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PARA A HISTÓRIA

Carta que a Baronesa do Serro Azul escreveu em 1895 ao Barão de Ladário que foi lida
perante o Senado. (Integra o documentário: “PARA A HISTÓRIA”, Rocha Pombo, na
III Parte – “Excessos que cometem a legalidade triumphante”).

“Exm”. Snr. Barão do Ladário. Cumprimentando a V.Ex., espero que me será perdoada
esta liberdade com que vou prestar a V.Ex. informações sobre o monstruoso attentado
que trouxe em lucto eterno o meu lar, para sempre deserto das alegrias que eram para o
meu coração de esposa e para a innocencia dos meus filhos, hoje orphãos de pai, o
único grato conforto na vida. Aqui desta sombra de claustro em que sinto minha alma
sepultada, e onde a coragem que me resta nasce da própria imensidade do meu
soffrimento, eu começo certa, Senhor, que a justiça indefectivel de Deus está
escolhendo entre os puros e os bons deste mundo os instrumentos poderosos de que há
de em breve valer-se para a solemne separação que lhe deve na terra. E V. Ex. foi dos
primeiros entre esses que em todos os tempos e no meio de todas as nações como que a
Providencia designa para serem o seu verbo de fogo a fallar as almas, a pungir corações,
emocionando os povos, apontando-lhes no céu a côr azul e immaculada da Lei, para que
as magistraturas abalem-se e as consciencias volvam a ouvir a voz clamorosa dos
tumulos, onde o martyrio não dominará eternamente, porque eterna na terra só ha de ser
a divina soberania do Direito e da Verdade. E desde que V. Ex. justamente assombrado
ante o que se passa neste Paiz, está sendo um dos poucos (mas poucos que teem a força
das legiões) que se empenham pela desaffronta desta geração perante a História, julgo
que é do meu dever, e dever piedoso e santo que me é imposto pela memoria
saudosissima de meu infeliz esposo, contribuir para que V.Ex exerça neste momento a
heroica e sagrada missão de clamar por desaggravo completo á honra e á innocencia das
victimas que aqui foram sacrificadas ao furor incontinenti e aos desvairos de homens
que já teem a consciencia galvanisada pelo mal.
Não repetirei que por certo V. Ex. já sabe, em relação aos successos que desde os
princípios de 1894 se deram neste Estado; mas em poucas palavras recordarei quanto
possa servir para dar uma ideia bem nitida do papel que coube a meu inditoso marido, o
Barão do Serro Azul, no meio dos acontecimentos que se desdobravam.
V. Ex. de certo já tem noticia das condições em que o então governador deste infeliz
Paraná, Dr. Vicente Machado da Silva Lima, abandonara esta capital em Janeiro de 94,
deixando forças do governo luctando em diversos pontos e sem comunicar essa
inesperada resolução siquer aos mais íntimos amigos e seus que se achavam na cidade.
Curityba (a misera Curityba: - como justificadamente disseram folhas de S. Paulo) ficou
inteiramente entregue aos azares do desconhecido; pois o governador, ao retirar-se, nem
ao menos incumbira a Municipalidade da policia urbana: Tribunaes, repartições
públicas, commercio, officinas, e as familias- absolutamente á mercê do primeiro
salteio, enquanto a autoridade legal contradizia os seus protestos de véspera fugindo em
desespero para o Estado visinho. É fácil fazer uma ideia da situação em que se viram
estas populações, suffocadas de pavor ante os estranhos succesos que se passavam, e
ainda sob as impressões e suspeitas, que lhes haviam posto no coração transtornado, de
que andavamos em vésperas de saque, do exterminio, do arrasamento que passariam por
sobre esta terra com as hostes temerosas da revolução.
Em simelhante conjunctura, as classes em que é mais natural e profundo o espirito de
conservação, recorreram ao único meio que parecia efficaz no sentido de garantir ao
menos os direitos primordiaes das gentes: isto é – fizeram a escolha de uma comissão
que tomasse a si o trabalho de neutralizar, como fosse possivel, as violencias a que se
achava exposta a cidade. Foi assim que meu marido, com outros membros do
commercio e das diversas classes, tomou a si o grande e penoso encargo de collorcar-se
entre os revolucionários triumphantes e a família paranaense, cuja paz e cujos direitos o
governo legal estava impossibilitado de assegurar no momento. A população inteira de
Curityba, os próprios adversarios ou desaffectos do Barão de Serro Azul ainda podem
dizer hoje como e com que sacrificio de sua saude e de seus interesses elle tornou-se o
centro e a alma da commissão, arregrando tudo, contendo impetos, fazendo em summa
quanto pudesse attenuar, para o commercio, para a industria, para a propriedade e para a
família curitybana, os effeitos da emergência excepcional em que se via a cidade. Um só
documento será capaz alguém de apresentar de que meu marido siquer tivesse
sympathias pela revolução. Em vez d’isso, seria facilimo fornecer provas positivas de
que o Barão de Serro-Azul, aos proprios chefes revolucionarios, nunca dissimulou o seu
modo de pensar a respeito do immenso descalabro que a invasão vinha causar ao Paraná
e especialmente quanto é eficcacia do extremo recurso da revolta como meio de corrigir
os erros da tyrania e operar o restabelecimento da Constituição e das leis – de modo
horroroso subvertidas pelas paixões dos proprios homens que tinham o dever de
conserva-lhes immaculada a pureza e magestade intangivel. Foi tal, Senhor – e o Paraná
inteiro ahi tereis para confirma-lo – foi tal a acção exercida por meu inditoso marido nos
dias dolorosos em que Curityba esteve pelo governo entregue a revolução triumphante,
que o commercio, a industria, a imprensa, todas as classes sociais apontavam-no sempre
como elemento principal da grande força que constitui-se a egide do direito, da ordem,
da tranqüilidade de todos, tanto quanto era humanamente possível n’aquellas momentos
anormaes.
E tão certo e convencido estava o Barão de Serro-Azul de que os serviços que prestara
pela ultima vez a esta terra, que tanto lhe mereceu e que por ninguem, mais do que por
elle, foi servida com desinteresse e solicitude indiscutíveis, tão certo, digo, Senhor de
que taes esforços seriam reconhecidos e louvados pelo Governo que retomava seu posto
– que absolutamente recuou fazer o que os culpados fizeram. Com calma e até com
satisfação e alacridade, esperava, pode-se dizer sorrindo, o Governo legal, a quem
desejava até dar contas do modo nobre como soubera zelar do direito, da fortuna e da
honra de seus patricios honra, direito e fortuna que a autoridade legitima não tinha a
coragem de amparar e defender.
Mas, logo nos primeiros dias após a chegada das tropas legaes, entre cujas fileiras o
governador que fugira entrava como um triumphador, meu marido percebeu que os
sentimentos dos que voltavam desmentiam toda a convicção com que via restabelecer-
se a Lei na terra paranaense, e isto não sem pasmo da população inteira, que suppunha-
se mais com o direito à condolencia pelo seu soffrimento, do que no risco de vir a
padecer castigos por uma culpa que só o Governo commetera desertando o seu posto de
guarda da Lei e garantidor da paz e da ordem. E que julga V. Ex. que fosse o
pensamento do que vinha cheia a alma dos que haviam fugido?
Não quero allongar-me demais dando conta do que occorreu, dos excessos de toda
ordem que caracterizaram os angustiosos longos primeiros dias de reoccupação legal.
Um dia ha de haver quem se imcuba de dar á América, para escarmento desta geração,
uma pintura fiel e minuciosa desses incriveis sucessos, que encheram de magua e de
santa revolta até a alma dos mais indifferentes, que fizeram esquecer de todos os males,
os insignificantes males da revolução!
Para o que me preocupa, é bastante dizer a V. Ex.que entre o assombro que lhe produzia
a execravel e monstruosa conducta que se annunciava contra todos os que não tinham
opposto á invasão a resistência da fuga, e a magua que lhe calou fundo no coração
sentindo ainda uma vez a sua virtude impotente para fazer emmudecer a perversidade, a
inveja e a calummia, - meu marido cedeu as instancias da família reservando-se ás
violências que tinham já começado a ser praticadas contra a população, deve-se dizer,
pois os quartéis, os theatros e até casas escolares desta Capital regorgitavam de presos,
com toda expansão da ferocidade republicana, simelhante aos instinctos d’aquelle deus
cujas iras aplacavam-se pela vingança e pelo sangue os holocaustos. D’essa cautelosa
reserva, no dia 10, meu marido sahiu, como sahira Jesus das Oliveiras – entregue por
um amigo dos muitos em que teve a infelicidade de crer. Já estava em nossa casa muito
tranqüilo e confiante na misera justiça dos homens, e até sem reprimir palavras de
elogio ao general Emerton Quadros (que o havia apenas pro formula detido sob palavra)
quando o coronel Pires Ferreira, acompanhado de outros militares, procura meu marido
para uma conferencia, conferencia esta na vespera annunciada, com todas as seguranças
de cordialidade e boa fé, por parte do commandante do Districto. Como (talvez
presentindo que aquelles homens traziam para o meu lar a desgraça que aqui está
bradando eternamente para o céu) não quizesse eu acompanhar meu marido á sala,
apóes uma prosa cordial e expansiva, tive de ver o racinto interno de minha família
aquellas frontes cuja impressão ainda hoje me tortura. E então, meu esposo contou-me
que o governador fazia uma carga immensa de responsabilidades, contra elle e que por
isso devia recolher-se ao quartel no dia seguinte. Sem conter o incommodo que todos
deviam ter notado no meu semblante, perguntei logo si era com a prisão que se
compensavam os serviços feitos por meu marido á Curityba, do que me respondeu o
coronel Pires Ferreira, velho amigo do conselheiro amigo de seu esposo!... Senhora
Baroneza, tranquilise-se: o Barão não é preso, o Barão é meu hospede”.
No dia seguinte, meu marido recolheu-se a uma sala de quartel do corpo commandado
pelo Coronel Pires Ferreira. Ali deu-se a mais plena liberdade ao hospede, com que o
commandante conviveu na mais perfeita e apparentemente cordial intimidade durante 6
dias. A sala em que meu marido foi aposentado tinha janella para rua e a entrada era
inteiramente franca a todos. Á noute, o Barão, o coronel e os outros officiaes jogavam
quasi sempre o solo.
Mas ouça V. Ex., ouça, Senhor, e diga que não crê para honra da piedade humana: vive
ainda official do exercito que, compundido disse uma vez á pessoa de minha família que
sentia horror ao ver aquelle homem, que tinha conhecimento de tudo que estava para
passar-se, e ali encarar o Barão sem trmer e a tratal-o de amigo!
Talvez V. Ex. não compreenda ou pelo menos não encontre explicação para as
deferencias especiaes que se tinha com meu marido. Pois bem: agora V. Ex. fica
sabendo que o plano era este: instigar no hospede o desejo de fugir para ser trucidado
sem responsabilidade criminal!
Decorridos 4 ou 5 dias, achando-me de visita a meu marido, ouvi o coronel: “Já sabe,
Sra. Baroneza, que conversei longamente com o Barão. Estou sciente do quanto houve
por aqui. Deixe tudo por minha conta”. E passado um instante accrescentou: - “ E não
há de ver, Sra. Baroneza, que o Barão é também religioso!” Ironia pungente á fé
puríssima e a conhecida religiosidade de meu esposo. E quando confirmei o sentimento
eu se entrenhava n’aquelle dito, ouvi o coronel Pires Ferreira, ouvi sahir dos lábios meio
cerrados d’aquelle homem sinistro e quase a meia voz: - “Pois que se console... porque
Christo também soffreu...” Taes palavras (e no tom em que foram ditas) arrepiaram-me;
entretanto sempre eu entendia que a resignação aconselhada era para aquelle
soffrimento da prisão.
N’esse dia, e sem que a nova me magoasse mais do que era natural(pois o coronel
soubera habimente preparar o meu espirito para ella) tive sciencia de que o Barão se
passaria para o quartel do 17°, onde ficaria com os outros presos. Effectivamente, no dia
seguinte meu marido ia, de carro com todas as attenções, para a sua nova prisão.
Quando elle tomou o carro, o coronel, da janella, correspondeu amavelmente ao seu
ultimo aceno de mão, e logo que o vehiculo partiu - da alma do coronel Pires Ferreira
sahiu esta phrase ouvida por alguns de seus officiaes: - “Este será liquidado dentro de
dois dias...”
O prognostico realizou-se com a differença apenas por um dia. O resto V.Ex. sabe, e eu
procuro desviar da minha imaginação aquelle trem esquife que, às 10 horas da noute de
20 de Maio de 94, partiu de Curityba conduzindo o Barão de Serro-Azul e seus
companheiros de sacrifício.
No momento em que o comboio tumba partiu da estação, o coronel Pires Ferreira
achava-se n’um dos clubs desta Capital e da saccada do predio houve quem lhe
surprendesse esta phrase escapada d’aquella alma tremenda:- “Oh que inconveniência!
deixaram apitar um trem destes!
V. Ex. de certo ha de ter tido noticia do modo como se consumou aquella
monstruosidade que imaculou para sempre a civilização deste paiz e que não encontra
similo na historia da humanidade. E não fora a minha fé, Senhor, a minha fortaleza
moral e a resignação que sinto lembrando-me Jesus, como se comprehenderia que me
ficasse ainda, depois de todas estas angustias, este resto de vida e de coragem para
resistir á loucura por meio de minha desgraça!
Só alguns dias passados, o boato começou a correr pela cidade; e as esposas afflictas
que procuravam o commandante militar para ouvir o desmentido da nova inverossimel
affirmava o general Emerton Quadros, com sorrisos nos lábios e com mostras de
sinceridade através das quaes era impossivel perceber um resquício de remorso, affirma
sob sua palavra de honra que os presos haviam seguido para o Rio...
E quando a alma da população inteira foi se enchendo de oppressão horrível ante as
versões que corriam como um clamor de dies irae, deixando por sobre a Capital do
Paraná a sombra pavorosa da agonia e do lucto- “general, cuja espada viera restaurar a
Lei, mandava que as bandas militares, com o som da musica festiva, dispersassem os
agoiros que suspendiam a vida de um povo, como que a gritos estrindentes espanta uma
covarda que fareja matanças! Ao mesmo tempo, Senhor, fazia-se declarar ás famílias
das victimas que não podiam cerrar as portas nem dar demonstrações de lucto sim –
visto como era falso o que se fallava....
Quando mais tarde, meu procurador pediu na repartição do comando do Districto a
certidão de obito, esta foi fornecida nestes termos: “O Barão do Serro Azul foi fuzilado
na serra por ter-se revoltado contra a escolta que o conduzia para o Rio”.
O governador deste Estado, n’aquelle tempo, V.Ex. sabe também, é hoje senador da
republica, e com o coronel Pires Ferreira, ahi está clamando por que, antes de tudo, se
aprovem os actos do Marechal Floriano e necessariamente todas as monstruosidades
commetidas em nome do vice-presidente da republica. Até agora, portanto, os dois
homens (homens, Senhor!) que fizeram em Itararé o conhecido pacto negro, mantem-se
fieies ao seu juramento de covardia e de sangue: estão ambos no Senado da pátria,
naturalmente bem dizendo a miseria que, como Prometheu aos seus abutres, os alimenta
de posição e talvez de fortuna, com o proprio sangue e com a desgraça de seus filhos.
É possível, Senhor, que se quizesse contestar estas narraçção; e V. Ex. comprehende
que almas assim avassalhadas do crime e entregues ás convulsões da sua fereza, devem
ter ainda a serenidade da hyena para o desplante de limpar das faces o sangue das
victimas.
É também verdade que poderiam alludir á minha suspeição de mulher e de viuva,
obumbrada pela fatalidade que me feriu.
Mas, Senhor, o que ahi fica - peço a V. Ex. que não esqueça agora – nasce d’alma de
uma creatura que tem os olhos voltados para a misericordia de Deus e que não clama
sinão pela Justiça, para que o martyrio das victimas não fique pesando sobre os destino
deste paiz, em que tenho de deixar os meus tristes filhos.
Curityba, 8 de julho de 1895.
(as) Baroneza do Serro-Azul

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