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dossiê cibercultura

PASSAGENS DA INDÚSTRIA CULTURAL À CIBERCULTURA:


AO EXEMPLO DO CINEMA DE FICÇÃO
Francisco Rüdiger*

Resumo A bstract

O artigo faz um rápido comentário dos filmes Matrix The article comments the movies Matrix and Artifici-
e Inteligência Artificial para os relacionar com dois al Intelligence to relate them to the two conceptual
momentos conceituais aqui também abordados: o moments here discussed: the criticism to the cultural
da crítica à industria cultural e o da análise da industry and the analysis of the cyberculture in the
cibercultura em processo de instauração. installing process.

Palavras-chave Key Words


Indústria Cultural - Cibercultura - Cinema Cultural Industry - Cyberculture - Movie Theater

1 CULTURA E INDÚSTRIA CULTURAL emancipação em relação aos poderes sociais


hipostasiados (que se coisificaram).
Conhecemos ou ouvimos falar, a maior A cultura é, em essência, tal coisa apenas
parte de nós, algo sobre a Escola de Frankfurt. onde o homem se liberta em imaginação, onde a
Adorno, mais precisamente, concebeu a reflexão consciência humana se descoloniza, ao menos
crítica sobre o que chamou de indústria cultural. parcialmente, dos esquemas cognitivos e
Indústria cultural, todavia, é hoje um termo comportamentais impostos pela ordem social
banalizado. Refere-se com ele não apenas no meio dominante. A cultura é, em essência, o espaço onde
acadêmico, mas nos próprios veículos, às sua espontaneidade corporal não-reprimida
comunicações em massa, às empresas que envereda pelo caminho produtivo da
confeccionam bens culturais e os distribuem entre experimentação com novos modos de vida, da
a sociedade. criação de novas formas de pensar mas, também,
Em Adorno, e nos pensadores que lhe aquele onde o homem simplesmente se entrega às
seguem mais de perto, é outro, contudo o sentido formas mais elementares e imediatas de gratificação
do termo. Indústria cultural não designa, em existencial.
essência, as técnicas de comunicação ou as Indústria cultural é, ao invés, o coroamento
empresas que delas lançam mão do que um de um processo que, eventualmente, nasce junto
processo social histórico. Especificamente, refere- com a cultura e que implica na sua submissão ao
se ao processo de conversão da cultura em que a cultura, uma vez bem pensada, como dito,
mercadoria, do espírito em bem de consumo, mas não é: a exploração, o controle e a
também da mercadoria em matriz ou princípio de instrumentalização. Desde que o homem é homem,
criação da cultura, do marketing em ordenador precisou ele lutar pela sobrevivência e, para vencer
da subjetividade. essa luta, teve de aprender a subjugar a si e aos
Para Adorno, cultura é a dimensão outros. A conservação da espécie é algo que,
propriamente humana de nosso modo de ser segundo o autor, sempre exigiu terríveis e
sempre que não é alienada, sempre que não é abomináveis sacrifícios. O primeiro deles foi a
reificada (coisificada: tratada, portanto, como se repressão da espontaneidade, o controle dos
fosse o que não é). Para ele, vendo bem, cultura impulsos corporais, de cada um e de todos os
é o que remete à dimensão propriamente humana outros, conforme dá prova o processo
da fantasia criadora, vincula-se ao processo de civilizatório.

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O homem, visto bem, não é: ele se forma nificava cultivar-se, aprimorar-se, tornar-se me-
no transcurso de um processo em que intervêm lhor nos sentidos moral, político e intelectual.
dialeticamente, ou seja, contraditoriamente, dila- A contradição entre uma forma de vida bru-
cerando o ser humano, fantasia criadora e repres- tal no trabalho e uma forma de vida livre e eman-
são racional. cipada na intimidade que surgiu com a sociedade
Dizer que o processo ocorre dialeticamente burguesa teve, contudo, uma solução no século
significa, também, que à repressão não é alheia a passado. O processo histórico determinou que as
fantasia (paranóica, masoquista, destrutiva), e que massas excluídas viessem a fazer parte da socie-
à fantasia não é estranha a racionalidade (ciência, dade. As complexas transformações que tiveram
artes, religião). lugar no último século converteram a sociedade
O homem é homem porque não admite de- numa sociedade de massas, onde não há mais lu-
finição, não se esgota no que afirma acerca de si gar especial para a figura do burguês.
mesmo. Ele tal porque está em devir, mas esse Atualmente, a economia se organiza como
revela um caráter explosivo, contraditório e, às estrutura de produção anônima e troca
vezes, para muitos, insuportável e destruidor, generalizada. A propriedade se tornou menos
como se vê quando eclodem as guerras mundiais, importante do que a gestão. A especulação
as catástrofes ambientais e as selvagerias prepondera sobre a indústria. O consumo ocupa
econômicas, mas, também, e mais cotidianamen- um lugar mais importante do que o trabalho. A
te, as crises financeiras, os conflitos sociais, as sociedade livre de trabalhadores autônomos com
síndromes de pânico coletivo, as doenças sociais que se pretendia replicar ao capitalismo liberal
de todo o tipo (drogas, crimes, prostituição, vio- realizou-se como sociedade de consumo de
lência no trânsito). massas, apesar de milhões e milhões manterem-
Segundo Adorno, a conversão da indústria se marginalizados em todo o mundo.
cultural em sistema, ocorrida no curso do século Ocorre, todavia, que boa parte disso está
passado, significa o surgimento de uma nova etapa ou vai ficar para trás se começamos a pensar nas
na história da humanidade. Na sociedade burguesa, tendências que hoje se visualizam no pensamento
economia e cultura constituíam esferas mais ou da chamada cibercultura.
menos autônomas de vida. A economia surgira
como espaço de labuta, esforço e sacrifício,
porque nela a luta pela sobrevivência da espécie 2 INDÚSTRIA CULTURAL E CIBERCULTURA
submetera esses aspectos à competição de todos
contra todos pela apropriação da riqueza gerada Cibercultura é o nome que vem se dando
pelo progresso técnico. aos fenômenos culturais que nascem à volta das
novíssimas tecnologias de comunicação, da
chamada informática de comunicação. Os portais,
sites e homepages, os chats, blogs e listas de
Cibercultura é o nome que vem se discussão, as câmeras ao vivo e online que se
dando aos fenômenos culturais que espalham pelo mundo afora, o cinema, rádio,
música e televisão via internet, o comércio
nascem à volta das novíssimas eletrônico, as competições, videojogos e correntes
de todo o tipo: isso e muito mais que está por vir
tecnologias de comunicação, da exemplifica não apenas um novo tempo na
chamada informática de comunicação, mas um novo tempo para a cultura
humana.
comunicação. Poderíamos discutir por muito tempo o
conteúdo e o sentido desses fenômenos
emergentes, mas farei outra coisa, estabelecendo
A cultura, ao invés, aparecia aos olhos des- uma ligação entre o que falei no princípio, sobre a
sa sociedade como espaço de liberdade, terreno indústria cultural, e o tema central desta
em que o homem podia ser humano, em vez de intervenção. De fato, as notas que adiantei não
lobo do homem (como era o caso na economia). são gratuitas. Foram apresentadas como
Apropriar-se da cultura era apropriar-se ou criar preparação para o passo seguinte e que consiste
as próprias condições de humanidade, porque sig- em um rápido comentário dos filmes Matrix e

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Inteligência Artificial. Falar desses filmes permi- porque esses eventos são cada vez mais amorti-
te ligar os dois momentos conceituais por mim já zados pela produção cultural, por uma atividade
referidos: o da crítica à indústria cultural e o da constante, rotineira e cotidiana que mediatiza e
análise da cibercultura em processo de instauração. reestrutura nossa subjetividade.
Quando assistimos a um filme como o de
Spielberg ou à série dos irmãos Wachowski, so-
mos tomados por um certo encantamento por-
que, por meio da diversão, vivemos o que pode
nos acontecer, especulamos gratuita e
prazerosamente sobre qual é o nosso eventual
destino no âmbito da civilização maquinística. Ven-
do bem, as obras de ficção científica são filtros
que nos atravessam a consciência, não de um,
mas de vários modos, note-se, e que assim, como
toda a mídia, preparam geração após geração para
viver uma outra possibilidade de futuro. Passe-
mos à análise daquelas que anunciamos.

3 MATRIX

Matrix é uma série de três filmes que só se


Matrix sustenta porque cada qual foi lançado com algum
tempo de distância um do outro, mas, sobretudo,
Por quê? Em primeiro lugar, porque, se- porque suas seqüências de ação e seus poderosos
gundo defende aquela crítica, os produtos, bens e efeitos especiais fazem época na história do cine-
serviços da indústria cultural são, entre outras coi- ma espetáculo. O filme é para ver, basicamente.
sas, formas através das quais a sociedade treina As questões que ele sugere poder pensar
ou prepara seus sujeitos, nós, as criaturas da in- filmicamente no primeiro episódio, não só
dústria cultural, para enfrentar os desafios não desaparecem nos restantes, como têm um
apenas do presente, mas do futuro. O futuro nun- desfecho fraudulento do ponto de vista estético
ca chega, ou chega de modo cada vez menos no- no último e derradeiro.
tável, não porque estejamos insensíveis, mas por- Em Matrix, o fundo de verdade é a ideolo-
que estamos cada vez mais preparados para gia conformista, se assim podemos nos expres-
recebê-lo e, nele, nos encaixamos subjetivamente sar, ao vemos as fitas como série de filmes inter-
através da ficção científica, tornada acessível via ligada. Quem conserva a memória do enredo e
indústria cultural. não se deixa cegar pelos efeitos especiais, dá-se
A sociedade burguesa procurara dar lastro conta que a conclusão do terceiro episódio colide
a seus filhos fazendo-os estudar ou conhecer sua com o problema posto no primeiro. Os rebeldes
literatura, sua ciência e sua história. As sociedades queriam destruir a matriz, porque não desejam mais
de massas, cada vez mais ligadas em redes viver como ratos num subterrâneo. Era essa a
telemáticas, preparam-nos para viver um presente missão de Neo, que encarna uma espécie de sal-
que se perpetua em futuro constante através da vador virtual. As máquinas viviam do material or-
ficção científica. O cinema, livros, histórias em gânico que lhes davam seres humanos especial-
quadrinhos e todo o resto são veículos de uma mente criados para manter o bom funcionamento
forma cultural inventada no final do século XIX da Matrix.
(Júlio Verne), cujo sentido é atenuar o que um A matriz é um artefato cibernético na me-
pensador publicitário chamou de o choque de dida em que faz interagir o maquinístico e o
futuro. organicístico. O significativo no filme, porém, é
O futuro, como dito, não dura muito tempo: que ela o faz pela mediação do onírico, do imagi-
na verdade, ele é cada vez mais o sempre igual, nário - o mundo vivido na matriz é um gigantesco
não porque não haja choques, surpresas ou sonho gerado artificialmente.
catástrofes para os seres humanos, mas sim Voltando ao enredo, convém observar,

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contudo, o que ocorre no decorrer do terceiro melhor encarna o projeto da cibercultura. Matrix
episódio. Depois de todo o tipo de peripécia (arti- é antes de mais nada um produto de indústria
ficiosas, mas desnecessárias diegeticamente), o cultural, que nos desvia a atenção e nos impede
filme nos mostra, em cerca de dez minutos, o de pensar as questões que se abrem a nós com a
herói propondo um pacto às máquinas, essas o era da tecnocultura.
aceitando e, fato ainda mais inverossímil, O filme se movimenta com apoio na
honrando-o como se fossem cavalheiros de uma tecnologia mais avançada que o cinema criou, mas
Idade Média puramente mítica. As máquinas olha para trás, atendendo aos desejos de especta-
poupam os seres humanos que as queriam destruir! dores que querem ser logrados, divertindo-se com
Porém, a fantasia conformista não pára por aí: as fantasias sintéticas nas horas com que não têm de
máquinas concordam em libertar os seres humanos se ocupar com algo mais necessário, produtivo
que “desejarem sair”, procedendo ou começando ou gratificante. Defendemos que é outro o ponto
a cometer um suicídio altruístico, visto que seus de vista do filme de Spielberg.
corpos e mentes são o que as mantêm funcionando,
segundo o episódio I.
Parece-me que estamos diante de um típi- 4 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
co caso de enredo mal-resolvido. O problema es-
tético flagrado é, porém, no caso, também o pro- Por que é notável esse filme? Deixemos
blema ideológico. Na cena final, o esverdeado, de lado todos os seus méritos como obra cinema-
que coloria o fundo das cenas digitais da matriz, tográfica (fotografia, montagem, cenários,
dá lugar a um belo raiar de sol que ilumina a cida- direção, etc.). Deixemos de lado todos os defei-
des dos homens, como a música alegre embala tos como obra de arte (enredo primário, persona-
uma festa de aniversário de classe média. gens precários e esquemáticos, citações infantis e
A realidade continua escura, a humanidade repetitivas). Vejamos o seu conteúdo proposicional
vivendo em parte nas ca- de maneira mais abstrata e ale-
vernas, em parte nas en- górica. Poderemos encontrar,
tranhas da máquina. Na então, uma espécie de
Matrix, porém, tudo con- escatologia futurista, uma mi-
tinua a melhorar, a ficar tologia invertida própria à era
belo e a permitir que os da tecnocultura, se vocês qui-
espectadores vão embora serem. Mitologias são relatos
tranqüilos, confiantes de em que se retratam as origens.
que não há motivo para te- Escatologias são relatos onde
mor e de que tudo não pas- se figura ou prognostica sobre
sou de uma grande e mo- o final ou meta de um proces-
vimentada diversão. so. No Ocidente, a combinação
Segundo vejo, isso mais extraordinária dessas for-
quer dizer que estamos mas culturais, sabem todos,
diante de uma obra con- nos deu o Cristianismo.
formista que finge levan- Vivemos agora, todavia,
tar problemas apenas para noutra etapa da história. A reli-
sugerir, no final, que nada Matrix gião perdeu, senão toda, a mai-
está errado no mundo e or parte de sua autenticidade.
que tudo no mundo pode ser visto como brinca- A civilização tecnológica se pretende emancipada
deira, a começar pelo filme que se acabou de exi- do véu teológico que envolvia a sociedade no pas-
bir às platéias mais variadas. A brincadeira con- sado. Sabemos, porém, que isso é apenas ato de
formista do filme, contudo, é sua verdade, se ad- boa vontade superficial. A prova disso é o filme
mitirmos que o mundo criado por essa brincadei- de que estamos falando. Ressurge nele com toda
ra é o mundo criado pela indústria cultural. a força e vigor uma narrativa mítica, cujo mérito
De tantos e tantos filmes lançados nos últi- é afirmar claramente essa qualidade.
mos anos sobre o ciberespaço, Matrix talvez seja Nesse filme, ninguém nos pretende fazer
um dos mais famosos. Contudo, vendo bem, crer que se trata de realidade. Lévi-Strauss dizia
pode-se dizer também que não é dos filmes que que os mitos servem para uma coisa: pensar. Os

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mitos são a forma de pensar do homem primitivo, se média. Também passa por alto o fato de que
embora sejam tão complexos e sofisticados como ambos - família e progresso técnico - colidem
a ciência mais avançada. Apenas o modo de pen- com o barbarismo da seqüência sobre a “festa da
sar não é o mesmo. Filmes como o de Spielberg carne” - mas isso, por outro lado, faz parte das
permitem, modernamente, aos que não pensam virtudes artísticas do filme.
enxergar, ver aquilo que Spielberg registra, as-
os poucos capazes para sim, em sua fábula, a
tanto só conseguem pen- dialética entre mito e ra-
sar reflexivamente. No Mitologias são relatos em que se zão, entre barbárie e ci-
caso, cremos, trata-se vilização. Seu filme mos-
retratam as origens. Escatologias são
do fim do homem ao tra bem com ela como a
cabo da longa noite que relatos onde se figura ou civilização high-tech
se abre para ele com o produz pessoas ultra-pri-
império da tecnologia. prognostica sobre o final ou meta de mitivas. A cenografia e
Sonhando acor- um processo. No Ocidente, a o enredo da obra são
dada, divertindo-se com futuristas, mas as pes-
a aventura, é toda uma combinação mais extraordinária soas oscilam entre a
geração que, por meio dessas formas culturais, sabem todos, barbárie de circo roma-
desse filme e de tantos no e as convenções ba-
outros recursos forneci- nos deu o Cristianismo. nais da família de classe
dos via indústria cultu- média contemporânea.
ral (livros, games, repor- Quem quer que
tagens, etc.), vivencia uma de suas possibilidades veja o filme não deixará de sentir esse
existenciais nesta encruzilhada da história em que, descompasso entre uma era tão avançada do pon-
eventualmente privados de nossas características to de vista de seus maquinismos e tão prosaica no
mais definidoras, somos levados a pôr nossas es- tocante às suas relações humanas. O sexo não só
peranças nos nossos artefatos tecnológicos, em não perdeu o status atual, mas continua preso a
nossas máquinas mais fantásticas, extraordinári- seus vícios. Quem inicia as pessoas nele são
as e alucinantes. andróides especializados em prostituição, embora
Pensar bem o filme, sem dúvida, exige fazer não se deixe claro quem os empresaria. O homem
sua crítica. Damos um exemplo. Quando o mundo é sempre o mesmo, porque não falta o crime de
for capaz de criar a coisa que o filme mostra, um sangue.
robô que reproduza nossas emoções e fantasias, Las Vegas, recriada como jardim do pecado
os seres humanos, se ainda existirem, não da ilha da perdição do desenho Pinóquio, é um
desejariam ter um robô que tivesse os sentimentos campo de recreio da fantasia regressiva, como o
humanos, porque esses seres não seriam mais tais é atualmente. Nada muda, nem as fantasias, nesse
(humanos). filme de acento mítico, produzido numa era de
Por que a ciência quer criar o robô criança alta tecnológica.
não é claro na película. Fala-se em controle da
natalidade imposto após uma hecatombe ecológica.
Trata-se, porém, apenas de um ardil estético e, 5 INTELIGÊNCIA REFLEXIVA
como tal, algo falso, ainda que verossímil na
diegese. Sabe-se apenas o necessário, embora o Fosse apenas isso, o filme seria uma mera
pouco informado seja significativo. O sonho do fantasia ideológica, destinada a distrair a consci-
homem de ciência que perdeu o filho (talvez, já, ência com divertimento barato. Porém, não é só
um andróide) e que almeja recriá-lo em série nisso em que ele se apóia. As perturbações que
materializa uma fantasia primária muito próxima e ele não pode deixar de construir para manter o
cotidiana, que se mistura ou é claramente interesse do público não se resolvem ideologica-
determinada pela vontade das empresas de alta mente. A utopia que nele se vislumbra é, antes, a
tecnologia em ganhar dinheiro. de uma escatologia pós-humana.
Passa por alto no filme o fato de que, num No final do filme, construído com muita
mundo high-tech, as famílias não serão como as dificuldade e todo o tipo de vacilação e falta de
atualmente existentes para a mídia, grupos de clas- mão firme, embora sejam fortes suas cores, o

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homem é uma espécie que não mais existe. Des- um dia e não tem mais de, com horror, abandonar
truiu-se em tudo, não se encontra nem mais ruí- o humanóide à barbárie.
nas. Isso Spielberg, contudo, não mostra, e faz Notável nessa seqüência final é a manei-ra
bem, evitando dar ao público o que ele talvez não como Spielberg inverte a relação convencionada
viesse a se importar ou visse com escárnio: uma e atribui à máquina a con-dição de força civiliza-
fantasia punitiva. tória do ser humano. Cabe a ela redimir o homem
O Diretor revela-se verdadeiro e talentoso de seus erros, de sua frieza, de sua estupidez.
corifeu da era das massas nessa seqüência na Porém, não é só isso. Também há outra inversão
medida em que, projetando um futuro de dois mil muito significativa. O Diretor confere à máquina
anos além do futuro que antevemos no início do de brinquedo, sinal infantil, a prerroga-tiva de de-
filme, redime a mentira que é contar um mito numa volver à pessoa adulta a possibilidade de se reali-
era científico-tecnológica (a que estamos enfia- zar, ainda que só por um dia, o último dia da hu-
dos). A projeção futurística do futuro desenhado manidade. Apenas no final da história, da nossa
pelo filme, se assim podemos nos história, sugere-se ali, poderemos
expressar, é o que nele converte ser e estar em nossa plenitude
a ficção científica em autêntica como homens e criadores de civi-
utopia, ainda que, como dito, pós- lização. Em Spielberg, o dia do
humana. Nessa utopia, reconci- juízo final não é, pois, o dia que
lia-se humanidade e maquinismo, anuncia o julgamento dos seres
em vez de encenar seu conflito, humanos, mas o dia da re-concili-
como na maior parte dos filmes ação entre eles e sua tecnologia
do gênero devedores dos esque- maquinística.
mas de Hollywood. Durante quase dois séculos,
Conforme sabem aqueles o socialismo é ou foi a utopia da
que viram o filme, no final apare- reconciliação universal do homem
cem alienígenas. Seres que não com seus semelhantes, de supres-
se sabe se vieram de outro plane- Matrix são da luta de todos contra todos,
ta ou evoluíram como espécie pós-humana. A cer- do enfrentamento do homem contra o homem, a
teza intuída é apenas a de que os humanos se ex- hora da paz perpétua, como diria Kant. A utopia
tinguiram. A espécie não sobreviveu e nem há que ele carregava era a utopia de uma humanida-
muita razão em se perguntar por que não está mais de enfim redimida de sua história violenta e
ali, porque ela não figura mais no cenário. marcada pela exploração.
De todo modo, pertence à sorte dessas Inteligência artificial é um entre tantos
criaturas encontrarem no fundo oceano congela- sinais de que esse limiar imaginário está ficando a
do a nave com que o pequeno andróide perseguia cada dia que passa mais e mais para trás. A
o sonho de se converter em menino de verdade mensagem que nos revela é a de que esse tipo de
que, atendendo pedido dos pais que o encomen- utopia está dando lugar a outro cenário
daram, planejara tornar realidade o sonho ou an- prospectivo. Agora, começa a se colocar adiante
seio de seu inventor. Depois de séculos no fundo de nós um outro horizonte. A figura que talvez
do mar, sempre repetindo, como num ritual pri- venhamos a ansiar sempre mais pode ser a da
mitivo, a indagação para a qual fora programado, reconciliação entre homem e máquina.
acaba sua reserva de energia. O robô se desligara, Segundo ela, a paz perpétua se estabelece,
virara coisa inerte, maquinismo inútil. para nós, quando aceitamos sem luta ou
Reativado pelos alienígenas, o pequeno ressentimento o convívio, o co-mando com a
humanóide tem a chance de por um dia desfrutar máquina. Quando retomamos a inocência que
da companhia da mãe que lhe pretendera adotar miticamente apenas à infância da humanidade
mais de milênio passado. A máquina ganha a pertenceu. Oferecer elementos sensíveis para de
chance de ser gente de verdade, uma vez reposta um modo poético vivenciar essa experiência é,
em operação por uma ciência ultra-avançada. Pa- sem dúvida, um dos méritos maiores do filme de
ralelamente, porém, também a mãe tem a chance Spielberg.
de não ser mais a “máquina” que em parte se tor- Significativo na obra, por isso, não é tanto
nara, embora sendo humana, quando os tempos a antecipação do futuro, sempre destinada ao fra-
eram outros, visto que pode ser ressuscitada por casso, mas os sinais de que já hoje temos nostal-

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gia da família, da infância e da confiança numa ingressando. Na verdade, sentimos cada vez mais
relação autêntica e não instrumental. Noutros ter- falta de uma linguagem capaz de nos esclarecer
mos, de começarmos a conhecer os sinais e os criticamente a respeito dessa experiência. As for-
temores acerca de qual é a situação humana que mulações disponíveis estão se esclerosando rapi-
estamos vivendo em meio à era tecnológica, sem damente - e não apenas no plano conceitual - di-
de longe termos resolvido os graves problemas ante de situações que parecem fugir de nossa ca-
sociais e políticos que atingem a maior parte da pacidade de pensar em atitude reflexiva.
humanidade. Quem sabe os casos relatados nesse breve
Exatamente por isso, extraordinárias e ensaio não possam ser vistos como esboços, diri-
extasiantes no filme são, por exemplo, as ima- gidos às massas, de uma nova linguagem aponta-
gens mostrando as ruínas de Nova York. Ilustra- da para essa direção, se é verdade que a essência
se com elas não a barbárie, mas a ruína da civili- da tecnociência subjacente a esse processo todo
zação tecnológica. Essas belas cenas são uma es- não é científica, nem técnica, como defendia
pécie de ante-sala da revelação de que, como sem- Heidegger...
pre, somos nós, que estamos sob risco de Pessoalmente, acredito que a obsolescência
desaparição em meio à civilização. do conceito de indústria cultural que hoje se põe
em marcha é correlata à virtual ou potencial
obsolescência do homem: talvez seja isso, creio,
6 CONCLUSÃO que podemos visualizar, cheios de encantamento
e atitude utópica redentora, em filmes como Inte-
Posto isso, perguntar-se-á agora: qual é o ligência Artificial, muito mais do que em outros,
sentido de toda essa argumentação? O espaço é onde se reproduzem seus esquemas, como os da
restrito. Pretendi, com esse texto, apenas marcar série Matrix.
de forma mais plástica, mas sem perder de vista Quem quer se preparar para o futuro e to-
algum conteúdo reflexivo, o momento histórico dos aqueles que nos preparam para tanto - os
singular em estamos vivendo e que, em tese, inte- comunicadores e demais servidores da técnica,
ressa em muito a todos aqueles que estudam ou sobretudo - se não têm o espírito morto, têm via
procuram pensar a comunicação. obras como essas mais razões para começar a
Falando em termos de senha, o referido meditar sobre essas questões e a enfrentar seus
momento é o momento em que se inicia a transi- múltiplos desafios.
ção da era da indústria cultural para a era da
cibercultura. Trata-se do tempo em que ocorre a
mutação da era em que o tipo humano dominante NOTAS
é o indivíduo atomizado, perdido nas massas, para
outra em que esse tipo será mais do que humano,
acabará, quem sabe, dando razão para que o cha- * Professor-titular da Faculdade de Comunicação da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
mem de ciborgue, na medida em que tende a se (Brasil), Doutor em Ciências Sociais (USP, 1995). O pre-
tornar um organismo cibernético. sente trabalho é uma versão reelaborada de conferência
Quem sabe esse tipo, se vier a se con- proferida, com variações, para estudantes dos cursos de
cretizar, não poderá ser chamado de pós ou su- comunicação e de educação da Universidade Estadual do
Paraná (Ponta Grossa, 25/4/2003), da Universidade do
pra-humano, dando razão histórica, ainda que não Oeste de Santa Catarina (Chapecó, 11/9/2003) e do Curso
filosófica ou conceitual, ao que foi chamado de de Comunicação da Universidade de Passo Fundo (18/5/
super-homem (o além do homem) na profecia 2004).
nietzscheana.
Em meio ao caos que é, para a maior parte,
o mundo atual, a pergunta que gostaria de deixar
para meditação é a seguinte: a obsolescência do
conceito de indústria cultural que hoje se põe em
marcha corresponde ou é sinal da vindoura
obsolescência do homem num futuro talvez mui-
to próximo?
Atualmente, perdemo-nos ao fazer formu-
lações fáceis para falar da época em que estamos

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