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Resposta a “A Bíblia ou a Tradição?

” de Catholic
Answers [1]

Por Catholic Answers

Os reformadores protestantes diziam que a Bíblia era a única fonte das


verdades da fé e que, para entender sua mensagem, dever-se-ia tão
somente ler as palavras do texto. É o que se chama de "teoria protestante
da sola scriptura" ou, em português, "somente a Bíblia". Segundo esta
teoria, nenhuma autoridade fora da Bíblia pode impor uma interpretação e
nenhuma instituição extrabíblica - por exemplo, a Igreja - foi estabelecida
por Jesus Cristo para fazer as vezes de árbitra em caso de conflitos de
interpretação.

Os apologistas católicos, por ignorância culposa ou dolosa, costumam caricaturar a


doutrina de Sola Scriptura ao seu gosto. Eis aqui algumas amostras do que os
Reformadores verdadeiramente afirmaram; podem ver-se muitas mais em Philip
Schaff, The Creeds of Christendom. With a history and critical notes. Vol. 3: The
Evangelical Protestant Creeds, 6th Ed. Grand Rapids: Baker Books, 1983 (original
1931).

Citação:

Cremos, confessamos e ensinamos que a única regra e norma, de acordo com a


qual todos os dogmas e todos os doutores devem ser estimados e julgados, não é
outra senão os escritos proféticos e apostólicos tanto do Antigo como do Novo
Testamento ...

Mas outros escritos, seja dos padres ou dos modernos, com qualquer que seja o
nome que se apresentem, não devem ser de modo algum igualados às Sagradas
Escrituras, mas devem ser estimados como inferiores a elas, de forma que não
sejam recebidos de outro modo senão na categoria de testemunhas, para mostrar
que doutrina se ensinou também depois do tempo dos Apóstolos, e em que partes
do mundo a mais íntegra doutrina dos Profetas e Apóstolos foi preservada.

II. E na medida em que imediatamente depois do tempo dos Apóstolos, inclusive até
enquanto eles ainda estavam vivos, surgiram falsos mestres e hereges, contra os
quais na Igreja primitiva se compuseram símbolos, ou seja, confissões breves e
explícitas, que continham o consentimento unânime da fé Católica Cristã, e a
confissão da ortodoxa e verdadeira Igreja (como o são os Credos dos Apóstolos,
Niceno e de Atanásio): publicamente professamos que os abraçamos, e rejeitamos
todas as heresias e todos os dogmas que alguma vez se trouxeram à Igreja que
sejam contrários às suas decisões.

Fórmula da Concórdia, 1576, 1584

A Sagrada Escritura contém todas as coisas necessárias para a salvação: assim que
qualquer coisa que aí não se leia, nem possa provar-se por ela, não deve ser exigido
a nenhum homem que seja crido como um artigo de fé, ou considerado um requisito
ou necessidade para a salvação.

A Igreja tem poder para decretar ritos ou cerimónias, e autoridade nas


controvérsias de fé; e não obstante não é lícito que a Igreja ordene alguma coisa
que seja contrário à Palavra escrita de Deus, nem pode expor uma parte da
Escritura de tal forma que seja contrária a outra. Portanto, ainda que a Igreja seja
uma testemunha e uma guardadora da sagrada Escritura, ainda assim, do mesmo
modo em que não deve decretar nada contra esta, também não deve fora dela
impor nada para ser crido como necessário para a salvação.

Artigos VI e XX dos 39 Artigos Anglicanos

Os Reformadores cunharam o lema sola Scriptura, só a Escritura. Que significa isto?


Não significa que não devamos usar nada mais do que a Bíblia – que não há lugar
para dicionários de teologia e coisas semelhantes. Não significa que devamos
aprender a doutrina cristã somente de maneira directa da Bíblia, o que tornaria
redundantes os sermões e outros livros. Não significa sequer que não devamos
reconhecer outra autoridade senão a Bíblia no nosso cristianismo. A tradição e a
igreja inevitavelmente funcionam como autoridades em algum sentido. Porém, a
Bíblia permanece como a autoridade decisiva e final, a norma pela qual todo o
ensino da tradição e da igreja deve ser julgado.

New Dictionary of Theology, Ed. Sinclair B. Ferguson, David F. Wright, James I.


Packer. Grand Rapids: Zondervan, 1988, p. 633.

Por herança e convicção eu mesmo sou um biblicista; teológica tanto como


academicamente sou homo unius libri. Uma das funções de normas subordinadas
reconhecidas, como a Confissão de Fé de Westminster e os Catecismos Maior e
Menor na tradição presbiteriana, é a de fornecer orientações para a interpretação e
aplicação da Escritura. Onde as normas subordinadas não são reconhecidas, não
significa que não existam tais orientações: é muito provável que se estabeleçam
orientações e mesmo cânones mais precisos, mas porque tomam a forma de
tradição não escrita, a sua verdadeira natureza pode passar despercebida.

Sola Scriptura, na frase luterana, denota a Escritura como o principium cognoscendi,


a fonte primária do conhecimento teológico. A apelação de Lutero só à Escritura
como a norma pela qual os concílios, a lei canónica e todas as outras formas de
tradição eclesiástica devem ser provadas foi determinado como resultado da sua
confrontação com Johann Meier von Eck na disputa de Leipzig de 1519 e achou
expressão histórica na Dieta de Worms dois anos mais tarde... "A marca distintiva
da Reforma e dos seus discípulos", diz um teólogo luterano moderno, "é a partícula
exclusiva, a palavra «sola» ... Concretamente expresso, a relação entre a
comunidade e a Palavra de Deus não é reversível; não há um processo dialéctico
pelo qual a comunidade criada pela Palavra se torne ao mesmo tempo uma
autoridade disposta sobre a Palavra para interpretá-la, para administrá-la, para
possuí-la... Pois a comunidade permanece como serva da Palavra." (E. Kasëmann,
New Testament Questions for Today, ET, London, 1969, p.. 261s).

F.F. Bruce, Tradition Old and New. The Paternoster Press, 1970, p. 13-14.

Como bons herdeiros dos reformadores, as seitas fundamentalistas


trabalham sobre a base desta teoria e não perdem oportunidade para
demonstrar seu princípio que, por outro lado, pareceria ser sua arma mais
poderosa, algo que eles aceitam como o fundamento indiscutível dos seus
pontos de vista.

Contudo, não existe coisa mais difícil no diálogo com os fundamentalistas


que fazê-los provar o porquê crêem no princípio do "somente a Bíblia",
separada de qualquer outra fonte de autoridade, e que esta (a Bíblia) seja
suficiente nas questões de fé. A questão se resume em saber qual o motivo
que faz um fundamentalista crer que a Bíblia seja um livro inspirado, já
que é óbvio que ela pode tornar-se regra de fé apenas no caso de se
comprovar sua inspiração e, também, sua inerrância.

Sem dúvida que há pessoas que, ignorantes da história, não tomaram em


consideração o problema que aqui se expõe. Mas é mentiroso e descarado
caracterizá-los como "bons herdeiros dos reformadores".

Claro que essa questão não preocupa por demais a maioria dos cristãos e,
certamente, são poucos os que tenham se atentado para isto alguma vez.
Em geral, se crê na Bíblia porque é o livro aceito por todos os cristãos, cuja
autoridade não se discute, eis que ainda vivemos em tempos em que os
princípios cristãos têm influência na cultura e no modo de vida da maioria
das pessoas.

Certamente isso pouco importa à maioria dos católicos, coisa que os autores não
parecem valorizar adequadamente; parece que lhes encaixa na perfeição a
parábola acerca do cisco no olho alheio...

Um cristão humilde, que não daria a mínima credibilidade para o Alcorão,


pensaria duas vezes antes de falar mal da Bíblia, já que esta goza de certo
prestígio, mesmo quando não pudesse explicá-la ou entendê-la bem.
Poderia dizer-se que essa pessoa aceita a Bíblia como inspirada - qualquer
que seja seu entendimento quanto à inspiração - por razões de tipo
cultural, razões que, sem dúvida, são de escasso ou nenhum valor, já que
pelas mesmas razões o Alcorão é tido por inspirado em países de cultura
muçulmana.

Com certeza que assim é tido o Alcorão nos citados países, e com força de lei.
Quanto à Bíblia, é lamentável que muitos cristãos creiam na inspiração da Bíblia
(no caso de entenderem o que é inspiração em sentido teológico em primeiro lugar)
somente por razões culturais; como por outro lado outras pessoas rejeitam a Bíblia
sem tê-la examinado apropriadamente por razões igualmente culturais.

"PARA MIM, É MOTIVO SUFICIENTE"

Diga-se o mesmo perante quem sustenta que a família pela qual veio ao
mundo sempre considerou a Bíblia como livro inspirado e "para mim, isso
basta". Seria um bom motivo somente para aquele que não pode fazer um
trabalho de reflexão sério (e não devemos nunca desprezar uma fé
simples, sustentada sobre fundamentos bem mais débeis). Porém, seja
como for, o mero costume familiar ou local não pode estabelecer-se como
base para a crença na inspiração divina da Sagrada Escritura.

Bom, de acordo; do mesmo modo em que o "mero costume familiar ou local"


também não pode estabelecer-se como base para a crença que uma determinada
instituição é a autêntica e legítima Igreja de Jesus Cristo. No entanto, isto é
precisamente o que faz a esmagadora maioria dos católicos.

Alguns sectários dizem que a Bíblia é um livro inspirado porque "é um livro
que inspira". Porém, a palavra "inspiração" é precisamente o que se quer
provar e observemos que há muitos escritos religiosos antigos que
certamente são muito mais "inspirativos" ou "emotivos" do que muitos
textos e até livros inteiros do Antigo Testamento. Não é falta de respeito
afirmar que certas passagens dos escritos sagrados são tão secos quanto
as estatísticas militares... e algumas partes da Bíblia (Antigo Testamento)
são compostas realmente por isso: estatísticas militares!

Uma coisa chocante deste escrito é a vaguidade de muitas das suas afirmações.
"Alguns sectários"? Não poderia precisar um pouco mais? Eu nunca me encontrei
com os tais.

Por isso, concluímos que não é suficiente crer na Sagrada Escritura por
motivos culturais ou de costume, nem tampouco por seus textos emotivos
ou sua beleza espiritual: há outros livros, alguns totalmente mundanos,
que ultrapassam em beleza poética muitas passagens da Escritura.

A menos que estas declarações se baseiem em declarações do Magistério romano


que desconheço, me parece simplesmente fruto do sentido estético do autor, o que
é completamente irrelevante na presente discussão.

QUE DIZ A BÍBLIA DE SI MESMA?

E que dizer do que a própria Bíblia ensina sobre sua inspiração? Notemos
que são muito poucas as passagens onde a própria Bíblia ensina sua
inspiração - mesmo que de modo indireto - e a maioria dos livros do Antigo
e do Novo Testamento não dizem absolutamente nada sobre sua particular
inspiração. De fato, nenhum autor dos livros do Novo Testamento diz estar
escrevendo sob o impulso do Espírito Santo, exceto São João, ao escrever o
Apocalipse.

Ao precisar "do Novo Testamento" o autor pretende salvaguardar a sua veracidade,


mas mente por omissão, já que deve de saber que no Antigo Testamento são
inumeráveis as vezes, sobretudo nos profetas, em que o autor humano tem
consciência de estar a falar da parte de Deus. No Novo Testamento este facto é
ensinado claramente em 1 Pedro 1:10-12 (ver também Actos 1:16; Hebreus 1: 1-
3; 2 Pedro 1:21).

Mas, para sua desgraça, também falha por comissão. Vejamos as seguintes
passagens:

Romanos 9:1-2
Digo a verdade em Cristo, não minto, dando-me testemunho a minha consciência
no Espírito Santo, de que tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração.

1 Coríntios 2:10-16
No entanto, falamos sabedoria entre os que alcançaram maturidade; mas uma
sabedoria não deste século, nem dos governantes deste século, que vão
desaparecendo, mas falamos sabedoria de Deus em mistério, a sabedoria oculta
que, desde antes dos séculos, Deus predestinou para nossa glória; a sabedoria que
nenhum dos governantes deste século entendeu, porque se a tivessem entendido
não teriam crucificado o Senhor da glória; mas como está escrito:
COISAS QUE OLHO NÃO VIU, NEM OUVIDO OUVIU,
NEM ENTRARAM NO CORAÇÃO DO HOMEM,
SÃO AS COISAS QUE DEUS PREPAROU PARA OS QUE O AMAM.
Mas Deus no-las revelou por meio do Espírito, porque o Espírito esquadrinha todas
as coisas, mesmo as profundezas de Deus. Porque entre os homens, quem conhece
os pensamentos de um homem, senão o espírito do homem que está nele? Assim
também, ninguém conhece os pensamentos de Deus, senão o Espírito de Deus. E
nós recebemos, não o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, para
que conheçamos o que Deus nos deu gratuitamente, do qual também falamos, não
com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com as ensinadas pelo
Espírito, combinando pensamentos espirituais com palavras espirituais. Mas o
homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são
loucura; e não as pode entender, porque se discernem espiritualmente. Porém, o
que é espiritual julga todas as coisas; mas ele não é julgado por ninguém. Porque
QUEM CONHECEU A MENTE DO SENHOR, PARA QUE O INSTRUA? Mas nós temos a
mente de Cristo.

1 Pedro 1:12
A eles foi revelado que não se serviam a si mesmos, mas a vós, nestas coisas que
agora vos foram anunciadas mediante os que vos pregaram o evangelho pelo
Espírito Santo enviado do céu; coisas para as quais os anjos desejam atentar.

Os autores do Novo Testamento não tinham menos consciência de estar a falar da


parte de Deus e mediante o seu Espírito que os do Antigo. Pensar o contrário é
conceber a Revelação funcionando "em marcha atrás".

Ademais, ainda que cada livro da Bíblia começasse com a frase: "Este livro
é inspirado por Deus", semelhante frase não provaria nada: o Alcorão diz
ser inspirado, assim como o Livro do Mórmon e vários livros de algumas
religiões orientais. Mais: os livros de Mary Baker Eddy (a fundadora da
Ciência Cristã) e de Ellen G. White (fundadora do Adventismo do Sétimo
Dia) se auto-proclamam inspirados. Pode-se concluir - com grande senso
comum - que o fato de um escrito atribuir a si qualidades de inspiração
divina não quer dizer que assim o seja na realidade.

Como terá podido perceber o leitor, que os autores sagrados tinham consciência de
falar da parte de Deus não é uma suposição.

De resto, admito livremente como coisa óbvia e verdade de La Palice que nem todo
o escrito que se declare a si mesmo inspirado o é na realidade.

Ao dizer estes argumentos, muitos fundamentalistas recuam e nos


afirmam que "o Espírito Santo me diz claramente que a Bíblia é inspirada",
uma noção bastante subjetiva - para se dizer o mínimo - muito semelhante
com aquela outra, tão comum entre os sectários, de que "o Espírito Santo
os guia para interpretar as Escrituras". É, assim, que o autor anônimo do
artigo "Como posso compreender a Bíblia?", um folheto distribuído pela
organização evangélica "Radio Bible Class", apresenta doze regras para o
estudo da Bíblia. A primeira é: "Busca a ajuda do Espírito Santo. O Espírito
Santo foi dado para iluminar as Escrituras e fazê-las reviver para ti quando
a estudas; deixa Ele te guiar".

Até que enfim uma citação mais ou menos precisa! É uma pena que o nosso
entusiasta apologista tenha omitido as outras onze regras para compreender a
Bíblia.

Por outro lado, a primeira é a mais importante e é altamente estranho que


considere digno de discussão. O próprio Senhor ensinou que o Espírito nos guiaria a
toda a verdade, e a mesma coisa foi reiterada por Paulo (ver o texto de 1 Coríntios
2 reproduzido acima), por João (1 João 2:20-28; 4:1-3, etc), por Judas (19-21).
Além disso, a própria doutrina católica ensina exactamente o mesmo, embora o
restrinja particularmente ao seu Magistério, o qual "por mandato divino e com a
assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe
fielmente" (Catecismo da Igreja Católica # 86, citando a Constituição Dei Verbum
do Concílio Vaticano II; e poderiam aduzir-se muitos outros documentos).

Se com esta regra se entende que qualquer pessoa que pedir a Deus para o
guiar na interpretação da Bíblia receberá essa condução do alto - e neste
sentido entendem a maioria dos fundamentalistas - então o imenso
número de interpretações contrárias e contraditórias, mesmo entre os
próprios fundamentalistas, nos apresentaria a preocupante sensação de
que o Espírito Santo não tem trabalhado direito...

De novo o recurso à vaguidade! Se os protestantes em conjunto cressem na


caricatura que aqui é apresentada, os livros protestantes de hermenêutica (Terry,
Fairbairn, Berkhof, Ramm, Martínez e outros), como os Léxicos, Dicionários e
Enciclopédias Bíblicas protestantes não teriam razão de existir. Mas existem e em
grande número.

Além disso, até o folheto que cita de passagem este católico tem outras onze
regras básicas que ele omite para poder sustentar a sua mal amanhada retórica.

NÃO COM SILOGISMOS

Grande parte dos fundamentalistas não dizem diretamente que o Espírito


Santo lhes falou, assegurando-lhes que a Bíblia é um livro inspirado. Ao
menos, não falam desse modo. Melhor, agem assim: ao ler a Bíblia, o
Espírito "os convence" que essa é a Palavra de Deus, recebem certa
sensação interior de que é uma palavra divina e ponto.

De qualquer modo que se veja, a postura fundamentalista não resiste a um


raciocínio sério. Conta-se nos dedos de uma mão os fundamentalistas que
num primeiro momento se aproximaram da Bíblia como um livro "neutro"
e, após sua leitura, a reconheceram como inspirado, segundo um
raciocínio lógico. De fato, os fundamentalistas começam pressupondo o
fato da inspiração - tal como recebem outras doutrinas das suas seitas -
sem raciocinar sobre elas e, então, encontram partes da Sagrada Escritura
que parecem fundamentar a inspiração, caindo assim num círculo vicioso,
confirmando com a Bíblia o que eles já acreditavam de antemão.

Sinceramente, não sei de ninguém (pelo menos nos tempos modernos) que possa
presumir estar livre de preconceitos ao aproximar-se da Bíblia. Certamente não os
supostos "Fundamentalistas" nem os católicos (em caso de lhes dar para ler a
Bíblia, coisa relativamente pouco frequente), e nem sequer os agnósticos.

O facto é que os cristãos de todos os tempos reconheceram algo que no seu zelo
por desprestigiar os seus fantasmagóricos "fundamentalistas", o nosso autor
esquece. E este algo é que a Revelação é sobrenatural e, embora não seja contrária
à razão, a ultrapassa amplamente. Em outras palavras, sem o testemunho do
Espírito Santo ao nosso espírito, ninguém pode chamar cabalmente a Jesus
"Senhor" nem reconhecer quem inspirou as Escrituras.

A pessoa que quer refletir seriamente sobre o tema se defraudará com a


posição fundamentalista da inspiração bíblica, percebendo que esta não
possui uma base sólida para manter tal teoria.
Se parte de uma base meramente racionalista, com muita probabilidade não
encontrará base suficiente. É o que ocorre quando se quer medir o sobrenatural
com um instrumento natural. Contra isto se expressou com bastante clareza o
mesmo Magistério ao qual supostamente o nosso autor adere; e no entanto é capaz
de contradizer os ensinamentos históricos da sua própria Igreja num esforço inútil
para provar supostos erros alheios.

A posição católica é a única que, no final, pode dar uma resposta


intelectualmente satisfatória.

Isto ameaça pôr-se interessante.

A maneira católica de raciocinar, para demonstrar que a Bíblia é inspirada,


é a seguinte: em um primeiro passo, consideramos a Bíblia como qualquer
outro livro histórico, sem presumir que seja inspirado. Estudando o texto
bíblico com os instrumentos da ciência moderna, chegamos à conclusão de
que se trata de uma obra confiável, de grande precisão histórica, sendo
que referida precisão ultrapassa em muito a de qualquer outro texto
histórico.

Não é verdade desde o ponto de vista histórico que esta seja "a maneira católica de
raciocinar". O Concílio de Trento estabeleceu claramente que a Igreja reconhece a
inspiração do Espírito Santo nas Escrituras canónicas. O fundamento histórico deste
reconhecimento é a autoridade que a própria Igreja de Roma se arroga como
custódia e intérprete das Escrituras.

Por outro lado, embora alguns apologistas católicos adoptem o enfoque que aqui é
proclamado, na verdade não possuem a exclusividade, uma vez que os evangélicos
realizaram um trabalho notável ao compilar evidências históricas que não
demonstram de maneira concludente a verdade da fé cristã mas demonstram que
existem sólidas evidências da fidelidade histórica das Escrituras; ver mais abaixo.

UM TEXTO PRECISO

Frederic Kenyon, em "A História da Bíblia", faz notar o seguinte: "Para


todas as obras da antigüidade clássica, nos vemos obrigados a nos
socorrer de manuscritos redigidos muito depois do original. O autor que
leva vantagem neste sentido é Virgílio, visto que o manuscrito mais antigo
que dele possuímos foi escrito 350 anos depois da sua morte. Para todas
as demais obras clássicas, o intervalo que existe entre a data do escrito
original e a do manuscrito mais antigo que dele se conserva é muito maior:
para Lívio, é de uns 500 anos; para Horácio, 900; para a maioria das obras
de Platão, 1300; para Eurípedes, 1600". Mesmo assim, ninguém pode
seriamente duvidar de que realmente possuímos cópias fiéis das obras
desses autores.

Não somente possuímos manuscritos bíblicos mais próximos aos originais


que os da antigüidade clássica, como também possuímos um número muito
maior que aqueles. Alguns destes manuscritos são livros inteiros; outros
são fragmentos; outros, tão somente algumas palavras; mas todos eles
juntos somam milhares de manuscritos em hebraico, grego, latim, copta,
siríaco e outras línguas. Tudo isso significa que possuímos um texto
rigorosamente fiel, que pode ser usado com toda confiança.
Que alguém me corrija se estiver enganado, mas parece-me que Sir Frederic
Kenyon (1863-1952), Director desde 1909 do Museu Britânico, pertencia à Igreja
Anglicana.

Outros autores não católicos que compilaram evidência são, por exemplo:

F.F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento?


George E. Wright, Arqueologia Bíblica
E.W. Yamauchi, Las excavaciones y las Escrituras
G. Báez-Camargo, Comentario arqueológico de la Biblia
Josh McDowell, Evidência que exige um veredicto e A ready defense
Paul Little, Know why you believe
J. Vardaman, La arqueología y la Palabra viva
Philip W. Comfort (Ed.), The origin of the Bible
William Lane Craig, Reasonable faith

Portanto, difícilmente podem os católicos arrogar-se a liderança neste assunto.

TOMADO HISTORICAMENTE

Em um segundo momento, dirigimos nossa atenção para o que a Bíblia -


considerada somente como um livro histórico - nos ensina, particularmente
no Novo Testamento e nos Evangelhos. Examinemos o relato da vida de
Jesus, sua morte e sua ressurreição.

Usando o que nos transmitem os Evangelhos, o que lemos em outros


escritos extrabíblicos dos primeiros séculos e o que nos ensina nossa
própria natureza - e o que de Deus podemos conhecer pela luz da razão -
concluímos que Jesus ou era o que dizia ser (Deus) ou era louco. (Sabemos
que não pode ter sido apenas um bom homem e ao mesmo tempo não ser
Deus, já que nenhum bom homem poderia atribuir para si a divindade se
realmente não fosse Deus).

Também podemos negar que era um louco, não apenas pelo que disse e
ensinou - nenhum louco jamais falou como ele, da mesma forma que
nenhum homem sábio tampouco já tenha falado assim... - mas ainda pelo
que seus discípulos fizeram após a sua morte. Uma fraude (o túmulo
supostamente vazio) poderia ter ocorrido, mas ninguém daria a vida por
uma fraude, ao menos por uma fraude sem perspectiva de proveito. Logo,
devemos afirmar que Jesus verdadeiramente ressuscitou e, portanto, era
Deus como dizia ser e cumpriu o que prometeu fazer.

É curioso que se use um argumento que se a memória não me falha provém de


C.S. Lewis, outro anglicano. Também é desenvolvido por Josh McDowell em
Evidência que exige um veredicto. De novo, estes argumentos não são "a posição
católica", pelo menos não historicamente nem em exclusivo.

Outros autores que tratam acerca da natureza histórica de Jesus são:

I.Howard Marshall, I believe in the historical Jesus


Lee Strobel, The case for Christ
Gary R. Habermas, The historical Jesus

Outra coisa que Ele disse que faria seria fundar a sua Igreja; e tanto a
Bíblia (ainda que tomada como simples livro histórico e não como livro
inspirado por Deus) como outras fontes históricas antigas nos fazem saber
que Cristo estabeleceu uma Igreja com as características que vemos hoje
na Igreja Católica: papado, hierarquia, sacerdócio, sacramentos,
autoridade para ensinar e, como conseqüência desta última, infalibilidade.
A Igreja de Cristo deveria gozar da infalibilidade de ensinamento se fosse
cumprir aquilo para o qual Cristo a fundou.

ah! ah! ah!

Ou seja, a Igreja de Roma em pleno... assim tal e qual de uma assentada. Por
favor!

Que a Igreja "deveria gozar da infalibilidade" é uma petição de princípio que supõe
demonstrado precisamente o que se discute. É intelectualmente desonesto saltar
da evidência histórica da fé cristã para a instituição vaticana sem escalas.

Tomando material meramente histórico, concluímos que existe uma Igreja


- a Igreja Católica - protegida pelo Espírito Santo para que possa ensinar,
sem erro, até o fim dos tempos. Vejamos agora a última parte do
argumento.

Essa Igreja nos diz que a Bíblia é inspirada e podemos confiar em seu
ensino porque se trata de um ensinamento autorizado, infalível. Só após
sermos ensinados por uma autoridade propriamente constituída por Deus
para nos transmitir as verdades necessárias para a nossa fé - tal como a
inspiração da Bíblia - só então é que podemos usar as Escrituras como um
livro inspirado.

Mas, como indiquei antes, o católico deve aceitar a autoridade da Bíblia porque a
instituição a que pertence o afirma. Contudo, até o próprio Magistério romano
ensina que a Igreja recebe as Escrituras porque foram inspiradas pelo Espírito
Santo, não porque as tenha submetido a escrutínio exaustivo.

UM ARGUMENTO EM ESPIRAL

Há que se notar que o nosso argumento não cai em um círculo vicioso: não
estamos baseando a inspiração da Bíblia na infalibilidade da Igreja e a
infalibilidade da Igreja na palavra inspirada da Bíblia; isso seria
precisamente um círculo vicioso. O que temos feito se chama "argumento
em espiral": por um lado, argumentamos sobre a confiabilidade da Bíblia
como texto meramente histórico; dali sabemos que Jesus fundou uma
Igreja infalível e só então tomamos a palavra dessa Igreja infalível que nos
ensina que a Palavra transmitida pela Bíblia é uma Palavra inspirada,
Palavra de Deus. Não se trata de um círculo vicioso, já que a conclusão
final (a Bíblia é a Palavra de Deus) não é o enunciado do qual partimos (a
Bíblia é um livro historicamente confiável), e este enunciado inicial não
está baseado, em absoluto, na conclusão final. O que demonstramos é que,
se excluirmos a Igreja, não teremos suficientes motivos para afirmar que a
Bíblia é a Palavra de Deus.

A Igreja dá testemunho das Escrituras; não lhes outorga, nem poderia outorgar-
lhes, alguma autoridade que não possuam intrinsecamente.

É verdade que a Bíblia é um "livro" historicamente confiável. Também é verdade


que é inspirado por Deus. A primeira coisa pode avaliar-se mediante a razão, mas a
segunda a excede. Em todo o caso, estas comprovações de modo algum avalizam
as pretensões da instituição vaticana.

É certo que o que acabamos de discutir não é precisamente o raciocínio


que a gente habitualmente faz ao se aproximar da Bíblia, mas é a única
maneira razoável de fazê-lo na hora em que se nos perguntam por que
cremos na Bíblia. Qualquer outro raciocínio é insuficiente; talvez haja
argumentos mais próximos da gente sob o ponto de vista psicológico,
porém, são estritamente argumentos não convincentes. Na matemática
aceitamos "por fé" (não no sentido teológico do termo, é claro) que dois
mais dois é igual a quatro. É uma verdade que nos parece evidente e
satisfatória sem maiores argumentos, mas para quem quiser fazer um
curso de matemática, deverá estudar um semestre inteiro visando provar
essa verdade tão "óbvia".

Nenhum argumento convencerá quem não quer crer. Uma pessoa pode inclusive
admitir a exactidão histórica da Bíblia, sem por isso considerá-la inspirada. O nosso
polémico autor insiste numa linha racionalista que foi censurada inclusive pelo seu
próprio Magistério.

RAZÕES INADEQUADAS

A questão aqui é a seguinte: os fundamentalistas têm muita razão em crer


que a Bíblia é um livro inspirado por Deus, no entanto, suas razões para
crer são inadequadas, insuficientes, já que a aceitação da inspiração divina
das Escrituras pode se basear satisfatoriamente apenas numa autoridade
estabelecida por Deus que nos assegure isso; e essa autoridade é a Igreja.

Asseveração falsa, como pode ver-se do que antecede. Se os argumentos históricos


provassem a inspiração da Bíblia, o testemunho da Igreja como comunidade de fé
seria desnecessário. Para além disso, repito que a Igreja não pode conceder
autoridade à Palavra de Deus; esta a tem por sua origem e natureza.

E precisamente aqui encontramos um problema mais sério: pode parecer a


alguém que mesmo que eu creia na Bíblia como Palavra de Deus, pouco
importa o motivo dessa minha crença; o importante seria aceitar a Bíblia
como a Palavra de Deus. Porém, o motivo pelo qual uma pessoa crê na
Bíblia afeta substancialmente a maneira de interpretar a Bíblia. O fiel
católico crê na Bíblia porque a Igreja assim o ensina e essa mesma Igreja
tem a autoridade de interpretar o texto inspirado. Os fundamentalistas,
por sua vez, crêem na Bíblia - mesmo baseados em argumentos pouco
convincentes - porém, não aceitam nenhuma outra autoridade para
interpretar o texto bíblico a não ser os seus próprios pontos de vista.

É claro que afecta a interpretação; o católico está obrigado a aceitar sem mais a
interpretação que lhe impõe o seu Magistério (nos escassos textos que foram
objecto de uma interpretação oficial), por mais que vá contra uma sã exegese.

Aqui é feito um enredo de argumentos, que sendo sério não é menos divertido.
Começou por uma linha racionalista e a dado momento introduziu em bloco a Igreja
de Roma. De novo, se a Bíblia é a Palavra de Deus, o é com o consentimento da
instituição vaticana e também sem ele.

O cardeal Newman expressava isso em 1884, da seguinte maneira:


"Certamente que se as revelações e ensinamentos bíblicos do texto
sagrado se dirigem a nós de uma maneira pessoal e prática, se faz
obrigatória a presença formal, no meio de nós, de um juiz e expositor
autorizado dessas revelações e ensinamentos. É antecedentemente
irracional supor que um livro tão complexo, tão pouco sistemático, em
partes tão obscuro, fruto de várias mentes tão distintas, lugares e épocas
diferentes, fosse nos dado do alto sem uma autoridade interpretativa do
mesmo, já que não podemos esperar que interprete a si mesmo.

O nosso autor deveria esclarecer quem foi o Cardenal Newman e como abandonou
a Igreja Anglicana para abraçar a doutrina romanista.

Se engana Newman ao dizer que não podemos esperar que a Bíblia se interprete a
si mesma. Na verdade pode compreender-se muito dela partindo da analogia da fé:
a Bíblia não se contradiz e as passagens mais claras fazem luz sobre as mais
difíceis. A profecia se compreende à luz do seu cumprimento, os tipos pelos
respectivos anti-tipos, etc.

Além disso, o argumento não se baseia nos textos escriturais, mas em suposições
acerca da clareza da Escritura seguidas de conjecturas acerca de como solucionar o
assunto. Contudo, a própria Bíblia não sugere a conveniência, a possibilidade, nem
a necessidade, de algum intérprete infalível.

O fato de que seja um livro inspirado nos assegura a verdade do seu


conteúdo, não a interpretação do mesmo. Como pode o simples leitor
distinguir o que é didático e o que é histórico, o que é fato real e o que é
uma visão, o que é alegórico e o que é literal, o que é um recurso
idiomático e o que é gramatical, o que se enuncia formalmente e o que
ocorre de passagem, quais são as obrigações que vigoram sempre e quais
vigoram em certas circunstâncias? Os três últimos séculos têm provado,
infelizmente, que em muitos países tem prevalecido a interpretação
particular das Escrituras. O dom da inspiração divina das Escrituras requer
como complemento obrigatório o dom da infalibilidade da sua
interpretação".

Bom, esta é a opinião de dom John Henry Newman, cardeal da Igreja de Roma.
Pelo menos duas objecções surgem de imediato, além do facto de a própria
Escritura não prever intérpretes humanos infalíveis; a primeira é teórica e a
segunda prática:

1. Mesmo se houvesse tal coisa, as explicações do suposto intérprete infalível não


solucionam o problema, pois ditas explicações devem ser recebidas por fiéis
reconhecidamente falíveis, entre os quais não só se contam as pessoas simples,
mas também os teólogos, professores, presbíteros e inclusive os bispos individuais.
De modo que, longe de solucionar o problema, intercalar um "intérprete infalível"
simplesmente o pospõe.

2. É um facto plenamente comprovável a partir da história do cristianismo que a


vasta maioria dos textos bíblicos não foram objecto de definições declaradas como
infalíveis; de modo que para praticamente todo o texto bíblico a dificuldade que
segundo o Cardeal Newman a Igreja de Roma resolveu para sua inteira satisfação,
está na realidade longe de ter recebido solução. A instituição vaticana teve tempo
de sobra para produzir e publicar uma explicação "infalível" de toda a Escritura. Em
vez disso, deixou o grosso da tarefa em mãos de biblistas e teólogos
reconhecidamente falíveis.
De modo que, em resumo, a pretensão romanista carece por completo de
fundamento histórico, teórico e prático.

As vantagens do raciocínio católico são duas: em primeiro lugar, a


inspiração é estritamente demonstrada, não apenas "sentida". Segundo, o
fato principal que pulsa atrás deste raciocínio - a existência de uma Igreja
infalível, que nos conduz pela mão a dar uma resposta à pergunda do
eunuco etíope (Atos 8,31): como saber se as interpretações do texto são
mesmo as corretas? A mesma Igreja que autentica a Bíblia, que estabelece
a sua inspiração, é a autoridade estabelecida por Jesus Cristo para
interpretar a Sua Palavra.

A única vantagem das elucubrações apresentadas pelo autor, que ele se compraz
em chamar "raciocínio católico", é a de levar, mediante uns passos mágicos, água
para o moinho romanista. Se realmente deseja ser levado a sério, deverá esforçar-
se por elaborar e fundamentar documentalmente as suas falibilíssimas opiniões.

[1] Este artigo encontra-se publicado entre outros em veritatis.com.br.

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