuruí, sul do Pará, e os lagos e igarapés nas proximidades dos municípios de Itupiranga e
Marabá, Pará, o que caracteriza este local como uma área inadequada para a implantação de
70
projetos deste porte. Mesmo assim, o projeto de construção da Hidrelétrica, cujos impactos
sociais e ambientais ainda são imprevisíveis, continua sendo tocado para a frente.
A construção de hidrelétricas é apenas um dos pontos no mapa de grandes
projetos planejados para a região. Neste mapa, constam ainda a abertura de estradas, a
construção da Ferrovia Norte-Sul, os novos projetos de exploração da Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD), com o cobre em Canaã do Carajás, bauxita em Paragominas, a
implantação de empresa de produção de placas de aço em São Luís e a construção de linhas
de energia para as empresas de alumínio e alumina em Barcarena, no Pará
(Alunorte/Albrás), e a Alumar, em São Luís, Maranhão. A duplicação da hidrelétrica de
Tucuruí encontra-se em fase de finalização.
Urge interrogar se ocorre algo de diferente no processo dos desenhos recentes
de integração da Amazônia.
Subversiva
A poesia
quando chega
não respeita nada
Nem pai nem mãe
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
71
SEMENTES DE VIDA
MUDANÇA DE ROTA
espécies de frutíferas e hortas. Entre as árvores existem: acerola, caju, banana, abacaxi,
coco, jaca, goiaba, cupuaçu e murici. Entre as madeiras podem ser encontradas, algumas
espécies bem raras, ameaças de extinção como o cedro, ipê, inharé, copaíba, mogno, paricá
e nim.
Também foi realizado o trabalho de preservação da mata nativa, composta de
babaçuais. Onde antes imperava o uso de agrotóxico, e era ingrata a tarefa de encontrar
alguma ave e pequenos animais, hoje existe um espaço reconhecido como uma referência
de produção auto-sustentável.
A espinha dorsal da filosofia do CETRAL/CDT, é que o espaço sirva como
modelo demonstrativo de sistemas agroflorestais, formador de agentes agroflorestais,
agricultores familiares, sistemas agrosilsilvopastoris, com integração dos pequenos médios
animais.
Projetos de assentamento Tabuleirão I, no município de Senador La Roque,
Tabuleirão II, em Buritirina, Coopevida, em São Raimundo das Mangabeiras, PA São
Jorge, em Cidelândia, e na localidade Campo Formoso, no município de Amarante, são
algumas das experiências desenvolvidas neste sentido e que irrigam anseios de dias
melhores para o povo do Cerrado.
FRUTOS DA SOLIDARIEDADE
APOSTA ALTA
Projetada para gerar 1.087 MW de energia, a Hidrelétrica de Estreito tem entre
seus investidores empresas com grande potencial financeiro. Fazem parte do Consórcio
Estreito de Energia (CESTE) a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a Camargo Corrêa
Energia Ltda, e as multinacionais BHP Billiton e, Alcoa Alumínio S/A e a belga Tractebel.
O orçamento para a construção da usina é de R$ 2,4 bilhões, a previsão de tempo de
construção gira em torno de seis anos.
que deverão ser remanejadas pelo projeto? Onde elas poderiam ser reassentadas? Quais
serão as condições para que elas possam reiniciar suas vidas?
VENDENDO ILUSÕES
PAGANDO A CONTA
professor da Universidade de São Paulo, com doutorado nesta área, e autor do livro
Energia no Brasil: para quê? para quem?¹, lançado no ano de 2002, alerta para a questão
das populações tradicionais:
“ ...a construção de uma usina hidrelétrica representa para estas populações a
destruição de seus projetos de vida, impondo sua expulsão das terras sem apresentar
compensações que pudessem, ao menos, assegurar a manutenção de suas condições de
reprodução num mesmo nível daquele que se verificava antes da implantação do projeto.”
(Berman, 2002, pág.21)
Estes danos, citados pelo professor Célio Berman, foram mensurados em
pesquisa feita pela CPT de Goiás junto às pessoas atingidas pela hidrelétrica de Cana
Brava, construída sob a responsabilidade da empresa belga Tractebel. O estudo revela que
das 804 mil famílias atingidas pela barragem, a indenização afixada era em média de R$
5.300,00, o que não garante o reassentamento. Lajeado e Serra da Mesa são outras duas
hidrelétricas construídas na bacia do Araguaia Tocantins que apresentaram o mesmo
problema para os “remanejados”.
O MAPA DA FONTE
1- O livro assinado pelo professor Célio Berman faz parte do projeto Brasil Sustentável e Democrático
do grupo de ONG´s (Assessoria e Serviços a Projetos em Tecnologia Alternativa- ASPTA,
Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional –FASE, Instituto Brasileiro de
Análises Sociais -IBASE, Programação de Pós-Graduação em Energia/USP, Instituto de
Planejamento e Pesquisa Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
Ferreira Gullar
Meu povo, Meu Poema – Toda Poesia
6
Parte significativa do presente texto integra a monografia de especialização do autor no Núcleo de Altos Estudos
Amazônia (NAEA), defendida no ano de 2004, na Universidade Federal do Pará (UFPA).
89
7
O Massacre de Eldorado dos Carajás ocorreu no dia 17 de abril de 1996, onde 19 trabalhadores rurais sem terra foram
executados pelas tropas da Polícia Militar do Pará, e 69 foram feridos. Nos laudos ficou constatado: execuções sumárias.
O Massacre de sem terra no sudeste do Pará ocorreu no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. A ordem para
reprimir os sem terra no Pará foi dada pelo então governador do Estado, Almir Gabriel. Ambos do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB). Ainda em 1997 o MST anima a Marcha Nacional Pela Terra, Emprego e Justiça rumo a
Brasília, um ano após o Massacre. No ano de 1995, em Corumbiara, Rondônia, ocorreu o massacre de 11 sem terra. Os
dois massacres corroboraram para que a questão agrária brasileira ganhasse interesse internacional. O movimento
camponês adotou o dia do Massacre de Eldorado como Dia Mundial de Luta pela Reforma Agrária.
90
No plano social ocorre o surgimento de novos atores na cena camponesa, como a criação da
regional sudeste em Marabá, da FETAGRI e do MST, além de associações e cooperativas de
pequenos produtores rurais, devido às políticas de crédito para a produção familiar, a exemplo do
Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária - PROCERA, Fundo Constitucional do Norte -
FNO e Programa Nacional para Agricultura Familiar - PRONAF. Podem-se citar ainda programas
como o Plano de Desenvolvimento dos Assentamentos – PDA, que irão motivar o surgimento de
prestadoras de serviços para as políticas de reforma agrária, materializando-se como um outro ator
social recente da história.
8
O PPA para a Amazônia é marcado por obras de infra-estrutura que visam à integração econômica para a expansão da
fronteira agrícola, que tem na monocultura do grão de soja o principal produto. A construção de transporte multi-modal
(rodovias, hidrovias e ferrovias) e várias hidrelétricas predominam no portfólio do PPA.
92
Os últimos anos do século que se encerrou concretizaram a legitimidade das ações, lutas e
reivindicações do movimento camponês brasileiro. Neste período a precarização do trabalho
avança, e as entidades representativas dos trabalhadores urbanos experimentam um momento de
refluxo, e o emprego desponta como moeda de troca. Estamos falando das décadas de 1980 e 1990,
anos de cimentação de várias frentes de ação do movimento popular. Ao mesmo tempo, anos de
crise, ressaca do ocaso da experiência socialista do Leste europeu, estes são anos de
redemocratização do país, reorganização dos partidos políticos, ações de massa como a campanha
pelas Diretas Já!
São nessas décadas, principalmente na de 1980, que os sindicatos de trabalhadores rurais
são organizados ou tomados dos “pelegos”. A Fundação Agrária do Tocantins-Araguaia (FATA),
um dos órgãos que compunham o Centro Agro-Ambiental do Tocantins (CAT), funcionava como
aglutinador dos trabalhadores rurais. Seis sindicatos de trabalhadores rurais da região de Marabá
davam corpo a FATA: Marabá, Jacundá, São Domingos do Araguaia, Itupiranga, São João do
Araguaia e Nova Ipixuna. (Guerra, 2001). Criado em 1988 em parceria com a UFPA, a experiência
tem uma atuação significativa até o fim da década de 1990, quando surgem outros atores sociais
como o MST e a FETAGRI regional, e seus adversários como uma Federação de Pequenos
Produtores e um Sindicato de Pequenos e Médios Produtores.
A atuação da FASE de Marabá com uma estrutura de equipe e escritório vai de 1990 até
1998, com uma equipe de quatro educadores populares e dois técnicos administrativos. Dentre as
ações desenvolvidas, constam na zona rural o incentivo de criação de cantinas comunitárias na área
da Ferrovia de Carajás, nos municípios de Marabá e Bom Jesus do Tocantins. A antiga sede da
FASE é hoje a regional da FETAGRI. No conjunto foram organizadas sete cantinas, que, além da
tentativa de formação política de dirigentes, visava, economicamente, ao rompimento da relação
atravessadores e pequeno produtor.
No planejamento da FASE, enumera-se ainda a ação conjunta com o MEB, na área urbana
de Marabá, do Movimento do Orçamento Participativo – MOP. Teve ainda papel importante na
construção da Rádio Comunitária Alternativa FM, na criação da Associação Brasileira de Vídeos
Populares e na montagem de uma estrutura de TV Popular via financiamento de uma entidade
francesa, a CCFD.
ACAMPAMENTOS EM MARABÁ
94
A realização dos grandes acampamentos, como ação de massa e pressão política do campo
popular, sugere a redefinição espacial da estrutura agrária da região. Um ano antes do primeiro
acampamento em 1997, o INCRA, agora com status de uma regional, registrava o número de 90
Projetos de Assentamento (PA´s), que até o início de 2003, somavam 375. No primeiro semestre de
2005, a SR 27 contabiliza 400.
Alguns fatos podem ser cogitados para se explicar a questão. Primeiramente, sugiro a luta
histórica dos posseiros pela conquista da terra. Como constatado nos depoimentos dos dirigentes e
assessores, havia áreas antes da legalização com mais de dez anos de ocupação. Portanto, toda uma
demanda reprimida no sentido de se homologar a criação dos PA´s. No segundo momento vale
recordar as sucessivas denúncias de corrupção nos processos de desapropriação de terras para fins
de reforma agrária pelas entidades que encabeçam o movimento na região. Dois processos
denunciados durante a direção do senhor Vítor Hugo da Paixão, à frente do INCRA, podem servir
como exemplo.
km; dos 35 mil metros de cerca de 5 fios em bom estado de conservação, apenas 2.500 metros
foram encontrados em péssimo estado de conservação.
A assessoria jurídica informa que os casos citados ocorrem em fazendas próximas da
superintendência regional de Marabá, “imagine nas mais distantes, o que deve acontecer?” O
INCRA de Marabá gastou mais de R$ 70 milhões para desapropriar 24 fazendas no sudeste do Pará
em 1998. Segundo o documento encaminhado à Procuradoria, é mais do que o orçamento de 1998
para as 44 mil famílias assentadas nos 152 projetos de assentamentos. Conforme cálculos no
documento, cada família assentada já começa devendo R$ 14 mil reais ao Governo Federal.
Para melhor embasar o documento, as entidades de representação e apoio dos trabalhadores
rurais fizeram um levantamento dos valores de terra e infra-estrutura de fazendas junto ao BASA,
Banco do Estado do Pará (BANPARÁ), Banco do Brasil, várias prefeituras da região, EMATER,
Secretaria de Agricultura e vários cartórios. No laudo do INCRA, um quilômetro de cerca custa R$
2.088 reais, no verificado pelas entidades ficaria em R$ 1.499 reais; um quilômetro de estrada bem
conservada no INCRA custou R$ 3.247 reais, nos cálculos das entidades só R$ 2.334 reais. Outro
questionamento da FETAGRI e CPT recai sobre a eficiência do Imposto Territorial Rural - ITR -,
elas acreditam que se o governo considerasse as declarações dos valores no pagamento do ITR, os
desvios poderiam ser suspensos. Esse episódio, ao lado de outros, culminou com a substituição do
Victor Hugo da Paixão, do INCRA de Marabá. No processo de luta dos camponeses, Victor Hugo
foi o segundo superintendente a ser substituído.
Outra grave acusação contra o Incra de Marabá é a não disponibilização, aos trabalhadores
rurais, dos laudos das desapropriações realizadas pelo Instituto. As entidades denunciam ainda que
os atos de vistoria dos técnicos do INCRA nunca são informados, e que os técnicos ficariam
hospedados nas sedes das fazendas.
Essa política de superfaturamento vai motivar que os próprios fazendeiros organizem
ocupação em suas terras. Em matéria do dia 27 de setembro de 1998, no caderno Brasil da Folha de
São Paulo, de Ricardo Galhardo, consta que o fazendeiro Eufrásio Pereira teria empregado R$ 22
mil reais para que 1.500 famílias ocupassem as terras da Fazenda Cristalino, de 139,3 mil hectares,
em Santana do Araguaia, pela qual pagou R$ 20 milhões em 1996. A fazenda é quase do tamanho
da cidade de São Paulo, menor apenas 10 mil hectares. Caso a União fosse desapropriar, pagaria R$
40 milhões, segundo avaliação do INCRA. A matéria informa que a desapropriação não ocorreu. O
mediador da ocupação foi o senhor Eunício Alves, integrante do Movimento Brasileiro dos Sem
Terra – MBST. Ainda sobre o contexto de ocupações e desapropriações de terras há a criação do
MST e a ação de ocupação de áreas em todo o território nacional, o que vai desaguar com a coerção
pública e privada contra a luta camponesa, via intervenção jurídica e militar.
96
Sob a égide de Medidas Provisórias, o governo estabeleceu que a terra invadida por
trabalhadores rurais sem terra não será vistoriada por dois anos agrícolas e em caso de reocupação
do referido imóvel, o prazo será duplicado para quatro anos. No rosário de medidas do governo
federal inclui-se ainda a suspensão do programa Lumiar, a assistência técnica, e sucessivas prisões
de dirigentes do MST em todo o Brasil.
O sudeste paraense se configura como uma fronteira de constante tensão social, política e
econômica no país. Cenário construído através da política de integração do regime militar (1964-
1985), que incentivou através da generosidade do erário público a implantação de grandes grupos
econômicos na região e a migração de camadas excluídas oriundas do Nordeste, Centro- Oeste, e
até Sudeste do país.
Seringueiros (CNS), Escola Família Agrícola (EFA), Sociedade Paraenese de Defesa dos Direitos
Humanos (SPDDH), Laboratório Sócio-Ambiental do Araguaia Tocantins (LASAT), FASE, FATA.
Uma peculiaridade da ação de massa é ser desenvolvida com a união do MST e o movimento
sindical, que tem a hegemonia na filiação dos projetos de assentamento. Talvez seja o único lugar
do Brasil onde essa união ocorre, ainda que pontual.
Diante de tal quadro, o acampamento surge como uma ferramenta política para estabelecer
a relação de força entre trabalhadores rurais sem terras, assentados da reforma agrária, agricultores,
familiares, posseiros e o INCRA, poder dos supostos donos das terras e os prefeitos da região.
Difere dos demais acampamentos por ter sido levantado no centro político da região, o Município
de Marabá. Retira-se a problemática do isolamento e mostra-se para a sociedade, apesar da
discriminação, preconceito e criminalização dada por alguns veículos de comunicação da cidade.
superintendente do INCRA tem se negado a dialogar e a negociar com o conjunto das lideranças
dos trabalhadores e das entidades. Para o superintendente, o fórum de discussão destas questões
mencionadas tem sido as prefeituras e deputados que as representam. O superintendente tem
adotado uma política de divisão do conjunto do movimento, de perseguição das entidades de apoio
e de provocação das lideranças através dos meios de comunicação”, (Documento de Circulação
Interna, datado de 20 de outubro de 1997, CPT, FETAGRI, Marabá, 1997).
Num outro ponto, o documento alerta para o não cumprimento de acordos anteriores
realizados com o Ministro da Reforma Agrária, onde estava agendada a criação de um conselho de
reforma agrária para região. As vistorias nas áreas a serem desapropriadas, e encaminhamento nos
processos de desapropriação são outras exigências dos manifestantes: “Inúmeros acordos
negociados com o ministro nas duas vezes em que esteve em Marabá e com a própria
superintendência do INCRA não têm sido cumpridos, como a Criação de um Conselho Regional de
Reforma Agrária, vistorias, desapropriação, infra-estrutura nos projetos de assentamento”,
(Documento de Circulação Interna, datado de 20 de outubro de 1997).
A mobilização nas áreas de assentamento e ocupação foi considerada a etapa mais difícil.
Nonatinho, ex-dirigente da FETAGRI, ressalta que as entidades não tinham a experiência nesse tipo
de ação. Havia um temor com a aceitação da proposta nas áreas. A expectativa das organizações era
de três mil pessoas. Segundo o dirigente, primeiro eram feitas as reuniões nas áreas, em seguida
fazia-se uma grande reunião em cada município.
O militante recorda:
“como a nossa idéia era a construção de uma pauta coletiva, facilitou o
nosso trabalho. Naquele ano o coletivo de entidades foi em todas as
comunidades. Fizemos reunião via os sindicatos. Nas reuniões, a
comunidade ia colocando as demandas: estradas, assistência técnica,
crédito. Nas áreas ocupadas queríamos saber se já havia ocorrido a
vistoria, como tava o processo. A FETAGRI não tinha claro o que era o
acampamento. A nossa compreensão era que tinha que se mobilizar.
Depois disso realizamos a reunião por município. Aí a gente fazia a pauta
municipal, e discutia qual a ação que a FETAGRI ia fazer. O primeiro
município que a FETAGRI fez reunião foi Itupiranga. Lá ficou claro que a
gente precisava organizar o acampamento”. (SILVA, entrevista realizada
em agosto de 2003, Marabá, Pará).
Como os rios Tocantins e Itacaiúnas ficam próximos do acampamento, são eles que
acodem para diminuir do calor, e também para lavar a roupa. Nos três acampamentos
anteriores, a Fundação Nacional de Saúde – FNS -, como sempre, registra o elevado índice
de malária. Uma farmácia ajuda nos casos mais simples de saúde. Para ajudar nas despesas,
livros, camisetas e bonés são comercializados na área.
Ao redor do acampamento forma-se uma pequena espécie de feira. Tem gente que
vende água, alimentação, cigarro, pastel, roupa, rede. O consumo de álcool é proibido
dentro do acampamento, mas há um ou outro que dribla o esquema. A segurança é rígida.
Entrada no acampamento só até 21:00h. A solidariedade como valor ajuda a suportar os
dias de calor, as noites de frio.
A região sudeste consta no catálogo da história como referência de luta pela reforma agrária
e de resistência; as experiências dos acampamentos durante os governos de Fernando Henrique
Cardoso na presidência do Brasil e Almir Gabriel no governo do Pará serviram para concretizar
ainda mais o emblema combativo das terras do Araguaia Tocantins.
O ACAMPAMENTO DE 2001
Na pauta de negociação com o INCRA estão: o aumento de recursos para a reforma agrária,
decreto imediato de desapropriação de fazendas ocupadas, definição do Programação Operacional
(PO). A ação de massa, que já entrou para a história de luta pela reforma agrária, inclui negociação
com Banco da Amazônia - BASA e INSS. Com o BASA a pauta elege a liberação de recursos do
PRONAF, emperrada pela burocracia do banco. Com o INSS, a questão é a política de
104
aposentadoria dos trabalhadores rurais, ao contrário da pauta do primeiro de 1997, que abrigava
questões relacionadas somente com o INCRA. Se na experiência inaugural realizada em 1997 as
reivindicações se concentravam somente na questão agrária, nos anos subseqüentes percebe-se a
ampliação da mesma para o conjunto de órgãos que, de alguma forma, possuem relação com as
demandas do campo.
A negociação mais delicada apontada pelas entidades populares é com o Incra. Foi o
movimento do campo que conseguiu alterar um pouco a agenda do governo federal, que deu
visibilidade internacional à delicada situação em que vive o trabalhador rural brasileiro. É a partir
desse marco histórico que o governo federal mostra-se hábil na expedição de liminares de
reintegração de posse de latifúndios, expedidas em tempo recorde pela Justiça, ao mesmo tempo em
que agiliza o processo de criminalização de lideranças. Uma comissão da CPI do latifúndio, em
Manaus, descobre o que os movimentos sociais denunciam há séculos, que o latifúndio é construído
com fraudes em cartórios. No Pará, estima-se que 80% dos títulos de terras sejam frutos de fraudes.
No cenário de conflito alguns atores podem ser identificados. Em primeiro lugar a recente
expansão capitalista experimentada a partir da privatização da CVRD, o Estado como
desregulamentador de barreiras jurídicas e políticas para a expansão do capital, além de exercer o
papel de agente coercitivo. Ainda na mesma fronteira podemos encontrar a modernidade com o
discurso de um desenvolvimento regional. Se na década de 1970 a ordem era integrar a região ao
resto do país, em 1980, com início do funcionamento da Ferrovia de Carajás, integra-se a região ao
mundo, através do extrativismo mineral.
Na outra ponta do cenário se ergue como ator discordante da antiga lógica de colonização,
com novo verniz, posseiros, entidades de direitos humanos, trabalhadores (as) rurais sem terra,
religiosos, aglutinados num espaço público – a praça da superintendência do INCRA de Marabá.
105
O acesso à terra mediante a criação dos projetos de assentamento não se desenvolve sem
conflitos, pontos de tensão. Além da violência como um espectro presente, não tem sido possível
nem por parte do órgão público, nem das entidades ligadas à questão camponesa, controlar a
clientela da reforma agrária. Não é raro, em particular na região de Eldorado dos Carajás, ocorrerem
denúncias de compra de lotes por comerciantes, fazendeiros e madeireiros, que acabam construindo
em áreas destinadas aos sem terra, as médias e até grandes propriedades.
A FALA DO POVO
De Ipixuna e Tucumã“.
Sobre a confluência entre a FETAGRI e o MST, nas entrevistas que realizamos junto aos
dirigentes, representantes das entidades destacam o fato de que esta é uma das poucas regiões em
que ocorre a realização de ação conjunta entre o movimento sindical e o MST. Já sobre o processo
de negociação, o poeta dirigente registra:
A IMPUNIDADE É A REGRA?
107
Até que um pistoleiro ou mandante de crimes contra dirigentes sindicais e assessores da luta
pela reforma agrária venha a sentar no banco dos réus, a via crucis é demasiadamente longa. A
associação internacional, que atua junto a entidades ligadas à luta pela defesa dos direitos humanos,
de forma a pressionar o Estado, tem sido uma estratégia constante. Assim, se conseguiu levar ao
banco dos réus os casos de Expedito Ribeiro, João Canuto e João Batista, e no dia 28 de abril de
2004, o caso da Irmã Adelaide.
no Pará e Goiás, nunca havia sido preso. Até no dia 22 de novembro de 1999, quando foi preso pela
Polícia Federal no México, com documentos falsos, numa estação de férias em Cancún num
transatlântico, segundo documento do Comitê Rio Maria.
Nos anos de 1994 e 1995 são levados a julgamento o intermediário, um gerente da fazenda
Nazaré, de Jerônimo Amorim, Francisco de Assis Ferreira, o “Grilo” e o pistoleiro e executor da
morte de Expedito Ribeiro, José Serafim Sales, o “Barreirito”, condenados a 21 e 25 anos de prisão,
respectivamente. Barreirito fugiu da cadeia de Marabá no dia 14 de março de 2000, antes do
julgamento de Jerônimo Alves Amorim, o primeiro fazendeiro a ir a julgamento na história na
região. O documento do Comitê Rio Maria narra o favorecimento na fuga do pistoleiro para que ele
não prestasse depoimento.
João Batista era advogado e deputado estadual, e fazia assessoria a trabalhadores rurais. Foi
morto no dia 06 de dezembro de 1988, em Belém, pelo pistoleiro Péricles Ribeiro. As suspeitas de
mando recaem sobre o fazendeiro José Martins, que foi despronunciado do processo pelo Tribunal
de Justiça do Estado. O julgamento do pistoleiro ocorreu em maio de 2001, quando Péricles Ribeiro
foi condenado a 30 anos.
Após 17 anos e cinco meses, às 18.35h da tarde do dia 23 de maio de 2003, depois de dois
dias de julgamento, no Tribunal do Júri de Belém, Pará, Roberto Moura (o mesmo do caso Eldorado
do Carajás), Juiz da 1ª Vara Penal pronuncia a sentença de 19 anos e 10 meses de prisão a Adilson
Carvalho Laranjeira e Vantuir Gonçalves de Paula, dois dos cinco fazendeiros acusados de
mandantes do assassinato do presidente do sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Maria, João
Canuto de Oliveira. Dezoito tiros disparados por dois pistoleiros não identificados mataram Canuto,
há 17 anos e cinco meses, no dia 18 de dezembro de 1985, às 15:30h, em frente ao cemitério da
cidade. O primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria integrava o
Partido Comunista do Brasil (PC do B). Ovídio Gomes Oliveira, Jurandir Pereira da Silva e Gaspar
Roberto Fernandes, fazendeiros da região também acusados de organizarem a execução do
sindicalista, estão foragidos.
Na platéia, Luzia Canuto, coordenadora do Comitê Rio Maria, organização que luta por
justiça pela morte de militantes da reforma agrária, comemora ao lado da mãe, dona Geraldina, de
65 anos, e o irmão Orlando, sobrevivente de seqüestro cinco anos após a execução do pai, onde dois
irmãos, José e Paulo foram mortos. Orlando hoje preside a Câmara Municipal de Rio Maria.
109
O julgamento dos acusados da morte de João Canuto entra para a história por três motivos:
primeiro, pelo fato de ser a sétima vez que acusados de envolvimento de morte de animadores da
reforma agrária vão ao banco dos réus; e o segundo, por conta das brechas da Lei, que
possibilitaram que os dois fazendeiros condenados se escudassem no direito de recorrem em
liberdade, por serem primários e “gozarem de bons antecedentes”, e por último, pelo fato de, ao
lado de Jerônimo Alves Amorim, fazendeiro que mandou executar Expedito Ribeiro, somarem o
número de três fazendeiros a irem a julgamento.
O desejo de dona Geraldina era vê-los saírem algemados direto para a cadeia. Ainda assim,
perto de 600 trabalhadores rurais acampados desde o primeiro dia do julgamento festejaram a
sentença com festa e música.
Mas o bom senso sugere que antes se investigue a trajetória de luta de pela terra nessa região.
Apesar do reconhecimento por parte do Estado dos PA´s , na contramão segue o processo de
conferir à esfera da Justiça e militar o processo de luta camponesa. As reiteradas liminares de
reintegração posse e operações da polícia na expulsão de áreas ocupadas ajudam a cristalizar a
observação. No início de 2005, numa caneta só o juiz da Vara Agrária de Marabá, Líbio Araújo
Moura, expediu 50 liminares de reintegração de posse, numa operação da PM prevista para durar
três meses. Notas da CPT e Fetagri denunciam que lavouras e barracos são queimados durante a
ação da PM, o Estado desmente dizendo que tudo ocorre na santa paz. No cardápio de reintegração
de posse, mesmo áreas já vistoriadas pelo INCRA e avaliadas como improdutivas, ou já com
processos de desapropriação encaminhados, costumam constar no listão da Justiça.
Ferreira Gullar
Dois e Dois: Quatro
Bafo de Bode lançado em 1990 e o Boletim Arca, única edição, setembro de 1982, boletim dos atingidos
pela barragem de Tucuruí, sudeste do Pará.
9
Parte significativa do presente texto foi usada sem a citação da fonte, como segundo capítulo do trabalho de conclusão
de curso (TCC) de História da Universidade Federal do Pará, pelo senhor Robério Melo Lima. O TCC de 2003 foi
batizado de Panfletos e transmissores: experiência de comunicação popular em Marabá.
112
Dando grande destaque para as fotos, o Arca traz documentos como a pauta de
reivindicações, onde os trabalhadores rurais a serem atingidos pela lago da usina exigiam
áreas de 21 alqueires para lavoura, casas, vilas, recuperação dos prejuízos e indenizações
justas. Passados 23 anos, ainda hoje há pessoas que reclamam reposição de prejuízos em
acampamentos.
Uma nota de esclarecimento do movimento dos atingidos pela barragem
divulgada no jornal denunciava a postura autoritária da Eletronorte. Entre as denúncias,
constava que os colonos foram obrigados a assinar folhas em branco e que sofriam ameaças
morais e físicas para que recebessem as indenizações sem reclamar. A insuficiência da
indenização também é apontada pelo movimento, que denuncia o tratamento militar dado à
questão agrária. Com a região transformada em Área de Segurança Nacional, criou-se o
Grupo Executivo de Terras Araguaia Tocantins (GETAT), que recebia uma atenção
especial do boletim.
Ao comentar sobre a ação do GETAT no trato com os camponeses, A Arca
ressalta que um dos motivos alegados para a não disponibilização da área, solicitada por
cerca de quatro mil trabalhadores rurais afetados pela barragem de Tucuruí, é de que não
existiam muitas terras disponíveis na região.
Com duas edições na década de 90, o boletim Bafo de Bode era apócrifo, por
uma questão de segurança. Em uma terra onde tiros são o argumento mais comum para
cercear a liberdade de imprensa, ninguém assinava o conteúdo radical, contestatório e de
denúncia do “Bafo de Bode”. No expediente, era informada apenas a tiragem, 2.500
exemplares.
A escolha do anonimato era uma forma de preservar a vida dos seus autores. O
“Bafo de Bode” circulava em uma época marcada pelo total domínio da pistolagem, que
tinha como alvos preferidos lideranças sindicais, religiosos, advogados ligados na luta pela
reforma agrária. Sua linha editorial enfocava problemas relacionados com o campo e a
cidade e não poupava a inércia da Câmara de Vereadores de Marabá.
Na edição de número 02, do dia 28 de janeiro de 1990, o Bafo disparava contra
os vereadores:
“Depois de muitos atropelos dos vereadores, sem saberem como fazer
uma Constituição Municipal, agora chegam ao pior, o grupo de oito
vereadores da ala “baforida” do prefeito não comparece às sessões,
114
O OUTRO LADO
A principal função destes informativos era reportar o outro lado de histórias,
contadas de forma deturpada na imprensa local. O informativo Cupim, órgão de
comunicação da Associação dos Trabalhadores em Educação, registra em uma de suas
115
edições, datada de setembro de 1981, a luta pela melhoria das escolas públicas no Estado
do Pará. Nesta edição são denunciadas as péssimas condições de infra-estrutura da escola
em Palestina do Pará, onde os alunos não possuíam carteiras, e usavam o chão como
assento.
Em novembro de 1981, saía do forno a edição de número quatro do boletim O
Artista, Órgão de Comunicação da Arte e da Cultura Marabaense, estruturado em nove
páginas, e dividido em onze sessões. O jornal noticiou a primeira apresentação do Grupo de
Teatro Maget, a inauguração da ponte sobre o rio Itacaiuanas, além da presença da
biblioteca do Projeto Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), criado pelo regime
militar para promover a educação de jovens e adultos.
Edição do Mandi, 1981, preocupação com o meio ambiente e o boletim do Cepasp, edição de nº06, lançado
em setembro de 1988.
LUTAS E LÁGRIMAS
A regional sudeste da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará
(FETAGRI), sediada em Marabá, também editou quatro números de um jornal tamanho
tablóide. O primeiro número foi produzido em caráter de urgência em abril de 1999,
quando a entidade promovia, ao lado do MST e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o
segundo grande acampamento de trabalhadores rurais em Marabá, onde fica a sede regional
do INCRA.
Como os diretores desconheciam os processos de definição das matérias,
produção, revisão final, editoração, a tarefa tornou-se árdua e somente após vararem uma
madrugada trabalhando na sua elaboração, conseguiram colocar o informativo na rua.
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EDIÇÃO ESPECIAL
FETAGRI – a manchete que anuncia a morte de Dezinho, mais uma vítima da impunidade do Estado.
pelo desembargador Otávio M. Maciel, que tomou esta decisão após cometer uma sucessão
de equívocos, considerados erros primários, do ponto de vista jurídico, sendo o mais
gritante de todos a desconsideração dos motivos que levaram à prisão do acusado.
CUPIM, nº0, lançado em 1981 e o Ouriço, nº 03, lançado no dia 20 de outubro de 1979.
Nesta mesma edição, o boletim da Fetagri noticiava pela primeira vez a ida ao
banco dos réus de um mandante da morte de dirigente sindical. O réu, no caso, era
Jerônimo Alves de Amorim, 61 anos, responsável por ordenar a morte de Expedito Ribeiro,
sindicalista de Rio Maria. O fazendeiro foi condenado a 19 anos e seis meses de cadeia.
Apesar de uma decisão histórica, hoje o fazendeiro cumpre prisão domiciliar no estado de
Goiás, alegando motivo de saúde. O fazendeiro foi preso pela Polícia Federal quando
passeava no México e usava documentação falsa.
CONTRAPONTO NA REDE...
A luta dos povos do Araguaia-Tocantins também ecoa em outro tipo de mídia
de caráter mais globalizado: a internet. Durante três anos, entre 1999 e 2002, circulou pela
rede mundial de computadores o ”Contraponto”, um boletim eletrônico surgido em 1999
em um seminário sobre comunicação popular, realizado no Centro de Formação
Cabanagem, em Marabá.
122
Fazendo um jornal popular- cartilha produzida pelo Cepasp e o Informativo da PA-150, lançado em 1980.
Na freqüência da luta
124
Rádio Vitória FM, localizada no município de Nova Ipixuna e Rádio Alternativa FM, Marabá-PA.
128
ACEVEDO, Rosa. Conflitos agrários no Pará. In: Fontes (org.). Contando a história do
Pará. Belém,Motion,2003.v.2, p.211-262.
AMAZONAS, João; ANTERO, Luis Carlos; SILVA Elmano. Uma epopéia pela
liberdade: Guerrilha do Araguaia, 30 anos 1972/2002. São Paulo: Anita Garibalde, 2002.
BERMAN, C. Energia no Brasil: Para quê? Para quem? São Paulo: Livraria Fisíca e Fase,
2002.
______.Boletim,6. Marabá,set.1998.
_______. Rio Maria: canto da terra. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1993.
HÉBETTE, Jean. O surgimento do programa CAT: a luta camponesa pela terra. Belém,
UFPA, 2000,(CAT- Ano 10 – Etnográfia de uma utopia ).
IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social e da luta pela terra numa área da
Amazônia. Petrópolis : Vozes ,1978.
O Ouriço. Marabá.
PINTO, Jax Nildo Aragão. Violência e conflito agrário no estado do Pará: desafios e
enclaves que se colocam na pauta de discussão do tribunal internacional dos crimes do
latifúndio, Belém:[s.n.], 2003.
PINTO, Lúcio Flávio. Carajás o ataque ao coração da Amazônia. Rio de Janeiro : Marco
Zero.
SÁ, Glênio. Araguaia: relato de um guerrilheiro. São Paulo, Anita Garibalde, 1990.