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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA


INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SANTA
CATARINA
CAMPUS CRICIÚMA
DISCIPLINA: COMUNICAÇÃO TÉCNICA
PROFESSORA: SHEILAR NARDON DA SILVA

PRECONCEITO LINGUÍSTICO

“O certo é falar assim porque se escreve assim”

Diante de uma tabuleta escrita COLÉGIO é provável que um pernambucano, lendo-a em voz
alta, diga CÒlégio, que um carioca diga CUlégio, que um paulistano diga CÔlégio. E agora? Quem está
certo? Ora, todos estão igualmente certos. O que acontece é que em toda língua do mundo existe um
fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim
como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico.
Infelizmente, existe uma tendência (mais um preconceito!) muito forte no ensino da língua de
querer obrigar o aluno a pronunciar “do jeito que se escreve”, como se essa fosse a única maneira
“certa” de falar português. (Imagine se alguém fosse falar inglês ou francês do jeito que se escreve!) Muitas
gramáticas e livros didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor a “corrigir” quem fala muleque,
bêjo, minino, bisôro, como se isso pudesse anular o fenômeno da variação, tão natural e tão antigo na
história das línguas. Essa supervalorização da língua escrita combinada com o desprezo da língua falada
é um preconceito que data de antes de Cristo!
É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não se pode
fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são
resultado natural das [pg. 52] forças internas que governam o idioma. Seria mais justo e democrático
dizer ao aluno que ele pode dizer BUnito ou BOnito, mas que só pode escrever BONITO, porque é
necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está
escrito, mas é preciso lembrar que ela funciona como a partitura de uma música: cada instrumentista vai
interpretá-la de um modo todo seu, particular!
O pintor belga René Magritte (1898-1967) tem um quadro famoso, chamado A traição das
imagens, no qual se vê a figura de um cachimbo e embaixo dela a frase escrita: “Isto não é um
cachimbo”.

Em que esse exemplo pode servir à nossa discussão? Isso não é um cachimbo de verdade, mas
simplesmente a representação gráfica, pictórica de um cachimbo. O mesmo acontece com a escrita
alfabética, em sua regulamentação ortográfica oficial. Ela não é a fala: é uma tentativa [pg. 53] de
representação gráfica, pictórica e convencional da língua falada.
Quando digo que a escrita é uma tentativa de representação é porque sabemos que não existe
nenhuma ortografia em nenhuma língua do mundo que consiga reproduzir a fala com fidelidade.
Algumas ortografias, como a do espanhol, têm regras mais generalizáveis, mais simples e mais
coerentes, que facilitam o ato de ler e escrever. Mesmo assim, no castelha-no-padrão da Espanha, pode
sempre haver dúvidas: Z ou C? B ou V? G ou J?
Outras línguas, como o inglês, têm mais exceções do que regras, e é preciso aprender a
escrever (e a pronunciar) praticamente cada palavra, pois a generalização das regras ortográficas tem
boa chance de falhar: para um falante de português, é estranho imaginar que as palavras jail e gaol
tenham a mesma pronúncia! Outras, ainda, como o chinês, não buscam reproduzir a língua falada, e
optam pela escrita ideográfica.
Esta relação complicada entre língua falada e língua escrita precisa ser profundamente
reexaminada no ensino. Durante mais de dois mil anos, os estudos gramaticais se dedicaram
exclusivamente à língua escrita literária, formal. Foi somente no começo do século XX, com o nascimento
da ciência lingüística, que a língua falada passou a ser considerada como o verdadeiro objeto de estudo
científico. Afinal, a língua falada é a língua tal como foi aprendida pelo falante em seu contato com a
família e com a comunidade, logo nos primeiros anos de vida. É o instrumento básico de sobrevivência.
Um grito de socorro tem muito mais eficácia do que essa mesma mensagem escrita.

“As pessoas sem instrução falam tudo errado”

O preconceito lingüístico se baseia na crença de que só existe, como vimos no Mito n° 1, uma única língua
portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e
catalogada nos dicionários. Qualquer manifestação lingüística que escape desse triângulo escola-
gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito lingüístico, “errada, feia, estropiada,
rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português”.
Um exemplo. Na visão preconceituosa dos fenômenos da língua, a transformação de I em R nos
encontros consonantais como em Cráudia, chicrete, praca, broco, pranta é tremendamente estigmatizada
e às vezes é considerada até como um sinal do “atraso mental” das pessoas que falam assim. Ora,
estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de “atraso

mental” dos falantes “ignorantes” do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que
contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão. Basta olharmos para o seguinte quadro:
Como é fácil notar, todas as palavras do português--padrão listadas acima tinham, na sua
origem, um I bem nítido que se transformou em R. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que
dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir
que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em
que a língua portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo
mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o
maior monumento literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo
absurdo.
Existem, evidentemente, falantes da norma culta urbana, pessoas escolarizadas, que têm
problemas para [pg. 41] pronunciar os encontros consonantais com L. Nesses casos, sim, trata-se
realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica. Não é dessas
pessoas que estamos tratando aqui, mas dos brasileiros falantes das variedades não-padrão, em cujo
sistema fonético simplesmente não existe encontro consonantal com L, independentemente de terem ou
não dificuldades articulatórias. Quando, na escola, se depararem com os encontros consonantais com L é
preciso que o professor tenha consciência de que se trata de um aspecto fonético “estrangeiro” para
eles, do mesmo tipo dos que encontramos, por exemplo, nos cursos de inglês, quando nos esforçamos para
pronunciar bem o TH de throw ou o I de live. É preciso separar bem os dois aspectos do fenômeno.
Se dizer Cráudia, praca, pranta é considerado “errado”, e, por outro lado, dizer frouxo, escravo,
branco, praga é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que não é lingüística,
mas social e política — as' pessoas que dizem Cráudia, praca, pranta pertencem a uma classe social
desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite, e por
isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua
língua é considerada “feia”,”pobre”,”carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada
na escola.
O que é erro?

Outro modo interessante de romper com o círculo vicioso do preconceito lingüístico é reavaliar a
noção de erro. A noção tradicional (eu diria até folclórica) de erro é que permite que pessoas como
Sacconi escrevam livros absurdos como Não erre mais! e vendam milhares de exemplares deles.
Como vimos anteriormente o Mito 6 expressa a prática milenar de confundir língua em geral com
escrita e, mais reduzidamente ainda, com ortografia oficial. A tal ponto que uma elevada porcentagem do
que se rotula de “erro de português” é, na verdade, mero desvio da ortografia oficial. O vigor desse mito
se depreende, por exemplo, num exercício de pesquisa sugerido por um livro didático de publicação recente
(Carvalho & Ribeiro, 1998: 125). Após apresentar o poema [pg. 122] “Erro de português”, de Oswald de
Andrade, os autores pedem ao aluno:
1. Procure localizar erros de português em cartazes, placas, ou até mesmo na fala de pessoas que você
conhece. Transcreva-os em seu caderno.
Ora, em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e, sim, “erros” de ortografia. Escrever,
digamos, LOGINHA DE ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO em nada
vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que ali se vende objetos de artesanato. Neste caso,
nem mesmo a realização fonética da placa “certa” e da placa “errada” vai apresentar diferença. O fato
também de haver “erro” na placa não significa de forma nenhuma que os objetos ali vendidos sejam de
qualidade inferior, “errados” ou “feios”.
Se mais acima escrevi “lei” é porque se trata exatamente disso. A ortografia oficial é fruto de um gesto
político, é determinada por decreto, é resultado de negociações e pressões de toda ordem
(geopolíticas, econômicas, ideológicas). No início do século XX o “certo” era escrever: EM NICTHEROY
ELLE POUDE ESTUDAR SCIENCIAS NATURAES, CHIMICA E PHYSICA. Se hoje o “certo” é escrever:
EM NITERÓI ELE PÔDE ESTUDAR CIÊNCIAS NATURAIS, QUÍMICA E FÍSICA, isso não altera a sintaxe
nem a semântica do enunciado: o que mudou foi só a ortografia.

Então vale tudo?

Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de
língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse
valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que [pg. 129] vale: no lugar certo,
no contexto adequado, com as pessoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa.
Uma das principais tarefas do professor de língua é conscientizar seu aluno de que a língua é
como um grande guarda-roupa, onde é possível encontrar todo tipo de vestimenta. Ninguém vai só de maiô
fazer compras num shopping-center, nem vai entrar na praia, num dia de sol quente, usando terno de
lã, chapéu de feltro e luvas...
Usar a língua, tanto na modalidade oral como na escrita, é encontrar o ponto de equilíbrio
entre dois eixos: o da adequabilidade e o da aceitabilidade.
Quando falamos (ou escrevemos), tendemos a nos adequar à situação de uso da língua em
que nos encontramos: se é uma situação formal, tentaremos usar uma linguagem formal; se é uma
situação descontraída, uma linguagem descontraída, e assim por diante. Essa nossa tentativa de
adequação se baseia naquilo que consideramos ser o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo por
parte de nosso interlocutor ou interlocutores. Podemos representar tudo isso graficamente mais ou menos
assim:

É totalmente inadequado, por exemplo, fazer uma palestra num congresso científico usando gíria,
expressões marcadamente regionais, palavrões etc. A platéia dificilmente aceitará isso. É claro que se
o objetivo do palestrante for precisamente chocar seus ouvintes, aquela linguagem será muito
adequada... Não é adequado que um agrônomo se dirija a um lavrador analfabeto usando uma
terminologia altamente técnica e especializada, a menos que queira não se fazer entender. Como
sempre, tudo vai depender de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que
efeito...

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