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Rio de Janeiro
Abril de 2010
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_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Vanda Santos Falseth
(Orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Profª. Drª Alice da Silva Cunha
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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Prof. Dr. Francisco de Assis Florêncio
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
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Profª. Drª Mary Kimiko Guimarães Murashima
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
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Profª. Drª. Arlete José Mota
(Suplente)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
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Prof. Dr. Airto Ceolin Montagner
(Suplente)
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
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Agradeço
RESUMO
O estudo das obras de Cícero e de Sêneca permite perceber, além dos temas já
consagrados pela exegese, a formulação de novas propostas identitárias para o povo
romano, baseadas tanto na manutenção quanto na adaptação do mos maiorum, e também
na recepção das escolas filosóficas gregas, com especial papel para o estoicismo. Assim,
obras destes autores, e também a praetexta Otávia, propõem ou demonstram novos
paradigmas para a romanidade, ao mesmo tempo em que criam e/ou refletem as relações
entre Literatura, Filosofia e História no Império Romano, cujas reverberações podem ser
ainda hoje percebidas nas culturas de latinidade.
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RESUMEN / RÉSUMÉ
RESUMEN
El estudio de las obras de Cicerón y de Séneca permite percibir, además de los temas
ya consagrados por la exegesis, la formulación de nuevas propuestas identitarias para el
pueblo romano, basadas tanto en el mantenimiento como en la adaptación del mos
maiorum, y también en la recepción de las escuelas filosóficas griegas, con especial
papel para el estoicismo. Así, obras de estos autores, y también la praetexta Octavia,
proponen o demuestran nuevos paradigmas para la romanidad, al tiempo en que crean
y/o reflejan las relaciones entre Literatura, Filosofia e História en el Imperio Romano,
cuyas reverberaciones se pueden todavía hoy percibir en las culturas de latinidad.
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
Nota Introdutória p. 10
1 INTRODUÇÃO p. 12
2 A QUESTÃO IDENTITÁRIA EM ROMA p. 25
2.1 Uma identidade de limites p. 25
2.1.1 Mos maiorum, base da romanidade p. 28
2.1.1.1 A tríade fundamental do mos maiorum p. 29
2.1.1.2 Conceitos secundários do mos maiorum p. 33
2.1.1.3 Conceitos terciários do mos maiorum p. 37
2.1.2 A “dinâmica identitária” romana p. 39
2.2 Os limites da identidade p. 43
2.3 Uma nova identidade para um novo homem p. 47
2.3.1 Homo nouus... p. 49
2.3.2 ... et homo uetustus p. 50
2. 4 - Novas variáveis numa velha equação p. 51
2.5 – Rumo à simbiose p. 52
3 CÍCERO: A ROMANIDADE FILOSÓFICA p. 54
3.1 – Cícero: esboço biográfico p. 55
3.1.1 – Cícero, magister eloquentiae p. 59
3.1.2. - Cícero, o filósofo p. 61
3.2 – O pensamento político de Cícero p. 63
3.2.1 - De Re Publica p. 64
3.2.2 – De finibus p. 74
3.2.3 – “Tusculanae Disputationes” p. 82
3.2.3.1 – A “Escola do Pñrtico” e a nova identidade p. 84
romana
3.2.3.2 – Virtus, prima inter pares. p. 86
3.2.4 – Catão e Lélio: a velhice e a amizade p. 89
3.3 – Uma nova identidade e a modernização conservadora p. 95
4 SÊNECA: A FILOSOFIA NO TRONO DO IMPÉRIO p. 98
4.1 Augusto e a nova crise identitária p. 98
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Nota Introdutória
tese cujo resultado é este que se tem em mãos. Contudo, deve-se ressaltar que entre aquele
projeto e este resultado final há algumas diferenças, e, portanto, convém esclarecer-se seu
porquê.
Roma, a), daqueles valores que acabaram por constituir a identidade romana, b), a
díspares, tendo sido recomendada sua redução às obras que delimitassem um período
menor de tempo. Ademais, o número e a extensão das obras de Cícero e de Sêneca em que
o tema da identidade romana é levantado logo mostrou-se maior do que o que pensáramos
a princípio, sendo-nos imperativo incluir, no corpus de nossa análise, obras que antes não
alternativa senão rendermo-nos ao peso dos fatos e reduzir definitivamente nosso trabalho
Deve-se acrescentar ainda que o súbito falecimento de nosso orientador, o Prof. Dr.
Carlos Antonio Kalil Tannus - que além de privar, a nós, de sua inigualável companhia no
pesquisadores - foi um fator determinante para nossa decisão de retirar de nosso projeto os
itens finais, já que o processo de sua substituição pela Profª Drª Vanda dos Santos Falseth
tomou mais tempo do que o esperado, em razão de entraves burocráticos. Estes foram ao
fim vencidos, e nossa atual orientadora pôde, enfim, iniciar, com o entusiasmo que lhe é
peculiar, a tarefa que o Fatum lhe designou. Porém, tal atraso consumiu-nos um tempo
precioso de pesquisa.
Desse modo, fique o leitor ciente de que esta tese é, ao fim, um recorte daquele
projeto originalmente apresentado. Entretanto, para que não fosse raso, tampouco foi largo;
1 INTRODUÇÃO
internacional logo evidenciará que esta atravessou, nos anos centrais do século XX, um
Crusius, Marouzeau, Monteil, Pinkster et alii, que até hoje são tidos como pedras angulares
área, foram mais tímidos. Isso se deu, pensamo-lo, não apenas porque estes estudos são
limitados a um corpus fechado mas também porque sobre este corpus paira o peso de dois
milênios de uma exegese que moldou uma tradição crítica com poder de chancela sobre as
foram, paulatinamente, sendo exauridas, e que obras como a de Paratore e Bayet, apesar da
envergadura e do fôlego com que cobrem a produção literária latina, são também o
fato esgotado – com o próprio conhecimento sobre o Mundo Clássico, logo visto como
incapaz de fornecer novas explicações sobre seu próprio objeto de estudo e, tão grave
quanto, como igualmente incapaz de contribuir para uma mais bem calibrada interpretação
Contudo, romper ou flexibilizar essa tradição exegética será tarefa para sucessivas
gerações de investigadores. Nesse aspecto, fica patente que estudos como os de René
Contudo, mesmo estes estudos não esgotam as possibilidades de abordagem de seu método
passu com os avanços realizados pelos estudos linguísticos. No que tange ao nosso
literários – podemos afirmar que esse processo de renovação está ainda em curso.
Clássica tem apresentado, nos últimos anos, uma grande renovação em sua temática,
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deste conjunto de obras, à luz das novas correntes teóricas que se vêm desenvolvendo
mundo contemporâneo.
e suas tipologias – nacional, cultural, social, religiosa, etc. Este é um conceito que ganha
particularidades socioculturais daqueles que se veem nele envolvidos. Para nós, membros
indivíduo?
políticas, seguiu-se uma integração econômica jamais vista – e por séculos irrepetida – e
também uma integração cultural, iniciada pelo helenismo e que, atravessando o período
romano, será perpetuada ainda pelo Cristianismo. Esta integração cultural, é sabido,
Greco-Romana”.
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O caráter dual dessa civilização, expresso até mesmo pelo adjetivo composto que a
culturais, a que se pode acrescentar as de outros povos, como egípcios, judeus, celtas,
germânicos, etc.
teriam havido questionamentos semelhantes aos que ora nos fazemos? Teriam os antigos
meditado sobre os problemas acarretados pela unificação movida pelos impérios supra-
no século III a.C., sem estar secundado por uma florescência no âmbito cultural, teriam
sido efetivadas construções discursivas que visassem definir a identidade romana – para
além da “mera” superioridade militar - perante a dos diversos povos que perfaziam o tecido
social dos territórios que conquistara? Se isto se deu, como se deu? Quem teria realizado
esse processo, e, mais importante, quais as ideias que foram, então e por conseguinte,
veiculadas? Enfim, o que, ao longo de todo esse processo, acabaria por definir um romano
como tal? Sob que estatutos viria a constituir-se uma identidade cultural? E, por último,
esta identidade ter-se-ia modificado ao longo da própria história romana e/ou graças ao
flexibilizar-se ainda mais o recorte de nosso corpus; por isso, mesmo partindo das análises
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realizadas por aqueles autores já mencionados acima, é-nos necessário abrir mão não só da
que nos possibilitassem responder às questões acima expostas nos obrigaram a privilegiar,
mais que a forma, o discurso em si, e, mais que o discurso, as intenções que nele estão
embutidas.
que, seja qual for a roupagem, suas concepções de mundo, de sociedade e de indivíduo
tenham sido expostas de modo mais inequívoco e em que suas reflexões a respeito tenham
sido construídas. Tal tarefa, embora creiamo-la necessária até mesmo para, como dito
que congrega, demasiado hercúlea para ser realizada individualmente. Optou-se, portanto,
por sua divisão em tópicos de mais fácil execução, razão pela qual decidimos reduzir o
discussões. Por isso, principiamos nosso estudo dedicando-nos àqueles autores que, através
cristalização destes paradigmas, dever-se-á antes atentar para o fato de que estes são em
Dessa forma, mesmo resultando de um processo que dura boa parte do período
republicano, ficou-nos patente que os paradigmas da romanidade foram mais bem expostos
atravessava sua crise final, aqueles instantes históricos que antecederam à instauração do
romana.
Assim, será na produção escritural destes dois momentos que buscaremos tanto os
paradigmas quanto os discursos nos quais se configuram a interpretação que lhes é dada.
saberes produzidos pelos mais destacados pensadores romanos: Marco Túlio Cícero e
A seleção de tais autores se dá por razões diversas: Cícero e Sêneca são, dentre os
escritores de língua latina, aqueles cujo conjunto de obra encontra-se melhor preservado.
copiosa produção, temos percebido haver, ainda que em caráter subjacente, e esta constitui
que se reflita ou se proponha uma identidade romana, vinculada, ou não, a qualquer escola
discursos identitários formulados por estes dois autores serão, também e igualmente,
respostas a questões relativas a seu próprio tempo. Desse modo, o modo pelo qual Cícero
República. Com Sêneca não será muito diferente: visará definir o homem romano segundo
a realidade inspirada pelo governo de Nero. A posição assumida por estes pensadores a
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respeito de seu próprio tempo nos permite questionar também se, em seu discurso
Visando explorar a presença dos discursos identitários nas obras desses dois
autores, recorreu-se ao estudo sistemático de todos os textos de sua autoria a que pudemos
ter acesso. No caso específico de Cícero, descartamos os discursos jurídicos do autor, não
porque ali não estivessem presentes subsídios para nossas argumentações, mas porque
esses mesmos subsídios seriam encontrados alhures, no conjunto de suas obras ditas
produzidos entre os anos de 45 e 43, ano da morte do autor, em plena crise fatal da
República.
didatismo sua concepção do ser humano e estabelece outra visão do que comporia o
homem romano.
ao de Sêneca, analisamos a praetexta Octauia, obra que, tendo sido a única de seu gênero
que nos chegou, suscita ainda uma série de desdobramentos das visões identitárias
Octauia fez com que nos decidíssemos a “cometer” essa tradução, que se encontra como
anexo a este trabalho, juntamente com o texto latino original, tal como publicado pela Les
Belles Lettres.
Mas se cremos ter deixado claras as linhas gerais de nossa pesquisa, falta-nos
esclarecer as razões pelas quais optamos por um estudo de um tema “transversal” como o
discussão acerca da identidade romana é tarefa que exige, inicialmente, a explicação das
razões de ser efetuada. Tal explicação, a ser feita em seguida, demonstrará – assim
pretendemos – que a busca dessa identidade tem repercussão direta na discussão a respeito
da nossa própria, uma vez que, inserido o Brasil no contexto do que se condicionou chamar
América Latina, qualquer busca a respeito da romanidade será, de certo modo, uma busca
Ademais, executar essa busca tomando como objeto de análise textos de Cícero e
Um fato logo chamará a atenção de quem quer que inicie estudos nas letras da
Antiguidade: o de que estas não podem ser estudadas através dos mesmos procedimentos
uma compartimentalização que divide a história literária em diversas fases - mas que
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Sabemos da ausência de qualquer edição no Brasil; ademais, tendo consultado o Prof. Dr. Sebastião
Tavares de Pinho, da Universidade de Coimbra, este nos confirmou ter sido a última edição do texto lançada
em Portugal aquela editada em 1972, comportando uma tradução realizada por José António Segurado e
Campos, alertando-nos ainda sobre ser tal obra “absolutamente esgotada”.
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também a engloba -, contendo, cada uma destas, características particulares, das quais
determinados autores seriam fundadores e/ou representantes mais bem apurados e cujas
obras formar-lhe-iam o cânone, os neófitos no estudo das letras clássicas cedo se deparam
chama “estilos de época”, pois o processo escritural não era compreendido como passível
de alterações tão abruptas como aquelas que hoje detectamos como produto, por exemplo,
ou qual poeta ou dramaturgo, mesmo quando de sua lavra, não poderiam ser
prática não só costumeira mas valorizada entre autores distantes uns dos outros até mesmo
comparação com a gastronomia, podemos afirmar que o cordon bleu iria não para o que
inventasse uma nova receita, mas para aquele que melhor reproduzisse dado prato.
pela temática, pela escrita e pela retórica – autores, estilos, épocas, o mosaico de textos da
Antiguidade logo nos parece demasiado monocromático. As diferenças que entre eles há
manifestam-se de modo por demais sutil para uma percepção direta e imediata, cumprirá
então esmiuçar os detalhes de cada texto, para perceber a arquitetura e a trama que em cada
Tampouco poderá o neófito prender-se à biografia dos autores antigos, pois nada
dista mais destas obras que seus próprios autores. Não se pode jamais esperar aquela
identificação entre biografia, valores e retórica que tanto delicia os que se detêm no
Romantismo ou nas vanguardas literárias: nas letras clássicas autor e obra(s) são seres não
só distintos mas também distantes, um fato de que Petrônio e seu Satyricon são suficiente
exemplo.
ser a literatura grega “hierarquicamente” superior à latina: esta seria, enfim, um conjunto
de simples repetições dos processos desenvolvidos por aquela, com os autores latinos
servindo-se reiteradamente dos modelos gregos para criar obras que quase nunca poderiam
igualar-se ao original2. Contudo, devemos, nós também, prevenir nosso olhar e nossa
repetida por seus sucessores – da originalidade como quesito avaliativo da primeira ordem.
alguém a dedicar-se ao estudo das letras clássicas, por serem ainda distantes do paladar a
que nos acostumamos, resta então o trabalho de, a partir de um conhecimento consistente
literaturas do Ocidente – tanto pelas temáticas que insere, quanto pelos procedimentos que
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Muito embora o trato dado, por mãos latinas, à temática de inspiração grega poderá conceder a esta última
abordagens antes impensadas, chegando mesmo a significar um salto qualitativo, bastando para isso conferir
o trabalho de reconstrução das obras de Homero efetuado por Vergílio em sua Eneida.
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logicamente aqueles elementos cuja presença fosse detectável em apenas uma destas será
ainda definir com exatidão a que nos referimos ao usar o termo “Ocidente”. Obviamente,
quando se pensa este termo, damo-nos conta de que duas definições são possíveis: segundo
do Ocidente engendra uma dicotomia no mínimo insólita, pois retira do quadro a única
porção que de fato se define usando um epíteto que é igualmente reivindicação direta desta
Antiga que nos capacitem a verificar as razões – de âmbito cultural, mais profundas que as
esta porção da América, o que seria contribuição decisiva para os estudos neolatinos; e, no
que mais nos diz respeito, analisar-se a permanência dos valores culturais latinos mesmo
em tamanha distância espaço-temporal como a que há entre esses dois universos culturais.
(enormemente) diluída pelas transformações realizadas na cultura latina, seja pelos demais
povos que se fizeram presentes na Península Ibérica após 476, seja pelas culturas
ameríndias aqui encontradas após 1492, seja ainda pela decisiva contribuição africana às
culturas da América.
seria indicativo de que, mais do que uma referência de civilização modelar, a cultura latina
americano.
Assim sendo, para nós, latino-americanos que somos, nenhum estudo sobre a nossa
própria identidade cultural pode prescindir daquilo que mais de perto, como classicistas,
nos diz respeito: a identidade cultural que herdamos dos romanos. Nosso estudo, por
conseguinte, não poderia principiar de fato senão pelo estudo da identidade cultural
romana. Estudo este que não poderá deixar de lado a própria história romana, que, segundo
comprender su historia, mientras que la historia griega se debe estudiar con el propósito
identidade romana em sua fase mais antiga, quando se estabelecem aquelas bases presentes
em toda a trajetória de Roma, até o momento da primeira crise identitária, coincidente com
o apogeu da República.
3
“deve-se estudar a literatura romana principalmente com o propósito de compreender sua história, enquanto
a história grega deve ser estudada com o propósito de compreender a literatura grega.”
25
um modelo identitário ímpar, cujo êxito foi comprovado pela própria ascensão de seu
poder. Este modelo não se distingue apenas pelas peculiaridades que apresenta: é
sobretudo no que seu modo de construção - distante daquele praticado por outras
civilizações de seu tempo - tem de sui generis que o modelo identitário romano deve ser
estudado. No capítulo que ora se inicia, abordaremos tanto o conteúdo quanto a construção
desse modelo, assim como as crises que, em dado momento, levarão à necessidade de sua
reconstrução.
Se fosse possível reduzir toda uma cultura a uma única expressão, limites seria o
termo no qual poderíamos resumir a cultura romana, já que a história e os mitos romanos
e decisiva.
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território, evidenciando que, antes mesmo da existência de uma cidade de fato, existiria
uma cidade de direito, com limites espaciais já definidos, e cuja transposição causariam a
morte de Remo.
Outro fator importante para definir-se o homem romano é sua origem “mestiça”, já
adiciendae multitudinis causa uetere consilio condentium urbes, qui obscuram atque
humilem conciendo ad se multitudinem natam e terra sibi prolem ementiebantur,
locum qui nunc saeptus escendentibus inter duos lucos est Asylum aperit. Eo ex
finitimus populis turba omnis, sine discrimine liber an seruus esset, auida nouarum
rerum perfugit; idque primum ad coeptam magnitudinem roboris fuit. (TITO LÍVIO;
Ab Vrbe Condita, VIII, 5)4
Ainda que Tito Lívio – como visto acima – declare ser “um velho hábito dos
um que desejasse partilhar do destino da cidade não encontra paralelo nos povos do mundo
antigo: enquanto os egípcios jamais se expandiram para além das margens do Nilo e os
hebreus simplesmente não concebiam estender sua “cidadania”, restrita desde sempre
apenas a quem partilhasse de sua origem étnica e religiosa; e enquanto fenícios e gregos
fundavam suas novas colônias com os excedentes populacionais de suas prñprias “cidades-
mães”; Roma é fundada sobre uma cidadania que poderia ser adquirida, não se
numa homogeneidade jurídica: será romano, enfim, quem dispuser do mesmo estatuto
jurídico dos nascidos em Roma. Estatutos estes que foram por Rômulo estabelecidos,
segundo o mito e corroborado por Tito Lívio, no mesmo ritual que consagrou a cidade:
4
“em razão de um velho hábito dos que fundam cidades, que, para aumentar-lhes a população, ao fundá-las
chamavam a si a prole obscura e humilde nascida da terra, criou o Asilo, um lugar que está agora entre dois
bosques, vedado aos que aí sobem. Para ali toda uma turba de povos vizinhos, sem discriminar-se se livre ou
escravo fosse, acorreu ávida de coisas novas, e essa foi a primeira mostra da força da cidade.”
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populi unius corpus nulla re praeterquam legibus poterat, iura dedit.” (TITO LÍVIO; Ab
seu sucessor, além de estabelecer novas leis e costumes, organizar o espaço temporal. A
“qui bellum nullum quidem gessit, sed non minus ciuitati, quam Romulus, profuit;
nam et leges Romanis moresque constituit, qui consuetudine praeliorum iam latrones
ac semibarbari putabantur. Annum descripsit in duodecim menses, prius sine aliqua
computatione confusum, et infinita Romae sacra ac templa constituit.” (EUTRÓPIO,
Breu. Hist. Rom., III,1)6
Famoso por ter estabelecido um calendário de doze meses – o de Rômulo possuía apenas
dez – mais próximo, portanto, dos limites do ano astronômico, Numa Pompílio foi
conhecido também pelos templos e cultos que estabeleceu, e, segundo Tito Lívio 7, o
primeiro destes templos teria sido o de Jano, deus bifronte que preside, entre outros
assuntos, aos limites em geral. Mais tarde, o próprio Numa Pompílio construirá em Roma
dois outros templos: um dedicado a Júpiter Término, deus também dos limites, e outro à
Mas Numa também “deu leis e costumes ao povo”, não temos nñs motivos para
duvidar de que, tendo, segundo o mito, sido o seu um reinado de paz e ordem, em que são
assentadas as bases da romanidade, tenha sido nesse momento aquele em que o mos
maiorum começa a ganhar sua noção orgânica, tornando-se , portanto, aquele conjunto de
valores e práticas consuetudinárias que atravessarão toda a história romana, o que faz
necessário que, antes de prosseguir, explicitemos quais os valores que estariam contidos no
5
“Tendo tratado as coisas divinas com o ritual e convocado e reunido uma multidão que não poderia unir-se
na forma de um único povo senão pelas leis, estabeleceu-lhes os direitos.”
6
“que não travou guerra alguma, mas não serviu menos à cidade do que Rômulo; pois constituiu as leis e os
costumes para os romanos, que então eram tidos como ladrões e semibárbaros devido a seus hábitos
guerreiros. Dividiu o ano, que antes era confuso, sem qualquer contagem, em doze meses, e construiu em
Roma infinitos templos e lugares sagrados.”
7
In: Ab Vrbe Condita, XIX. (2005: 66)
28
conceito de mos maiorum, pois, se Rômulo e Numa teriam, como rezam as lendas,
delimitado, respectivamente, o espaço e o tempo físicos sob os quais a cidade era regida, o
Pereira apresenta um detalhado estudo sobre as ideias morais dos romanos. Estas ideias
formam, segundo a autora, “a parte mais significativa do seu legado cultural, a ponto de se
1989:321).
realçado, até porque não fica restrito ao mundo das regras de convivência da vida familiar:
as ideias morais desenvolvidas pelos romanos espraiavam-se para cada meandro da vida
modo, no tocante a esse conjunto, duas conclusões podem ser alcançadas: a) fica claro que
o todo é maior que a soma das partes, e b) o povo romano era sistematicamente regulado
Havia, contudo, uma hierarquia entre essas ideias e os valores que preconizavam:
8
Essa hierarquia, convém notar, é defendida por Pierre Grimal em seu texto A Civilização Romana (1988).
Na obra de Mª Helena da Rocha Pereira não existe menção ao fato; porém, a interrelação entre os diversos
29
Fides está, segundo Rocha Pereira, “no centro da ordem política, social e jurídica
de Roma” (1989:322). Verdade que se comprova pelo fato de que, naquele seu templo
construído a mando de Numa, ficava a sede dos arquivos romanos e era sede - inicialmente
Fides ia além do antropomórfico: Fides é, também, “um juramento que compromete ambas
definição de Fides, mais detalhada, pode também ser encontrada em Pierre Grimal:
pois os compromissos que apadrinhava podiam também abarcar os deuses, que também a
ela se submetiam: ao cumprimento dos ritos tradicionais por parte dos homens, caberia aos
Nítido está, portanto, que o conceito de Fides esconde outra característica, bem
também um agente regulador da estabilidade, pois uma vez que os compromissos - dos
homens entre si, e também com as divindades - estão fixados, conjuram-se para longe o
desconfiança.
conceitos que a pesquisadora lusa apresenta é de tal monta, que acaba por confirmar a preponderância desses
conceitos frente aos demais.
30
Outro conceito de suma importância para os romanos seria o de Pietas, que Grimal
explicará como
...a atitude que consistia em observar escrupulosamente não só os ritos mas as relações
existentes entre os seres no interior do universo: a pietas começa por ser uma espécie
de justiça do imaterial que mantém as coisas espirituais no seu lugar, ou que as remete
para o seu lugar sempre que um acidente revela alguma perturbação. (GRIMAL,
1988:70)
Logo, se Fides consistia num valor a ser preservado na e pela sociedade, Pietas
complementaridade entre esses dois conceitos, vê-se porém que Pietas se prolonga por um
terreno em que Fides não transita, pois atua também como elo daquelas relações sociais
de gens ou mesmo de tribo. Rocha Pereira, na obra já citada, definirá Pietas, portanto,
como
...um sentimento de obrigação para com aqueles a quem o homem está ligado
por natureza. Quer dizer, por conseguinte, que liga entre si os membros da
comunidade familiar, unidos sob a égide da patria potestas, e projetada no pretérito
pelo culto dos antepassados. Está, pois, firmada nos sentimentos religiosos dos
romanos, que se sentiam protegidos pelos deuses Manes, Lares e Penates, e que
pensavam que o dono da casa tinha o seu genius tutelar e a esposa era protegida por
Juno.
Estabelecendo assim um vínculo afetivo entre os membros de uma família, a
pietas alargava-se à divindade, e acaba por compreender também as suas relações com
o Estado. (PEREIRA, 1989: 328-30).
Atuando então como o “cimento” das relações entre determinada fração social, a Pietas
será também a base das relações hierárquicas da sociedade romana como um todo, pois,
segundo Grimal, existirá “uma pietas para com os deuses, mas também para com os
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membros dos diversos grupos a que se pertence, para com a própria cidade e, para além
É necessário reparar que os dois mais antigos conceitos basilares da moral romana
são valores que delimitam o espaço das relações humanas, e regulam também o modus
operandi dessas mesmas relações, não sendo de modo algum conceitos que valorizem ou
social como um todo. A moral romana existe para garantir a sobrevivência da cidade, da
regulava aquelas estabelecidas pela natureza, Virtus determinava o que seria a conduta
esperável dos homens daquela sociedade9. É claro, a Virtus tornava o indivíduo consciente
grandemente ao longo dos séculos, Virtus será, dentre os conceitos até aqui arrolados, o
9
E o termo “homens” deve ser entendido no seu sentido restrito, já que o termo forma-se de uir (homem),
acrescido do sufixo tut(s), indicativo de estado. Nesse aspecto, uma boa tradução para o termo não seria
virtude, e sim hombridade.
32
relacionamento dos homens entre si; Virtus, que de início abarcava também uma série de
outros conceitos dele derivados, sofreria, ao longo do tempo, ora com o fato de que alguns
afirmar que
Esta moral romana possui uma orientação nítida: o seu fim é a subordinação da pessoa
à cidade e ainda há pouco tempo o seu ideal continuava a ser o mesmo, a despeito de
todas as transformações econômicas e sociais. Quando um romano, ainda no tempo do
Império, fala de uirtus (...), refere-se menos à conformidade com valores abstratos do
que à afirmação em ato, voluntária, da qualidade viril por excelência, ao domínio de
si. (GRIMAL, 1988:66)
indivíduo, estas, segundo Rocha Pereira, seriam: fides, sapientia, modestia, continentia,
aequitas e honos – conceitos que não sofreram modificações expressivas até os dias de
hoje. Tais conceitos seriam, ainda segundo Rocha Pereira, expressivos em uma sociedade
agrária e oligárquica, tal como era a Roma republicana, contudo, à medida que a expansão
relação a esses três, devendo ser considerada sua expressão frente a uma situação concreta.
33
E quais seriam esses demais valores? No estudo de Rocha Pereira, que até aqui
temos utilizado como base, estão listados os seguintes conceitos: gloria, dignitas, grauitas,
auctoritas, clementia, concordia, libertas, otium cum dignitate, res publica, sapientia,
fundamentais, logo, de segunda grandeza, ou não teriam existido durante toda a história
Um primeiro grupo de conceitos seria aquele formado pelo trinômio honor, dignitas
e gloria, assim dispostos por expressarem uma gradação: Honor é a qualidade do uir
honestus, cujo mérito é reconhecido publicamente e tem, por isso, uma função pedagógica
na cidade, pois, para um cidadão, ser considerado honestus tornava-o exemplo de distinção
escala dos cargos públicos passíveis de serem exercidos por aqueles que preenchessem os
diversos requisitos para tal: cidadania, idade, renda, classe social de origem, etc.
Dignitas, conceito muito próximo ao de honor; atua num nível pessoal. Ou seja,
enquanto honor é uma qualidade pessoal reconhecida pela coletividade, dignitas deriva da
posição social – que pode vir de berço - e/ou do prestígio alcançado por quem detenha
honor.
10
Fique claro que nossa apresentação pretende-se sumaríssima. Esses conceitos – e a análise de seu papel na
cultura romana – demandam estudos muito mais aprofundados que o aqui podemos realizar.
34
Por fim, temos o conceito de gloria, que, segundo Rocha Pereira, consiste em “ser
considerado bom pelos homens de bem” (1988:334). Ademais, segundo a mesma autora, a
gloria
resulta de três condições: ser amado pela multidão; ter a sua confiança (fides); ser
admirado e digno de honrarias (honor). Logo, gloria combina com fides, (...), e
sobretudo com honor, com a qual acaba por formar um binômio muitas vezes
invocado (honor et gloria). (PEREIRA, 1988:335)
cidade, e tivesse chegado ao nível de honor, seria permitido ter o estatuto de gloriosus.
círculo social direto, e a dignitas resulta das ações do uir honestus; a gloria nasce do
reconhecimento, por todos os cidadãos, dos feitos ou do valor do indivíduo. Será, portanto,
uma qualidade inerente à vida republicana, pois somente onde houvesse ampla
possibilidade de debate poder-se-ia discutir sobre quem mereceria ser chamado uir
magnus.
Tendo-a como condição sine qua non para as demais, podemos considerar fides
como ponto em torno do qual gloria gravita. Mas tal qualidade seria, em Cícero, não mais
considerada como atrelada à fides, mas a uirtus, fato que rompe o trinômio acima
que originalmente está relacionado à ideia de “peso” - pode ser sintetizado como o “ter
11
Cícero chegaria a escrever uma obra intitulada De Gloria, hoje perdida.
35
grauitas perante a cidade, e, a partir daí, exercer o poder (potestas) que lhe está confiado.
Auctoritas é, por conseguinte, uma qualidade moral aplicada à vida pública. Trata-se ainda
de um conceito bastante antigo entre os romanos, já que é mencionado na Lei das XII
Tábuas.
Estes dois conceitos, segundo Cícero, não teriam equivalentes na cultura grega,
da vida pública, ambos seriam transmutados: grauitas passa a ser simplicitas; enquanto
advindas do regime imperial: se antes a grauitas era necessária para obter-se auctoritas e,
daí, exercer sua potestas, com o novo regime, o mandatário poderá dispensar a grauitas –
como Calígula e Nero – e, mesmo sem auctoritas, exercer não a potestas, mas a potentia
pura e simples; enquanto, para os demais, restaria uma grauitas decaída, esvaziada de seu
seguir, clementia e concordia, serão, novamente segundo Rocha Pereira, tão fortemente
modificados por valores congêneres de origem grega, que, por suas características
Ainda que o termo clementia já existisse na cultura romana, não se percebe, até a
agonia da República, seu uso como ação política. Se, até aquele momento, os romanos
12
A própria substituição de um substantivo concreto (potestas) por um abstrato (potentia), indica também
que a ideia antes expressa, definida e delimitada pela res publica, agora não tem mais os contornos nítidos,
sendo antes um valor em si próprio.
36
no entanto, à vontade do governante - de quem passa a ser uma qualidade, como defenderá
Desse modo, se antes a clementia era um conceito aplicável na vida pessoal e não
na pública; nessa será inserido durante o Império, na qual ocupará um lugar central, ainda
que seu uso seja considerado prerrogativa do imperador; pois é sua forma de retribuição à
pietas que se lhe deve, já que sua figura tem caráter divino.
Concordia será outro conceito adquirido dos gregos. Termo que traduz o conceito
grego de “homónoia”, definido por Rocha Pereira como “a harmonia no modo de pensar e
modo, a Fides seria a mantenedora da Concordia, e mesmo que esta também tenha sido
Cícero em suas obras a partir de De Re Publica, como meio de conseguir a unidade entre
labor, termo que designava a capacidade do homem em realizar as tarefas que provessem o
de trabalho realizado, nota-se, na trajetória cultural romana, que o conceito de labor mal
disfarça um juízo de valor sobre o trabalho em si: quanto mais próximo da vida campestre
a profissão do indivíduo, tanto mais correto seria seu caráter. Isso se percebe, ao longo da
história, em obras dos mais diversos matizes: desde o De Re Rustica de Catão até as
37
também soldado.
Ademais dos conceitos primários – fides, pietas e uirtus – que delimitam o espaço
dos valores romanos e secundários - honor, dignitas, gloria, grauitas, auctoritas, clementia
prendem aos secundários, aos quais remetem. Este grupo, mais restrito, seria composto por
Libertas era a condição desfrutada pelo homem em sua condição de cidadão, que
não só lhe permitia exercer a vida pública mas também exercer atividades econômicas. No
Desse modo, libertas é tanto um conceito abstrato como uma condição concreta de
que o cidadão romano desfruta. Vale recordar também que, historicamente, os romanos
O outro conceito terciário é o de otium cum dignitate. Como o nome já indica, este
consiste, na República, na tranquilidade advinda por ter o cidadão, já, ocupado todas as
atividades que dele a cidade exigisse, tendo alcançado a dignitas. Neste caso, era-lhe
entanto, defenderá que o otium cum dignitate não deve ser sinônimo de inatividade, mas de
38
dedicar-se.
Por último, temos um conceito que, sem prender-se a qualquer dos grupos
anteriores, pode ser encarado tanto como uma prática quanto como um “supraconceito”
maiorum era a tradição que fundamentava o modelo da vida em comum do povo romano.
Sua observância era considerada um verdadeiro tabu para a população da Urbe, já que,
antepassados baseados nos conceitos que ora expusemos, sua prática não faria mais que
romanidade, desse modo, a expressão mos maiorum não teria podido atuar, no inconsciente
coletivo do povo romano, como o termo evocativo de todos e cada um daqueles conceitos
já citados? Cremos que a resposta seja afirmativa, já que Syme (1971) definirá este
conceito dizendo que “não é um cñdigo de lei constitucional, mas um conceito vago e
Cremos que o termo podia referir-se à explicação de uma dada prática ou conduta –
esta, evidentemente, baseada num dos conceitos acima – e que, por essa razão, e também
por ser, como Syme afirma, “vago e emocional”, este conceito terá sido usado também, ao
longo da história romana, como sinônimo ou como coletivo daqueles já aqui expostos.
Outro fator que corrobora nossa crença é o que, ao contrário dos demais conceitos,
coletivo dos valores e práticas consagrados pela tradição, embasados pelos conceitos
39
expostos. Em suma, seria, portanto, o coletivo desses mesmos conceitos, razão pela qual,
ao longo deste trabalho, preferimos utilizar o termo mos maiorum para referirmo-nos ao
fundadores de Roma, perceber que, neles, já se via com nitidez a preocupação romana em
ter, no ato de delimitar, o estabelecimento de uma condição sine qua non para sua própria
existência: o que é bem apropriado para uma cultura de agricultores-soldados. Para esses, é
necessário delimitar o espaço das plantações, a posse de cada terreno, o tempo para a
colheita, o tempo destinado às práticas militares e mesmo para a guerra, cada atividade
exercida, enfim, pelos romanos exigia uma delimitação clara e inequívoca do espaço e do
que também limitam, assim como ordenam, a ação dos homens nesse espaço e tempo. Isso
13
Haverá ainda um quarto grupo de conceitos Ŕ sapientia e humanitas - que só tardiamente surgiram na
história de Roma, não havendo qualquer menção a eles anterior ao processo de helenização. Sendo conceitos
que se desenvolvem plenamente na obra de Cícero, serão examinados no capítulo a ele dedicado.
40
O que poderia, então, ser absorvido e incorporado por Roma? Tudo aquilo que
pudesse ser ordenado segundo o padrão romano, um padrão que será, sobretudo, jurídico.
Podemos, então, fazer coro a Umberto Eco, para quem, em Roma “Unidade e identidade
são um produto jurídico, Roma é um sistema de leis que agem no interior de certas
fronteiras, a cidadania romana é um privilégio para quem assume certos encargos e tira
A princípio , portanto, Roma é o intento de dar limites e ordem à realidade, fato que
estará sempre presente ao longo da história, afinal, muito da expansão romana dos séculos
seguintes terá como resultado final a ordenação, segundo o modelo romano, daquilo que
estiver dentro dos limites do poder de Roma. Roma ordena, e contida na ambivalência
desse verbo está, além de sua disposição para impor ordem ao mundo, sua igual
compreende para disciplinar. Ora, traçar as linhas-mestras dessa ordenação era, mesmo que
os romanos de então não tivessem tido consciência do fato, um processo dialético cuja
do mos maiorum. Ou seja, o direito romano surge como práxis filosófica, mesmo sem que
houvesse uma escola filosófica stricto sensu que lhe fornecesse um lastro teórico.
termo que não deve ser compreendido como aplicado – apenas - às características raciais,
mas às culturais do povo romano: formado inicialmente por gente oriunda das mais
diversas regiões da Itália central, a convivência entre povos distintos tornou habitual o
Cria-se então uma segunda dinâmica, dessa vez cíclica, à medida que Roma se
expande pelo território italiano: uma nova expansão traça novos e mais amplos limites -
que devem ser ordenados -, esses limites incorporam ao orbe romano novas populações -
que devem ser romanizadas - e características culturais - que devem ser selecionadas –
para adaptar elementos novos, como por exemplo, os substratos linguísticos vizinhos,
sejam eles lígures, gauleses, etruscos, osco-úmbrios, sabinos, volscos, etc. Prova cabal
segundo Antonio Houaiss (1989), registra haver no latim clássico cerca de mil e duzentos
Se a identidade romana, e mais tarde a latina, é, como vimos, elástica, é por outro
lado bastante rígida em seu pragmatismo: dentro de uma lógica cartesiana que vê no
único modus operandi para a legítima incorporação ordenada de novos elementos à cidade.
Mesmo os deuses estrangeiros não estavam livres desse imperativo: para que pudessem ser
cultuados na Vrbs, deviam ser legalmente introduzidos pelo pontifex no panteão romano.
Essa necessidade de ordem atinge cada meandro da cultura latina, não sendo devaneio
pensar que a preferência da língua latina pela formação de períodos subordinados, a rigidez
A língua, aliás, seria um dos mais eficientes meios de romanização. Porta pela qual
aprendizado foi prática recorrente entre os povos submetidos, e isso não deixou nunca de
alcançando, entre a urbe e seu orbe, uma unidade que, segundo Georges Duby:
“não se fundou apenas sobre as colônias dispersas, sobre uma estrela de calçadas todas
elas conducentes ao centro, sobre uma constelação de aglomerados urbanos de
estrutura semelhante, sobre o direito. Fundou-se sobre uma língua, a dos mandamentos
militares, a dos decretos de justiça, a das liturgias do poder: a língua do velho país
latino.” (DUBY; 1989: 12)
mundo: Roma é o centro desse universo, ponto de expansão de um poder constituído sobre
riqueza material e cultural dos povos conquistados. Porém, não há aqui lugar para um
pensamento divergente, pois, desde o fim da monarquia, Roma é, sob a capa de uma
República, uma oligarquia agro-mercantil com forte poder militar. Esta oligarquia exerce,
de maneira centralizadora e censória, um poder que não admite questionamentos sobre sua
Mas ainda assim haverá questionamentos, e esses viriam da própria Roma, do povo
romano que exigia maior retorno pelas contribuições que fizera à expansão. Não se tratava
apenas de maior distribuição de riquezas, mas sim de mais ampla participação política e de
da urbe logo farão com que não bastem mais o mos maiorum.
Assim, a codificação das leis nas XII Tábuas não deve ser vista apenas como
reflexo das crises sociais em Roma mas também uma mostra do espírito universalizante da
identidade romana: se essa é definida pelo estatuto jurídico, este estatuto deveria ser de
pleno conhecimento de todos aqueles por ele regidos, assim como o intento de torná-las,
43
por sua (a)fixação no Fórum, perenes. Inseridas, integradas e imutáveis dentro daqueles
trajetória identitária romana: não apenas o espaço e o tempo, mas também a sociedade é
Assim, ao longo dos cerca de trezentos anos desde a fundação de Roma até a
publicação das XII Tábuas, temos a formação de um primeiro padrão identitário romano,
gestado em paralelo à consolidação da urbe e sua expansão pela Itália. Esse padrão
ordenação do mundo segundo Roma terá seguimento com as três Guerras Púnicas e com a
modi operandi empregados na absorção dos elementos culturais dos conquistados serão
prova.
Ainda que os dois processos, o das Guerras Púnicas e o da conquista dos territórios
helênicos tenham se dado de modo praticamente concomitante, uma vez que esses
econômica do Mediterrâneo ocidental, uma vez que, tendo as cidades fenícias submergido
diante do poder dos impérios surgidos pós-Alexandre, Cartago as pudera substituir como
tomada da Itália.
Primeira Guerra Púnica (264-241 a.C), assume o controle total da Sicília, incluindo aí
algumas cidades gregas. Inicia-se a expansão de Roma para além do território peninsular
da Itália. Apesar do violento embate e da longa guerra, como a Sicília não havia sentido a
presença de um superestrato cultural cartaginês, não se pode dizer que tenha havido algo a
ser incorporado diretamente pelos romanos – o que o foi, deu-se por via indireta, através da
todo o leste da Espanha – iniciando sua presença na Península Ibérica - e grande parte do
Terceira (149-146 a.C.), os romanos destroem Cartago a tal ponto que a cidade teve de ser
refundada, pois a antiga ficara tão destruída que foi preferível riscá-la do mapa.
A vitória nas Guerras Púnicas levariam Roma a dois novos desafios: testar a
validade daquela segunda dinâmica de expansão a que nos referimos, desta vez em
estrutura econômica e social por causa da sucessão de guerras, as questões sociais seriam,
social adquirido desde as XII Tábuas. O primeiro desafio seria vencido com o tempo: ao
número de escritores latinos que daí advirão será prova disso. Quanto ao segundo,
A questão que aqui devemos nos fazer é: por que a conquista de Cartago, que deu a
pouca repercussão no plano cultural? É óbvio que Roma incorporou todos os avanços na
tecnologia naval cartaginesa, além de tê-la substituído como potência política; mas a
cultural das populações recém-conquistadas: se Cartago era herdeira das rotas comerciais
fenícias, não se pode afirmar que o tenha sido também da cultura fenícia, que, aliás, já há
tempos estava em plena decadência, sob o império dos selêucidas. Seu nível cultural,
podemos supor, não devia diferir muito do da própria Roma naquele período, logo, não
Tarento (272 a.C.) e, principalmente, Siracusa (212 a.C.) significarão, para Roma, o
contato com todo o universo cultural da Magna Grécia. E esse contato terá inúmeras
requintada que sua própria, requinte esse que logo contagia a elite romana e adentra seu
cotidiano com uma força impensável. Assiste-se, no plano cultural, ao pleno impacto da
forte influência da cultura helenística no modus uiuendi das elites romanas, que adotam
hábitos de consumo que modificam profundamente seu modo de vida. A austeridade que
até então marcara a elite romana é substituída pelo luxo, e sua ostentação estabelece novos
padrões de consumo e de gosto artístico cujo melhor exemplo é a ascensão de Terêncio aos
palcos: artista voltado para a elite, seu teatro opõe-se diametralmente ao de Plauto, artista
de vertente popular.
Há também todo um grande incremento da vida cultural em Roma uma vez que a
influência das artes gregas tampouco deixa de se fazer sentir, muito embora, convém notar,
essa influência helênica seja repleta de tensões entre os dois povos, pois, segundo Barrow:
46
...las nuevas costumbres se debían a la influencia del pensamiento y del modo de vida
de los griegos: y hay que tener en cuenta que por “griego” debemos entender no la
suprema expresión del génio helénico, tal como se manifiesta en cuatro o cinco de los
grandes autores de los siglos V y IV a.C., sino la cultura que se difundió por todo el
Mediterráneo oriental, cultura cuya fuente principal de inspiración era la gran época
de Atenas. Esta cultura se había apoderado de los aspectos menos importantes porque
era incapaz de alcanzar en su emulación la altura de los momentos cumbres. Había
adulterado el lenguaje, la literatura y el carácter griegos. Podían adquirirse las obras
griegas y muchos las leían; pero los griegos que los romanos empezaban a tratar en su
vida cotidiana ya no eran siempre como los atenienses del siglo V. Aunque los
romanos aprovechaban las capacidades artísticas y profesionales de estos nuevos
griegos, en general los despreciaban por su carácter, y los despreciaban sobre todo
porque no habían sabido ser dignos de su pasada grandeza. (BARROW, 1986:61)14
Colocando-se de lado essa tensão, percebe-se que essa influência grega será responsável
inicial, lançará o pensamento romano a uma nova esfera de abstração até então
inalcançada.
sem razão que Cícero afirmará, nas Disputationes Tusculanae (I,3) : “Doctrina Graecia
nos et omni litterarum genere superabat; in quo erat facile uincere non repugnantes.”15
Tal constatação certamente terá atingido o narcisismo romano: se até então considerara os
outros como bárbaros; agora, diante do passado grego, Roma era colocada nessa posição.
Contudo, os romanos não tardariam a agir com a cultura grega da mesma forma já
praticada com outros povos: era necessário delimitá-la para conhecê-la, conhecê-la para
14
“... os novos costumes deviam-se à influência do pensamento e do modo de vida dos gregos: e deve-se
levar em conta que por “grego” devemos entender não a suprema expressão do gênio helênico, tal como se
manifesta em quatro ou cinco dos grandes autores dos séculos V e IV a.C., mas a cultura que se difundiu por
todo o Mediterrâneo oriental, cultura cuja fonte principal de inspiração era a grande época de Atenas. Essa
cultura havia se apoderado dos aspectos menos importantes porque era incapaz de alcançar em sua emulação
a altura dos momentos máximos. Havia adulterado a linguagem, a literatura e o caráter gregos. Podiam
adquirir as obras gregas e muitos as liam; mas os gregos com quem os romanos começavam a tratar em sua
vida cotidiana já não eram siempre como os atenienses do século V. Ainda que os romanos aproveitassem as
capacidades artísticas e profissionaiss deestes novos gregos, em geral os desprezavam por seu caráter, e os
desprezaavam sobretudo porque não souberam ser dignos de sua grandeza passada. (BARROW, 1986, p.61)
15
“A Grécia nos superava em educação e em todo gênero de letras; pois era fácil vencer os que não
lutavam.” Repare que há, mesmo em Cícero, um certo desdém pela superioridade grega.
47
dela selecionar o que fosse considerado válido, e, afinal, ordená-la segundo seu próprio
apreendido, logo ficou patente que, ao fazê-lo, a própria base da cultura romana poderia ser
modificada.
Outrossim, o novo padrão de consumo das elites romanas faz aumentar a distância
entre o patriciado e uma plebe que, ademais, também se modificava: a população romana
de então já não eram os agricultores-soldados de séculos atrás, mas toda uma massa
formada por novos atores sociais. Por conseguinte, esses novos padrões de gosto e
consumo acirrarão ainda mais a tensão social na Vrbs, uma vez que a ostentação desses
novos hábitos pela elite será mais um ponto de insatisfação das camadas alijadas do poder.
Forma-se uma situação que será muito bem sintetizada por Jean Bayet:
Mas, mais que isso, esses atores novos não são apenas novos atores, mas atores diferentes,
que não partilham dos mesmos valores da elite – seja esta elite helenizada ou
16
“A vida econômica e social, a própria sensibilidade de Roma foram abaladas: o afluxo de riquezas e de
obras de arte encorajou o luxo e a busca pelos prazeres; em contra-partida, o orgulho nacional se agravou.
Sobretudo a unidade moral entre as altas classes cheias de arrogância e uma plebe cada dia mais cosmopolita.
A velha aristocracia se helenizava com gosto e encorajava o purismo; a massa, ao contrário, se guiou pelos
aspectos materiais e problemas do helenismo asiático; entre eles, o Senado defendia, não sem alguma
hipocrisia, o velho ideal romano.”
48
tradicionalista. Junto com a estrutura social decadente, aquele primeiro padrão identitário
romano começa a dar sinais de exaustão, como bem definirá René Pichon (1903)
La destruction de l‟ancien édifice social est commencée au IIIe siècle. Elle s‟accomplit
de diverses causes, intérieures et extérieures. Au dedans, c‟est la lutte des patriciens et
plébéiens, les triomphes successifs de ces derniers; or, les nouveaux venus sont animés
d‟un esprit opposé à celui des aristocrates. Ils sont indifférents aux anciennes
traditions morales, politiques ou religieuses – même hostiles, puisque c‟est au nome de
ces traditions qu‟on les a si longtemps tenus à la porte de la cité. En solidarisant avec
leur propre cause celle des mœurs antiques, les patriciens ont compromis ces mœurs
elles-mêmes. (PICHON; 1903: 31)17
Logo, não é apenas a organização social romana que se vê questionada, é todo o conjunto
de valores sobre os quais essa organização fora construída que se intenta reformar, isso,
La religion formaliste est de moins en moins suivie; elle est remplacée chez les gens
cultivés par le scepticisme, et dans la basse classe par les cultes orientaux, plus
passionés, plus favorables aux effusions du mysticisme individuel. (PICHON; 1903:
31)18
acontecimentos que conduzirão, mais tarde, ao Império. Vale recordar, contudo, que o
padrão identitário continua sendo aquele respaldado pela tradição e defendido pelo Senado;
17
“A destruição do antigo edifício social começou no século III a.C. Ela se consumou por diversas causas,
internas e externas. No início, é a luta entre patrícios e plebeus, os triunfos sucessivos dos últimos; ora, os
recém-chegados são imbuídos de um espírito oposto ao dos aristocratas. São indiferentes às velhas tradições
morais, políticas ou religiosas – são até hostis, pois é em nome destas tradições que foram por muito tempo
mantidos fora da cidade. Unindo sua própria causa à dos costumes ancestrais, os patrícios acabaram por
comprometer estes costumes.”
18
“A religião formal é cada vez menos seguida, substituída entre os pessoas cultas, pelo ceticismo, e nas
classes baixas, pelos cultos orientais, mais passionais e favoráveis às efusões do misticismo individual”.
49
Para tanto, importa reconhecer que todo o processo de expansão militar e política
de aumento do número das legiões necessárias para o controle das regiões conquistadas -
dessas tropas engendra uma rede de intendência que detona o aquecimento do comércio,
poder militar romano - um poder cuja administração demanda cada vez mais funcionários.
mão-de-obra em que o elemento humano necessário para ocupar-se de todas estas novas
funções será, em expressiva maioria, oriundo da ordem equestre. Isso conferirá aos
membros dessa ordem – chamados homines noui - uma mobilidade e um destaque social de
que até então não desfrutaram – na prática, a ordem equestre constituirá uma subordem
social: uma camada média, sustentáculo do poder, que, sem ser contudo aquinhoada com
qualquer fração do mesmo, logo será um elemento a mais a pressionar por mudanças no
que lhe garantam uma participação, no jogo político, proporcional ao papel que passaria a
exercer.
torna-se grande demais para ser bem administrado pela República, e estes novos atores
19
Neste trabalho, utlizamos o termo latino imperium para referirmo-nos às regiões sob poder romano, não à
instituição política, que ainda não se constituíra. Ao referirmo-nos ao regime, utilizaremos o termo português
império.
50
sociais, unidos aos veteranos militares e à plebe urbana, reivindicam mais terras e maior
representatividade.
convulsões sociais vividas pela república romana em seus últimos cento e cinquenta
anos20, cujas consequências e idiossincrasias acabarão por conduzir ao Império. Mas essas
uma vez que a classe dirigente - o patriciado hereditário, de base econômica latifundista e
quadro sociopolítico, embora não abrissem mão de conduzirem, eles mesmos, estas
reformas.
É nesse momento que se destacará a figura de Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.),
legítimo representante das correntes mais tradicionalistas do patriciado. Sua ação como
censor eleito em 184 a.C foi marcada por uma tentativa de reconduzir a sociedade romana
buscou depurar o Senado das inovações que considerava nocivas. Catão caracterizou-se
influência grega foi seu alvo preferencial: fez com que os filósofos e retores gregos fossem
Suas ações como censor tiveram êxito, em parte, devido a sua independência dos
20
As exceções seriam as diversas revoltas de escravos ocorridas no período.
51
grega teve um resultado dúbio: de fato, os valores do pensamento grego foram excluídos
da vida pública, contudo, nada podia ser feito quanto à vida privada dos cidadãos. O
próprio Catão foi mostra disso quando, na velhice, dispôs-se a estudar grego. Ao fim,
Catão acabou sendo o mais legítimo representante de uma identidade romana que já não
Não devemos entender com isso que aquela antiga configuração da identidade
romana tenha sido destruída. Os romanos de então, assim como seus ancestrais, tinham
ainda necessidade de delimitar para ordenar: delimitam ainda o espaço e o tempo segundo
sua própria lógica, e ainda ordenam o mundo e sua sociedade segundo seu próprio padrão
jurídico. No entanto, se sua identidade é ainda aquela do passado, não é mais, porém,
apenas aquela, e é da dificuldade em absorver, por si só, as novas variáveis identitárias que
surgem que a sociedade romana – e com ela sua própria identidade - passará por toda uma
série de convulsões.
justamente no recurso à Filosofia, pois sendo uma de suas missões buscar respostas sobre o
ser humano, poderia colaborar com essa empreitada. Assim, teremos um segundo
nascimento da Filosofia em Roma, e essa nova filosofia já não será mais o arcabouço
como o surgimento de uma filosofia romana autônoma da grega, mas pela busca, no
pensamento grego, do necessário para revestir a cultura tradicional romana de uma base
52
transformações sociais, já expostas, e culturais, que este contato com a Grécia provoca. O
maior êxito dessa busca, no período republicano, estará personificado em Cícero: sua
mais que isso, apresenta-se também como intento de solução para um dilema que a
dos novos costumes que esta introduzira, indispondo o espírito romano aos rigores de sua
própria tradição cultural e drenando de sua vida cultural o pleno sentido de valores como
sobre as quais sua própria essência até então se assentava. Os intelectuais romanos de
então percebem que a expansão de seu poder custara-lhes a perda do centro gravitacional
de sua cultura.
governos de Mário, apoiado pelo partido popular, e Sila, este apoiado plenamente pelo
guerras e conquistas sempre produziriam novos veteranos. a pressão por reforma agrária.
urbe, como acaba também por transferir as relações de lealdade da tropa, que migram da
aristocracia para o próprio generalato romano. Isso acaba por garantir uma sobrevida à
aristocracia como classe dominante, mas fica claro que o poder está mudando de mãos,
ainda que de modo bastante lento e sujeito a retrocessos, como se evidencia na concessão,
manter sua posição sem negociar com ou apoiar-se nestes novos grupos, ainda que isto
signifique ao mesmo tempo abrir mão de alguma fração de seu poder de classe dominante.
Julgado dessa forma, talvez a figura de Júlio César se apresentasse como capaz de fazer
essa necessária transição de forma minimamente satisfatória para todos, todavia, seu
instauração do império como instituição política, fato que se concretiza com a ascensão de
Augusto em 27 a.C.
construiu uma identidade romana, que, desafiada pelas transformações na sociedade de que
é produto, busca na Filosofia grega uma nova base de sustentação; nosso próximo capítulo
abordará como, na obra filosófica de Marco Túlio Cícero, ocorre essa simbiose entre
Roma.
54
mas, indo além, transformara-o no seu espaço de reflexão sobre o próprio homem.
maneira pragmática e sucinta, como foi conveniente aos romanos – um substrato de caráter
filosófico.
poder, introduziram novas personagens em seu tecido social, tornando cada vez mais
complexa a trama de suas relações, e como, em decorrência disso, o modelo identitário que
até aquele momento servira para a composição da romanidade não mais serviria para
abarcar o conjunto dessa (nova) sociedade. Esse fato conduziu, no bojo da absorção da
Uma vez que acreditamos que Cícero será o primeiro autor em que se percebem
obras, os momentos em que esses questionamentos, e as propostas que faz, tornam-se mais
evidentes. Convém ressaltar que não realizaremos aqui uma análise completa de qualquer
55
das obras de Cícero, mas tão somente dos pontos onde há uma proposição de caráter
ordem equestre, estuda em Roma e inicia, com brilhantismo, sua carreira como advogado,
conseguindo, entre 81 e 79, diversos êxitos em julgamentos tidos como “causas perdidas”.
No entanto, não estudou apenas Direito: durante seus anos de formação, estudara Filosofia
com o estoico Diódoto e o acadêmico Fílon de Larissa. Isto será um fator decisivo para sua
formação forense e também para sua atuação política: Cícero reunirá em si uma sólida
formação em ambas as áreas e estará, mais que ninguém em seu tempo, apto a, trafegando
Em razão disso e com o acréscimo de seu reconhecido talento como escritor, Cícero
será o primeiro nome romano capacitado a elevar o patamar da discussão sobre os rumos
hereditária - tornando-se, “par l‟ ampleur de sa pensée, la diversité de ses activités, par son
action politique, aussi, qui reste inséparable de son génie d‟orateur et d‟écrivain, il
rassemble en lui et symbolise ce temps qui est le sien et où l‟expression est au service de la
Ásia. Retornando a Roma, retoma suas atividades como advogado e inicia seu cursus
21
“pela amplitude de seu pensamento, pela diversidade de suas atividades, por sua ação política também,
que é inseparável de sua genialidade como orador e escritor, reúne em si e simboliza esse tempo que é o seu e
onde a expressividade está a serviço da urbe.”
56
edil curul em 69, pretor urbano em 66, e cônsul em 63 22 são as que mais se destacam.
Durante todo este tempo, embora não tenha deixado de estudar, as publicações de Cícero
estão restritas aos seus discursos forenses, ficando evidente que Cícero soube usar destes
discursos para estabelecer sua fama e posicionar-se entre os notáveis de seu tempo,
ousando defender causas ou ideias que o colocariam no centro da vida pública, e no papel
de peça-chave para o jogo político de Roma, pois “les discours judiciaires concernent, dans
leur grande majorité, des procès de caractère politique et ce sont eux, et non les quelques
procès privés que nous avons mentionnés, qui ont fait la gloire de Cicéron. La vie
Assim, nesta fase de sua vida, Cícero usa seus talentos para sua própria ascensão
social. 24 E se em seus discursos não deixa de haver uma preocupação com a Filosofia, esta
percebe-se que, mesmo entre estes discursos, está presente a exaltação de um modelo
Sua ascensão como figura pública tende a ser vista como contraditória, uma vez que
Cícero surge como um seguidor, embora moderado, da causa popular e, à medida que
22
É durante seu mandato como cônsul que desbarata a conspiração promovida por Lúcio Sérgio Catilina,
não só prendendo mas executando sumariamente os que o apoiavam.
23
“os discursos jurídicos dizem respeito, em sua grande maioria, a processos de caráter político e são estes, e
não os demais processos privados que mencionávamos, que fizeram a glória de Cícero. A vida pública, em
Roma, assim o exigia.”
24
Outro fator que certamente terá contribuído para sua ascensão social e política foi seu alinhamento político
com Pompeu, para quem defendeu os poderes ilimitados concedidos pela Lex Manilia em 66 a.C.
57
Optimates e Populares, vale ressaltar que não se trata, de fato, de partidos políticos, mas de
Mendes explicita ao declarar que “não existia uma oposição formal entre senadores e
equestres, que desfrutavam do mesmo gênero de vida, tinham os mesmos gostos e ideias
políticas. (MENDES; 1988: 54)”. A disputa era, segundo Grimal, colocada num nível
ainda mais baixo, já que “il n‟y avait guère de débats idéologiques ni de partis bien définis;
ce qui l‟emportait, c‟étaient les rivalités entre les personnes et les clans qui avaient pour
1994:168)”25.
Fato é que Cícero, mesmo direcionando-se à causa conservadora, não obteve, junto
aos optimates, o reconhecimento a que certamente fazia jus. Isso se dá porque, apesar do
fato de que essa adesão teria acelerado sua ascensão social, a leitura de seus textos mostra
que Cícero não foi um mero adulador do patriciado, mas o defensor de um sistema político,
o da república oligárquica, no qual essa classe era dominante. E é por essa razão que
contraiu, ao longo de sua carreira, uma série de inimigos justamente entre os membros do
patriciado; chegando a ser exilado – graças a uma lei proposta por Clódio - por ter
antigos inimigos. Em 52, é novamente afastado do centro das decisões, através de uma
25
“Não existiam debates ideolñgicos nem partidos bem definidos, o que a conduzia, eram as rivalidades entre
pessoas e clãs que tinham por objetivo a conquista de magistraturas e de governos provinciais.”
26
Outro fato que dificultou a aceitação de Cícero foi sua insistência, após a conjuração de Catilina, em
apresentar-se como pater patriae: o esprit de corps do patriciado não podia aceitar que um membro da ordem
equestre houvesse prendido e executado diversos membro de sua classe. Contudo Cícero sempre manteve
grande número de admiradores entre o povo, que celebrou seu triunfo quando de seu retorno do exílio.
58
condutor da nação. Analisado sob este prisma, sua trajetória política torna-se quase linear:
sua intenção maior, até esse momento, era a almejada concordia ordinum que poria fim às
exceção”. Sob esse assunto, Gian Biagio Conte é categórico ao afirmar que:
Despite the many fluctuations, Cicero‟s political career follows a consistent line. In
the context of a general rapprochement between Senate and equites the homo nouus
supported the nobilitas, and even afterwards he remained faithful to the idea of
concord and to the senatorial cause. His attempt at collaboration with the triumvirs
was a response to the need for an authoritative government, and here, too, Cicero was
concerned to preserve the prestige and the prerogatives of the Senate. Even the
temporary rapprochement with Caesar‟s autocratic tendencies and to maintain power
within the familiar framework of republican traditions. (CONTE; 1994:185)27
Durante a Guerra Civil (49-47), Cícero adere ao grupo de Pompeu. Uma adesão
sem entusiasmo, pois estava consciente de que, qualquer que fosse o vencedor, o Senado
estaria condenado à perda de grande parte de seu poder. Com a vitória de César, Cícero é
logo perdoado, já que César era suficientemente perspicaz para perceber que, assim o
pública até o assassinato do ditador em 44 28. A partir de então, tenta interferir novamente
27
“Apesar de algumas flutuações, a carreira política de Cícero segue uma linha consistente. No contexto de
uma aproximação geral entre o Senado e os equites o homo nouus apoiou a nobilitas, e mesmo contradito ele
manteve fé na ideia de concórdia e na causa senatorial. Sua tentativa de colaboração com os triúnviros foi
uma resposta à necessidade de um governo autoritário, e aqui, também, Cícero buscou preservar o prestígio e
as prerrogativas do Senado. Mesmo a aproximação temporária com as tendências autocráticas de César e
manter o poder nas estruturas familiares da tradição republicana.”
28
Não se duvida de que Cícero estivesse a par dos Idos de Março, mas sua participação ativa no assassinato
de César não pode ser comprovada. Contudo, inclinamo-nos a crer que, indiretamente, as obras de Cícero
tenham sido fundamentais nesse processo, conforme demonstraremos a seguir.
59
no rumo dos acontecimentos, mas, transformado em peão no jogo político entre Marco
produção escritural: nos anos que sucedem ao de seu consulado (63 a 43), Cícero produz
uma grande quantidade de obras, voltadas para a Retórica, para a Filosofia e para o
pensamento político romano. Apesar de voltada para áreas tão díspares, novamente
podemos recorrer a Conte para defender a ideia de uma linha-mestra em seus textos:
But as his years and his disappointments mounted up, he felt the increasing need to
reflect on the bases of politics and morality and went back to Hellenistic thought. The
aim of his philosophical works is the same one that inspires some of his most
important speeches: to provide a solid intellectual, ethical, political base for a
dominant class whose need for order would not be translated into obtuse isolation and
whose respect for the national tradition (mos maiorum) would not hinder the
absorption of Greek culture,(…). (CONTE; 1994:177)29
A participação de Cícero no jogo político em Roma acabou por ser menor do que o
brilho que deu às letras latinas de seu tempo: seu nome é até mesmo usado para delimitar
um dos períodos literários de Roma 30; isso se deve primeiramente a seu êxito como orador,
posição na qual alcançou, ainda em vida, pleno reconhecimento como o mais importante
dos prosadores e oradores romanos. Nesse aspecto, Cícero destacou-se não apenas por ser
um dileto praticante da retórica da persuasão mas também por ter estudado profundamente
os fundamentos e as técnicas dessa ciência, publicando uma série de livros sobre o assunto:
29
“Mas como nesses anos seus desapontamentos cresceram, ele sentiu a crescente necessidade de repensar
as bases da política e da moral, e voltou-se para o pensamento helenístico. O alvo de seus trabalhos
filosóficos é o mesmo que inspira alguns dos seus mais importantes discursos: prover uma sólida base
intelectual, ética e política para uma classe dominante cuja necessidade de ordem não poderia ser traduzida
num isolamento obtuso e cujo respeito pela tradição nacional (mos maiorum) não poderia atrapalhar a
absorção da cultura grega,...”
30
Diversos historiógrafos da literatura latina estabelecem os anos de Cícero (81-43 a.C.), como uma das fases
da literatura romana.
60
Dentre estas obras, no entanto, duas irão além do objetivo principal e nos tratarão
“il retrace l‟histoire de l‟éloquence romaine, depuis ses plus lointaines origines
saisissables jusqu‟à l‟époque contemporaine. Dans cet ouvrage, qu‟il intitula Brutus,
en hommage à son jeune ami, pour lequel il a beaucoup d‟estime, il sacrifie aux
tendances du jour, le désir croissant de connaître les antiquités de Rome; ce n‟est pas
un hasard si l‟un des interlocuteurs est Atticus. Mais la succession des notices
consacrées, par ordre chronologique, aux orateurs ne laisse pas de tracer une véritable
histoire de la vie politique depuis plus d‟un siècle. (GRIMAL, 1994:173) 32
Ou seja, o que se explicita neste texto é como Cícero interpreta o – tumultuado – período
Grimal, determinará o ano de 146 a.C., em que termina a Terceira Guerra Púnica, com a
destruição definitiva de Cartago, e em que Corinto é destruída - como o marco que delimita
histórico romano.
O Orator, escrito no mesmo ano de 46 a.C., chama-nos a atenção por ser uma obra
de caráter doutrinal, abordando como deve proceder o grande orador. É também dedicado a
31
Sabe-se com certeza que o De Oratore é de 54, sobre os demais a data é aproximada. Porém a ordem de
sua apresentação acima é a da publicação dos textos.
32
“...ele retrata a histñria da eloquência romana, desde suas origens mais longínquas até a época
contemporânea. Nesta obra, que chamou Brutus, em homenagem a seu jovem amigo por quem tem muita
estima, ele sacrifica às tendências do momento, ao desejo crescente de conhecer as antiguidades de Roma; e
não é por acaso que um dos interlocutores é Ático. Mas a sucessão, em ordem cronológica, de fatos
consagrados pelos oradores não deixa de traçar uma verdadeira história da vida política desde há mais de um
século.”
61
Mais que o mestre da eloquência, o Cícero que aqui nos interessa investigar é o
filósofo cujo pensamento comporta um programa político e, dentre deste, uma nova
concepção da identidade romana. Se, como já dito, Cícero fora, na juventude, aluno do
acadêmico Fílon e do estoico Diódoto, seu aprendizado nestas duas escolas serviu para que
manifestasse, sempre que possível, uma profunda repulsa pelo epicurismo. A explicação
There are two principal grounds for Cicero‟s aversion to Epicureanism, closely linked
to one another. First, the Epicurean philosophy leads to a lack of interest in politics,
whereas the boni ought to participate actively in public life. Second, Epicureanism
excludes the divinity‟s providential function (to the extent that it does not deny its
existence) and thus weakens the links with traditional religion, which remains the
fundamental basis of ethics for Cicero. (CONTE; 1994:193-4)33
cultura romana, uma vez que desafiava diversos dos valores consagrados no mos maiorum.
passagem a identidade cultural – romana a partir das duas outras escolas, aquelas mesmas
não se detém aí: a evolução de seu trabalho faz com que penda para o neoacademicismo,
certo, mas que, à falta deste, podíamos chegar a conclusões com vários graus de
probabilidade de certeza, conclusões estas que podem constituir uma diretriz para nossa
33
“Há dois principais argumentos para a aversão de Cícero pelo epicurismo, fortemente unidas uma à outra.
Primeiramente, a filosofia epicurista conduz à perda de interesse pela polítca, enquanto os boni devem
participar ativamente na vida pública. Em segundo lugar, o epicurismo exclui a função providencial da
divindade (mesmo que não negue sua existência) e desse modo rompe os elos com a religião tradicional, que
permanece como a base fundamental da ética, para Cícero.”
62
seus livros manifestam-se diversos pontos em que a influência estoica é marcante, quando
não predominante, como nas questões relativas à ética, afinal, conforme mais uma vez
Conte:
“Cicero recognized that Stoicism furnished the most solid moral basis for the citizens‟
commitment to the community. Yet by virtue of his taste and culture he felt himself
remote from an intransigent Stoic such as Cato [the Younger] or from an Academic of
rigid morality such as Brutus. (CONTE; 1994:194)34
De fato, Cícero era um eclético, e cremos não poder ter sido diferente, pois sendo a
procedimento já consagrado da cultura romana, Cícero estaria tão somente agindo segundo
Cicero is original in the choice of subject and in the shaping of the arguments, since
the problems poses by society are new. Cicero knits together the torn limbs of
Hellenistic thought in order to extract from it an ideal structure that will operate
effectively in regard to Roman society. (CONTE; 1994:192)35
À parte sua produção sobre a retórica, que embute, como vimos, sua visão da
história, Cícero possui dois outros grupos de obras: a), sobre política, constituído de De Re
Publica (54-51), De Legibus (52-?) e, b), sobre filosofia propriamente dita, em que se
34
“Cícero reconheceu que o estoicismo fornecia a mais sñlida base moral para o comprometimento dos
cidadãos para com a comunidade. Mas em razão de seu gosto pessoal e cultura ele se sentia distante de um
estoico intransigente como Catão [de Útica] ou de um acadêmico de moralidade rígida como Brutus.”
35
Cícero é original na escolha do tema e na construção dos argumentos, uma vez que os problemas colocados
à sociedade também são novos. Cícero costurou os tecidos rasgados do pensamento helenístico ´para extrair
daí uma estrutura ideal para operar efetivamente em relação à sociedade romana.”
63
em 4436.
conduz o pensamento, a ação política – e se reflete nos textos – de Cícero nos concedem
que estas obras sejam analisadas em conjunto, uma vez que, nos seus textos políticos,
Cícero traça as linhas gerais de conduta do cidadão partícipe de um modelo de estado que o
próprio Cícero traça; e, nos seus textos mais estreitamente filosóficos, Cícero estabelece o
Vimos que Cícero escreveu duas obras de caráter mais estreitamente político: De
na primeira, já que, segundo Gian Biagio Conte (1994), esta obra não teria sido publicada
durante a vida de Cícero: “Inspired again by the model of Plato, who had followed the
Republic with the Laws, Cicero complemented the dialogue on the state with de De
1994:190)”37. Afirmação esta corroborada, de modo ainda mais enfático, por Pierre
Grimal, que afirma ainda que este livro somente teria sido terminado após a morte de
César:
36
Há a variação de alguns meses na produção destas obras, para alguns autores (Harvey e Paratore), as
Tusculanae Disputationes teriam sido concluídas apenas em 44, e De Fato teria sido escrito em 43.
Inclinamo-nos aqui, no entanto, pelas datas consideradas pela maioria dos autores consultados.
37
“Inspirado novamente no modelo de Platão, que continuou a República com as Leis, Cícero complementou
o diálogo sobre o estado com o De Legibus, iniciado em 52 e provavelmente não publicando durante sua
vida.”
64
Il semble que la mort de César n‟ait pas été étrangère à ce qui apparaît comme un
regain d‟optimisme. Il retrouve les idées qui lui avaient dicté, peut-être vers 52 ou 51,
son traité Des lois (De Legibus), où se trouvait affirmée la possibilité, pour un homme
d‟État, d‟influer sur la vie de la cité, et de rompre les prétendus déterminismes qui
passaient pour la dominer. Il se peut que le De Legibus, à peine achevé au moment où
Cicéron partait en Cilicie, soit resté inédit et n‟ait été publié qu‟après la mort de son
auteur. (GRIMAL, 1994:177)38
Como as ideias que Cícero defende nesta obra só teriam visto a luz durante o governo de
Augusto e não tiveram repercussão durante o período em análise, cremos ser melhor
Publica.
3.2.1 - De Re Publica
um debate ocorrido entre diversos amigos na quinta de Cipião Emiliano. Debate em que
são discutidos diversos temas relativos à organização do Estado e em que Cipião acaba se
tornando não apenas um condutor do debate mas um alter ego do autor, uma vez que as
A obra compunha-se originariamente de seis livros, dos quais nos restaram os dois
Mas se o texto demarca, desde o título, sua proximidade com o de Platão, qual
seria, por outro lado o distanciamento com o “República”? Cremos que o primeiro marco
38
“Parece que a morte de César não foi estranha a quem a via como uma retomada do otimismo. Ele
reencontra as ideais que havia ditado, talvez em 52 ou 51, seu tratado sobre as leis (De Legibus), onde se
encontrava afirmada a possibilidade, para um homem de Estado, de influir na vida da urbe, e de romper os
pretensos determinismos que pareciam dominá-la. Talvez o De Legibus mal terminado no momento em que
Cícero partia para a Cilícia, tenha ficado inédito e sñ tenha sido publicado apñs a morte de seu autor.”
65
trecho abaixo, que, dito por Cipião, mal esconde a biografia do próprio Cícero:
Sed neque iis contentus sum quae de ista consultatione scripta nobis summi ex Graecia
sapientissimique homines reliquerunt, neque ea quae mihi uidentur anteferre illis
audeo. Quam ob rem peto a uobis ut me sic audiatis: neque ut omnino expertem
Graecarum rerum, neque ut eas nostris in hoc praesertim genere anteponentem, sed ut
unum e togatis patris diligentia non inliberaliter institutum, studioque discendi a
pueritia incensum, usu tamen et domesticis praeceptis multo magis eruditum quam
litteris.' (CÍCERO; De Re Pub., I,36)39
alcançar tons ainda mais fortes que o acima, como se percebe na abertura das Tusculanae,
em que, mesmo que reitere a superioridade dos valores e das práticas romanas, Cícero não
...cum omnium artium, quae ad rectam uiuendi uiam pertinerent, ratio et disciplina
studio sapientiae, quae philosophia dicitur, contineretur, hoc mihi Latinis litteris
inlustrandum putaui, non quia philosophia Graecis et litteris et doctoribus percipi non
posset, sed meum semper iudicium fuit omnia nostros aut inuenisse per se sapientius
quam Graecos aut accepta ab illis fecisse meliora, quae quidem digna statuissent, in
quibus elaborarent.” (CICÉRON; Tusc., I, 1)40
república dual é suspenso em nome de um mandato trino. Mandato este que, mal
39
“...se as doutrinas políticas dos mais esclarecidos escritores gregos não me satisfazem completamente,
tampouco me atrevo a ter preferência pelas minhas próprias ideias. Suplico-vos, , portanto,, que não me
escuteis como a um ignorante, completamente estranho às teorias gregas, nem tampouco como a um homem
inteiramente disposto a dar-lhes a preferência; sou romano antes de mais nada, educado com os cuidados de
meu pai no gosto dos estudos liberais, estimulado desde pequeno pelo desejo de aprender, mas formado
muito mais pela experiência e pelas lições domésticas do que pelos livros”. Todas as traduções de De Re
Publica são de Amador Cisneiros.
40
“...como a teoria e a prática de todas as artes que dizem respeito ao meio correto de viver estão contidas no
estudo da sabedoria, que é chamada filosofia, considerei ilustrar com letras latinas, não porque a filosofia não
pudesse ser apreendida com os mais sábios ou com os textos gregos, mas porque sempre foi minha opinião
que os nossos tenham melhorado e tornado mais sábias do que os gregos todas as coisas que - quer tenham
descoberto por si, quer tenham recebido deles – ao menos considerassem dignas e às quais se tenham
dedicado.” Tradução nossa.
66
Roma. Cícero, antevendo que, qualquer que fosse o resultado desse conflito, o sistema dual
republicano entraria em agonia, busca minorar os danos, delineando o que cogitava ser um
modelo “ideal” do novo regime. Uma opção, que, ao fim, não deixaria de ser uma
indivíduo. O contorno básico será, para Cícero, a virtude – termo empregado no sentido
que lhe dão os estoicos – em detrimento dos poderes militar e econômico – à época,
Nam diuitiae, nomen, opes uacuae consilio et uiuendi atque aliis imperandi modo
dedecoris plenae sunt et insolentis superbiae, nec ulla deformior species est ciuitatis
quam illa in qua opulentissimi optimi putantur. Virtute uero gubernante rem publicam,
quid potest esse praeclarius? Cum is qui imperat aliis seruit ipse nulli cupiditati, cum
quas ad res ciuis instituit et vocat, eas omnis conplexus est ipse, nec leges inponit
populo quibus ipse non pareat, sed suam uitam ut legem praefert suis ciuibus.
(CÍCERO; De Re Pub., I,51) 42
41
“...na monarquia, a generalidade dos cidadãos toma pouca parte no direito comum e nos negñcios públicos;
sob a denominação aristocrática, a multidão, apenas livre, está privada de qualquer meio de ação, e mesmo de
deliberação; por últimos, quando o povo assume todo o poder, mesmo supondo-o sábio e moderado, a própria
igualdade se torna injusta desigualdade, porque não há degradação que distinga o verdadeiro mérito.”
(...)“Por minha parte, creio que a melhor forma política é uma quarta formada da mescla e reunião das três
primeiras”.
42
“ ...o nome ilustre, o poderio, sem a sabedoria que ensina os homens a se governarem a dirigir os outros
nada mais são do que uma vergonhosa e insolente vaidade; não há no mundo espetáculo mais triste que uma
sociedade em que o valor dos homens é medido pelas riquezas que possuem. Ao contrário, que pode haver de
mais belo e preclaro que a virtude governando a República? Que é mais admirável do que esse governo,
67
Cícero acaba por esboçar a figura do dirigente de modo tal que acabaria constituindo-se
agente da virtude, virtuosas serão suas ações, quaisquer que sejam seus motivos,
Mas não nos enganemos, Cícero, defensor da causa senatorial, advoga de modo
id enim tenetote quod initio dixi, nisi aequabilis haec in ciuitate compensatio sit et
iuris et officii et muneris, ut et potestatis satis in magistratibus et auctoritatis in
principum consilio et libertatis in populo sit, non posse hunc incommutabilem rei
publicae conseruari statum. (CÍCERO; De Re Pub., II,57) 44
Uma defesa em que Cícero sai duplamente beneficiado, pois, com o fortalecimento do
sistema judicial, sua condição de advogado o coloca em franco destaque; ademais, com a
estabilidade do legislativo (i. e., do Senado), sua posição, devido ao livre trânsito de que aí
desfrutava, sairia, também, privilegiada. Entretanto, apesar de poder extrair daí algum
Quare cum lex sit ciuilis societatis vinculum, ius autem legis aequale, quo iure
societas ciuium teneri potest, cum par non sit conditio ciuium? Si enim
pecunias aequari non placet, si ingenia omnium paria esse non possunt, iura
certe paria debent esse eorum inter se qui sunt ciues in eadem re publica. Quid
est enim ciuitas nisi iuris societas ciuium? (CÍCERO; De Re Pub., I,49)45
quando o que manda não é escravo de paixão alguma e dá exemplo de tudo o que ensina e preconiza, não
impondo ao vulgo leis que é o primeiro a não respeitar, mas oferecendo, com lei viva, a própria existência
aos seus compatriotas?
43
Este, inclusive, será o mote de que Sêneca se valerá na formação do jovem Nero.
44
“considerai o que disse de início: um estado em que os direitos e as prerrogativas não estão num equilíbrio
perfeito, em que os magistrados não têm suficiente poder, bastante influência as deliberações dos nobres e o
povo bastante liberdade, não pode ter estabilidade nem permanência.”
45
“Sendo a lei o laço de ouro de toda sociedade civil, e proclamando seu princípio à comum igualdade,
sobre que base assenta uma associação de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos? Se não se
68
de poderes e a virtude como regente das ações do governante, sua defesa da igualdade de
direitos parece paradoxal quando constatado que Cícero defende também o modelo
concordia ordinum, e a igualdade de direitos seria uma condição sine qua non para
alcançá-la.
uma elite mais bem capacitada para dirigir a República. Uma elite que, talvez para não
...quare sint nobis isti qui de ratione uiuendi disserunt magni homines (ut sunt), sint
eruditi, sint ueritatis et uirtutis magistri, dam modo sit haec quaedam, siue a uiris in
rerum publicarum uarietate uersatis inuenta, siue etiam in istorum otio ac litteris
tractata, res (sicut est) minime quidem contemnenda, ratio ciuilis et disciplina
populorum, quae perficit in bonis ingeniis, id quod iam persaepe perfecit, ut
incredibilis quaedam et diuina uirtus exsisteret. Quodsi quis ad ea instrumenta animi,
quae natura quaeque ciuilibus institutis habuit, adiungendam sibi etiam doctrinam et
uberiorem rerum cognitionem putauit, ut ii ipsi qui in horum librorum disputatione
uersantur, nemo est quin eos anteferre omnibus debeat. Quid enim potest esse
praeclarius, quam cum rerum magnarum tractatio atque usus cum illarum artium
studiis et cognitione coniungitur? Aut quid P. Scipione, quid C. Laelio, quid L. Philo
perfectius cogitari potest? Qui, ne quid praetermitterent quod ad summam laudem
clarorum uirorum pertineret, ad domesticum maiorumque morem etiam hanc a Socrate
aduenticiam doctrinam adhibuerunt. Quare qui utrumque uoluit et potuit, id est ut cum
maiorum institutis tum doctrina se instrueret, ad laudem hunc omnia consecutum
puto.46 (CÍCERO; De Re Pub., III,2)
admite a igualdade da fortuna; se a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade dos direitos parece ao
menos obrigatória entre os membros de uma mesma república. Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade
para o direito?”
46
“Não se deve, por isso deixar de reconhecer que a arte social de governar os povos, ou na variedade dos
descobrimentos dos homens versados no governo da República, ou no que eles escreveram em seu ócio
fecundo, longe de ser uma ciência sem importância, desperta nos engenhos privilegiados uma virtude divina
e quase incrível; e quando a essas excelsas faculdades naturais, desenvolvidas pelas instituições civis, se
unem, como nos interlocutores deste diálogo, sólida instrução e extensos conhecimentos, ninguém haverá que
a eles se devem antepor. Com efeito, que pode existir de mais preclaro do que o conhecimento e o hábito dos
problemas mais importantes da política, quando se unem a eles de prazer e a experiência das artes do
entendimento? Que homens haverá melhores do que Cipião, Lélio e Filão, que para reunir às tradições dos
seus antepassados e aos seus costumes domésticos a doutrina estranha que haviam recebido de Sócrates? Em
69
Deve-se notar que Cícero lança mão do termo doctrina para especificar o conjunto
utilizado.
fossem substituídas, na condução dos negócios públicos, por uma elite intelectual, como,
aliás, Platão já havia defendido na obra em que Cícero se inspirou. De qualquer modo,
perceba-se que mesmo o mais ardoroso defensor da tradição republicana acreditava serem
república.
Triunvirato. Sua proposta é mais ambiciosa, pois visa, embora defendendo as prerrogativas
maiorum e os defendidos pelo estoicismo e pelo academicismo. Mas Cícero vai além:
obras: os já citados membros do “Círculo dos Cipiões”. Este grupo, reunido ao redor de
Cipião Emiliano, teria sido o principal responsável pela absorção romana da cultura grega,
suma, quem ambas as coisas quer e pode, quem se instrui ao mesmo tempo na doutrina presente e nas
instituições passadas, julgo que merece a maior consideração e os mais perfeitos elogios.”
70
no século anterior. Além disso, nele figurariam grandes nomes do cenário político, militar
e cultural, não sendo sem fundamento que Cícero os utilizasse como símbolos de uma
“aurea aetas” da república: o apogeu do modelo, em plena saúde antes da eclosão das
tornar-se, nas mãos de Cícero, uma galeria fixa de personagens aos quais recorreria quando
desejasse discutir valores caros à identidade romana, bastando-nos citar textos como
Laelius de Amicitia – em que Lélio narra a trajetória de sua amizade com Cipião, e os
valores que essa amizade embutia, representava e defendia – e Cato Maior de Senectute,
em que, transformando Catão em personagem, faz com que defenda e justifique alguns dos
valores mais caros ao mos maiorum. Desse modo, sempre que necessário apresentar a
Cícero lançava mão de sua trupe de personagens históricas, das quais voltaremos a tratar
próximas de suas obras a abordarmos enfocarão não o Estado romano, mas o indivíduo em
si. Obviamente, o indivíduo que interessa a Cícero é o cidadão, pois este é, no mundo
romano, o ser social por excelência. Acreditamos que esta mudança no foco deve-se a
fatores diversos, entre os quais o fato de que Cícero escreve De Re Publica entre 54 e 51,
durante a vigência do Triunvirato, enquanto as demais obras foram escritas entre 46 e 43,
A guerra civil foi, como sabemos, iniciada em 48; quando, após a morte de Crasso e
a dissolução dos laços familiares que uniam César a Pompeu, os dois mandatários restantes
também uma ruptura brutal com o passado de Roma: se um dos pilares fundamentais de
71
sua identidade era a inviolabilidade de seu território – a ponto de que às próprias legiões
romanas era proibido aquartelar-se na Vrbs – este princípio seria derrubado na travessia do
Rubicão.
Mas esse não seria o único pilar a ser derrubado por César naquele momento:
de novas bases para a contagem do tempo, ainda que corrigisse erros existentes desde
modificado, cumpria reordenarem-se as leis que, até então, regulavam aquela sociedade.
sendo o romano um homem completamente moldado pelas leis de sua sociedade, Cícero
certamente esperaria poder exercer alguma influência no processo: através de sua ação
como filósofo, influir na formação de um novo modelo de homem romano, uma nova
nossa atenção, uma vez que pode elucidar algumas questões sobre como os romanos
apre(e)ndiam a realidade.
sabor”47, sendo o étimo do verbo saber, em suas variadas formas, nas línguas românicas.
47
Este significado, em desuso, persiste dicionarizado na língua portuguesa, e, ainda que pouco usado,
apresenta-se mais vivamente na língua espanhola
72
termo estreia na língua latina pelas mãos de Ênio, já com essa acepção -, acreditamos ainda
que uma análise da etimologia deste termo poderá fornecer-nos pistas para a elucidação do
seguinte deslocamento de sentidos: degustar, saborear > provar > experimentar > conhecer.
que é , portanto, passível de ser experimentado, permitimo-nos pensar que, nessa transição
quem seria conhecimento aquilo que pudesse ser (com)provado, passível de ser submetido
à prática empírica, o que descartaria, de início, qualquer reflexão teórica mais aprofundada:
Ser uma experiência concreta, conforme a origem do termo nos explica, expõe uma
desconfiança romana para com o conhecimento grego: afinal, usar um termo que trata da
original, posto que o sentido que a interpreta mudará do campo gustativo para o cognitivo
e, mais precisamente, para a moral. A esse respeito dirá Mª Helena da Rocha Pereira que, “
no sentido moral, a sapientia corresponde sobretudo à moderação (...) Mas pode-se dizer,
de um modo geral, que são os sentidos de sophia que ela abrange” (ROCHA PEREIRA,
1989:411).
73
“sabedoria” e, mais estritamente, da prñpria philosophia. Mas isso, em Roma, não poderia
logo concederá a este conceito o valor de uma virtude política, já que seu detentor poderia
que, para os estoicos, estes termos se equivaliam. E esta aproximação semântica com uma
das qualidades que os romanos mais desejavam para seus líderes políticos torna esta
qualidade também palatável aos romanos, configurando como sábio o homem público que
age sob parâmetros morais definidos, tendo a formação cultural como ferramenta a seu
dispor. Desse modo, em Roma, ser sábio é uma qualidade que, como todas as demais,
forma o cidadão para a sociedade. E não será gratuito que os dois maiores nomes da
cultura romana – Cícero e Sêneca - tenham sido reconhecidos como os mais sábios de suas
respectivas épocas, tendo sido também homens de efetiva ação na vida pública, como,
aliás, já declaramos.
Nesse contexto, Cícero acaba por tornar-se o responsável por alçar a sapientia à
formação da romanidade, sapientia não pode ser considerada parte do mos maiorum,
entretanto, tampouco sua influência posterior deverá ser minimizada. Mesmo porque, com
nesses novos limites, a influência da filosofia grega devesse estar, já, interiorizada, não
será um despropósito que o mais aprofundado trabalho filosófico de Cícero - obra cuja
74
malorum48.
3.2.2 – De finibus
De finibus bonorum et malorum é uma obra dividida em cinco livros, nos quais
Cícero apresenta a defesa e a refutação das escolas filosóficas até aqui tratadas: no livro I,
Mânlio Torquato faz a apresentação e defesa do epicurismo, refutada por Cícero no livro
II. No livro III, temos Catão de Útica, neto do Censor, expondo a concepção estoica, sobre
a qual Cícero tecerá suas críticas no livro IV. Já o livro apresenta apenas a exposição, feita
por Pisão Calpurniano, dos méritos da Academia, com uma breve análise de Cícero
Mais uma das obras de Cícero dedicadas a Bruto, vale recordar que De finibus foi
filosóficas de Cícero, De finibus é aquele em que o autor realiza sua mais veemente defesa
Non eram nescius, Brute, cum, quae summis ingeniis exquisitaque doctrina
philosophi Graeco sermone tractauissent, ea Latinis litteris mandaremus, fore ut hic
noster labor in uarias reprehensiones incurreret. Nam quibusdam, et iis quidem non
admodum indoctis, totum hoc displicet philosophari. Quidam autem non tam id
reprehendunt, si remissius agatur, sed tantum studium tamque multam operam
ponendam in eo non arbitrantur. Erunt etiam, et ii quidem eruditi Graecis litteris,
contemnentes Latinas, qui se dicant in Graecis legendis operam malle consumere.
Postremo aliquos futuros suspicor, qui me ad alias litteras uocent, genus hoc scribendi,
etsi sit elegans, personae tamen et dignitatis esse negent.49 (CÍCERO; De finibus, I,1)
48
Atentando-se para o polissemia do termo finis, -is que pode não apenas indicar “o grau supremo de algo”
mas também a fronteira, a borda, o confim, a extremidade, o limite, enfim. Em se tratando de Cícero, o uso
deste termo não será um acidente.
49
“Eu não ignorava, amigo Bruto, quando comecei a expor em latim o que os filósofos gregos tinham
tratado com máximo engenho e magnífica doutrina, que este nosso trabalho havia de estar sujeito a várias
censuras. Alguns, e não de todo indoutos, reprovam todo e qualquer gênero de filosofia. Outros, sem rejeitá-
la completamente, se a fazemos moderadamente, consideram mau que eu tenha votado tanto estudo e tanto
trabalho a semelhante tarefa. Haverá alguns instruídos nas letras gregas e depreciadores da latina, que
julgarão preferível ocupar o tempo com ler os gregos. Por fim, suspeito que não haverá de faltar quem me
75
Percebe-se como, segundo Cícero, o próprio fato de dedicar-se à filosofia ainda era
visto negativamente por uma parte da intelectualidade romana, havendo ainda quem
preconizasse que os estudos filosóficos não deveriam servir-se do latim50. Verifica-se, pois
a existência de apenas uma pequena margem de manobra para o trabalho que Cícero
realiza: discorrer sobre filosofia – o que, para muitos romanos, era por si só uma falta – e
fazê-lo em latim – uma falta até para aqueles se dedicassem a tais estudos.
subserviente, Cícero opta por agir dentro da tradição romana: delimita e experimenta as
escolas restantes, selecionando assim o que considera de fato aproveitável -, e por fim
conceito, pois qualquer conceito desenvolvido numa língua-origem deverá ser reproduzido
língua latina de expressar a quantidade de novos conceitos a serem absorvidos. Não é vão, ,
portanto,, que Cícero despenda boa parte do livro I defendendo não só a capacidade de o
Non est omnino hic docendi locus; sed ita sentio et saepe disserui, Latinam linguam
non modo non inopem, ut uulgo putarent, sed locupletiorem etiam esse quam
Graecam. Quando enim nobis, uel dicam aut oratoribus bonis aut poetis, postea
estimule a escrever acerca de outra coisa, porque não seria adequada a filosofia à dignidade da minha
pessoa.” (Todas as traduções de De finibus bonorum et malorum são de Carlos Ancède Nougué.)
50
Não será gratuito pois o fato de que, novamente, Cícero utilize o termo doctrina, dessa vez acompanhada
do genitivo philosophi para denominar a área de conhecimento: acreditamos que Cícero estaria “dourando a
pílula” para seus leitores.
76
quidem quam fuit quem imitarentur, ullus orationis uel copiosae uel elegantis ornatus
defuit? (CÍCERO; De finibus, I,10)51
uma vez que, fazendo-o, defende não apenas a capacidade expressiva do latim, mas ataca
Rudem enim esse omnino in nostris poetis aut inertissimae segnitiae est aut fastidii
delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur, quibus nostra ignota sunt. An
“Vtinam ne in nemore...” nihilo minus legimus quam hoc idem Graecum, quae autem
de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec explicari non placebit Latine?
(CÍCERO; De finibus, I,5) 52
Cicero: -Si enim Zenoni licuit, cum rem aliquam inuenisset inusitatam, inauditum
quoque ei rei nomen inponere, cur non liceat Catoni? Nec tamen exprimi uerbum e
uerbo necesse erit, ut interpretes indiserti solent, cum sit uerbum, quod idem declaret,
magis usitatum. Equidem soleo etiam quod uno Graeci, si aliter non possum, idem
pluribus uerbis exponere. et tamen puto concedi nobis oportere ut Graeco uerbo
utamur, si quando minus occurret Latinum, ne hoc ephippiis et acratophoris potius
quam proegmenis et apoproegmenis concedatur; quamquam haec quidem praeposita
recte et reiecta dicere licebit.
Cato: - Bene facis, inquit, quod me adiuuas, et istis quidem, quae modo dixisti, utar
potius Latinis, in ceteris subuenies, si me haerentem uidebis.
Cicero: - Sedulo, inquam, faciam. Sed 'fortuna fortis'; quare conare, quaeso. Quid
enim possumus hoc agere diuinius? (CÍCERO; De finibus, III,15)53
51
“Não é esta a ocasião de prová-lo, mas creio, e muitas vezes o defendi, que a língua latina não só não é
pobre, como a considera o vulgo, senão que é mais rica que a grega. Sim, por que quando nos faltou, não
digo a nós, mas aos bons oradores e poetas, e pelo menos depois que tivemos a quem imitar, qualquer ornato
ou elegante elocução?”
52
“Ser de todo ignorante com respeito ao que escreveram os nossos poetas delata ou uma grande inércia e
desídia, ou um paladar demasiado enojadiço e delicado. A mim não me parecem bastante eruditos os que
ignoram as nossas coisas. Se lemos na nossa língua aquela cena que assim principia: “Quem dera que no
bosque...”, e nos agrada não menos que em grego, por que não nos hão de agradar em latim os preceitos que
Platão ministrou sobre o bem e a felicidade da vida?”
53
“Cícero: - Se foi lícito a Zenão, quando inventava algo inusitado, dar um nome inaudito, por que não se há
de consentir o mesmo a Catão? Ademais, não é necessário que traduzas palavra a palavra, como costumam
fazer os intérpretes ignorantes, quando o melhor para tornar compreensível o pensamento é usar uma
expressão conhecida. Eu costumo indicar com muitas palavras latinas o sentido de uma só grega quando não
posso tomar outro caminho, e não obstante, creio que se nos deve conceder o uso de uma palavra grega
quando não nos ocorre uma latina, e que, assim como se usam os termos “ephíppia” e “acratophoro”, se
devem usar também “proégmena” e “apoproégmena”, ainda que pudéssemos dizer em latim “praeposita” e
“reiecta”.
77
Assim, outra finalidade – mais uma significação de finis – da obra seria (com)provar as
possibilidades expressivas da língua latina, e não será sem propósito que, para cada
conceito grego debatido nos diálogos, seja oferecida e discutida uma hipótese de tradução
ou equivalência em latim. E mais, Cícero preconiza que o latim possui maior elasticidade
para a criação de novos vocábulos assim como mais facilidade de incorporação de termos
estrangeiros:
como guia para as ações dos homens, levando-os a possuir determinados valores:
Inuitat igitur uera ratio bene sanos ad iustitiam, aequitatem, fidem, neque homini
infanti aut inpotenti iniuste facta conducunt, qui nec facile efficere possit, quod
conetur, nec optinere, si effecerit, et opes uel fortunae uel ingenii liberalitati magis
conueniunt, qua qui utuntur, beniuolentiam sibi conciliant et, quod aptissimum est ad
Catão: - Bem fazes em ajudar-me, mas, quando haja termos na nossa língua, usá-los-ei sempre. No restante,
tu socorrer-me-ás, quando me vejas em dúvida.
Cícero: - Certamente o farei, e com muita presteza. Lança-te, , portanto,, à empresa, que a fortuna ajuda os
audazes. E que matéria mais divina poderíamos tratar?”
54
“É verdade que, dentre todos os filósofos, foram os estoicos os que mais fizeram inovações. Zenão, o
príncipe da escola, não foi tanto inventor de coisas como de vocábulos novos. E, se tal se concedeu aos
gregos, numa língua que quase todos consideram a mais rica, e se entre eles foi lícito para os homens doutos,
quando tratavam de coisas ainda inexploradas, valer-se de palavras insólitas, quanto mais não se nos deve
conceder a nós, que só agora, pela primeira vez, ousamos tocá-las? E pela mesma razão que já dei muitas
vezes – não sem certa queixa, não tanto dos gregos como de alguns dos nossos, que querem passar por gregos
antes que por latinos, porque, com efeito, não nos vence a Grécia em abundância de palavras, sendo nós, ao
contrário, superiores nisto – temos de trabalhar para conseguir esta maior quantidade não só nas nossas
próprias artes, mas também nas deles. E, conquanto muitas palavras gregas, que por antigo costume usamos
como latinas – por exemplo, a própria filosofia, a retórica, a dialética, a gramática, a geometria, a música -,
pudessem expressar-se em latim, tenhamo-las, porém, dado que as tolera o uso, por nossas.”
78
quiete uiuendum, caritatem, praesertim cum omnino nulla sit causa peccandi.
(CÍCERO; De finibus, I,52)55
Deve-se, no entanto, reparar que, dentre os valores que Cícero arrola – fides, aequitas,
iustitia – apenas fides faz parte do mos maiorum. Os demais, aequitas e iustitia, são valores
instauração do sistema republicano. Ao igualar esses valores à fides, Cícero comete uma
ação com dupla consequência: recorda ao leitor sua posição como sustentáculos do sistema
Ademais, dois outros valores que Cícero evoca são igualmente elevados à categoria
cidadania romana. Com isso, Cícero incorpora quatro novos valores na composição de
uirtus, o que resultará, como “efeito dominñ”, em uma nova concepção da romanidade em
que a filosofia, ainda que denominada apenas doctrina philosophi, já terá contribuído
efetivamente. Até porque, para Cícero, a filosofia grega não contradiz - ao contrário,
reitera - o costume ancestral. Esse costume que seria, já, uma práxis filosófica em estado
latente, uma vez que, mesmo que em seu grau mínimo, capacitava aqueles que os
Cato: - Egone quaeris, inquit, quid sentiam? Quos bonos uiros, fortes, iustos,
moderatos aut audiuimus in re publica fuisse aut ipsi uidimus, qui sine ulla doctrina
naturam ipsam secuti multa laudabilia fecerunt, eos melius a natura institutos fuisse,
quam institui potuissent a philosophia, si ullam aliam probauissent praeter eam, quae
nihil aliud in bonis haberet nisi honestum, nihil nisi turpe in malis; ceterae
philosophorum disciplinae, omnino alia magis alia, sed tamen omnes, quae rem ullam
55
“A verdadeira razão, , portanto,, convida as mentes sãs à justiça, à equidade e à boa-fé; e ao homem fraco
e impotente como é, não lhe aproveita a injustiça, porque não pode conseguir facilmente o que deseja nem
retê-lo se o consegue; e os recursos da riqueza e do talento convêm mais à liberalidade, mediante a qual se
consolida a benevolência, que é tão necessária para viver bem, especialmente se não há nenhuma causa para
cometer faltas.”
56
Ainda que Cícero grafe beniuolentia, preferimos essa forma por ser mais próxima à das línguas românicas.
79
uirtutis expertem aut in bonis aut in malis numerent, eas non modo nihil adiuuare
arbitror neque firmare, quo meliores simus, sed ipsam deprauare naturam. Nam nisi
hoc optineatur, id solum bonum esse, quod honestum sit, nullo modo probari possit
beatam uitam uirtute effici. Quod si ita sit, cur opera philosophiae sit danda nescio. Si
enim sapiens aliquis miser esse possit, ne ego istam gloriosam memorabilemque
uirtutem non magno aestimandam putem. (CÍCERO; De finibus, III,11; grifo nosso)57
por usar o termo philosophia, concluindo seu processo de aclimatação do paladar romano
Cícero acaba por conferir uma base filosófica ao senso comum romano, criando uma ampla
zona de intercessão entre essas duas fontes de saberes, mas sem que haja, de fato, sua
fusão. Contudo, ao estabelecer que essa zona de intercessão compreende a distinção entre o
desenvolvido, Cícero estabelece que a filosofia é –também - a base da justiça, uma vez que
Em efeito reverso, por ter sido iustitia um dos novos valores incorporados por
Cícero à uirtus e, estando essa baseada, na filosofia, é novamente a filosofia quem ganha
evidenciou essa relação. Porém, Cícero mostra também que, para além de uma finalidade
prática – tão ao gosto romano - do conhecimento filosófico, a filosofia pode ainda servir a
57
“Queres saber o que eu penso? Eu penso que muitos varões, virtuosos, fortes e moderados, que figuraram
nos anais da nossa República ou conhecemos nós mesmos, e que empreenderam, sem nenhuma doutrina
filosófica, seguindo tão-somente os impulsos naturais, muitas ações louváveis, foram mais bem educados
pela natureza do que teriam podido ser por nenhuma filosofia, afora aquela que não considera como bem
senão o honesto e como mal senão o torpe. As demais escolas filosóficas, conquanto sem dúvida umas mais
que outras, mas em suma todas as que contam entre os bens ou os males coisas sem nenhuma relação com a
virtude, não só não têm prestígio algum nem servem para tornar-nos melhores, mas corrompem a própria
natureza. Se não se concebe que só é bom o que é honesto, de maneira alguma se pode aprovar que a vida
feliz consista na virtude. E, se assim não fosse, por que nos haveríamos de dedicar à filosofia? Se o sábio
pudesse ser infeliz, guardar-me-ia eu, muito, de ter em grande apreço a gloriosa e memorável virtude.”
80
Nec enim gubernationi aut medicinae similem sapientiam esse arbitramur, sed actioni
illi potius quam modo dixi et saltationi, ut in ipsa insit, non foris petatur extremum, id
est artis effectio. (...) Sola enim sapientia in se tota conuersa est, quod idem in ceteris
artibus non fit. Inscite autem medicinae et gubernationis ultimum cum ultimo
sapientiae comparatur. Sapientia enim et animi magnitudinem complectitur et
iustitiam, et ut omnia quae omini accidant infre se esse iudicet, quod idem ceteris
artibus non contingit. Tenere autem uirtutes eas ipsas, quarum modo feci mentionem,
nemo poterit, nisi statuerit nihil esse quod intersit aut differat aliud ab alio, praeter
honesta et turpia. (CÍCERO; De finibus, III, 25)58
como uma consequência da filosofia, uma vez que, se é através da filosofia que se
estabelece a crença no direito natural, é desse direito que seria desenvolvido, através da
Ex omnibus philosophis natura tributum esse docuerunt, ut ii, qui procreati essent,
a procreatoribus amarentur, et, id quod temporum ordine antiquius est, ut coniugis
uirorum et uxorum natura coniuncta esse dicerent, qua ex stirpe orirentur amicitia
cognationum. Atque ab his initiis profecti omnium uirtutum et originem et
progressionem persecuti sunt. Ex quo magnitudo quoque animi existebat, qua facile
posset repugnari obsistique fortunae, quod maximae res essent in potestate sapientis.
Varietates autem iniurasque fortunae facile ueteres philosophorum praeceptis instituta
uita superabat.
Principiis autem a natura datis amplitudines quaedam bonorum excitabantur partim
profectae a contemplatione rerum occultiorum, quod erat insitus menti cognitionis
amor, e quo etiam rationis explicandae disserendique cupiditas consequebatur;
quodque hoc solum animal natum est pudoris ac uerecundiae particeps appetensque
coniunctiorum hominum ad societatem animaduertentesque in omnibus rebus, quas
ageret aut diceret, ut ne quid ab eo fieret nisi honeste ac decore, his initiis, ut ante dixi,
et seminibus a natura datis temperantia, modestia, iustitia et omnis honestas perfecte
absoluta est. (CÍCERO; De finibus, IV, 17-18) 59
58
“Não consideramos a sabedoria semelhante à arte da navegação ou à da medicina, mas antes à arte do
histrião e à arte da dança, porque estas têm em si mesmas o seu próprio fim último, sem buscá-lo fora
dela.(...) Assim, pois, só a sabedoria é plena e perfeita em si mesma. E por isso é inexata a comparação entre
o fim da sabedoria e o fim da medicina e o da pilotagem. A sabedoria abarca a magnanimidade e a justiça, e o
ter o homem por inferiores a ele todas as coisas que lhe sucedem – e isso não se dá nas demais artes.
Ninguém pode conceber as virtudes de que antes falávamos sem começar por crer que só duas coisas diferem
entre si: o honesto e o torpe.” Repare que aqui Cícero retorna ao termo sapientia, apesar de considerá-los
sinônimos, a inserção de philosophia deve ser paulatina.
59
“Foram eles (os estoicos) os primeiros, dentre todos os filósofos, a dizer que é de origem e direito natural
que os pais amem os filhos, e que também o é o amor conjugal, o qual é ainda anterior no tempo, e de cuja
raiz nascem as relações de parentesco e amizade. A partir destes princípios, investigaram a origem e o
desenvolvimento de todas as virtudes, dentre as quais está entre as primeiras a magnanimidade, com a qual se
pode facilmente resistir à fortuna, estando, como estão, as coisas sob o poder do sábio. A variedade e as
injúrias da fortuna, superava-as facilmente a disciplina dos antigos filósofos e a vida educada segundo os
seus preceitos. Dados estes princípios pela natureza, começava depois a ampliá-los pela contemplação das
verdades mais recônditas, uma vez que há um amor de ciência inato na alma, ao qual se segue a avidez de
investigar as razões e de discuti-las, sendo ademais o homem o único animal que sente pudor e vergonha, o
81
aquela em que há uma complementaridade entre o direito natural, do qual derivaria o senso
comum, e o direito civil, regulador das relações sociais. O empenho de Cícero se dá então
no sentido de, deixando clara esta complementaridade, demonstrar não haver oposição
entre aquelas distintas formas de direito e os novos valores trazidos pela filosofia.
Valores entre os quais Cícero aponta agora para temperantia e modestia, que vê
honor, ao invés de serem, como Rocha Pereira (1989) alertou, componentes independentes
da uirtus. Sendo inerentes a honor, essa deixaria de ser um valor absoluto em si, o que tem,
indiretamente, uma consequência política: sendo honor condição sine qua non para o
exercício do poder, seu detentor deverá ser igualmente modesto e de bom temperamento, a
ambos podem ser úteis ao Estado romano - que nesse momento já não era, de fato, a
república senatorial que Cícero defendia – mas também ao homem romano, que, através da
nova moral preconizada por Cícero – uma moral que não rompia a tradição, mas que, ao
mesmo tempo que lhe incorporava novos valores, dava-lhe novos pontos de apoio –
poderia capacitar-se a ser não apenas cidadão mas também indivíduo, na nova Roma que o
Ao delimitar a fronteira entre o bem e o mal, Cícero acaba por diluir também as
antigas fronteiras entre a tradição romana e o pensamento grego, e entre o direito natural
único que apetece a união social com seus semelhantes, e único que em todas as coisas que faz ou diz busca
guardar honestidade e decoro. Desta semente deitada pela natureza nascem e se aperfeiçoam depois a
temperança, a modéstia, a justiça e toda e qualquer honestidade.”
82
(universal) e o direito civil (romano). Diluídas essas fronteiras, o romano não deixa de ser
um cidadão devotado ao Estado, mas pode igualmente ser um indivíduo que, desfrutando
dos direitos prescritos por sua cidadania e imbuído dos valores nacionais, servirá
espontaneamente ao Estado. Abre-se também, com isso, o caminho para uma nova
até então coeso, mas fechado – em que se constituíra o mos maiorum, novos valores serão
Mas não podemos ver a ação de Cícero como deletéria à tradição, ao contrário, ao
vesti-la com a nova roupagem da filosofia, Cícero tenta preservá-la, pois, mesmo que a
situação política se modificasse a ponto de que a tradição deixasse de ser fundamental para
procederemos em seguida.
como a anterior, dedicada a Bruto. Contudo, as Tusculanae inovam por sua forma: ao invés
O texto se abre com uma pequena introdução em que Cícero declara que a filosofia
é um tema digno de abordagem pela literatura latina, embora esta não houvesse, até então,
83
tratado o tema de uma forma digna de sua importância. E que, mesmo que essa situação
Philosophia iacuit usque ad hanc aetatem nec ullum habuit lumen litterarum
Latinarum; quae inlustranda et excitanda nobis est, ut, si occupati profuimus aliquid
ciuibus nostris, prosimus etiam, si possumus, otiosi. 6 In quo eo magis nobis est
elaborandum, quod multi iam esse libri Latini dicuntur scripti inconsiderate ab optimis
illis quidem uiris, sed non satis eruditis. (CÍCERO; Tusc., I, 5-6) 60
Iniciado o diálogo entre mestre e discípulo, o livro I discorre sobre a morte, vista
como um obstáculo à felicidade. Contudo, acaba se defendendo a ideia de que a morte, seja
uma aniquilação do ser ou uma oportunidade para a mudança da alma, não será jamais um
mal. O livro II trata do sofrimento físico, que deve ser suportado em nome da virtude, e da
O livro III trata do sofrimento da mente e de suas causas possíveis: tristeza, inveja,
O livro IV, de certa forma, continua o terceiro, tratando de outros distúrbios da mente e de
como uma correta conduta filosófica será capaz de derrotá-los. O livro V discute se
apenas a virtude – vista sob o prisma estoico - seria suficiente para levar o sábio à
felicidade, e Cícero acaba por concluir que o homem virtuoso será, pela virtude em si
mesma, sempre feliz. Percebe-se que, nesta obra, o neoacademicismo está ausente: pela
abordagem dos temas tratados, vê-se que Cícero volta-se diretamente ao estoicismo como
filosófica.
60
“A filosofia, que devemos lustrar e restaurar, esteve inerte e até o nosso tempo não teve brilho algum nas
letras latinas; , portanto,, se ocupados servimos em algo aos nossos concidadãos, sirvamos também, se
pudermos, quando ociosos. Desconsiderai mesmo que já dizem existir muitos livros latinos escritos por
alguns bons homens, mas não suficientemente competentes naquilo que mais deve ser trabalhado por nós.”
84
divulgar os ideais estoicos e demonstrar sua importância, mostremos o que capacitaria esta
escola a funcionar como novo norte para a identidade cultural romana. Para tanto, convém
determo-nos ainda um pouco nas características gerais desta escola. Objetivando fazê-lo,
preferimos a menção a Pierre Aubenque et alii (1981), cujo texto alia o necessário
O estoicismo tira seu nome do Pórtico (Stoa), lugar de Atenas onde se reuniam
seus adeptos. Diferentemente do epicurismo, não está ligado à autoridade incontestada
de um único fundador. A doutrina estoica se constituiu antes progressivamente pelas
contribuições sucessivas dos três primeiros chefes da escola: Zenão de Cício (332-
262), que, depois de ter sido o discípulo do cínico Crates, funda a nova escola por
volta de 300 a.C.; Cleanto de Assos (por volta de 312-232) e Crisipo (277 – por volta
de 204), que mereceu o título de segundo fundador do estoicismo, restabelecendo e
confirmando a unidade da escola contra as dissidências de certos discípulos e os
ataques, de inspiração “probabilista”, da Nova Academia. A partir daí, o ensinamento
estoico será transmitido, com uma continuidade espantosa, durante vários séculos. Se
o médio estoicismo, representado essencialmente por Panécio (180-110) e Possidônio
(por volta de 135-51), que tiveram o grande mérito histórico de introduzir o estoicismo
em Roma, trai contaminações platônicas ou aristotélicas, o novo estoicismo, ou
estoicismo imperial, marcará uma volta à ortodoxia do antigo estoicismo.
Esse novo estoicismo, que se desenvolveu em Roma sob o Império, está ligado a
três grandes nomes: Sêneca (nascido por volta do início da era cristã, morto em 65),
Epicteto (nascido em 50, morto entre 125 e 130) e Marco Aurélio (121-180),
imperador em 161). Esses três pensadores, cujas obras nos foram conservadas no
essencial (enquanto os escritos do antigo e do médio estoicismo só nos são acessíveis
através de resumos ou citações de autores posteriores), serão os verdadeiros
propagadores do estoicismo no Ocidente. É através deles que Guillaume du Vair,
Montaigne, Corneille, Vigny e tantos outros conhecerão as lições da sabedoria estoica.
(AUBENQUE et al., 1981: 169)
mesmo se iniciado por Cícero, não se restringe a este autor, sendo antes um processo que,
avaliado dentros dos limites estreitos da vida dos três grandes filósofos que Aubenque
menciona, durou pelo menos 140 anos, dos primeiros escritos de Sêneca, em 40 d.C, à
chamada Escola do Pórtico: seus ensinamentos, sendo um produto coletivo, podiam, por
isso mesmo, ser melhorados ou adaptados a novas realidades – como seria o caso dos
romanos – e, apesar disso, mantinham uma continuidade que lhe conferia o aspecto de
solidez desejado para o que quer que se alçasse às condições de doutrina de estado e de
capacitaria em definitivo para tanto? Faz-se mister o retorno a Aubenque, para dar a esta
...é para a moral que tendem todos os esforços dos estoicos. Esta se reduz a alguns
princípios simples: não há outro bem que a retidão da vontade, outro mal que o vício:
tudo o que não é nem vício nem virtude é indiferente. Desses axiomas resultam uma
multidão de consequências paradoxais: a doença, a morte, a pobreza, a escravidão não
são males, mas “indiferentes”; o sábio é, por definição, feliz, mesmo nos sofrimentos;
o mau é sempre infeliz, já que inflige a si próprio, por seu vício, o único dano que sua
alma possa sofrer. (AUBENQUE, et al., 1981: 177)
maiorum romano, conjunto de valores que, embora amplamente arraigado nos séculos
relaxamento dos costumes. Entretanto, enquanto o mos maiorum funcionava – por ser
condição inerente à educação familiar romana – como um contrato social coletivo, a moral
estoica, sendo norma de vida apenas daqueles que se dedicavam à escola, devia ser
divulgada, justificando-se, com isso, uma obra como a de Cícero, que serve, também,
prima inter pares entre os conceitos que, agregados ao mos maiorum, (con)formam o novo
outorgará o título de “sábio”, condição sine qua non para o alcance da felicidade61.
ocupando uma posição única: seja pela forma de composição, em que Cícero descarta suas
cuja única função é propor os temas para discussão -, seja pelo conteúdo, que é
Contudo, quando consideramos que esta obra foi escrita imediatamente após o De
finibus bonorum et malorum, percebemos que os dois textos, de fato, apresentam uma
os contras das principais escolas filosóficas gregas, nas Tusculanae Disputationes o que
vemos é a aplicação prática dos principais valores dessas escolas – com grande destaque
Cícero apresenta, através dos diversos exemplos que há na obra – todos, evidentemente,
sábio.
Percebe-se ainda que há, nas obras selecionadas, uma redução de foco: se De Re
61
Ideia que será retomada por Sêneca em De uita beata.
87
propunha a disposição legal e jurídica para essa mesma república, e se o De finibus... trata
dos – antigos e novos - valores para o cidadão dessa mesma república, as Tusculanae
vivenciar a fusão entre velhos e novos valores sociais que Cícero mesmo propunha.
palavra é um “magister philosophiae”, cujo nome não nos é apresentado. Entretanto, fica
patente que esse é um estratagema de Cícero para poder apresentar mais diretamente suas
ideias, e, considerando que, em sua obra já mencionada, Harvey aponta para o fato de que,
nos manuscritos das Tusculanae Disputationes, as falas são indicadas pelas letras latinas M
signo M com duplo sentido, podendo ser a inicial do praenomen de Cícero, igualando-se
cena, realizando em primeira pessoa do discurso sua exposição – o que equivale a afirmar
Entretanto, cremos haver, ainda, uma terceira e última redução de foco, esta com
maiores consequências no plano político: o fato de Cícero ter dedicado suas obras a Bruto
trai sua intenção de, ao longo de seus textos, fazer com que Bruto assumisse – como de
em 48. Esta última hipótese transparece não apenas nas dedicatórias, mas na própria
condução das ideias realizada por Cícero na obra, principalmente nos livros I e II das
62
Essa proposta de Harvey é adotada por diversos estudiosos: várias edições das Tusculanae Disputationes
trazem as rubricas Auditor e Cicero, substituindo a A e M.
88
contida. Uma mensagem na qual a uirtus - e sua busca – se tornam as principais razão e
Ora, devendo o homem virtuoso não apenas praticar a virtude, mas, em seu nome,
agir em defesa de sua sociedade, fica clara para nós a intenção, exitosa aliás, de Cícero em
Assim, podemos crer que os objetivos de Cícero, nessa obra, são: dar continuidade,
no plano individual, às exposições de De finibus...; mostrar que apenas o sábio, por possuir
de César.
Para além, contudo, desse último motivo, menos nobre e mais imediato, Cícero
busca da uirtus. E isso, cremos também, acaba por fortalecer a integração entre os valores
filosófica.63
Tanto é que, nas próximas obras de Cícero, serão abordados com mais
especificidade como mais alguns valores da tradição tiveram seu sentido modificado pelo
aporte filosófico. Vale lembrar que estas obras foram escritas entre 45 e 44 a.C. ou seja,
quadro da definição dos novos valores identitários, essas obras têm informações
63
Termo com que poderemos nos referir ao projeto identitário romano proposto por Cícero, já que esse
projeto se constrói sob o viés da filosofia.
89
Contudo, estando perdidos o primeiro e o último textos da lista acima, nossa análise estará
Em Cato Maior, Cícero dá a palavra a Catão, o Antigo, avô daquele mesmo Catão
de Útica com quem Cícero dialoga em De finibus... e também seu correligionário político
junto aos Optimates. Nesta obra, a personagem-título fala a respeito da velhice, vista não
cidadão – mas sim como um estímulo adicional ao seu bom desempenho: uma vez que,
exigências da cidade.
próprio Cícero. Mais uma vez recorrendo às figuras históricas da Roma dos Cipiões, auge
responsabilidades do cargo: se é aos velhos que cabe a tarefa de gerir a sociedade, vale
recordar que a raiz de senex (*sen-) é a mesma de senatus, -us64. Desse modo, convocava o
Senado a reassumir seu papel na sociedade romana, num tempo em que, com a guerra civil
64
Conforme se vê no já mencionado Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, de Ernout e Meillet,
no verbete senex: “Le nominatif de senex comporte un suffixe –c- qui se retrouve dans un certain nombre de
dérivés, tandis que d‟autres sont formés sur le thème *sen- des cas obliques. On a donc: seneca, -ae; senatus,
-us.”
90
normas de conduta do novo Senado, criando parâmetros para o que seria, mais tarde,
Logo em seguida, Cícero escreve Laelius de Amicitia, uma obra da qual devemos
mencionar as condições de sua produção: segundo Paratore (1983), este texto foi escrito
em fins de 44 a.C, quando as tropas de Bruto e Cássio já haviam sido derrotadas pela
aliança entre Otaviano e Marco Antônio, e Cícero - que nesse ínterim já havia pronunciado
as Filípicas - sabia que, constituído o Segundo Triunvirato, não tardaria a que seu nome
fosse incluído nas listas de cassação, exílio ou execução. Sabendo-se, portanto, com os dias
Officiis.
inusitada preocupação literária, pois nesta obra é Cícero quem se coloca como narrador
explícito: no preâmbulo de sua obra – dedicada ao amigo Ático –, Cícero deixa claro que a
Sed, ut tum ad senem senex de senectute, sic hoc libro ad amicum amicissimus scripsi de
amicitia. Tum est Cato locutor, quo erat nemo fere senior temporibus illis, nemo prudentior;
nunc Laelius et sapiens (sic enim est habitus) et amicitiae gloria excellens de amicitia loquetur.
Tu uelim a me animum parumper auertas, Laelium loqui ipsum putes. C. Fannius et Q. Mucius
ad socerum ueniunt post mortem Africani; ab his sermo oritur, respondet Laelius, cuius tota
disputatio est de amicitia, quam legens te ipse cognosces. (CÍCERO; De Amic., I, 5) 65
E, talvez por isso, possamos pensar que, ao usar a primeira do singular na oração abaixo,
Cícero esteja falando de si mesmo, e não de sua personagem-título: “Quam ob rem caue
Catoni anteponas istum quidem ipsum, quem Apollo, ut ais, sapientissimum iudicauit;
65
“, portanto,, assim como então, um velho escrevia sobre a velhice a um outro velho, nesta nova obra, é um
amigo que escreve sobre a amizade a seu amigo mais querido. Naquele livro, quem fala é Catão, talvez o
homem mais velho do seu tempo e também, o mais sábio. Neste, quem fala sobre a amizade é Lélio, que não
somente era sábio (assim era considerado), mas, também, que ficou célebre como amigo. Peço-lhe, pois, que
me esqueça por um instante, e imagine estar a ouvir o próprio Lélio. Caio Fânio e Quinto Múcio (Cévola)
vêm à casa do sogro, após a morte do Africano; eles começam a conversa e Lélio responde, fazendo, sozinho,
toda a exposição sobre a amizade. Lendo-a, você vai se reconhecer nela.” (CÍCERO; 2006:17) Todas as
traduções de De Amicitia são de João Teodoro d‟Olim Marote.
91
huius enim facta, illius dicta laudantur. De me autem, ut iam cum utroque uestrum loquar,
(nova) identidade romana? Esta é, cremos, uma questão que admite duas respostas: a
primeira é de caráter (meta)físico – tema que Cícero tratou em obras que não abordamos
aqui -, mas que aponta para o fato de que, para além da religião tradicional romana,
Neque enim adsentior iis, qui haec nuper disserere coeperunt, cum corporibus simul
animos interire atque omnia morte deleri. Plus apud me antiquorum auctoritas ualet,
uel nostrorum maiorum, qui mortuis tam religiosa iura tribuerunt, quod non fecissent
profecto, si nihil ad eos pertinere arbitrarentur; uel eorum, qui in hac terra fuerunt
Magnamque Graeciam, quae nunc quidem deleta est, tum florebat, institutis et
praeceptis suis erudierunt, uel eius, qui Apollinis oraculo sapientissimus est iudicatus,
qui non tum hoc, tum illud, ut in plerisque, sed idem semper, animos hominum esse
diuinos iisque, cum ex corpore excessissent, reditum in caelum patere, optimoque et
iustissimo cuique expeditissimum. (CÍCERO; De Amic., IV, 13)67
Outra possibilidade de resposta encontra-se na listagem de valores sine quibus non poderia
Qui ita se gerunt, ita uiuunt, ut eorum probetur fides, integritas, aequalitas, liberalitas
nec sit in iis ulla cupiditas, lubido, audacia, sitque magna constantia, ut ii fuerunt,
modo quos nominaui, hos uiros bonos, ut habiti sunt, sic etiam appellandos putemus,
66
“Não vá, , portanto,, colocar alguém acima de Catão, nem mesmo aquele que, como você diz, foi
proclamado por Apolo como o “mais sábio” dos homens, pois deste último, louvam-se as palavras, e do
outro, as ações. Quanto a mim, quero, agora, me dirigir a vocês dois: eis o que penso.” (CÍCERO; 2006:21)
67
“Com efeito, eu não concordo com aqueles que recentemente começaram a sustentar que a alma morre
juntamente com o corpo, e que a morte destrói tudo. Prefiro acreditar na autoridade dos antigos, ou na de
nossos ancestrais, que conferiam aos mortos direitos tão sagrados, coisa que não teriam feitos se acreditassem
que nada mais interessava aos mortos; prefiro, ainda, acreditar na opinião dos filósofos que viveram nesta
terra e deram à Magna Grécia, hoje decadente, é certo, mas então florescente, as instituições e os
ensinamentos que a formaram; acreditar, enfim, na opinião daquele que o oráculo de Delfos proclamou como
“o mais sábio”, e que, a esse respeito, não dizia ora isto, ora aquilo, como outros frequentemente o faziam,
mas sempre sustentou que as almas humanas são divinas, e que, no dia em que deixam o corpo, abre-se,
diante delas, um caminho que as leva de volta ao céu, e para as melhores e mais justas, esse retorno é mais
rápido.” (CÍCERO; 2006:25-27)
92
quia sequantur, quantum homines possunt, naturam optimam bene uiuendi ducem.
68
(CÍCERO; De Amic., V, 19)
romanidade, valores que, assim como os do mos maiorum, não eram, necessariamente,
oriundos da Filosofia, mas que ganhariam, com seu reforço, mais força perante as elites e
as massas. Entre esses, claro, inscreve-se a amizade, que, para Cícero, está na base de todo
laço social, sendo inexistente sem a justiça, que atuaria como seu “elemento regulador”.
edifício social – demolido com as diversas guerras mencionadas – poderia ser reconstruído,
pois tanto a tradição, baseada no mos maiorum, quanto seu suporte filosófico – elementos
...voltava ao seu ideal de Roma de um século antes, da Roma cipiônica, que se tornara
para o seu espírito uma espécie de sede utópica de todas as perfeições; voltavam
alguns dos interlocutores do De Oratore e do De Re Publica a exaltar alguns
princípios morais como a amizade, que eram a charneira das filosofias helenísticas,
mas que Cícero considerava praticamente afirmados, sobretudo pela grande tradição
oligárquica romana. (PARATORE; 1983: 230-31)
Outrossim, a intenção última de Cícero, nesse texto, parece-nos ser antes aquela manifesta
Si les propos de Laelius sont peu denses, du point de vue philosophique, la réussite
littéraire de ce texte mineur tient à la qualité du ton donné à l‟éxposé. Et à y regarder
de plus près, cette fiction est troublante – car l‟on y voit la célébration de l‟ amitié
placée sous le signe de la laudatio funebris, de l‟oraison funèbre. En d‟autres terms,
Cicéron, qui s‟identifie à Scipion, emprunte-t-il ce détour pour déjá parler de lui-
même au passé? Scipion, dit Laelius, vivra toujours, car il était vertueux. Bien des
68
“Aqueles que se comportam, que vivem de forma tal que evidencia boa-fé, integridade, equidade e
liberalidade, nos quais não há cobiça, nem paixão, nem louca ousadia e demonstram grande firmeza de
caráter, como as personagens que acabo de citar, e que foram, todos eles, considerados homens de bem, nós,
na minha opinião, devemos, também, assim chamá-los, porque, na medida do possível, seguem a natureza,
que é a melhor guia da vida.” (CÍCERO; 2006:33) As personagens que Cícero citara eram: Caio Fabrício,
Mânio Cúrio e Tibério Coruncânio; cônsules que praticaram ações heroicas durante seus mandatos.
93
lignes sont émouvantes dans ce livre, et font songer à une consolation. Sentant venir sa
fin, Cicéron rêve d‟immortalité. (MARTIN; GAILLARD; 1993:232)69
Mesmo sendo seu “canto de cisne”, Laelius antecede ainda a uma obra que, sendo
Filosofia: dessa vez dedicado a seu filho Marco, Cícero escreverá ainda, no mesmo ano, o
De Officiis, obra que, embora extensa, não chega a apresentar algum novo ângulo para a
Vimos, portanto, que Cícero se vale da escolas filosóficas gregas, mas o faz usando
selecionar, desse objeto, o item considerado válido. Contudo Cícero acaba por ir além, e,
com isso
Cícero, como observamos, usa da filosofia grega, e, se para tanto, fez-se necessário
construir todo um vocabulário latino para dar conta dessa apropriação – abstrata –, Cícero
desempenhou essa tarefa; e, por fim, se sua busca ultrapassou os limites iniciais,
outorgando cidadania romana à filosofia grega, Cícero tornou, com isso, universal a
69
“Se os propñsitos de Laelius são pouco densos, do ponto de vista filosófico, o alcance literário desse texto
menor prende-se à qualidade do tom dado à exposição. E, observando-se mais de perto, essa ficção é
problemática – porque aí se percebe a celebração da amizade marcada pelo signo da laudatio funebris, a
oração fúnebre. Em outros termos, Cícero, que se identifica com Cipião, usa esse desvio para falar de si
mesmo já no passado? Cipião, diz Lélio, vivera sempre, porque era virtuoso. Muitas linhas são emocionantes
nesse livro, e fazem pensar numa consolação. Sentindo vir seu fim, Cícero sonha com a imortalidade.”
70
“A proximidade da herança helenística não se reduz a ressuscitar antigas querelas de escola, esgotadas há
um século, ela constitui uma tentativa de repensar em termos romanos o aporte da cultura grega, e se
subordina à vontade de tentar uma compreensão global da ação humana, segundo os padrões de pensamentos
que eram os de Cícero e seus contemporâneos.”
94
romanidade - condição de que até mesmo seus portadores eram inconscientes -, chegando
aos limites do metafísico, esse fato só pode ser computado a seu crédito.
principal criador e ilustrador do conceito totalmente latino da humanitas. (1983: 240)”: sua
moldar aquela espiritualidade latina da qual, uma vez aproveitada pelo Cristianismo,
tardio na cultura romana: resultando de uma lenta evolução da vida pública e do direito
civil, sua plena formulação, como vimos, só se dará na tormenta final da República.
mais amplo de seres humanos; evidenciado pelas características que farão do homem um
ser humano, e, mais tarde, humanitário, e com destaque para a civilidade, que engloba o
direito como norma básica de convivência. Este fato aproxima a humanitas latina da
paideia grega. Sobre essa transição, não pretenderíamos ser mais concisos que Pierre
conceitos que formaram o mos maiorum serão os mesmos que definirão a romanidade e
concepção abrangente. Desse modo, agregando-se sapientia e humanitas, aquela tríade que
95
importância da uirtus, preparariam, de certo modo, a visão de mundo romana para o novo
defender uma restauração plena do modelo político anterior e, ao mesmo tempo, preconizar
um novo conjunto de valores para a sociedade romana. Porém devemos recordar que essa
sociedade, tal como pretendida por Cícero, não é mais restrita aos cidadãos da Vrbs.
Ele mesmo um cidadão romano não-citadino, Cícero sabia que eram necessárias
satisfatoriamente, toda aquela população da península italiana que, desde Mário, tivera
acesso jurídico à cidadania. Ora, essa absorção passava necessariamente pela Magna
Grécia, ou seja, toda a região sul da Itália, centro agrícola de primeira ordem na península,
costumes e as tradições dessa região deveriam estar, de algum modo, visíveis nessa nova
composição identitária.
poder romano, ser atraídas com maior eficácia para Roma, uma atração que deveria ser
executada não mais apenas manu militari, mas por modos mais sutis. E, finalmente, as
71
Essas elites eram, na verdade, as populações helênicas, já que os demais povos sob o imperium não eram
considerados suficientemente civilizados para merecerem maior atenção, ou para que sua cultura pudesse
interferir na questão identitária em Roma.
96
da Roma republicana. Com isso, como dissemos, seria possível integrar não apenas os
grupos sociais em conflito na capital, em que o predomínio político dos Optimates estaria
consagrado mas também atrair para a romanidade o conjunto das populações italianas e as
os habitantes de Roma contavam, agora, pouco para a manutenção do poder romano. Era
romanidade. E uma estratégia para isso seria fazer com que o habitante das regiões
controladas por Roma pudesse, a par de sua própria origem, sentir-se parte de uma
coletividade maior, por partilhar valores mais profundos que o ius sanguinis ou o ius solis.
É por esse motivo que as obras de Cícero apontam para a incorporação, como
também é por isso que, por outro lado, está clara também a intenção de universalizar o mos
maiorum.
romanidade os diversos grupos socioculturais sob o imperium. Cícero antevia, enfim, que o
sentimento em relação a Roma, para que Roma mesma se preservasse, deveria dar um
passo além, na direção da universalidade. Em resumo, para que Roma continuasse a ser
sistema não escondem o intuito de preservar as estruturas que o regem. Isto fica claro
República, Cícero tenha sido assassinado a mando de Marco Antônio em 43 a.C., não se
pode dizer que sua obra tenha caído no esquecimento – prova disso é o fato de ser o autor
romano mais bem preservado – ou ainda que suas propostas no plano político e/ou
filosófico não tenham sido aproveitadas. Afinal, alcançando o poder, Augusto configurará
enfaticamente sua política pela pauta da preservação, ao máximo, das estruturas políticas
da República; assim como pela restauração do mos maiorum e das tradições ancestrais
Cícero, seria posta em prática pelo regime autocrático que ele tanto se empenhou em
evitar.
República, o mesmo não poderá dito de Sêneca – assunto de nosso próximo capítulo – já
que, cessada qualquer dinâmica e/ou debates políticos pelos sucessores de Augusto, esse
pensador viverá numa Roma que, apesar de manter uma retórica em que a vida pública
seria calcada no estoicismo, terá uma população a qual restará apenas um absenteísmo
quanto à vida pública, justificado pelo mesmo Epicurismo que Cícero tanto combatera.
98
Sêneca (4 a.C), cerca de cem anos terão decorrido entre ambas as mortes, já que a de
Sêneca ocorre em 62 d.C. Essa informação pouco significaria se esse não fosse o primeiro
maneira sucinta.
Otaviano, vencidas por este último, o poder se viu, pela primeira vez desde César,
concentrado em uma só pessoa. E, talvez por isso, Otaviano, logo cognominado Augusto,
com todas as instâncias de poder: senado, exército, população, etc. Dissolvidas as velhas
99
realizando sempre algumas adaptações motivadas pelo novo regime. Como governante,
das províncias mais abaladas pelas sucessivas guerras e em embelezar a capital. Realiza
literatura, sendo este o momento em que a poesia latina é catapultada a um novo patamar,
romanidade, em especial o resgate do mos maiorum. Esta retomada transparece até mesmo
na emissão de moedas realizada por Augusto, em que estes conceitos são personificados, já
que
que são úteis para apaziguar os ânimos cansados de seguidas convulsões políticas -, ao
Les abstractions personnifiées jouent un grand rôle dans les imaginations romaines,
soit qu‟elles expriment une satisfaction béate, dans les époques de prosperité, soit que
l‟affirmation qu‟elles symbolisent rallie la foi du peuple dans un avenir meilleur.
(BABELON, 1944:110)72
72
As abstrações personificadas têm um grande papel no imaginário romano, seja porque expressam uma
alegre satisfação, nas épocas de prosperidade, seja porque a afirmação que elas simbolizam unifica a fé do
povo em um futuro melhor.
100
romana73 terá agravada a crise identitária que até então vivenciara, pois além da
indisposição para com os referenciais de sua própria tradição cultural, somar-se-á a crise
advinda da perda de uma parte ainda maior de seu poder, partilhado agora com os novos
grupos sociais em que Augusto se apoia. A sensação de que a perda do poder era
decorrência também da crise cultural logo se faz sentir, levando uma boa parcela dessa
agora tornado “válvula de escape” para uma situação sociopolítica bastante adversa.
É nesse momento que muitas das propostas realizadas por Cícero são acatadas pela
elite cultural, e também pelo regime imperial, que, embora deixando de lado o máximo
possível que fizesse alusão direta à tradição republicana, acabará abraçando os valores
E apesar das proposições de Cícero não terem sido esquecidas durante os anos de
73
É importante distinguir aqui “aristocracia”, i. e., a oligarquia hereditária que dirigia a República há
séculos,; de “elite”, os novos grupos a que a expansão do império dera existência.
74
“Outros saberão, com mais habilidade, abrir e animar o bronze, creio de boa mente, e tirar do mármore
figuras vivas, melhor defenderão as causas e melhor descreverão com o compasso o movimentos dos céus e
marcarão o cursos das constelações: tu, romano, lembra-te de governar os povos sob teu império. Estas serão
tuas artes, impor condições de paz, poupar os vencidos e dominar os soberbos.”
101
A perda das raízes culturais romanas ficará ainda mais evidente durante as
primeiras décadas do Império, posto que nesse momento se estende a outras camadas
sociais, uma vez que até mesmo a paz e a estabilidade que o Império proporcionam
... la société cultivée, qui assure aux écrivains un public et des encouragements,
s‟élargit toujours. Aux sénateurs délivrés des vrais soucis politiques, aux chevaliers,
fonctionnaires préférés du régime, se joignent la riche bourgeoisie des provinces et
même une sélection d‟affranchies. En effet, avec la pacification de l‟Empire et la
prospérité qui en résulta, le rôle des esclaves intelligents, intendants, secrétaires,
gérants, s‟accrut partout entre la bourgeoisie fonctionarisée et la plèbe fainéante;
affranchis et, avec leurs habitudes d‟activité et d‟entregent, s‟enrichissant souvent,
désireux au surplus de faire reconnaitre leur valeur intellectuelle et oublier leur
origine, ils sont le vrai ferment de la nouvelle société.
Ils sont le plus souvent originaires de l‟Orient. El les provinces asiatiques envoient
maintenant vers Rome, unique capitale, une foule de besogneux avides de se faire une
place. Ainsi un grand nombre d‟hommes dont le grec était la langue maternelle sont
appélés à l‟usage du latin. Mais ils ne renoncent tout à fait ni à leur mentalité ni à
leurs aspirations; et même leur influence modifie fort vite les mœurs et jusqu‟à l‟esprit
romains: les rangs se confondent, l‟orgueil national se perd, les curiosités se
multiplient, les plus nobles comme les plus basses. (BAYET, 1953: 444-5) 75
de soerguer esta identidade tradicional romana, será em vão que o próprio Augusto estará,
75
“A sociedade culta, que assegura aos escritores um público e encorajamento, aumenta sempre. Aos
senadores liberados de verdadeiros debates políticos, aos equestres, funcionários preferidos do regime,
juntam-se a rica burguesia das províncias e mesmo uma seleção de libertos. De fato, com a pacificação do
Império e a prosperidade resultante, o papel dos escravos inteligentes, intendentes, secretários, gerentes, se
espalha por toda parte entre a burguesia funcionarizada e a plebe desocupada; liberttos e, com seus hábitos de
atividade e empreendimento, enriquecendo-se frequentemente, desejosos ademais de fazer reconhecer seu
valor intelectual e esquecer sua origem, são o verdadeiro fermento da nova sociedade.
Eles são com maior frequência originários do Oriente. E as províncias asiáticas enviam agora para
Roma, única capital, uma legião de desejosos ávidos de conseguir um lugar ao sol. Desse modo um grande
número de homens cuja língua materna era o grego são chamados ao uso do latim. Mas eles não renunciam
de modo algum a sua mentalidade nem a suas aspirações; e sua influência modifica rapidamente os hábitos e
até mesmo o espírito romano: os níveis se confundem, o orgulho nacional se perde, as curiosidades se
multiplicam, tanto as mais nobres quanto as mais vis.”
102
esta seria uma questão imanente à produção de obras como a própria Eneida, por Virgílio;
e dos Fastos, por Ovídio, e não deixa de ser um traço de continuidade do pensamento de
Cícero.
Fica também patente - após o fracasso das tentativas de Augusto e o pouco impacto,
para além do ufanismo patriótico, despertado pela Eneida - que embora as propostas
filosófico; a situação tornara-se tão mais complexa que rapidamente uma nova
formada por gente de origens as mais diversas, ao menos a elite social e cultural era
romana de boa cepa, nos anos de Augusto porém, era a própria elite que, pouco a pouco,
identitária romana persistia, uma vez que novas personagens insistiam em entrar em cena.
meio a esta elite romana, aqueles que, havendo preservado o quanto possível sua
identidade cultural, ainda fossem capazes, mesmo com o fim de formular uma nova
governantes, para que tenhamos uma visão mais clara – embora limitada – dos fatos
históricos do período.
103
a seu sucessor Tibério, o qual, apesar de não possuir a mesma popularidade do antecessor,
pôde ainda exercer seu poder com relativa tranquilidade, e tão seguro estava da solidez de
seu governo que pôde, em 29, retirar-se para a ilha de Capri e aí residir até a morte, em 37.
Augusto, mormente no campo cultural em que se mantém a ênfase na defesa dos valores
morais, fato que, novamente, pode ser comprovado através da numismática do período
imperial:
Ou seja, enfatizar, no meio circulante, os valores das virtudes significava, por si só,
demonstrar quais seriam os valores que, segundo Tibério, deveriam ser perseguidos por
as virtudes que Augusto priorizara seriam defendidas: seus sucessores imprimiriam nas
Ao longo dos anos, outras virtudes e personificações, além das cardinais, são
incorporadas à cunhagem de moedas, assim como várias apresentações das ações do
príncipe para com seus súditos ou mesmo de suas atividades como dirigente do
Império. Assim, observa-se o aparecimento de Aequitas, Aeternitas, Annona, Ceres,
Concordia, Constantia, Felicitas, Fortuna, Honos, Libertas, Pax, Pudicitia, Salus,
Securitas, Spes, Tutela, Veritas e Victoria. (VIZENTIN, 2005:70)
Tal prática, evidentemente, nos permite aquilatar com maior precisão a imagem que cada
um dos Césares tentava transmitir à população. Mas também deixa claro quais foram os
valores em ascensão no período entre Augusto e Nero: como se percebe na lista acima, são
basicemente os mesmo que arrolamos no conjunto do mos maiorum, tal como preconizado
104
Veritas e Victoria. Além, é claro, daqueles ideais que o regime, desde Augusto, defendia:
conjunto de (novos) valores propostos – por Augusto e seus sucessores – para o regime
imperial.
Estado, tirania. Calígula logo veio a ser deposto pelas legiões em 41, e substituído por seu
tio Cláudio, a quem caberia (re)organizar o modelo imperial, reparando os estragos que
despontar no quadro político romano, como Cícero, também era advogado – embora seus
discursos não tenham sido preservados – e sabe-se que não desfrutava da simpatia do
Senado: Cláudio não desprezava a instituição, mas julgava inadequado o modo de vida
Como legislador, Cláudio era ponderado e cauteloso, e muito do que estabeleceu foi
d.C. No terreno militar, Cláudio foi responsável pela definitiva anexação da Bretanha ao
105
Império (43 d.C.). Contudo, os escândalos provocados pela promiscuidade de sua mulher,
fizeram ainda com que Cláudio decidisse adotar o filho desta, o jovem Nero, em
detrimento dos filhos da primeira esposa: Britânico e Otávia. (Sendo Nero mais velho,
acusação de adultério; mas seu exílio seria revogado em 49, pois Agripina convence
Cláudio a nomeá-lo preceptor de Nero. Com a morte do imperador, Nero herda o trono e,
para consolidar sua posição, casa-se com sua irmã adotiva Otávia e trama o assassinato do
jovem Britânico.
Ao longo de todo este período, forma-se no Senado, lenta mas de modo crescente,
instauração por Augusto, como forma de pacificar o imperium, sua continuidade tornou-se
odiosa às instituições e às liberdades do povo romano. Esse grupo vale-se dos valores
estoicos para aglutinar suas ideias de retorno à República e é por isso mesmo denominado
“oposição estoica”.
Vista até aqui a sucessão do Império, voltemos à pergunta de Bieler sobre quem
Para tanto, será necessário voltar ainda uma vez ao período republicano, em que,
territórios conquistados fará com que, décadas depois, surja no panorama social uma figura
inteiramente nova: a daquele cidadão romano que, mesmo não-nascido na Urbe, muitas
vezes sequer na Itália, tem interesses na manutenção do poder romano em sua região, ao
Essa figura emergente terá especial destaque nas regiões do Ocidente: Gália,
representou, sob o ponto de vista das relações entre o centro e a periferia do mundo
ainda mais o processo de romanização destas províncias. Romanização esta que, tendo
preservado muito das antigas tradições e da identidade cultural romana, seria agora um
retornarmos a Bayet:
Cette poussée d‟orientalisme hellénisant est pourtant contenue par l‟apport des
provinces occidentales où la langue latine, fixée par l‟usage classique, gagne
puissament. Après la Cisalpine et la Narbonnaise, l‟Espagne donne à Rome une foule
d‟ écrivains, Porcius Latro, les Sénèques et Lucain, Columelle, en attendant Quintilien
et Martial; et voici que, dès 48, la nouvelle Gaule peut aspirer au droit de cité complet,
tandis que la Bretagne s‟ouvre à la formation romaine et que l‟Empire s‟étend dans
l‟Afrique du Nord jusqu‟à l‟Océan. Sans doute ces provinciaux enrichissent-ils aussi
le cosmopolitisme romain de traits nationaux: on a reconnu, dans les Espagnols, l‟éclat
et l‟enflure superbe de la race. Mais leur formation, plus purement latine, les agrége
mieux au passé de Rome, (BAYET, 1953: 444)76
Se estes eram os homens capazes de injetar sangue novo no velho espírito romano,
fazendo com que, dentro do Império e apesar da censura política exercida pelos
76
Esta onda de orientalismo helenizante é entretanto contida pelo aporte das províncias ocidentais onde o
latim, fixado pelo uso clássico, vence com vantagem. Além da Cisalpina e da Narbonense, a Espanha dá a
Roma uma fila de escritores, Pórcio Latro, os Sênecas e Lucano, Columela, esperando ainda Quintiliano e
Marcial; e eis que, desde 48, a nova Gália pode aspirar ao direito completo de cidadania, enquanto que a
Bretanha se abre à formação romana e o Império se estende da África do Norte até o Oceano. Sem dúvida
estes provincianos enriquecem-se também o cosmopolitismo romano com traços nacionais: reconheceu-se,
nos espanhóis, a explosão e a fúria soberba da raça. Mas sua formação, mais puramente latina, os prende
melhor ao passado de Roma.
107
sua história, foram também responsáveis pela ampliação dos horizontes culturais romanos,
que não mais estariam restritos a Roma, antes dar-se-ia o inverso, fato que levou o
Se Bieler se aferra ao fato político de vigência do Império Romano para realizar sua
durante o Império é, sobretudo, obra daqueles romanos que agravam aquele paradoxo já
77
Os conceitos de literatura romana e literatura latina se entrecruzam. O latim se escreveu e falou ainda
muito depois da queda e desmembramento do Império Romano do Ocidente. Nos estados que daí surgiram,
continuou sendo o latim o idioma literário; desde a época carolíngua (e na Irlanda ainda antes) foi a língua
universal e unificadora, ao lado das línguas literárias nacionais. Ainda hoje continua sendo o latim a língua
da igreja católica romana. Mas isto tudo tem pouco a ver com a história da literatura romana: tão só como
sobrevivência de formas e motivos literários, de técnicas e elementos estilísticos e, sobretudo como tradição
daquela liteatura.
Nem todos os autores romanos escreveram em latim. (...) Mas desde a era clássica da literatura
romana, os países que participaram ativamente nela estavam completamente romanizados: Itália desde a
conquista, España desde o início de nossa cronologia, África desde o século II, e as Gálias desde fins do
século III. A criação literária dos homens nascidos em tais países pertence essencialmente a literatura
romana, os romanos nativos da capital em si a representam muito mal, salvo os oradores: são os nativos do
resto de Itália e logo das províncias os que nos trasmitem tudo que é tipicamente romano. Tal é o caso de
Ênio no século II antes de Cristo, assim como o de Rutílio Namaciano no V depois de Cristo.
108
para uma crise que possuía duas faces: a de uma crise política motivada pela expansão de
um poderio econômico e militar que postergou além do devido sua adaptação à nova
realidade que esta mesma expansão ensejara e a de uma crise identitária surgida
inicialmente na aristocracia e que mais tarde espalhou-se às demais classes que disputavam
parcelas do poder na Urbe, b) que fica ainda patente que, apesar de solução política, o
império é incapaz, por si só, de resolver - ao contrário, agrava - a crise identitária que
tentara resolver, e que tornava-se ainda mais urgente uma renovação no espírito romano
que lhe garantisse a própria sobrevivência; por fim, c) evidencia-se ainda que esta
renovação só seria possível – como de fato ocorreu – capitaneada pelos romanos das
províncias, que haviam preservado em maior grau o espírito que ora se impunha salvar.
Como consequência do somatório destes fatos, ficava aberto o caminho para que
homens como Sêneca ocupassem os espaços sociais, culturais e políticos do Império, o que
público romano como a de Lúcio Aneu Sêneca é, ademais de mérito do próprio, tornada
78
Razão pela que preferiremos, neste trabalho, usar os termos literatura e cultura latina ao referimo-nos à
produção feita por estes romanos, não porque não reconheçamos a validade do argumento de Bieler, mas
porque, dados os limites temporais estabelecidos para este trabalho, essa distinção suplanta em importância
àquela.
109
anterior.
tratada em obras como La Vie de Sénèque, de Auguste Bailly; Vie de Sénèque, de René
Waltz e Sénèque ou la conscience de l’Empire, de Pierre Grimal, além de toda uma plêiade
de historiadores, filósofos e literatos – haverá, contudo, alguns fatos que deverão ser
forçosamente mencionados, e para isso optamos por recorrer ao ligeiro esboço já traçado
Sorti d‟une famille qui n‟avait d‟autre ambition que de servir, dévoué au régime
impérial, comme tous les provinciaux, qui lui devaient tout, Sènèque aimait
passionnément la vie politique. Il était profondément ambitieux, et il lutta toute sa vie
pour avoir le droit de se consacrer au service de la Cité. Mais, en même temps, il était
doué d‟une vie intérieure intense. Il était fasciné par rechercer dans la philosophie
comme une véritable initiation mystique et il est certain que son choix du Stoïcisme
fut moins dicté par sa raison que par son cœur. (GRIMAL, 1957: 35)79
maioria das vezes sequer na Itália, e cuja produção intelectual busca realizar a adaptação
É essa a geração que entroniza na capital a compreensão de que o império era maior
de que uma cidade e as regiões que dominara. Se Cícero era consciente de que a Vrbs
deveria tornar-se, cada vez mais, Orbis, a partir dessa geração, de que Sêneca é sem dúvida
o principal nome, o Orbe suplanta a Urbe, e o nome “romana” passa a designar antes a
cultura expressa em latim que aquela do Lácio, conforme Bieler nos alertou.
79
“Saído de uma família que não tinha outra ambição senão servir, devotada ao regime imperial, como todos
os provincianos, que lhe deviam tudo, Sêneca amava apaixonadamente a vida política. Era profundamente
ambicioso, e lutou toda sua vida para ter o direito de consagrar-se ao serviço da Cidade. Mas, ao mesmo
tempo, era dotado de uma intensa vida interior. Era fascinado para buscar na filosofia uma verdadeira
iniciação mística e estava certo de que sua opção pelo Estoicismo foi ditada menor pela razão que pelo
coração.”
110
Ademais, será essa a geração que realizará, visando resgatar as tradições culturais
romanas, preservadas em suas regiões de origem, um novo encontro destas tradições com o
estoicismo helênico, e, nessa tarefa, Sêneca desempenhará um papel crucial, uma vez que,
tendo sido presença constante na corte imperial durante os reinados de Tibério a Nero, e
tendo sido o preceptor deste último e governado de fato o Império durante os anos da
minoridade deste, Sêneca terá a oportunidade – tão preconizada pelos filósofos desde
Platão, e que Cícero tanto almejou – de orientar esse mesmo Império pelos princípios do
estoicismo que abraçara e que tanto defendia, como testemunham seus textos.
E de que consistiam estes textos? E por que teria Sêneca abraçado o estoicismo
como escola filosófica e tentado, através de Nero, impô-lo como norma e diretriz do
língua latina, tendo como concorrentes Cícero – que tratou a Filosofia sempre pela ótica do
Direito, como afirmamos anteriormente - e Marco Aurélio – embora este tenha escrito em
grego suas Meditações. Além disso, a figura de Sêneca sobressai ante estes dois por razões
Fica patente que o destaque de Sêneca fica devido a dois critérios distintos: suplanta a
Cícero porque este ainda usa a Filosofia como arcabouço para uma práxis que é, afinal,
sociedade romana. Quanto a Marco Aurélio, a crítica fica no âmbito linguístico: ter
escolhido escrever em grego o desqualificaria como escritor latino – embora não, segundo
estes dois motivos que o nome de Sêneca, e sua obra filosófica, são justamente lembrados
entre os maiores da Antiguidade Clássica. Todavia, há ainda, segundo Paul Veyne, uma
razão para que se coloque Sêneca no conjunto dos grandes escritores latinos: a inovação
estilística que sua prosa representa, e que é, por sua vez, mais um distintivo entre sua obra
e a de Cícero:
80
“Em Sêneca, as considerações filosñficas vão à frente das convicções, ou, melhor, não se separam delas,
enquanto que, em Cícero, sentimos um ligeiro desdobramento: a filosofia vinha a realçar as convições, como
um esmalte.
Por último, o filósofo Sêneca era, ao mesmo tempo, como Cìcero, um escritor, fato que se reconhece
numa coisa, ainda que filósofos, um e outro escreveram em latim e não em grego. (...) Cícero e Sêneca
escolheram o latim porque se sabiam com capacidade de escritor, por que queriam enriquecer sua literatura
nacional, porque não desejavam fechar-se no meio dos especialistas, mas porque apontavam ao grande
público culto.”
112
Sêneca que chegou até nós pode ser dividido em dois grupos; o primeiro destes, formado
pelos textos de caráter filosófico, subdividir-se-ia nos subgrupos dos textos filosóficos
propriamente ditos e o dos textos dramatúrgicos. Esta divisão, evidentemente falha, é feita
expostas e analisadas pelo estoicismo de que foi um dos mais eminentes representantes.
Podemos igualmente incluir neste primeiro subgrupo sua produção epistolar, em especial
correspondência para círculos muito maiores que o de seu destinatário, Sêneca expunha a
doutrina de sua escola filosófica. Também alguns de seus poemas podem ser categorizados
O segundo subgrupo seria composto pelas tragédias escritas por Sêneca. Sobre
81
Uma das razões da modernidade de seu estilo: frases breves, claras, mordazes, diretas, que saber tornar
acessíveis algumas questões às vezes árduas por meio de uma súbita metáfora. Este é o estilo nossa prosa de
ideias desde Montesquieu, e de nosso grande jornalismo. Mas na Antiguidade esse estilo se encontrava nas
antípodas do que se considerava “grande estilo”, a saber: da eloquência, dos amplos períodos ciceronianos
cujo começo, às vezes, o leitor já tinha esquecido quanto chegava ao final; não importava: a eloquência
antiga era em geral uma espécie de bel canto e, como este último, atraía a incontáveis fãs. Entretanto, havia
exceções, como Demóstenes, cujo método não consistia em encantar, mover, e seduzir, mas em projetar
sobre seus ouvintes um influxo nervoso que os cativava. O estilo de Sêneca segue o mesmo caminho.
Uma palavra mais: apesar de sua clareza, Sêneca deve ser levado a sério como filósofo, passou já o
tempo em que se lhe considerava um literato com verniz de filosofia, cujo estudo se deixava para os
especialistas em letras latinas. A clareza de sua superfície deixa perceber fundamentos conceituais muito
firmes, que são os do estoicismo grego em sua versão autêntica. Sêneca não foi um decadente nem um
vulgarizador que se dirigisse ao pretenso “espírito prático” dos romanos.
113
Consideradas, pois, não só por Millares Carlo mas pela maioria dos críticos, como o
ponto fraco de sua produção, os defeitos apontados nas tragédias de Sêneca traem a
ideias filosóficas que defendia: tratava-se, enfim, da submissão, pura e simples, do Teatro à
Filosofia.
discutível autoria – e pela sátira Diui Claudii Apocolocyntosis, composta por ocasião da
morte de Cláudio, que nos anos iniciais de seu governo, ordenara seu exílio na Córsega.
data facilmente dedutível, sobre outras permanecem dúvidas sem solução, contudo, sabe-se
que sua produção se dá entre os anos 40 e 65 d.C., ano de sua morte; entretanto importa
mais ainda ressaltar que, mesmo sendo uma obra tão vária e dispersa entre tantos textos, o
apesar de seus escritos, jamais foi, a rigor, um filósofo - uma linearidade quase absoluta.
82
De argumento totalmente grego, foram compostas para leitura e não para serem encenadas. Seus
títulos são Hercules furens, Troades (Hecuba); Phoenissae (Thebais); Medea; Phaedra (Hippolitus);
Oedipus; Agamemnon; Thyestes e Oetaeus. Em alguns códices acrescenta-se uma “pretexta” intitulada
Octauia, posterior à morte de Nero.
Em geral, trata-se de peças que não podem resistir à comparação com as grandes concepções dos
autores gregos que lhes serviram de modelo, comumente Sófocles e Eurípides. Há, sem dúvida, nelas
admiráveis passagens, pensamentos belíssimos, descrições brilhantes, coros cheios de graça e encanto; mas,
julgadas em conjunto, empalidecem pela frieza, falta de intriga, substituída por relatos demasiadamente
longos; as paixões são excessivas e a inoportuna verborragia rouba eficácia aos sentimentos que trata de
representar.
114
é válido questionarmo-nos sobre a real adesão de Sêneca à escola estoica. Adesão esta já
questionada pelo mesmo Paul Veyne, na obra que vimos citando - Séneca y el estoicismo –
e também relativizada por Pierre Grimal, que prefere defender haver em Sêneca boas doses
de ecletismo e de independência:
senequiano logo demonstrarão que Sêneca diverge do estoicismo apenas naquilo que lhe é
83
No mundo greco-romano, a filosofia era uma questão de seitas, como no Extremo Oriente; um filósofo não
se interessava pela filosofia em geral, mas era platônico ou pitagórico ou epicúreo ou, como Sêneca, estoico.
A filosofia não era matéria de ensino universitário, mas um estudo sublime que atraia a aficcionados ricos,
como Sêneca, e que dava emprego a preceptores privados.
84
Sêneca é um pensador de obediência estoica. Ele o proclama frequemente, e se vangloria de
pertencer à escola mais “viril” e que elevou mais alto o ideal da Virtude. Entretanto, se seu pensamento
encontra apoio no Estoicismo, ele mesmo não se condidera um escravo desta escola. Ele nos adverte muitas
vezes,e afirma sua desconfiança das fórmulas propostas por tal ou qual mestre do Pórtico. Nós vemos, no
tratado Sobre a Vida Feliz, por exemplo, divertir-se a opor umas às outras todas as definições estoicas da
felicidade, a mostrar sua equivalência, para ao fim, propor outra, pessoal.
Frequentemente, também, ele adota sentenças epicúreas. As primeiras Cartas a Lucílio terminam
sempre por alguma fórmula emprestada da escola rival, que ele afirma com malícia a verdade e a
profundidade.
Por todas essas razões, frequentemente considerou-se Sêneca como eclético e um filósofo, senão
inteiramente original, ao menos independente.
115
secundário: a dialética, o excesso de minúcias e sutilezas - o que é, aliás, uma atitude bem
coerente com o pragmatismo romano. Logo, vale mais ater-se ao alerta emitido por
Grimal: “ ... il convint de ne pas être dupe des apparences, et surtout, de notre
stoïcienne pèse sur lui bien plus qu‟il ne le dit.” (GRIMAL, 1957: 41)85
Entretanto, como pensador, Sêneca também acrescenta algo de seu à moral estoica:
buscar consonância com a natureza, isto será demonstrado na seguinte citação – longa
Este reconhecimento, por parte de Sêneca, de que a vida moral consiste em dominar
uma natureza humana sobre a qual a paixão exerce um poder de atração ainda mais
sedutor, será a chave que nos possibilita entender diversos dos seus textos, como De Vita
85
“convém não se enganar pela aparências, e sobretudo, por nosso conhecimento, infelizmente fragmentado,
das fontes de Sêneca. A ortodoxia estoica pesa sobre ele mais do ele assume.”
116
Beata, De Tranquilitate Animi, De Breuitate Vitae, etc. Também nos esclarece a razão de
como escola destinada a capitanear seu intento de recuperação das tradições culturais
romanas: como Cícero já demonstrara, havia, entre a natureza desta escola e a das
tradições, uma identidade de princípios que bastava apenas expor sob a nova roupagem do
regime imperial.
Esta nova roupagem impunha-se inclusive como necessária, uma vez que não
imperial – fato que era excelente argumento para a oposição estoica -, o qual, se havia se
sustentado pelas figuras de Augusto e de Tibério, fora duramente abalado pelo governo de
Sêneca construirá dois textos de suma importância para a compreensão daquele momento
romanas não foi estratégia exclusiva de Sêneca: essa simbiose teve um êxito que ultrapassa
mesmo os limites do regime imperial que dele se valia: através de Lucano, sobrinho de
contraposição à Eneida. Porém, voltemos a Sêneca, analisando desta vez a sua participação
no governo de Nero.
117
para que se encarregasse da educação de Nero, sobrinho, filho adotivo e provável herdeiro
do imperador. Com a morte de Cláudio em 54, Nero assume o governo e, orientado por
Sêneca e Burrus, inaugura o que promete ser um período de paz e prosperidade capaz de
superar o do próprio Augusto. De fato, o início de seu governo aponta para o cumprimento
Neronis. Muito embora exista uma controvérsia a respeito deste termo, já que como nos
explica Vizentin:
Controvérsias à parte, o fato é que no período entre sua subida ao poder (54) e o momento
em que ordena a morte de Agripina, sua mãe (59), o exercício do poder por Nero anuncia
uma tranquilidade inusitada, quando comparado ao de seus três antecessores. É sem dúvida
o momento em que a Filosofia ocupa o trono, embora devamos ressaltar que, apesar de ser
a eminência parda do poder, Sêneca não ocupa nele qualquer cargo oficial: seu papel de
discreto em uma posição aparentemente secundária, o exame de sua produção textual trai-
118
lhe a sua intenção: é durante o quinquennium Neronis que produzirá textos como De Ira,
em que o governo de Calígula é longamente criticado, pelo seu aspecto tirânico. Além
disso, trata Sêneca de plantear, junto a seus leitores, as questões que Veyne aponta:
¿hay que suprimir completamente los afectos, o podemos moderarlos, regularlos, con
el fin de darles una utilidad? ¿Es esto posible, aunque difícil y arriesgado? ¿O bien la
afectividad es una cosa tal que hacer eso sea imposible y hasta absurdo? Y, ¿cuál es el
papel del intelecto y del juicio en la afectividad? (VEYNE, 1993: 200)86
como se estivesse preparando seu público para aquela síntese que objetiva realizar, Sêneca
evidencia também porque um governo venal como o de Calígula não poderia de modo
algum ser tomado como modelo. Entretanto, sua tarefa de “demolição” não se detém neste
ponto: sua obra seguinte é a Apocolocyntosis Diui Claudii, publicado justo após a morte de
Cláudio e que narra a ascensão deste aos céus... transformado em abóbora! Este texto, uma
sátira menipeia, visaria demonstrar que, apesar das boas intenções de Cláudio, seu governo
estaria fadado ao fracasso por faltar-lhe aquele norte filosófico de que o governo de Nero
Claudii -:
três livros, dos quais nos restam unicamente o primeiro e uma parte do segundo. Neste
texto, Sêneca constrói toda uma nova teoria do poder, baseada na figura do Princeps, e na
qual se demonstra com clareza como deve o soberano nortear sua conduta, pautando-a
sempre pelos ditames do Estoicismo. Cremos, pois, valer a pena analisarmos com mais
86
Devem-se suprimir completamente os afetos, ou podemos moderá-los, regulá-los, com o fim de dar-lhes
uma utilidade? Isto é possível, ainda que difícil e arriscado? Ou então a afetividade é uma coisa tal que fazê-
lo seja impossível e até mesmo absurdo? E, qual é o papel do intelecto e do julgamento na afetividade?
119
Publica representou para o Primeiro Triunvirato: uma tentativa de, através de uma síntese
ideias que, mesmo direcionadas aos triúnviros, podiam estabelecer novos valores para toda
a população romana, Sêneca, uma vez que em seu tempo toda participação política
encontra-se anulada, escreve unicamente àquele que ainda tem poder de ação: o próprio
imperador. E por que o faz? Porque, ademais da necessidade de dar lastro ao regime, era
necessário, para tranquilizar a oposição, valer-se dos mesmos argumentos que utilizava,
esvaziando-lhe o discurso. Por outro lado, Sêneca percebia também que os já passados
governante, algo que mesmo Nero não poderia desdenhar. Daí que Paul Veyne possa
monarquia, isto não sendo mais de que assentar a monarquia sobre uma base
da natureza, nada mais coerente, , portanto,, que o governo do Império – naquele instante
De clementia se mostra
...as the sketch for an ideal political program based on fairness and moderation.
Seneca does not discuss the constitutional legitimacy of the principate or the openly
monarchic forms that it had now assumed; the only power was the power that
conformed to the Stoic conception of a cosmic order governed by logos (“universal
reason”), the power most suitable for representing symbol of the many peoples
making up the Empire. (CONTE, 2004: 412)88
Social avant-la-lettre? Seria intenção de Sêneca tão somente a de orientar Nero no sentido
de que este realizasse um governo baseado nos princípios estoicos, ou, através deste
conferia aos súditos do Império uma sensação de segurança, reafirmar, mais uma vez sob o
Inclinamo-nos pela segunda opção, uma vez que Sêneca é fiel aos valores de sua classe – a
oligarquia do Ocidente do Império -, aos valores do próprio Império, e aos de sua corrente
87
“Se Sêneca parece dar à clemência uma importância exagerada é porque essa se situava na única margem
de liberdade de ação que um soberano podia dar mostras de seu caráter e de sua moderação: sua maneira de
tratar aos culpados de atentados contra ele ou contra um de seus súditos; a clemência é a pequena diferença
reveladora. Um rei inclemente revelará, ao sê-lo, uma alma de tirano; seus súditos não suportarão ter que
obedecer a semelhante alma, e Sêneca adverte a Nero que um tirano termina derrubado ou assassinado.
A lição de De clementia é, por último, essa: Roma deve aceitar esse regime monárquico que é uma
realidade há quase um século; de fato, “é a natureza que inventou a realeza”. E, por sua vez, o príncipe se
comportará como um bom rei, saberá autolimitar-se, considerará que é o servidor dos governados, em lugar
de seu amo.”
88
“... como o esboço de um programa político ideal baseado em bondade e moderação. Sêneca não discute a
legitimidade constitucional do principado ou as formas abertamente monárquicas que ele agora assumiu; o
único poder era o poder conformado à concepção estoica de uma ordem cósmica governada pelo logos
(“razão universal”), o poder mais adequado como símbolo de representação de alguns dos povos pertencentes
ao Império.”
121
filosófica e, além de que a oportunidade, surgida através da posição privilegiada que lhe
caiu nas mãos, de unificar os três conjuntos de valores e colocá-los, através da Filosofia, no
chegou com o nome de De Beneficiis. Nesta obra, Sêneca trata de outro assunto importante
enriquecimento das camadas superiores da população foi a pilhagem, pura e simples, dos
territórios conquistados e sua posterior exploração em prol dos conquistadores, fato que
quase sempre demandava um investimento inicial, mas que tornava a região uma das áreas
produtivas do imperium. Claro, esse segundo momento garantia um afluxo perene, porém
lento, de riquezas; sendo a conquista o fato que trazia um rápido aporte de valores à Urbe;
Egito não se realizavam novas conquistas capazes de, realmente, aportar à capital aquelas
fortunas do passado.
Este fato acarretava uma situação até então não enfrentada por Roma: sem o
operacional a economia. Mas havia outro elemento complicador, pois como Pierre Grimal
nos recorda: “Rome a hérité de son passé républicain une hiérarchie sociale censitaire. Il y
a toujours des sénateurs, des chevaliers et tous les degrés de fortune, chacun s‟entourant du
89
Roma herdou de seu passado republicano uma hierarquia social censitária. Há sempre senadores,
cavaleiros e todos os degraus de riqueza, cada um se cercando do serviço doméstico correspondente a suas
responsabilidades na cidade.
122
Numa sociedade em que o clientelismo era a regra, e ter clientes demandava sérias
reorganização da vida econômica, tal fato também seria um ensejo para o abandono dos
prazeres epicuristas e para o retorno às tradições, menos danosas para o orçamento, pessoal
ou público.
Deste modo, De beneficiis esconde, sob a análise das relações de favores que se
Nesta, Sêneca adverte que, vivendo o homem em sociedade, toda a riqueza a essa
sendo a riqueza coletiva, podia ser utilizada ou requisitada pelo poder público, a quem
Logo poderíamos pensar que Sêneca – até porque foi também banqueiro – traçava
uma justificativa para a intervenção do estado na economia, ou para o sequestro dos bens
dos desafetos políticos do imperador. Contudo, a finalidade era também outra: sendo,
como dito, coletiva a riqueza, da e na Urbe, o modelo político garantia que a circulação da
moeda se desse a uma velocidade suficiente para gerar uma impressão de riqueza aparente
de trigo à população.
Nesse aspecto,vale analisar o seguinte dado que nos é trazido novamente por Pierre
Grimal:
Tout le De Beneficiis est un effort pour rompre les cadres sociaux, et les remplacer par
des relations d‟homme à homme. Et c‟est là une prédication singulièrement opportune
123
dans une société où l‟accroissent des fortunes tendait à former, dans les maisons de
l‟aristocratie, de véritables armées serviles. (GRIMAL; 2004:181)90
Assim sendo, Sêneca pretende moldar não apenas o Princeps, mas, intervindo na
significação e na função social da riqueza – que sai do caráter individual para o coletivo –
interviria, por tabela, em toda a gama de valores materiais da sociedade romana. Essa
Sêneca, abraçaria o Estoicismo a partir de uma razão pragmática: a gestão dos bens
materiais.
É claro, tendo sido filósofo e banqueiro, Sêneca foi diversas vezes acusado de não
Desse modo, entre Cícero e Sêneca repousa uma diferença crucial: ao segundo foi
dada a oportunidade de pôr em prática ideias que moldariam a sociedade romana de seu
tempo - e também a dos pósteros -, usando, para isso, a própria estrutura do poder.
romana porque comporta nova significação para velhos valores, que já vinham caindo em
desuso, ao passo que, justamente por tornar-se co-fundamento para essa nova identidade
90
“Todo o De Beneficiis é um esforço para romper os níveis sociais, e substitui-los por relaçãoes de homem
a homem. E eis aí uma prédica sigularmente oportuna numa sociedade onde o crescimento das fortunas
tendia a formar, nas casas da aristocracia, verdadeiros exércitos servis.”
91
A riqueza não pode ser rejeitada a priori: um filósofo sem responsabilidade política, como Demétrio o
Cínico, que frequentava com prazer a mesa de Sêneca, tem o direito de professar um total desprezo pelos
bens da Fortuna e de recusar os presentes do Príncipe. Sêneca, engajado em sua ação junto a Nero, investido
de imentsas responsabilidades, não pode fazê-lo.
124
Estado. Os reflexos dessa simbiose serão, claro, percebidos, no como Sêneca (re)configura
vimos anteriormente, era oriundo da cultura grega e aplicava-se somente à esfera privada,
foi catapultado por Sêneca à esfera pública e tornado prerrogativa do governante – o que
não deixa de significar ao mesmo tempo uma extensão do conceito para o nível
governamental, e sua manutenção na esfera privada, já que de uso restrito pela pessoa do
imperador.
Tigelino, que afasta Nero dos valores que até então trilhara. Ocorre também o divórcio - e
Tendo perdido seu espaço na corte, desiludido, o filósofo se retira da cena política
da capital, não sem antes devolver a Nero todas as benesses dele recebidas, em 62, mesmo
ano em que Nero condena Otávia à morte, iniciando uma vida de recolhimento em sua
uilla, onde escreve as Ad Lucilium epistolae morales, série de cartas em que torna a
divulgar seus ideais estoicos e nas quais, veladamente, tece uma série de críticas à conduta
de Nero. Sendo essa a razão pela qual faremos aqui alguns comentários a respeito desta
Sêneca, escritas durante os anos de 62 a 65, enquanto o filñsofo desfrutava seu “retiro”, as
124 cartas que nos chegaram demonstram terem sido escritas pensando-se em possível
divulgação. Daí não ser completamente inusitado que o filólogo romeno Eugen Cisek,
...il faudrait distinguer trois groupes de lettres: les 45 premières seraient des lettres
réellement envoyées à Lucilius, et publiées pratiquement sans retouches; les lettres 46
à 88 auraient été remaniées et développées par Sénèque en vue de la publication, et
seraient en quelque sorte à demi authentiques; enfin les lettres 89 à 124 auraient été
rédigées directement pour la publication, et Lucilius en serait le dédicataire plutôt que
le destinataire. (MARTIN;GAILLARD, 1993:462)92
Mas não é apenas em seu conteúdo que repousa a importância das Epistolae:
compostas com o esmero de quem já visava sua possível publicação, acabam por ser a
A primeira coisa que se detecta na leitura das cartas é que a “retirada” de Sêneca da
vida pública é uma semiverdade: se não tem mais qualquer proximidade com o poder, isso
não significa que esteja se dedicando ao ócio, já que o seu é o otium cum dignitate dos
92
“...deveríamos distinguir três grupos de cartas: as 45 primeiras seriam cartas realmente enviadas a Lucílio,
e publicadas praticamente sem retoques; as cartas 46 a 88 teriam sido reescritas e desenvolvidas por Sêneca
visando à publicação, e seriam, portanto, semiautênticas; enfim, as cartas 89 a 124 teriam sido redigidas
diretamente para publicação, e seriam antes dedicadas que destinadas a Lucílio.”
93
Evidentemente as Heroides de Ovídio podem também pleitear este título, contudo devemos considerar o
fato de que, no caso de Sêneca, realmente existe um destinatário.
126
antigos: “In hoc me recondidi et fores clusi, ut prodesse pluribus possem. Nullus mihi per
otium dies exit: partem noctium studiis uindico: non uaco somno, sed succumbo et oculos
De fato, é nesse período que Sêneca produz, além da correspondência com Lucílio,
natureza, uma visão que encontra, na hierarquia dos seres, justificativa para a estratificação
social do Império.
Uma estratificação que, afinal, lhe é interessante defender, já que Sêneca, mesmo
tendo abandonado grande parte de sua fortuna ao deixar Roma, era ainda oriundo da elite
conferir unidade ideológica. Não nos iludamos, pois, a visão política de Sêneca é tão
aristocrática quanto possível, com os diferenciais de que: a) não identifica - nem poderia
necessidades das massas, mesmo as escravizadas, para quem defende não só um melhor
tratamento, mas também que sejam alcançadas pela ideologia estoica que propunha como
In fact the Senecan ethic remains profoundly aristocratic, and the Stoic sapiens who
expresses his sympathy for ill-treated slaves also manifests openly his inalterable
disclain for the masses of people who have been rendered brutish by the spectacles in
the circus. (CONTE, 2004:415)95
94
“Se me recolhi em casa e fechei as portas foi para poder seu útil a um maior número. Nem um único dia
me chega ao fim na ociosidade; parte da noite, reservo-a para os meus estudos; não me disponho ao sono –
sucumbo a ele, e deixo repousar sobre o meu trabalho os olhos cansados da vigília e já prestes a cerrar-se.”
95
“De fato, a ética senequiana permanece profundamente aristocrática, e o sapiens estoico que expressa sua
simpatia por escravos maltratados também manifesta abertamente seu inalterável desdém para com as massas
que foram embrutecidas pelos espetáculos do circo.”
127
Subducendus populo est tener animus et parum tenax recti: facile transitur ad plures.
Socrati et Catoni et Laelio excutere morem suum dissimilis multitudo potuisset: adeo
nemo nostrum, qui cum maxime concinnamus ingenium, ferre impetum uitiorum tam
magno comitatu uenientium potest. Unum exemplum luxuriae aut auaritiae multum
mali facit: conuictor delicatus paulatim eneruat et mollit, uicinus diues cupiditatem
inritat, malignus comes quamuis candido et simplici rubiginem suam adfricuit: quid tu
accidere his moribus credis, in quos publice factus est impetus? (SÊNECA, Ad Lucil.
VII, 6-7)96
A menção a Sócrates, Catão e Lélio como incapazes de manter-se incólumes diante da pressão
social seria uma justificativa para o afastamento de Sêneca da corte? Cremos que sim, embora esse
seu posicionamento elitista esteja disfarçando – mal – uma crítica ao próprio ambiente da corte, e
uma defesa do retorno ao mos maiorum como norma de conduta moral. Esse mos maiorum a que
Sêneca se refere não é, claro, aquele de Catão, mas o de Cícero, já influenciado pelo Estoicismo.
Mas o empenho em atrair as massas – e nesse termo podem também ser incluídas as elites
epicuristas, já que sua propensão ao prazer não as diferiria da plebe senão quanto ao objeto do
prazer em si – não poderia deixar de partir da realidade que as circunda. Desse modo, Sêneca se
também elementos do academicismo; este lançará mão dos valores estoicos como objetivo,
mas não necessariamente como ponto de partida. Por isso mesmo, embora rigidamente
96
“Há que subtrair à influência do vulgo o ânimo fraco e pouco firme na virtude: facilmente se passa para o
lado do maior número. Sócrates, Catão, Lélio – uma multidão inteiramente antagônica poderia abalar o seu
caráter. Digo-te mais: mesmo nós – e se nós nos esforçamos por robustecer o nosso caráter! -, nenhum de nós
seria capaz de fazer frente à avalanche dos vícios no meio de uma turba. Um só exemplo de luxo ou de
avareza basta para provocar muito mal: um companheiro de mesa de gosto sofisticado acaba por nos tirar a
energia e austeridade, um vizinho rico excita os nossos desejos, um amigo perverso propaga a sua peste por
muito puros e simples que sejamos: que pensas tu que sucederá àqueles costumes para que nos arrasta a
multidão?”. Todas as traduções das Cartas a Lucílio são de J.A Segurado e Campos.
128
estoico, Sêneca se mostra mais aberto ao Epicurismo que Cìcero: em diversos pontos das
Id non de meo fiet: adhuc Epicurum complicamus, cuius hanc uocem hodierno die legi
“philosphiae seruias oportet, ut tibi contingat uera libertas”. Non differtur in diem, qui
se illi subiecit et tradidit; statim circumagitur: hoc enim ipsum philosophiae seruire
libertas est. (SÊNECA, Ad Lucil. VIII,7)97
oposta a sua demonstra novamente que sua ação se prende à lógica romana: é preciso
desfrutava, não poderia ser deixado indefinidamente de lado. Além disso, se em Cícero o
descarte do Epicurismo era tão sistemático quanto radical, Sêneca, estabelecendo bem
suas propostas: “Hoc inter nos et illos interest: noster sapiens uincit quidem incommodum
omne, sed sentit; illorum ne sentit quidem. Illud nobis et illis commune est, sapientem se
Avaliamos que uma das razões para a valorização dos textos de Epicuro seja o fato
de que o Epicurismo já alcançara, nessa Roma em que o absenteísmo político era uma
romana. Não é gratuito o fato de que Lucílio, o destinatário das Epistolae, seja um
97
“Tenho andado a respigar Epícuro, e dele li hoje esta frase: “Deves ser servo da filosofia se pretendes
obtere a verdadeira liberdade”. Não será posto de lado quem a ela se entregar confiadamente: logo ela lhe
prestará os seus benefícios. É nesta entrega total à filosofia que consiste a liberdade.” (SÊNECA, 2004:20).
Todas as traduções das Ad Lucilium Epistolae Morales são de J. A. Segurado e Campos.
98
“A diferença entre a nossa escola e adeles é que o sábio, na nossa concepção, embora o sinta, domina
todo o sofrimento, na deles, nem sequer o sente. Entre nós e eles existe um ponto comum: o sábio contenta-se
consigo prñprio.” (SÊNECA, 2004:22)
129
porção intelectualizada desta é que Sêneca demonstrará, ao longo das Epistolae, que o
indivíduo:
Quam multi poetae dicunt, quae philosophis aut dicta sunt aut dicenda? Non attingam
tragicos nec togatas nostras: habent enim hae quoque aliquid seueritatis et sunt inter
comoedias ac tragoedias mediae. Quantum disertissimorum uersuum inter mimos
iacet! Quam multa Publilii non excalceatis, sed coturnatis dicenda sunt! (SÊNECA,
Ad Lucil. VIII, 8)99
Esse trabalho de conversão é feito por Sêneca – como se impunha pelo meio
além de captar, não só a benevolência mas a também a cumplicidade do leitor, recurso que
“Egregie hoc tertium Epicurus, cum uni ex consortibus studiorum suorum scriberet: “haec,
inquit, ego non multis, sed tibi: satis enim magnum alteri theratrum sumus.” (SÊNECA, Ad
Lucil. VII,12)100
Inimica est multorum conuersatio: nemo non aliquod nobis uitium aut commendat aut
imprimit aut nescientibus allinit. Vtique quo maior est populus cui miscemur, hoc
periculi plus est. Nihil uero tam damnosum bonis moribus quam in aliquo spectaculo
desidere; tunc enim per uoluptatem facilius uitia subrepunt. (SÊNECA, Ad Lucil.
VII,2)101
99
Quantos poetas há que já disseram o que os filósofos ou já disseram ou hão-de dizer um dia! Nem preciso
recorrer aos trágicos, ou às nossas pretextas (peças estas que possuem uma certa seriedade que as coloca a
meio caminho entre as comédias e as tragédias): até nos mimos, que quantidade se não encontra de versos
excelentes! Quantos versos não escreveu Publílio dignos de personagens de coturno, e não de gente descalça!
100
Em terceiro lugar há este dito notável de Epicuro, em carta dirigida a um dos seus companheiros de
estudos: “eu não escrevi isto para muitos, mas sim para ti; contemplarmo-nos um ao outro é espetáculo
suficiente”.
101
“É-nos prejudicial o convívio com muita gente: não há ninguém que nos não pegue qualquer vício, nos
contagie, nos contamine sem nós darmos por isso. Por isso, quanto maior é a massa a que nos juntamos, tanto
maior é o perigo. E nada há tão nocivo aos bons costumes como ficar a assistir a algum espetáculo, pois é
pela via do prazer que os vícios se nos insinuam mais facilmente.”
130
Mas, apesar de falar para a sua própria classe social, propondo-lhe a adesão ao
Consortium rerum omnium inter nos facit amicitia; nec secundi quicquam singulis est
nec aduersi; in commune uiuitur. Nec potest quisquam beate degere qui se tantum
intuetur, qui omnia ad utilitates suas conuertit: alteri uiuas oportet, si uis tibi uiuere.
Haec societas diligenter et sancte obseruata, quae nos homines hominibus miscet et
iudicat aliquod esse commune ius generis humani, plurimum ad illam quoque de qua
loquebar interiorem societatem amicitiae colendam proficit; omnia enim cum amico
communia habebit qui multa cum homine. (SÊNECA, Ad Lucil. XLVIII, 2-3)102
Evidentemente, a amizade aqui não deve ser vista primeiramente como a interpretamos
hoje, mas segundo a mesma concepção defendida por Cìcero em Laelius de Amicitia: um
romanidade não se dá pela introdução de novos valores, mas pelo reequacionamento dos já
existentes, para adequá-los à nova realidade política, que apoiava – o Império -, e uma
Por conseguinte, mesmo agregando-lhe uma dose extra de Estoicismo, sua visão da
romanidade é mais ampla que a de Cícero, uma vez que não se pretende voltada apenas
para a elite urbana, mas para a elite daquele Império, para quem Sêneca constrói, de fato,
além de diversas outras obras suas, que focam em pontos mais específicos. No entanto,
mesmo mais ampla, a romanidade, tal como proposta por Sêneca, a que chamaremos
102
“A amizade estabelece entre nñs uma comunhão total de interesses; nem a felicidade nem a adversidade
são fenômenos individuais: vivemos para a comunidade. Não é mesmo possível alguém viver feliz se apenas
se preocupar consigo, se reduzir tudo as suas próprias conveniências: tem de viver para os outros quem quiser
viver para si mesmo. A convivência, - observada com nobre e contínuo empenho, - que nos insere como
homens entre outros homens e admite a existência de algo comum a todo o gênero humano, é da maior
importância para o desenvolvimento daquela convivência mais íntima – a amizade – de que eu há pouco
falava. Quem tiver muito de comum com os outros homens, terá tudo em comum com o seu amigo.”
131
romanidade imperial, não abandona nenhum dos valores do mos maiorum, ao contrário,
Sua posição a respeito do mos maiorum fica clara ao exortar seu leitor a fazer-se
O, felicem illum, qui non praesens tantum, sed etiam cogitatus emendat! O felicem,
qui sic aliquem uereri potest, ut ad memoriam quoque eius se componat atque ordinet!
Qui sic aliquem uereri potest, cito erit uerendus. Elige itaque Catonem: si hic tibi
uidetur nimis rigidus, elige remissioris animi uirum Laelium. Elige eum cuius tibi
placuit et uita et oratio et ipse animum ante se ferens uultus: illum tici semper ostende
uel custodem uel exemplum. Opus est, inquam, aliquo, ad quem mores nostri se ipsi
exigant: nisi ad regulam praua non corriges. (SÊNECA, Ad Lucil. XI, 10)103
Claro, Sêneca poderia também querer indicar a si mesmo como esse modelo a ser seguido.
Ademais, Sêneca introduz, como vimos, um novo gênero na literatura latina, meio
pelo qual, sabia o filósofo, conseguiria rápida divulgação de suas ideias e de sua visão da
sociedade romana.
Sêneca, reflete muito de sua visão identitária, a da romanidade imperial. Avaliamos, além
disso, que Octauia seja uma obra que estabelece novos padrões para o relacionamento
entre História e Literatura, numa configuração que pode ter sido herdada, ou retomada,
103
Feliz o homem que, não apenas pela sua presença, mas até pela sua imagem torna os outros melhores!
Feliz o homem capaz de ter por alguém tanto respeito que a simples lembrança do modelo basta para lhe dar
ordem e harmonia espiritual! Quem for capaz de ter por alguém um tal respeito, em breve inspirará por seu
turno respeito idêntico. Escolhe, por exemplo, Catão, se este te parecer demasiado rígido, escolhe Lélio, que
é homem de espírito mais maleável. Escolhe alguém cuja vida, cujas palavras, cujo rosto, enfim, espelho da
própria alma, sejam do teu agrado. Contempla-o sempre, ou como teu vigilante, ou como teu modelo. Temos
necessidade, repito, de alguém por cujo caráter procuremos afinar o nosso: riscos tortos só se corrigem com a
régua!
132
foi a trajetória deste até nossos dias e também o porquê de sua autoria haver suscitado
tamanhos embates. Consideramos tal procedimento necessário posto poder explicar muito
sobre o valor do próprio texto de Octauia como reflexo do pensamento de Sêneca. Mas,
antes ainda, cremos necessário detalhar o panorama específico da literatura latina dos
Império, acrescido dos regimes ainda mais repressores de Tibério e Calígula, fizeram
possibilidade de ser veículo de circulação de ideias novas, não nos esqueçamos de que, em
muito do que se produz nesse momento, subsistem ainda a sátira ao poder – que o caso de
Fedro bem exemplifica -, a crítica política – bastando relembrar o já dito sobre Lucano – e
mesmo o panfletarismo ideológico, que pôde ser feito mesmo sob a sombra do imperador,
133
como o faz o próprio Sêneca. Entretanto, em que pesem todos esses consideranda, Ludwig
Los dos impulsos a que debe su existencia la literatura romana llegan casi a un estado
de quietud: la imitación creadora de los griegos y la expresión de la propia manera de
ser en las formas así elaboradas. El empleo, hasta la extenuación, de los géneros
literarios y el sentimiento vital de una cultura tardía no tienen menos parte en este
acabamiento que el profundo cambio político, que cada vez se hace sentir más.
(BIELER, 1992:255)104
forma, descrendo de que a “expressão de sua prñpria maneira de ser”, ou seja a expressão
prescindindo de inovações formais. Além do que, a historiografia literária nos mostra que
as inovações de forma e de conteúdo literários raramente soem andar juntas; e que, após
inexistem ou se dão em menor grau, porém são estes aqueles períodos em que se filtram,
para compreender-se melhor a geração de Sêneca, não podemos nos esquecer de que esta é
a geração que sucede à de homens como Virgílio, Horácio e Ovídio. A geração de Sêneca
pode, pois, ser comparada a um trovão ao longe: brilha, mas sem causar estrondo.
Vale, então, inquirirmo-nos se não será paradoxal o fato de que um autor como
Sêneca, de inegável valor como filósofo, e como um filósofo que se vale da literatura para,
através de sua produção escrita, divulgar ideias complexas, e que ademais busca, como
tradições culturais que visava resgatar, tenha sido, por força da geração a que pertence, tão
monocromático como Bieler o retrata? Ou antes, não poderíamos considerar que a mesma
104
“Os dois impulsos a que a literatura romana deve sua existência chegam quase a um estado de quietude: a
imitação criadora dos gregos e a expressão da própria maneira de ser nas formas assim elaboradas. O
exemplo, até o cansaço, dos gêneros literários e o sentimento vital de uma cultura tardia não têm parte menor
neste fim que a profunda mudança política, que se faz sentir cada vez mais.”
134
complexidade temática detectada nos demais textos de Sêneca pode estar implícita, de
modo mais sutil e sob os disfarces da métrica e da estilística, em suas obras teatrais?
a produção teatral de Sêneca e seus demais textos. Há um fato, porém, que é elemento
complicador para que tenhamos, enfim, uma resposta satisfatória: o problema da datação
Passaremos a expor questões relativas à autoria da obra, porque cremos que muita
5.2.1 A datação
externos: referências a eventos políticos, sociais, naturais, etc.; contudo, as peças teatrais
que têm sua autoria confirmada não contêm um elemento referencial sequer que nos
permita conjecturar qualquer perspectiva sobre a data de sua produção. A hipótese mais
provável sobre o tema é, contudo, a defendida por Grimal e apresentada abaixo por
Dumont e François-Garelli:
... si l‟on considère la longueur des textes, le soin méticuleux apporté à la composition
et à la métrique (ses trimètres sont les plus soignés de toute la littérature dramatique
latine et ses chœurs font appel à la métrique difficile et raffinée des Odes d‟Horace), si
parallèlement on tient compte de la vie mouvementée de Sénèque, on conçoit
aisément, comme P. Grimal (1978), que les tragédies aient pu naître dans une période
de calme relatif, à un moment où, à l‟écart de la vie publique, il put se concentrer à
loisir sur la composition de ces textes difficiles. On songe tout naturellement à la
période de l‟exil ou à celle de la retraite. (...) Mais ce n‟est là qu‟une hypothèse fragile
135
que rien, dans les textes eux-mêmes, ne permet d‟étayer solidement. (DUMONT;
FRANÇOIS-GARELLI, 1998: 153)105
Se reforçam a opinião de Grimal sobre ter havido apenas dois períodos durante a
vida de Sêneca em que o filósofo poderia ter-se dedicado a escrever suas tragédias;
Octauia, por força de sua temática, somente poderia estar datada entre os anos 62, morte da
jovem, e 65, morte de Sêneca. Ou seja, durante seu período de retirada da vida pública.
Entretanto, mesmo em seu afastamento, cremos que Sêneca teria tido pouco tempo
disponível para a redação de uma obra como Octauia, afinal, é neste momento prolífico de
considerando o ápice de sua produção filosófica; e também em que tece, de modo sutil,
suas críticas ao governo de Nero. Contudo, dada a extensão (982 versos), a simplicidade do
vocabulário e da métrica (trímetros jâmbicos, métrica que Sêneca dominava com maestria,
e dímetros anapésticos nas falas do coro), sugerem ter podido Sêneca escrevê-la mesmo
neste período. Hipótese esta que se reforça pelo fato de ter Sêneca escrito até os seus
momentos derradeiros, conforme nos é relatado por Tácito: “Et nouissimo quoque momento
suppeditante eloquentia, aduocatis scriptoribus pleraque tradidit, quae, in uulgus edita eius uerbis,
A esta hipótese agrega-se outra, de caráter estilístico: todas as obras de Sêneca são
tragédias diretamente inspiradas em consagradas obras gregas; Octauia, por sua vez, é uma
105
“...se consideramos a extensão dos textos, o cuidado meticuloso dado à composição e à métrica (seus
trímetros são os mais cuidados de toda a literatura dramática latina e seus coros relembram a métrica difícil e
refinada das Odes de Horácio), se paralelamente tomamos em conta a vida movimentada de Sêneca,
concebemos tranquilamente, como P. Grimal (1978), que as tragédias teriam podido nascer num período de
calma relativa, em um momento em que, distante da vida pública, pôde concentrar-se com tranquilidade na
composição destes textos difíceis. Imaginamos naturalmente o período do exílio ou o da retirada (...) Mas
isso é apenas uma hipñtese frágil que nada, nos textos em si, permite estabelecer solidamente.”
106
“E então, nos derradeiros momentos, chamados os secretários, com abundante eloquência, ditou-lhes um
discurso que não desejo desfigurar e que está nas mãos de todo mundo, divulgados nos seus próprios
termos.” (TÁCITO, 1967: 419; tradução de Leopoldo Pereira)
136
pertinência de Octauia a esse gênero possa ser questionada, como veremos adiante.
problema insolúvel; salvo, hipótese remotíssima, que algum achado arqueológico lance-lhe
nova luz; Octauia deve ser estudada também por apresentar dados sobre a relação entre
conhecimento e poder em Roma e, ainda, sobre estas mesmas personagens históricas, aqui
formação do senso comum sobre estas personagens históricas – senso que os historiadores
através do qual esse senso comum é formado, a permanência dos conceitos que Sêneca
podemos considerar o conjunto de suas peças como parte secundária da obra escritural de
Sêneca; esperamos igualmente ter deixado claro que este não pode, de modo algum, ser
considerado - dentro do período histórico em que foram produzidas - como composto por
obras teatrais menores. Descremos ainda que o estabelecimento do Império tenha sido fator
temática usual para fora do debate político, assim como não acreditamos que a
cristalização dos padrões formais, que certamente ocorreu, seja em si mesmo um fator pelo
qual se possa diminuir o quociente qualitativo da literatura latina do primeiro século 107. Por
último, persiste o problema da datação das obras, problema em que Octauia se iguala
107
Até porque, na Antiguidade, a criatividade formal não era um quesito de valor literário tão importante
como será entre os séculos XVIII e XXI de nossa era.
137
autoria desta obra, o que começaremos a fazer reconstruindo a trajetória de como este e os
que Gauthier Liberman, em seu estudo sobre o texto de Octauia, bem detalha a trajetória:
Ainda sobre o tema, Léon Herrmann nos informa que, nos códices descendentes de [A],
denominados Vaticanus lat 1647 [l], de 1391; Ambrosianus D 276 (M) e Vaticanus lat
1769 [N], Octauia aparece ora intercalada entre outras obras, ora ao final. Segundo
Herrmann, o codex Vaticanus [l] é precedido do seguinte comentário: “Marci Lucii Annei
Senece tragedie nouem hercules, troades, phenissa, medea, phaedra, oedipus, agamemnon,
thiestes, hercules, octauia feliciter incipiunt” (HERRMANN, 1924: 1)109. É curioso pois
108
Devemos a sobrevivência da única pretexta romana integralmente conservada à junção de Octauia ao
grupo das tragédias atribuídas a Sêneca. Desses, ela é a única cujo texto não nos foi transmitido pelos dois
ramos da tradição: o famoso E(truscus = Laurentianus Plut 37,13), manuscrito do fim do século XI, não traz a
Octauia, que nos chegou graças aos descendentes do manuscrito perdido [A]², dos quais nenhum é anterior
ao século XIII, e que se agruparam em duas famílias: α (C, S; V) e δ (P; T; G; Florilégios). Os dois ramos, E
e [A] remontam, em última análise, às duas coletâneas da Antiguidade tardia.
109
Felizmente estão no princípio nove tragédias de Marco (sic) Lúcio Aneu Sêneca: Hercules (Furens),
Troades, Phenissa, Medea, Phaedra, Oedipus, Agamemnon, Thiestes, Hercules (Oetaeus), Octauia.
138
que, citando nove peças, sejam enumeradas dez, o que pode evidenciar dúvidas do copista
Ao longo dos séculos, o fato de ter sido Sêneca o autor desta obra foi alvo de
em dúvida a autoria foi Coluccio Salutati, que, em 1371, já escrevia: “Ego uero, cum diu
de ceteris dubitarem eo quod longe a saeculo Senecae uiderentur extraneae, Octauiam post
O que fica ainda por interrogar-se é justamente o fato que nos leva a seu exame: por
que razão teria sido esta obra, ainda que erroneamente, atribuída a Sêneca? E por que razão
pode-se duvidar de sua autoria? Afinal, a questão da ausência do texto em um dos códices
originais não seria, por si só, um grande problema, se o texto em si não desse ensejo a
tantos questionamentos que desafiassem a crença em ter sido Sêneca seu autor, sendo a
principal delas a que vemos abaixo, conforme nos assevera André Cartault:
L'Octauia, qui est une praetexta, la seule qu'on ait conservée, et qui traite de la mort
de la femme de Néron en 62, ne saurait être de Sénèque, puisqu'il y est question de la
chute de Néron, qui eut lieu en 68. On n'est pas d'action sur la date de la pièce. Il ne
semble pas qu'elle soit de beaucoup posterieure à Néron. (CARTAULT, 1922: 132)111
110
“Na verdade, como além disso eu há muito tempo duvidasse daquilo que já no tempo de Sêneca pareceria
estranho, supunha que Octauia certamente foi composta apñs sua morte.”
111
“A Octauia, que é uma pretexta, a única que conservamos, e que trata da morte da mulher de Nero em
62, não poderia ser de Sêneca, já que ali se trata da queda de Nero, que ocorreu em 68. Não parece que seja
muito posterior a Nero.”
139
extraordinário em Roma, e que, após tantos crimes, fosse facílimo pressupor que a vez do
imperador não tardaria, o fato do texto tratar da morte de Nero – ocorrida após a de Sêneca
– é considerado como o principal impedimento para que esta autoria seja ratificada como
do filósofo. A par desse fato, também a estilística, a métrica, a qualidade dos diálogos, o
vocabulário, enfim, depõem contra a crença em Sêneca como sendo autor da obra.
uma dose de violência, cruel e crua, inimaginável nas obras gregas que lhes deram origem.
Sêneca o autor desta obra são os seguintes, conforme arrolados por Dumont e François-
Garelli:
Le portrait de Néron, très caricatural, évoque plutôt l‟image que Tacite s‟efforça de
répandre. Octavie pourrait être l‟œuvre d‟un auteur de Galba ou de Vespasien, lorsque
la condamnation de Néron caractérise un courant politique pro-stoïcien qui reprend
vie.
Sénèque se met lui même en scène. Balbus, dit-on, l‟avait dèjà fait en 43. Mais cela
constituait à peine un précédent: la lettre d‟Asinius Pollion à Cicéron (Fam. X, 32) sur
ce thème souligne le ridicule et l‟absence de scrupules de ce questeur un
comportement par ailleurs méprisable.
Lorsqu‟on les compare à ceux des tragédies mythologiques, la langue, le style, et la
métrique d‟Octavie trahissent certaines insuffisances. Le vocabulaire est peu élaboré,
répétitif, et les chœurs n‟utilisent que le dimètre anapestique. (DUMONT;
FRANÇOIS-GARELLI, 1998: 172)112
112
“O retrato de Nero, muito caricato, evoca antes a imagem que Tácito se esforçou em pintar. Octauia
poderia ser a obra de um autor de Galba ou de Vespasiano, até porque a condenação de Nero caracteriza uma
corrente política pro-estoica que reganha vida.
Sêneca se coloca ele mesmo em cena. Balbo, diz-se, já o havia feito em 43. Mas isso constituía um
mal precedente: a carta de Asínio Polião a Cícero (Fam. X, 32) sobre o assunto sublinha o ridículo e a
ausência de escrúpulos deste questor, um comportamento aliás desprezível.
Ainda que se comparem essas duas tragédias mitológicas, a língua, o estilo, e a métrica de Octauia
traem certas insuficiências. O vocabulário é pouco elaborado, repetitivo, e os coros utilizam apenas o dímetro
anapéstico.”
140
Mesmo sendo estes argumentos respeitáveis, convém notar que os estudiosos que advogam
a causa de Sêneca como autor de Octauia conseguem refutá-los quase todos, conforme se
pode verificar através da longa e ardorosa, porém necessária, citação de Alfred Gudemann:
Durante mucho tiempo se ha discutido que Séneca sea el autor de este ciclo de
dramas, aunque ello esté certificado por citas a su nombre y por la tradición
manuscrita unánime. Mas hoy se dan por infundadas las dudas sobre la autenticidad,
pues todas las tragedias reflejan de modo inequívoco el espíritu y el estilo del filósofo.
La misma Octauia, que nos presenta el trágico destino de la esposa de Nerón,
primero repudiada y luego condenada a muerte, ha sido recientemente defendida de
nuevo como auténtica, con razones de mucho peso. Claro está que no pudo ser
publicada en vida del César. El mismo Séneca figura en la obra, e intenta, aunque en
vano, volver a la razón al mal aconsejado emperador, que arde en amor por la hermosa
Popea. Incluso la profecía del asesinato de Nerón, acaecido tres años después de la
muerte de Séneca, no es insuperable obstáculo para admitir la autenticidad, si se tiene
en cuenta la suerte de los dos césares que precedieron a Nerón en el trono.
Precisamente en Séneca se encuentran vaticinios o atisbos del futuro aun más
desconcertantes: por ejemplo, en la Medea y en las Naturales Quaestiones.
Si las tragedias no eran más que un reflejo, en parte una desgraciada corrección
retórica de sus espléndidos originales griegos, habiendo la mayoría sido escritas
durante su destierro, la pretexta Octauia pertenece al penúltimo año de la vida del ya
anciano autor. Tratándose de una tragedia de contenido romano, el autor estaba
reducido a sus propias dotes de composición y de invención, así por lo que se refere a
la forma como a la intriga. Constituye, pues, espléndido testimonio de su talento
poético el que esta obra resultase, con mucho, la más importante producción de su
Musa dramática, Quod uoluit, effecit (“realizñ lo que quiso”): con estas palabras
concluye su crítica Quintiliano, que ciertamente no se distingue por su benevolencia
hacia Séneca. (GUDEMANN, 1942:200-01).113
113
“Durante muito tempo se discutiu que Sêneca seja o autor deste ciclo de drama, ainda que isso esteja
certificado por menções a seu nome e pela tradição manuscrita unânime. Mas hoje se dão por infundadas as
dúvidas sobre a autenticidade, pois todas as tragédias refletem de modo inequívoco o espírito e o estilo do
filósofo.
A própria Octauia,que nos apresente o trágico destino da esposa de Nero, primeiro repudiada e logo
condenada à morte, foi recentemente defendida de novo como autêntica, com razões de muito peso. Claro
está que não pôde ser publicada durante a vida do César. O próprio Sêneca figura na obra, e tenta, ainda que
em vão, trazer à razão o mal aconselhado imperador, que arde em amor pela bela Popeia. Inclusive a profecia
do assassinato de Nero, acontecido três anos depois da morte de Sêneca, não é um obstáculo insuperável para
admitir a autenticidade, se se leva em conta a sorte dos dois césares que precederam a Nero no trono.
Precisamente em Sêneca se encontram vaticícios ou previsões de futuro ainda mais desconcertantes: por
exemplo, em Medeia e nas Naturales Quaestiones.
Se as tragédias não eram mais um reflexo, em parte uma desgraçada correção retórica de seus
esplêndidos originais gregos, tendo a maioria sido escritas durante seu desterro, a pretexta Octauia pertence
ao penúltimo ano da vida do já ancião autor. Tratando-se de uma tragédia de conteúdo romano, o autor estava
reduzido a seus próprios dotes de composição e de invenção, tanto no que se refere à forma quanto à intriga.
Constitui, pois esplêndido testemunho de seu talento poético que esta obra resultasse, com vantagem, na mais
importante produção de sua Musa dramática. Quod uoluit, effecit (“realizou o que quis”): com estas palavras
conclui sua crítica Quintiliano, que certamente não se distingue por sua benevolência em relação a Sêneca.”
141
Expostos os argumentos pró e contra a autoria, aos quais retomaremos adiante, devemos
ainda pensar a encenação de Octauia. Nesse aspecto, vale notar que Octauia é um texto
teatral cuja única rubrica – indicações de encenação, tais como cenário, vestuário, etc – é
“scaena romae DCCCXV ab vrbe condita”114, fato que reforça a tese de que o texto tenha
sido escrito, apesar do formato teatral, para leitura. Hipótese essa que é corroborada por
Gudemann:
anterior – ser averiguada pelos que se dedicam ao estudos das letras latinas; contudo,
qualquer afirmação definitiva a respeito do tema está sujeita também ao, improvável porém
vigente, surgimento de qualquer informação, nova e categórica, que nos leve a rever as
iniciar este exame com uma visão panorâmica do que este texto representa e apresenta.
114
“Cena em Roma, no ano 815 da fundação da cidade.”
115
Amiúde se suscitou a questão de se essas tragédias foram algumas vez encenadas na antiguidade. Sua
estrutura técnica consentia perfeitamente uma representação cênica. Tal representação, contudo, não é
verossímil, sobretudo porque Sêneca, contra a teoria e a prática unânimes dos antigos, nos apresenta
diretamente cenas de horror, comoventes e sangrentas, em vez de fazê-las mencionar por um mensageiro. Ou
então se permitia simplesmente em cena o que não feria nenhuma suscetibilidade na arena do anfiteatro? Por
desgraça, ignoramos se as tragédias de seu contemporâneo, o citado Pompônio Segundo, seguiam uma
técnica dramática análoga. Fosse esse o caso e se poderia responder afirmativamente aquela pergunta.
142
latina, compilado por sir Paul Harvey, dedica um verbete o qual, condensado, tem o
seguinte teor:
Trata-se pois de uma peça em que são narrados os últimos momentos da vida
ordem de seu marido. Sua morte dará início a um novo patamar do terror com que Nero,
desde o fim do quinquennium Neronis, vinha marcando seu governo, e também ao intento
de destruição das últimas prerrogativas políticas herdadas da República. Mais que isso,
significa desfazer-se da imagem de “príncipe ideal” que, assessorado por Sêneca, até então
se empenhara em construir.
culminariam com o assassinato de Nero e com a guerra civil de 69; o repúdio e a morte de
Otávia terá atingido fortemente a consciência dos cidadãos romanos, uma vez que a
Todos estes fatores, quando somados, permitem-nos entender a razão por que esta
razão pela qual esta obra – apesar de ser, sob diversos aspectos, considerada de qualidade
inferior – se haja perpetuado até nossos dias, tornando-se inclusive, como Harvey afirma, a
integralmente.
143
igualmente certeza sobre a época da composição da obra: Harvey fala ter sido composta
por um “imitador tardio”, já Cartault diz-nos que esta obra não parece ser posterior a Nero.
Acreditando que um tema tão ligado a um período específico da História não seria passível
de despertar, no público dos séculos seguintes, interesse tal que ensejasse a redação de uma
peça, tendemos a concordar com Cartault: tal obra deve ter sido composta em período em
É esta, enfim, a conclusão a que chega Herrmann: pressupondo que a peça tenha
sido composta em um período não superior a vinte anos após a morte de Otávia, isso nos
faz estimar que o texto tenha sido escrito durante o governo dos Flávios – entre 69 e 96
L‟hypothèse que nous avons faite et qui du reste ne nous appartient qu‟en commun
avec de nombreux contemporains est la suivante: la pièce aurait été écrite au début du
règne de Vespasien par un élève de Sénèque, désireux de faire son apologie et de
l‟imiter dans le genre de la prétexte qu‟il n‟avait pas abordé. (HERRMANN,
1924:167.)116
Aceita esta hipótese - até porque constitui-se na mais plausível das que se
apresentam – fica patente que, se Octauia, apesar de todas as argumentações em prol, não é
de fato obra de Sêneca, será, outrossim, um dos melhores reflexos, no âmbito literário, de
seu pensamento.
116
“A hipñtese que levantamos e que ademais temos em comum com diversos contemporâneos é a seguinte:
a peça teria sido escrita no início do reinado de Vespasiano por um aluno de Sêneca, desejoso de fazer sua
apologia e de imitá-lo no gênero de pretexta, que ele jamais abordara.”
144
divulgar o estoicismo como escola filosófica e defender um retorno aos valores do mos
maiorum, Octauia serve ainda como prova da popularidade de Sêneca e do quanto seu
pensamento se divulgara. Sobre este mesmo autor, deduz-se que não tenha sido homem de
letras, pois, se o fosse, certamente seu nome seria mencionado em algum dos estudos
literários de primeira mão que nos chegaram e sequer te-lo-iam confundido com Sêneca;
além disso, resta dizer que todos os autores pesquisados concordam em que terá sido
alguém próximo a todas as personagens históricas que menciona: decerto algum membro
da corte cujo nome, lamentavelmente, não chegou até nós. Como ilustração dessa teoria,
recorreamos a Liberman: “il est contemporain des faits, plus ou moins stylisés, qu‟il
rapporte; il émane peut-être d‟un témoin oculaire; il y est mis en œuvre une analyse
caracterizar o autor anônimo como “imitador tardio” e entender a peça como “tediosa”,
esclareceremos em outro momento -, além disso, a expressão “imitador” sugere uma tarefa
de plagiário, o que o autor anônimo certamente não foi, o que reafirmamos com o seguinte
117
Denominado Pseudo-Sêneca nas edições de Octauia publicadas pela Les Belles Lettres, mas que
preferiremos chamar “autor anônimo” para evitar o tom pejorativo que o termo “pseudo” assume em
português.
118
“ele é contemporâneo dos fatos, mais ou menos estilizados, que narra, talvez uma testemunha ocular;
colocou na obra uma análise notável da tirania.”
145
relações com outras obras das literaturas latina e grega, nesta, o caso mais flagrante é
nos mostra que o autor anônimo, mesmo não sendo um, pelo menos conhecido,
profissional das letras, era conhecedor da produção literária canônica, tanto a grega quanto
a das gerações latinas precedentes e também a de seu próprio tempo, estando em condições
de com ela dialogar e de usá-las para a elaboração de sua própria obra, configurando estas
referências antes como um diálogo intertextual do que como um recurso motivado pela
Quanto a considerar Octauia uma obra “tediosa”, cremos que, mesmo havendo um
grande número de repetições no texto, o “tédio” em questão resultará antes do olhar que
lancemos à obra durante sua leitura, porque pensamos que suas possibilidades de leitura
Contudo, se obediente no respeito à divisão da obra em cinco atos, nosso autor aparenta ter
cometido um grande desequilíbrio na divisão dos versos relativos a cada ato: se o primeiro
ato tem 376 versos, o segundo terá 215 (versos 377 a 592); o terceiro terá apenas 96 versos
(593 a 689); o quarto ato terá 129 (versos de número 690 a 819) e o quinto e último, 162
(820 a 982).
Fica a pergunta: esta divisão tão desproporcional dos atos será demonstração da
falha criativa do autor ou servirá a algum propósito estilístico? Cremos na segunda opção,
cena; de fato, bem poucas são as cenas em que chegamos a ter três personagens; quase toda
119
“Quando recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do que quando, apresentadas à
fidelidade dos olhos, o espectador mesmo as testemunha; contudo, não se mostrem em cena ações que
convém se passem dentro e furtem-se muitas aos olhos, para as relatar logo mais uma testemunha eloquente.
Não vá Medeia trucidar os filhos à vista do público; nem o abominável Atreu cozer vísceras humanas, nem se
transmudará Procne em ave ou Cadmo em serpente diante de todos. Descreio e abomino tudo que for
mostrado assim.
Para ser reclamada e voltar à cena, não deve uma peça ficar aquém nem ir além do quinto ato; nem
intervenha um deus, salvo se ocorrer um enredo que valha tal vingador; nem se empenhe em falar uma quarta
personagem. Que o coro desempenhe uma parte na ação e um papel pessoal; não fique cantando entre os atos
matéria que não condiga com o assunto, nem se ligue a ele estreitamente. Cabe-lhe apoiar os bons, dar
conselhos amigos, moderar as iras, amar aos que se arreceiam de errar; louvar os pratos da mesa frugal, bem
como a justiça salutar, as leis, a paz de portas abertas; guarde os segredos confiados a ele, ora aos deuses,
peça que a Fortuna volte aos infelizes e abandone os soberbos.” Segundo a tradução de Jaime Bruna em
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética Clássica. 5 ed., São Paulo: Cultrix, 1992. págs. 60-61.
147
a peça é movida por longos monólogos e/ou diálogos entre grupos muito bem
determinados: Otávia, Popeia e suas respectivas amas; Sêneca e Nero, Nero e o prefeito do
palácio – que supomos ser representação de Tigelino, uma vez que Burro também morre
que demonstra até mesmo um certo desprezo pela figura dos deuses, esta se encontra no
verso 449, em que Nero, referindo-se ao poder do Senado de, com a chancela do
Augusto e outros - pergunta a Sêneca: “Stulte uerebor, ipse cum faciam, deos?”120
Igualmente não encontraremos, nesta obra que foi atribuída a Sêneca, o mesmo
estilo violento que caracterizou o cordobês: embora se faça menção a diversos atos de
violência cometidos por ou por ordem de Nero, em todos estes a ação é descrita no texto de
Contudo, em determinado momento (versos 593 a 645), o autor rompe violentamente com
que narra ao público seus últimos momentos. A cena, se chegou a ser algum dia
dramatizada – do que duvidamos – certamente terá tido grande impacto junto ao público,
mesmo porque, até o momento da morte de Otávia, este era o maior dos crimes que se
atribuíam a Nero.
Interessa, outrossim, ressaltar o que nos parece ser uma inovação do autor anônimo:
Isto em si não é uma novidade, pois sabe-se de diversas peças gregas que
procediam dessa forma; contudo, a inovação aqui reside nos seguintes fatos: a) não
120
“Sou idiota de temer os deuses que eu mesmo proclamo?
148
tivemos notícia de qualquer obra romana em que dois coros fossem utilizados, e b) mesmo
entre as peças consultadas, tampouco soubemos de alguma em que os dois coros tomassem
explicitamente partido pelas personagens: há um que apoia Otávia como legítima esposa de
Nero e co-herdeira do trono, e outro, que apoia Popeia e que defende seu casamento com o
imperador.
Percebe-se, pois, que, mais que “desempenhar uma parte na ação”, os coros
quarto ato, entre os versos de número 762 e 819, um dos coros – o de Popeia - dialoga
considerar este procedimento de dar ao coro estatuto de personagem uma inovação, uma
vez que não encontramos qualquer referência a que este recurso tenha sido usado por
qualquer outro autor romano, fato que acaba por distanciar ainda Octauia do conjunto da
dramaturgia senequiana, pois nesta, segundo Bieler: “...el coro actúa por completo a la
Sêneca supram sua tarefa de admoestar a Nero por seus erros; mesmo assim, a personagem
Sêneca, usando sempre da Filosofia para fazê-lo, dista bastante da figura quase mítica que
os corifeus assumiam nas tragédias gregas e mesmo em suas adaptações por parte do
Sêneca dramaturgo.
121
“o coro atua completamente à maneira helênica”.
149
ausência de um corifeu, sejam inovações do autor anônimo, cremos também ser mister
explicar suas consequências: tendo sido o texto composto para a leitura pública, e não para
a encenação; estes coros acabam por atuar como personagens; assim fazendo, têm
diminuídos seu valor como consciência da população ou de mensageiro dos deuses que lhe
era anteriormente atribuído. Diminuído, mas não extinto, pois o coro de apoio a Otávia
continua agindo nesse sentido, como nos afirmam Dumont e François-Garelli: “La pièce
conserverait alors certains caractères du genre, notamment dans les chœurs, où les
partisans d‟Octavie énumèrent les forfaits des grands tyrans de l‟histoire romaine.
Acreditamos que uma das razões para que existam dois coros em Octauia é de que
desta maneira se imprime maior dinamismo aos diálogos e se consegue, sem incluir-se
coros, além de surtir todos os efeitos acima descritos, aumentaria o número de partes
cantadas em cena, agradando ainda mais o público romano que, segundo Bieler: “se sentía
alejado de la temática ática, pedía claramente mucha música junto al esplendor del
montaje” (BIELER, 1992: 48)123, que comenta ainda algo que nos é claramente perceptível
quando da leitura do Octauia: “El elemento musical, unido al “pathos” del lenguaje, dio a
122
“A peça conservaria então certos caracteres do gênero, notadamente nos coros, onde os partidários de
Otávia enumeram as faltas dos grandes tiranos da histñria romana.”
123
“sentia-se distante da temática ática, pedia claramente muita música junto al esplendor da montagem.”
124
“O elemento musical, unido ao pathos da linguagem, deu à tragédia romana um caráter estranhamente
barroco.”
150
Rompendo com o que fora preceituado por Horácio, sua dupla presença acaba por
dotar a peça de uma polifonia que, além de representar a divisão da opinião pública a
respeito das acusações feitas a Otávia, tem como efeito colateral aproximar o texto das
Fica claro, portanto, que, mesmo sendo Octauia, pela sua temática e estrutura, uma
tragédia, isso não impede que apresente, frente ao modelo proposto por Horácio, inovações
informações não apresentadas durante a encenação -, e que isso acarreta uma polifonia que
descrevemos acima nos leva a crer que Octauia possa ser considerada uma obra em que já
romance.
Isto é algo que de modo algum pode depor contra o autor da peça, pois uma análise
do gênero praetexta indica que este já conteria em si uma forma embrionária de romance,
ordena um estudo mais acurado tanto da fabula praetexta quanto de suas relações com o
independentemente da categoria textual em que Octauia possa - com maior ou menor grau
de conforto - ser enquadrada, é fato que também deve ser lida como o documento que mais
nitidamente evidencia a relação Literatura e História na cultura romana, mesmo porque foi
espaço para que realizemos uma abordagem de Octauia como texto referencial desta
151
relação, sem dúvida importantíssima para uma cultura como a romana, que tudo registrava
Deste modo, acreditamos que a próxima abordagem que se deva realizar sobre o
texto de Octauia seja a reflexão a respeito de como, a partir deste texto, começaram a
Latina, onde um gênero como o romance histórico – que guarda íntima relação com o teor
textual de Octauia Ŕ é dos mais férteis. Caberá pois examinar mais amiúde tanto o
que esta relação assumiu no Império, assim como, para determinar qual o lugar que se
pode, hoje, conferir ao texto de Octauia, examinar também as releituras sofridas por este
narrava sua História, devemos estabelecer as linhas principais deste padrão de narrativa.
Todos os autores de que nos vimos servindo ao longo deste trabalho são unânimes
em apontar Névio (circa 270-199 a.C) como o criador do gênero. Ao que se sabe, Névio
era natural da Campânia, mas havia obtido cidadania romana 125; compunha basicamente
comédias e restam-nos títulos e fragmentos de pelo menos 34 obras suas de gênero cômico.
Foi contemporâneo de Ênio e sabe-se que o jovem Plauto o conheceu já na velhice. Sobre
125
Névio pode, portanto, ser considerado, como Cícero, um cidadão não-citadino oriundo da Itália.
152
seguir para um exame do que foi este gênero dramatúrgico, e deixa claro que sua
compreensão passará necessariamente pelo exame da – nem sempre pacífica - relação entre
Literatura e História.
Detectar os elos que construíam essa relação é tarefa bastante penosa em virtude da
vestígios de doze outras, tais como a Clastidium, de Névio, o Rapto das Sabinas de Ênio, o
de fontes faz com que Bieler declare, enfaticamente, que: “Los escasos fragmentos que
quedan de ésta127, como de las demás piezas de teatro “pretextas” (sñlo se conserva la obra
Octavia, atribuida a Séneca) no permiten formular ningún juicio sobre la forma artística y
126
É entretanto o fundador do drama nacional histórico, da fábula praetextata (chamada assim pelo traje, a
toga praetexta, das personagens que figuravam na mesma, pertencentes à classe senatorial), como algo
análogo à tragédia de temas tomados da lenda heroica grega. Pelos dois títulos que conhecemos – um
terceiro, Lupus, é duvidoso – e alguns fragmentos, sabe-se que numa delas dramatizou a infância e juventude
de Rômulo e Remo, e na outra a heroica vitória, viva ainda na memória geral, de M. Cláudio Marcel, que, no
ano 222, deu morte em Clastidium, em combate singular, ao chefe gaulês Virdumaro. Tende-se com
facilidade a menosprezar a originalidade de tais produções.
127
Bieler refere-se aqui a Lupus, obra de Névio.
128
Os escassos fragmentos que restam desta, como das demais peças pretextas (só se conserva a obra
Octauia,atribuida a Sêneca) não permitem formular nenhum julgamento sobre a forma artística e o estilo.
153
Entendemos que Bieler se refere ser impossível afirmar-se algo com respeito à
Contudo, uma citação de Bayet, referente a Névio, pode ajudar-nos quanto à função social
da praetexta:
Ces pièces, qui prêtaient à des étalages triomphaux et à des défilés de toute sorte,
doivent avoir été composées sur commande, à l‟occasion d‟une cérémonie nationale
ou d‟une semi-privée de la gens Claudia: ce qui suffit à indiquer que Naeuius comptait
dans la noblesse et dans l‟État aussi bien des protecteurs que des ennemis. (BAYET,
1953: 55)129
caráter formal e severo do Estado romano cujos feitos se encenavam – ficava sujeita ao
mecenato e à celebração de algum fato histórico ou social sobre o qual seria construído o
texto a encenar-se.
Isto nos autorizaria também a fazer duas outras suposições que, pensamos,
grande maioria delas deve ter sido composta para apresentação única e vinculada a um
evento específico e de público muitas vezes restrito. Tais fatos explicariam a pouca
necessidade de preservação dos textos e mesmo nos permite pensar se alguns destes,
aqueles destinados a uma única encenação, chegariam mesmo a ser escritos, uma vez que
poderiam ser memorizados pelos atores tão somente para o evento previsto.
129
Estas peças, que serviam a exposições triunfais e a desfiles de toda sorte, devem ter sido compostas sob
encomenda, na ocasião de uma cerimônia nacional ou de uma semiprivada da gens Claudia: o que basta para
indicar que Névio contava na nobreza e no Estado com tantos protetores quanto inimigos.
154
Considerando a trajetória dos cem anos anteriores a Nero, percebe-se que, decerto,
paz e harmonia a Roma – não ostentariam triunfos nem encenariam obras que narrassem os
em um ambiente onde a oposição ao novo regime, mesmo que calada, ainda se fazia sentir.
Por fim, como este é, ademais, um tempo de poucos conflitos externos para Roma, as
oportunidades deste tipo de gênero teatral tornavam-se ainda mais exíguas. Quanto à
história de seu próprio tempo, que interesse haveria para os governantes do Império em
Ao tratar da praetexta nos versos 285 a 288 de sua Epistola ad Pisones, Horácio
não esconde o orgulho de que este seja um gênero dramático genuinamente romano, mas
também confere a seus versos um tom nostálgico expresso pelos verbos no pretérito
para qualquer tipo de representação, bastando apenas, neste caso, selecionar qual
130
“Nada deixaram de tentar os nossos poetas; nem foi o menor mérito a coragem de abandonar as pegadas
gregas e celebrar os fastos nacionais, tanto dos que encenaram tragédias pretextas como dos autores de
togatas.” Segundo a tradução de Jaime Bruna em ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética
Clássica. 5 ed., São Paulo: Cultrix, 1992. pág. 63.
155
que
L‟action de l‟Octavie est un cadre historique qui n‟est pas rempli par le jeu vivant des
relations entre les nombreux personnages. Aucune scène ne confronte Octavie et
Néron. On sent trop qu‟il y a deux sujets concurrents dans la pièce, le destin d‟Octavie
et la tyrannie de Néron. Dans ce second sujet, les personnages mettent en scène non
sans artifice l‟analyse et la stigmatisation que l‟auteur fait d‟une époque, et, à travers
Néron, d‟un régime. (LIBERMAN, 1998, XI)131
Deste modo, temos em mãos um paradoxo: a única obra que nos resta de um gênero
destinado aos triunfos e às celebrações dos grandes feitos e nomes de Roma é uma obra de
Percebemos, enfim, mesmo sem termos qualquer outro texto integral que nos
permita uma comparação mais aprofundada, que Octauia é uma obra a quem o epíteto
praetexta não serve em sua justa medida, seja porque foge ao caráter triunfal e/ou
laudatório que Bayet e outros historiadores alegam ter sido característico do gênero, seja
porque se constitui justamente em seu oposto: uma obra de denúncia dos crimes de Nero.
Constata-se que o autor desta obra tinha em mente não realizar um panegírico como a
131
“A ação de Octauia é uma moldura histórica que não é preenchida pelo jogo vivo das relações entre as
numerosas personagens. Cena alguma confronta Otávia e Nero. Sentimos, demais até, que há dois temas
concorrentes na peça, o destino de Otávia e a tirania de Nero. No segundo tema, as personagens põem em
cena, não sem artifício, a análise e a estigmatização que o autor faz de uma época, e, através de Nero, de um
regime.”
156
pode trazer, quando nas mãos de um tirano. Por outro lado, se se distancia da Eneida,
Sêneca:
Mesmo sendo assaz tentador pensar em Sêneca, ou no autor anônimo, como aquele que,
por sua própria inserção como personagem de uma de suas obras, seja o criador de um
Cervantes efetua no Dom Quixote; mantemo-nos conscientes do fato de que Octauia é obra
estilos literarios; la fuerza de la retórica se robustece cada vez más, mientras se relaja la
relaciñn vital del autor con su obra.” (BIELER, 1992:256)133. E é justamente porque
Frisemos que o que aqui se discute não é o estatuto de Octauia como tragédia – já
132
“Ora, o prñprio termo praetexta, que se refere tanto à vestimenta simbólica de magistrado como à de
alguns sacerdotes, vestimenta com significação política e religiosa simbolizando o caráter sagrado do
imperium, perde seu valor assim que aplicada à Octauia. A peça celebra, tão somente, a sabedoria e as
convições anti-tirânicas do filósofo Sêneca e de um parte do povo romano. Nosso moralista era tão jocoso
para tomar a si mesmo como herói de referência?”
133
“avança o hábito de misturar-se gêneros e estilos literários, a força da retórica se robustece cada vez mais,
enquanto se afrouxa a relação vital do autor com sua obra.”
157
estar atentos a que uma obra, mesmo estando em versos, pode ser caracterizada como
narrativa, e, como tal, apresentar pontos comuns com outras tipologias textuais nas quais,
em razão de outros fatores, não poderia ser enquadrada. Por isso acreditamos que, apesar
de todos os fatores que nos autorizam a classificar Octauia como uma tragédia latina, a
Ainda é notório que, em que pese o rigor com que se atém ao cânone, Octauia não
deixa de demonstrar uma relação entre Literatura e História sem paralelo – ao menos
conhecido – na Antiguidade latina; mas cujas reverberações são perceptíveis nas literaturas
categorizá-la, convém investigar que outra categoria poderia ser-lhe aplicável. Cogitamos
ser este enquadramento possível se nos dispensarmos de buscá-los nas tipologias teatrais –
será mister discorrermos sobre como, dentro do panorama literário dos períodos supra-
Contudo, na visão do historiador “ortodoxo” – assim definido como aquele que crê
intrinsecamente ligado à experiência dos sentidos, embora lhe interessem apenas os fatos
realidade sobre a qual o historiador se debruçará, e, à primeira vista, nela não haverá lugar
para o conceito de mímese. Ainda assim o processo mimético ocorre, pois, como considera
Hayden White:
La obra histórica como lo que más manifiestamente es: es decir, una estructura verbal
en forma de um discurso de prosa narrativa que dice ser un modelo, o imagen, de
estructuras y procesos pasados con el fin de explicar lo que fueron representándolos.
(WHITE, 1992:14, grifos do autor)134
racionalismo iluminista estabeleceram a verdade como único patamar sobre o qual pode a
História construir todos os seus discursos. Voltando-nos em direção a Benjamin, este nos
alerta – e o fazendo ratifica Hayden White – para a construção discursiva do fato histórico,
pelo modo como tangenciam as ideias de coesão e coerência que devem preencher sua
134
A obra histórica como o más claramente é: quer dizer, uma estrutura verbal em forma de um discurso de
prosa narrativa que diz ser um modelo, ou imagem, de estruturas e processos passados com o fim de explicar
o que foram, representando-os.
159
momentos da história. Mas, nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato
veracidade como seu regente. A influência de tais conceitos por sobre o processo escritural
os dois saberes que vimos estudando chegou ao zênite, dando inclusive origem a um
gênero narrativo que, híbrido, contraria o senso comum da Biologia por ser extremamente
Surgido em inícios do século XIX, o romance histórico tem na obra de Walter Scott
seu modelo mais tradicional e que estabelece os princípios que lhe garantirão lugar no
coroara como os únicos válidos: linearidade narrativa; fidelidade aos fatos tidos como
“verdadeiros” pela História oficial - mostrados como pano de fundo - já que sempre se
detalhe tem grave importância no modelo scottiano: os fatos históricos tratados estarão
sempre localizados à distância, senão no espaço, mas no tempo. Será justamente este o
primeiro dado que nos impede de inserir Octauia nesta categoria, afinal, a situação
histórica retratada na peça são recentes: aceita a hipótese de Herrmann de que a obra teria
sido composta durante o governo de Vespasiano, o autor estaria, por conseguinte, tratando
Outro dado que nos dificulta classificar a obra segundo este critério é o fato de
haverem inexatidões quanto à historiografia – algo que o romance histórico não admite.
narração transmitida na peça com aquela legada pelos historiadores posteriores ao período
da ação dramática. Assim, neste momento, e nos que se seguirem, processaremos uma
comparação entre estas narrativas, tais como mostradas no texto, e sua “versão” segundo
historiografia romana.
que, segundo Suetônio (VI, 35), há uma diferença de doze dias entre o repúdio de Otávia
por Nero e seu casamento com Popeia: “Poppaeam duodecimo die post diuortium Octauiae
161
in matrimonium acceptam dilexit unice” (142-4)135. Na peça, o segundo ato termina com
Nero comunicando a Sêneca sua decisão de casar-se com Popeia – já grávida, aliás – e ao
exige, quase didaticamente, esclarecimentos quanto aos motivos das ações das personagens
históricas, e isto nos falta em Octauia, como afirma Liberman: “La pièce n‟évoque pas
jeune femme. Il n‟ya pas question de l‟accusation d‟adultère avec un esclave grec que
Popée tenta en vain de faire peser sur Octavie.” (LIBERMAN, 1998, X)136”
fatores que nos impedem de classificarmos Octauia como romance histórico, ao menos
segundo o modelo scottiano, o qual não é a único modelo que o gênero apresenta, como
veremos em seguida.
formulado por Alfred de Vigny – e destoa daquele por colocar em primeiro plano as
figuras históricas. Octauia parece estar inserida na “árvore genealñgica” deste modelo de
135
“No décimo-segundo dia após seu divórcio de Otávia considerou Popeia unida (a si) em matrimônio.”
136
A peça não evoca explicitamente o repúdio de Otávia, ela sequer menciona o pretexto, a esterilidade da
jovem. Não se menciona a acusação de adultério com um escravo grego que Popeia tenta em vão lançar sobre
Otávia.
137
In: MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, Alexis. Historia y Ficción en la Novela Venezolana. Caracas: Ediciones
La Casa de Bello, 1996.
162
mais facilmente aplicável ao caso de Octauia, até porque, se o modelo scottiano partia de
E este é, afinal, o trabalho desenvolvido pelo autor anônimo: estabelece uma tríade
que desafia o tirano (Nero) com a força que sua doutrina filosófica lhe proporciona; e a
mártir (Otávia), que simboliza em si mesma não apenas a última herdeira dos júlio-
cláudios, nem tampouco as demais vítimas do regime imperial, tal como exercido por
resignação estoica.
que, repetimo-nos, estava assentado na fusão do mos maiorum com o estoicismo: o autor
138
Obra considerada o primeiro romance histórico latino-americano, publicada no México em 1826.
139
Independentemente do modelo que primeiro nos teria inspirado, o romance histórico teve na América
Latina uma destacada preponderância sobre as demais variedades de romance em razão da premente
necessidade de construção das nacionalidades e de literaturas nacionais dentro do espaço hispano-
americano.
163
Ademais, se verídica a hipótese de que a peça tenha sido escrita antes dos Anais
de Tácito e da Vida dos Doze Césares de Suetônio; é-nos lícito imaginar também se, em
efeito reverso, não terá o texto de Octauia, literário, colaborado para o retrato histórico
que estas obras constroem destas figuras que até hoje povoam o imaginário ocidental.
outros gêneros – ou, pior, têm gêneros indefinidos - mas ainda assim tratavam da
americana, uma expressão que acreditamos poder ser estendida à literatura latina - o
termo “narrativa de extração histñrica”, cuja justificativa corrobora nossa visão acerca a),
linearidade na construção destes textos; a citação, por conseguinte, faz-se mais do que
necessária:
construções textuais que fogem às tipologias estabelecidas pelo cânone literário, como é o
Octauia – visto que o apresenta como uma rede discursiva intencionalmente elaborada e
em que se percebe que, a partir da tríade que acima mencionamos, o autor anônimo
objetiva refletir outra, aquela já expressa por Sêneca: a de uma nova identidade cultural
romana, baseada na antiga tradição de valores, ratificada pelo estoicismo e expressa através
e Literatura diferenciado daquele que as letras romanas consagraram - fato este em que nos
140
Impossibilidade esta gerada pela enorme quantidade de lacunas criadas pelas obras perdidas ao longo dos
séculos.
165
baseamos para qualificá-la como narrativa de extração histórica -, tratamento este que,
aliado a uma configuração da estrutura de tragédia que escapava parcialmente aos ditames
expostos por Horácio, e que, congregados, estes fatores aproximam o texto da peça ao
hibridismo, que trai uma intencionalidade que o autor não nos confessa, mas de que nos
dramático destinado à representação de fatos históricos romanos, temos, pelos motivos que
vimos expondo, razões para crer que o valor de Octauia não se restringe apenas a sua
pertinência ao gênero – fato que, como vimos, representará uma diminuição das
possibilidades de leitura que este texto apresenta – mas porque pensamos que este texto
embute algo até então inusitado nas obras romanas: em Octauia não se faz apenas a revisão
do período histórico precedente, mas vai-se além: a peça realiza o “julgamento público”
das personagens históricas deste período. Defendemos tal hipótese baseados na leitura do
texto e a partir da seguinte análise de Liberman, que, ao tratar da desproporção dos atos da
La disproportion entre l‟acte I et les suivants est notable; notable aussi la brièveté de
l‟acte III. L‟auteur n‟a pas su équilibrer pourvu la pièce d‟une construcion sensible:
l‟acte IV (dialogue d‟Octavie et de sa nourrice). L‟acte V, qui évoque dans sa seconde
partie l‟exil d‟Octavie et les malheurs des femmes de la maison julio-claudienne,
correspond, dans sa première partie (dialogue de Néron et du préfet), à l‟acte II
(dialogue de Néron et de Sénèque). Cette construction fait immédiatement voir que la
piéce est en fait centrée sur deux personnages, Octavie et Néron. La figure
d‟Agrippine, femme et victime, comme Octavie, de Néron, mais aussi, comme Néron,
bourreau d‟Octavie; occupe l‟acte central, où son spectre apparaît ample et magnifique
166
récit, le chœur évoque son naufrage et son assassinat, et dans l‟acte final, où le chœur
résume son infortune. (LIBERMAN, 1998, IX)141
Octauia é, sem dúvida, aquele de lamentação exposto por Harvey, pois neste ato
apresentam-se todas as dores vividas pela protagonista. Esta narra a sua ama seus
dissabores, pessoais e os de sua família: a morte de sua mãe, pai e irmão; a opressão por
parte da madrasta Agripina; o casamento forçado com Nero e a ascensão deste ao trono; o
da ama neste ato é a de tão somente proporcionar oportunidades para que Otávia se
manifeste.
leitura revisionista do passado próximo, entretanto, pensamos ser também possível ler-se a
obra como o simulacro de um julgamento, daí que o primeiro ato seria o momento em que
a vítima apresenta suas queixas ao juiz. Assim, além de expor ao público todos os
público, este longo primeiro ato serve igualmente para colocar o público na posição deste
população romana pelos fatos em curso e lamenta a decadência dos romanos do presente,
quando comparados às figuras do passado. De igual modo, nesta fala do coro – uma
141
A desproporção entre o ato I e os seguintes é notável; notável também a brevidade do ato III. O autor não
soube equilibrar a peça com uma construção sensível: o ato IV (diálogo de Otávia e sua ama). O ato V, que
evoca em sua segunda parte o exílio de Otávia e as infelicidades das mulheres da casa julio-claudiana,
corresponde, em sua primeira parte (diálogo de Nero com o prefeito do palácio), ao ato II (diálogo de Nero e
Sêneca). Esta construção faz imediatamente ver que a peça está de fato centrada sobre dois personagens.
Otávia e Nero. A figura de Agripina, mulher e vítima, como Otávia, de Nero, mas, também como Nero,
carrasca de Otávia, ocupa o ato central, onde seu fantasma realiza um longo e magnífico discurso, o coro
evoca seu naufrágio e seu assassinato, e no ato final, onde o coro resume seu infortúnio.
167
demonstrando este primeiro crime de Nero como uma prova de sua culpabilidade: Nero,
perda da paz em que vivia seu exílio na Córsega; faz um retrospecto das principais crenças
estoicas: mormente a das Eras de Ouro, Prata, etc., em que estes dividiam a história da
prefeito do palácio.
ditador Sula, fora acusado de haver atentado contra a vida de Nero; aquele, simplesmente
por ser também descendente de Augusto e, portanto, fazer parte de linha de sucessão ao
trono. Inicia-se um diálogo entre Sêneca e Nero: o filósofo admoesta o imperador sobre o
modo como vem exercendo o poder; neste diálogo presenciamos a práxis do estoicismo tal
como predicado por Sêneca em De clementia e nas Ad Lucilium epistolae morales - que
sequer haviam sido escritas em 62, ano em que se desenrola a ação dramática. Nero
imperador, tem o poder de agir do modo como o faz, logo, agir tiranicamente é apenas usar
de suas prerrogativas; e como justificativa para suas atitudes, recorre ao modus operandi
pelo qual Augusto alcança tornar-se o primeiro imperador. Nero, acusado, defende-se
alegando não ser o primeiro a abusar do poder, posto que a conduta de Augusto já lhe
Importa perceber, neste segundo ato, que a personagem Sêneca representa aqui não
naquele momento em que interroga o acusado sobre suas atitudes e o inquire sobre sua
culpabilidade. Se isto serve para realçar a figura de Sêneca como a consciência do regime
imperial, serve também para demonstrar como devem agir aqueles que manifestem sua
168
adesão às ideias por ele defendidas durante o período em que fora a “eminência parda” do
regime: o estoicismo como norma de conduta dos romanos, qualquer que seja seu nível
romanidade.
Repare-se também que, neste segundo ato, não há qualquer participação de coro,
seja porque os mesmos se refiram a Otávia e a Popeia, seja ainda porque, atuando um deles
como juiz, o mesmo deve, durante um julgamento, apenas assistir ao interrogatório do réu
pela promotoria.
O terceiro ato é o mais curto, e é, para aqueles que leiam Octauia apenas como peça
teatral, um verdadeiro intermezzo sem ligações firmes com o que até então tenha sido
mostrado: temos aqui a aparição do fantasma de Agripina, que narra em primeira pessoa
suas próprias desgraças, começando por afirmar ser, no Hades, atormentada por Cláudio,
que reclama o justo castigo para seu assassino e o de Britânico. Agripina declara ainda
estarem as Fúrias preparando para Nero um castigo ainda pior que aqueles pelos que o
Importa ainda notar que Agripina não narra aqui, novamente, os fatos de sua morte,
apenas reitera ser verídico o que dissera Otávia no primeiro ato. Ao terminar sua fala,
penitenciando-se por ter sido sempre nefasta aos seus, Agripina deixa a cena e retorna
Otávia, instando ao seu coro que deixe de chorar por ela, já que a morte que se aproxima
será linimento para seus dissabores. Responde enfim o coro ter chegado o doloroso dia em
convulsões que isso acarretará, inquirindo-se sobre o valor que ainda reste ao povo romano
Se este ato, embora curto, é aquele que mais se aproxima do estilo de Sêneca, pelo
ato que, dentro de nossa leitura “judicial” do texto, apresenta fatos novos: a figura de
Agripina, mencionada anteriormente como a primeira das vítimas de Nero, presta seu
depoimento ao tribunal e traz à luz sua versão dos fatos. Por encontrar-se já “cumprindo
Vemos ainda uma “réplica” de Otávia, que, novamente como vítima, percebe
serem, dado o poder do réu, poucas suas chances de uma real vitória, assim prepara-se já
para perder sua causa. Devemos pensar no impacto que este texto, se representado fosse,
depoimento de Agripina apenas teriam feito aumentar o sentimento de repulsa pela figura
funcionar como juiz e assume a posição de júri; neste sentido, delibera sobre os efeitos
sua posição de juiz, decreta que não se permita a Nero unir-se a Popeia e repudiar sua
legítima esposa.
O quarto ato tem uma posição sutil dentro do texto de Octauia, pois nele a figura
recebe a notícia de que esta mesma não se sente uma vencedora ao ter sido preferida por
Nero, uma vez que este ordenara a morte de seu primeiro marido, segundo Tácito chamado
Rufrius Crispinus, assim como mais tarde ordenaria a morte do filho que com ele Popeia
tivera.
170
Mas Popeia alega ter tido também um pesadelo com Agripina, pesadelo cuja
descrição logo nos faz perceber tratar-se da aparição de Agripina no ato anterior. Com isso,
julgamento.
Todas as falas de Popeia têm por finalidade convencer a plateia de que ela não é
diretamente culpada ou cúmplice das ações de Nero, mas que é, também, uma vítima do
imperador, e que está consciente de que mais tarde poderá ser substituída assim como
Otávia está sendo. No entanto, sua fala tampouco esconde o orgulho por saber-se desejada
pelo imperador, no que é corroborada por sua ama. Curiosamente Popeia conscientiza-se
disto através de um sonho em que Nero mata seu marido com uma punhalada na garganta,
que é, segundo Suetônio a maneira como o próprio Nero morreria, como vemos em:
Dein diuolsa sentibus paenula traiectos surculos rasit, atque ita quadripes per
angustias effossae cauernae receptus in proximam cellam decubuit super lectum
modica culcita, uetere pallio strato instructum; fameque et iterum siti interpellante
panem quidem sordidum oblatum aspernatus est, aquae tepidae aliquantum bibit.
Tunc uno quoque hinc inde instante ut quam primum se impendentibus contumeliis
eriperet, scrobem coram fieri imperauit dimensus ad corporis sui modulum,
componique simul, si qua inuenirentur, frusta marmoris et aquam simul ac ligna
conferri curando mox cadaueri, flens ad singula atque identidens dictitans: "Qualis
artifex pereo!" (...)
άμδί χτύπος
οΰατα αάλλει” ferrum iugulo adegit iuuante Epaphrodito a libellis. (SUETÔNIO, VI,
47-9; 1996: 170-74)142
Chamada à razão pelo discurso de sua ama, Popeia vê entrar em cena seu próprio coro,
que, comparando Nero a Júpiter, evoca os amores volúveis deste deus, e comparando
142
Em seguida, com seu manto rasgado pelas sarças e, passando rastejante pelo mato, entrou, de gatas,
pelos estreitos do esgoto que acabara de cruzar, onde ele se deitou em uma cama feita de um colchão péssimo
e de uma velha colcha como coberta, aí , atormentado pela fome e e tomado pela sede, rejeitou o pão que lhe
ofereceram, mas bebeu bastante da agua quente.
Logo, como cada um de seus companheiros o convidava a escapar sem demora dos insultos que o
esperavam, ele ordenou cavarem a sua frente um buraco com suas medidas, de colocarem a sua volta alguns
pedaços de mármore, se o encontrassem e de trazer água e madeira, para prestar as últimas homenagens a seu
cadáver e chorava e repetia a todo momento “Morro como um artista!”
E já se aproximavam os cavaleiros cuja ordem era de trazê-lo vivo. Quando percebeu sua chegada
disse tremendo: “O galope de cavalos rápidos fere minhas orelhas”, então, enfiou a espada na garganta, no
que foi ajudado por Epafrodito.
171
Popeia a Helena, prediz que por sua causa poderiam ter início conflitos semelhantes aos de
Troia, mas que isto não acontecerá pois que não é uma disputa entre homens a que tem
A fala deste coro é interrompida pela entrada de um mensageiro que ordena aos
soldados manterem-se em posição para evitar que os que apoiam Otávia invadam o
palácio. Este mensageiro, convém notar, reporta-se ao coro, dialogando diretamente com
ele, o que, como vimos anteriormente, constitui-se em inovação na práxis da tragédia, uma
vez que apenas os protagonistas ouviam o coro. É neste momento que este coro, até então
atuando em defesa da prerrogativa de Nero em tomar Popeia como esposa, já que, como
deus, era-lhe permitido agir como Júpiter; arvora-se também em defensor das prerrogativas
ordens.
Percebe-se aqui que, se Popeia, ao falar, visa sobretudo demonstrar ser, ela mesma,
incapaz de resistir ao poder do tirano, fato que significa uma subversão do julgamento, já
que tudo nos levaria a pensar que Popeia seria uma testemunha de defesa de Nero, e é nisto
que a personagem acaba não se constituindo. Por outro lado, o coro que se apresenta
liberdade de ação quanto a reprimir seus opositores. Assim, o chamado chorus Poppeae é,
na verdade, um coro de Nero, que, baseado nos argumentos que este coro lhe confere,
O quinto e último ato da peça apresenta Nero já em suas novas posições: a de juiz,
que condena à morte toda oposição que favoreça Otávia; exige do povo sacríficios ainda
mais pesados, reduzindo-o à total obediência e ainda faz alusão ao incêndio de Roma –
pela qual Otávia será exilada e morta. A crueldade de Nero aqui é potencializada pela
172
figura do prefeito do palácio, que tenta contemporizar com o imperador, pedindo-lhe que
aja com maior cuidado para não acirrar ainda mais os ânimos: se até mesmo figuras
histórica de notória reputação, como eram as de Faenius Rufus ou de Tigelino 143, estaria
preocupada com o destino da jovem, isso serve como argumento de reforço para a tirania
de Nero.
Segue-se um diálogo entre Otávia e seu coro; este, sabendo-se despojado de sua
anterior condição de juiz – mas não da de narrador -, tenta convencer Otávia da fatalidade
que a fama aporta, para isso, recorre à memória de vultos da República, como os Gracos e
sua mãe, alertando enfim que a humildade é uma forma de preservar-se a vida - eis a
“tréplica”, que melhor seria não ter nascido pessoa e sim qualquer forma de animal. O coro
manifesta-se ainda uma vez, alertando a submissão dos mortais aos destinos e, para isso,
arrola os destinos das mulheres dos júlio-cláudios. Este alerta se configura na prédica de
mais um valor genuinamente estoico: o da aceitação dos golpes do destino. Em sua última
fala, Otávia acata seu destino e pede vingança aos deuses do Tártaro. A peça termina com
uma última fala do coro, que condena não a Otávia nem a Nero, mas a própria Roma, por
No roteiro de leitura que propomos este quinto ato demonstra fielmente o absurdo
da tirania de Nero e configura, para o público, a imagem do tirano que cumpria, doravante,
evitar. Mas mais: efetiva aquela elevação da personagem Otávia do papel de vítima em que
143
De péssima reputação e que ocuparam o cargo após a morte de Burrus em 61. O autor anônimo não
explicita qual dos dois ocupava o cargo quando dos fatos da peça.
173
perder para Nero o papel de juiz desempenhado nos atos anteriores, assume o papel antes
desempenhado por seu preceptor, ensinando-a nos preceitos básicos daquele estoicismo
Convém raciocinar que, em sua fala final, o coro transfere uma última vez os papéis
de réu e de juiz ao povo de Roma, responsável por tais fatos terem ocorrido na sede do
esta condição a plateia poderia, no plano da realidade, purgar(-se) dos males perpetrados
pelo tirano ficcional, representativo daquele outro real, a que o público havia sobrevivido.
tragédia clássica, com variações que pudemos considerar inovações - uma vez que não
com o gênero romanesco que nos capacitam a considerá-la, mais que uma praetexta,
organização dos atos e dos fatos dramatúrgicos, uma narração “judicial”, posto que a peça
realiza o juízo de pelo menos duas das personagens em cena – Otávia e Nero – utilizando-
Já dissemos aqui que Octauia é uma obra escrita também para divulgação do
pensamento de Sêneca, que, como vimos em nosso capítulo anterior, era solidamente atado
à escola estoica, cujos valores são indiretamente defendidos na obra. O exame destes
astros, não com a finalidade de prever o futuro, como usual na mística pagã, mas porque
174
transitoriedade que poderia ser vencida pelo apego aos valores do Pórtico.
Deste modo, cremos que a dinâmica das funções exercidas pelas personagens de
Octauia pode ter sido inspirada – e, por sua vez, exemplificadora - do transitório presente
no movimento dos astros. Reforça-nos tal opinião o fato de que a peça se inicia com a
seguinte fala de Otávia, que assume, neste contexto, uma importância maior que a de
simplesmente estabelecer o prazo delimitado pela lei das três unidades praticada na
dramaturgia antiga:
assim como estes versos do monólogo inicial de Sêneca (versos 385 a 390)
que nos atentam para a necessidade de compreender-se o mundo através das revoluções
dos astros.
suficiente mobilidade para intercambiar seus papéis, mas da mesma maneira que o
movimento dos astros só nos é perceptível por estarmos em um ponto fixo de referência,
esse intercâmbio só será passível de análise àqueles que se situarem em igual condição
144
Sobre a tradução destes versos de Octauia, veja os anexos ao fim deste trabalho.
175
apreciar todos os meandros do texto e pode, por esta razão, preencher as lacunas
resultantes do fato de não haver, em toda a obra, qualquer diálogo entre Otávia e Nero ou
mesmo entre Otávia e Sêneca. O fato de ser o único ponto estável em meio a todo o
público, necessariamente, à condição de verdadeiro juiz dos fatos que a peça narra.
Qual o propósito disto? Por que desejaria o autor anônimo conferir ao público um
papel tão ativo em sua obra? De que modo isto contribuiria para o propósito de divulgar os
ideais de Sêneca de reconstrução dos valores da tradição cultural romana? Cremos que a
resposta está contida na própria gênese destes valores: grande parte do mos maiorum é
oriundo - e formulador - da melhor tradição republicana, aquela que, nos séculos que
antecederam ao império, não descartava, mesmo que a República fosse uma oligarquia - a
participação popular. E essa foi uma tradição que mesmo o Império não apagara, uma vez
que não suprimira a organização política republicana; neste aspecto, a figura do imperador
Não é sem propósito, pois, que, mesmo sendo escrita no período imperial, os
modelos de romanidade que a peça arrola sejam os mesmos defendidos pelas grandes
somente aquele que se agrupara sob o nome de “oposição estoica” e que já vinha, há
que as convulsões enfrentadas nos anos 68-69 deviam-se antes à pessoa de Nero que às
imperial - a quem interessava agrupar estariam assim contentados: o primeiro, por verem
reafirmados valores tradicionais e estoicos propostos; o segundo, por perceber que não se
176
simulacro de juízo presente na obra, oportunidade para reavivar suas crenças políticas e
tragédias - de purgação dos males e renovação da crença nos valores que alicerçam uma
a Filosofia ao Direito seria um ocasião ímpar para o êxito do resgate cultural proposto.
Sêneca, o que resta desse processo, após sua morte e o fim da dinastia dos júlio-cláudios?
doutrina estoica, construir-se a), restaurar os valores da romanidade, tais como propostos
por Sêneca?, ou ainda b), forjar-se uma nova identidade cultural, mesmo que esta
De qualquer modo, fica claro que Octauia merece um lugar de maior destaque no
quadro da literatura latina, não certamente pela elaboração artística com que, nela, se
maneja a linguagem; mas pela multiplicidade de relações que constrói com as artes de seu
tempo – em que, pela ausência do corifeu e personificação dos coros, inova discretamente
145
Vale ressaltar que isto seria possível de execução durante o governo de Vespasiano, imperador
pragmático e dotado de excelente senso de humor, preocupado antes com as fronteiras e com a administração
do que com a perseguição aos inimigos políticos, fenômeno que, em seu governo, foi antes a exceção que a
regra: Vespasiano também se beneficiaria com a obra porque esta, denegrindo ainda mais a figura de Nero,
acabaria sendo-lhe propaganda indireta.
177
escapando aos supostos limites da fabula praetexta, constrói uma relação ímpar entre
também por apresentar múltiplas possibilidades de leitura deve Octauia ser vista como
obra polissêmica, e que se vale de uma postura participativa do público para conduzi-lo à
6 CONCLUSÃO
Lendo-se a trajetória de Roma nos anos seguintes percebe-se que, embora no plano
individual o estoicismo não obtivesse tanto sucesso em concorrer com o epicurismo, seus
divulgado por todo o império, e alcançaria seu grau máximo com Marco Aurélio, o
imperador-filósofo que, em suas Meditações, escreveria a mais conhecida obra desta escola
filosófica.
Nesse novo processo, consagra-se a visão identitária de Sêneca: a fusão dos valores
modelo. Entretanto, não será restrito apenas aos habitantes de língua latina, ao contrário,
Assim, pode-se pensar que a ideologia proposta por Sêneca teve um sucesso parcial
império, mas não pôde erigir-se em modelo de identidade exclusivo para os romanos de
língua latina justamente porque seu pensamento não cabia em limites tão estreitos.
E quanto à romanidade em si? O que podemos concluir sobre este tema? Vimos, no
decurso deste trabalho que a romanidade foi resultado de uma longa construção em que a
179
sociedade romana, nas diversas fases de sua história, desenvolveu um modo de apreender o
agrícolas, etc. – que se desenrola num espaço (con)sagrado: o pomerium, o limes, o fines;
conjugação de dois códigos até hoje praticados: o ius sanguinis e o ius solis, mas estaria
agregado um terceiro item: o estatuto jurídico daquele que partilha do código de conduta,
cresceria em importância, desvinculando-se cada vez mais dos dois primeiros: o estatuto
jurídico os suplanta do mesmo modo como o orbe vai suplantando cada vez mais a urbe.
sendo fatores que levariam à reformulação da romanidade em si: não podendo deixar de
dar conta de novos valores incorporados pela influência cultural da Magna Grécia e muito
menos deixar de oferecer respostas à crise política: a identidade romana terá diversos de
seus conceitos redefinidos através da obra de Cícero: um destes, uirtus, terá seu valor
O processo pelo qual tais valores se incorporam à identidade romana é lento e passa
Augusto que propriamente da recepção imediata da obra de Cícero, já que o próprio Cícero
por consagrar aquilo que Cícero já teorizara, é óbvio que Cícero, defensor do modelo
quanto à manutenção desses valores dentro do novo regime político. Cumpre que estes
regime imperial.
clementia ao mesmo tempo que reduz o espectro filosófico ao estoicismo. Com isso,
Sêneca acaba por propor um novo pacto para a sociedade romana: o regime poderá ser
autoritário, mas nunca tirânico, um pacto cujo êxito será atestado pelos governos estáveis
dos Flávios e dos Antoninos, no século seguinte. À romanidade, segundo Sêneca, não
calcada no estoicismo, estes valores serão universalizados numa escala impensada por
Cícero. Isto se deve ao fato de que, se ambos são cidadãos, mesmo sem serem citadinos,
Cícero é, ao menos, da Itália; enquanto Sêneca, oriundo da Hispânia terá uma visão mais
Império.
Partindo-se desse ponto, percebemos que não há oposição entre o modo como
Cícero e Sêneca veem a identidade romana, o que antes se detecta é a existência de uma
mesmo se dissociada do modelo político que até então lhe dera lastro; Sêneca, valendo-se
da romanidade tal como estabelecida por Cícero, desenvolve mecanismos pelos quais os
consequência disso, iria aos poucos se universalizando, passando a representar uma rara
condição social e jurídica – como em seus primórdios – tornando-se, para além disso, um
verdadeiro “estado de espírito”, acessível mesmo a quem não possuísse a ciuitas romana,
pois era possível sentir-se romano, mesmo que não se fosse romano.146
E é justamente por ter-se tornado – ou por ter sempre sido, ainda que revestido de
um estatuto jurídico – é que a identidade romana apresenta uma dinâmica ímpar: diante de
crises que tornam necessária a adaptação dessa identidade a uma nova condição, essa se dá
também pelo retorno ao mos maiorum, aos valores mais antigos dentre aqueles já
mesmos valores, e sua adaptação se faz sem que sua essência jamais profunda seja
agregação de novos valores – são também aqueles em que realiza um “retorno às origens”.
Mas algo mais pode ainda ser dito sobre as visões da identidade romana em Cícero
146
Evidentemente, a romanidade não teria sua última fase em Sêneca: outras formulações seriam efetuadas,
por exemplo, por Santo Agostinho, em De Ciuitate Dei. Mas nessas obras já não se coloca a discussão
identitária romana frente à alteridade cultural, principalmente grega: desse conflito, sobra apenas a oposição
entre Civilização e Barbárie, suplantada por outra entre o paganismo e o Cristianismo. Não se esgota o
debate, mas esse ultrapassa o recorte que nos propusemos para este trabalho.
182
respeito da sociedade, numa envergadura jamais alcançada pela literatura grega, e que não
E cremos que os exemplos não parariam aí: as relações que Octauia constrói – entre
de práticas, estilos e gêneros literários – estarão presentes em outras obras latinas, tais
perpetuam.
183
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ANEXOS
191
ANEXO A
PERSONAE
OCTAVIA
POPPAEA
NERO
PRAEFECTVS
NVTRIX OCTAVIAE
NVTRIX POPPAEAE
SENECA
MATER NERONIS
NVNTIVS
CHORVS ROMANORVM
II ATO
III ATO
IV ATO
V ATO
nimiusque fauor,
genere illustres, pietate, fide,
lingua claros, pectore fortes, 885
legibus acres.
Te quoque, Liui, simili leto
Fortuna dedit,
quem neque fasces texere, suae
nec tecta domus - Plura referre 890
prohibet praesens exempla dolor:
modo cui patriam reddere ciues
aulam et fratris uoluere toros,
nunc ad poenam letumque trahi
flentem miseram cernere possunt. 895
Bene paupertas humili tecto
contenta latet:
quatiunt altas saepe procellae
aut euertit Fortuna domos.
OCT.: Quo me trahitis quodue tyrannus
aut exilium regina iubet? 900
Sic mihi uitam fracta remittit,
tot iam nostris et uicta malis?
Sin caede mea cumulare parat
luctus nostros, inuidet etiam
cur in patria mihi saeua mori? 905
Sed iam spes est nulla salutis:
fratris cerno miseranda ratem.
Haec en cuius uecta carina
quondam genetrix, nunc et thalamis
expulsa soror miseranda uehar. 910
Nullum Pietas nunc numen habet
nec sunt superi:
regnat mundo tristis Erinys.
Quis mea digne deflere potest
mala? Quae lacrimas nostras questus 915
redderet aedon?
Cuius pennas utinam miserae
mihi fata darent!
Fugerem luctus ablata meos
penna uolucri procul et coe(p)tus
hominum tristes caedemque feram. 920
Sola in uacuo nemore et tenui
ramo pendens
querulo possem gutture maestum
fundere murmur.
CHOR.: Regitur fatis mortale genus,
nec sibi quidquam spondere potest 925
firmum et stabile
quem per casus uoluit uarios
semper nobis metuenda dies.
212
ANEXO B
Otávia
de Lúcio Aneu Sêneca
Personagens
OTÁVIA
POPÉIA
NERO
PREFEITO DO PALÁCIO
AMA DE OTÁVIA
AMA DE POPÉIA
SÊNECA
AGRIPINA
MENSAGEIRO
CORO DOS ROMANOS
AMA: Eis que em nossos ouvidos ressoa a voz da triste menina que criei, poderá a minha
longa velhice descansar no leito? [72-74]
OCT.: Recolhe nossas lágrima, ó ama, testemunha fiel de nossa dor. [75-76]
AMA: Quem te consome o dia com tantas preocupações, ó pobrezinha?[77-78]
OCT.: Quem me enviará às sombras do Estige. [79]
AMA: Desejo que esta pessoa esteja distante. [80]
OCT.: Os teus desejos não governam mais a minha vida, mas o destino. [81-82]
AMA: Deus dará melhores tempos à aflita pelo medo; apenas com calma tu obterás o dócil
favor do teu marido.[83-85]
OCT.: Vencerei antes leões cruéis e tigres ferozes que o coração selvagem do tirano cruel.
Ele odeia os gerados de sangue limpo, igualmente despreza os homens e os deuses, e nem
o destino que a nefanda mãe engenhosa deu-lhe por meio de crimes. Embora o ilustre
ingrato não se envergonhe dos maus presságios por ter tomado este império com a ajuda da
mãe, ainda que tenha pago tamanho favor com a morte, mas mesmo após o destino que
teve, essa mulher levará todavia este título para todo o sempre. [86-97]
AMA: Retém as palavras do espírito furioso, contém a voz temerariamente emitida. [98-
99]
OCT.: Ainda que eu tenha sofrido coisas toleráveis, em momento algum nossos males são
capazes de ter fim, senão com nossa morte triste. Cortada da mãe, roubada criminosamente
do pai, privada do irmão, coberta do pobre luto, pressionada pela tristeza, odiosa ao marido
e sujeita a minha serva, convivo com luz infeliz, meu coração sempre tremendo, não pelo
medo da morte, mas dos crimes. Embora falte um crime, alegrar-me-á morrer pelo meu
destino; ver agora a face do tirano cruel ruborizada pela morte da mísera que sou, ver o
autor do terrível crime, que se diverte com a sorte desta de quem toma o poder, temer os
movimentos daquele cujo destino não possa - após a dor pelo assassinato célere do meu
irmão - obter minha complacência, e ainda beijar o inimigo, é um castigo mais pesado!
Quão frequentemente a sombra de meu irmão se oferece a meus olhos, dissolve meu
descanso com os braços e o sono fecha os olhos cansados do choro: somente a mãos fracas
e os olhos monta o átrio com tochas e clama a cabeça do irmão inimigo, logo o mesmo,
trêmulo, foge em direção aos meus leitos nupciais, e persegue o inimigo que está casado
comigo e que rouba nosso orgulho com uma espada violenta.
Então o tremor espanta o sono e o grande pavor renova o luto e o medo da mísera
que sou. Acrescente a isto a cortesã soberba aninhada no espólio de nossa casa, em honra
de quem o filho conduziu a mãe à barca do Estige, a qual, tendo superado os mares após
pragas e naufrágios, comprou com ferro cruel um estreito do mar: qual esperança de
salvação para mim após tamanho sinistro? A inimiga vencedora se lança ao meu leito e
com ódio a nós devasta e, como preço do corpo, pede ao marido a cabeça da justa esposa.
Emerge das sombras e traz auxílio à filha que te invoca, ó pai, ou abre, rompida a terra, os
canais estígeos, aonde eu seja atirada. [100-136]
AMA: Em vão chamas para ti os manes de teu pai, pobrezinha, em vão, a ninguém entre as
sombras permanece os cuidados de sua prole: Que dizer de quem pôde preferir a seu filho
um de sangue alheio, e uniu-se à esposa gerada de seu irmão, contraindo um casamento
nefasto sob um facho frágil? Aqui inicia a série dos crimes: assassinatos, traições, cobiça
do poder, sede de sangue nobre; um genro despedaçou ao sogro no leito como vítima
imolada, poderoso como nos teus himeneus. (Oh, que grande crime!) Silanus foi dado
como presente à mulher, e, culpado de crimes fictícios, degradou com seu sangue os
penates paternos. Esse entrou como meu inimigo na casa tomada, um jovem de grande
crime feito filho e genro do príncipe pelas trapaças da madrasta. E logo vencedora, tornada
feroz pelo êxito, ousa atacar o sagrado império do mundo. Que esperança pode então
217
recuperar um reino que as formas nefandas dos crimes e os enganos macios da mulher
pedem pelo mais alto de todos os crimes? Então a santa Piedade expôs os passos trêmulos,
e a cruel Erínea adentrou com funesto pé o palácio, manchou os sacros penates com um
feixe estígeo e, furiosa como lhe é peculiar, rompeu com o direito e o destino: a esposa
misturou para o marido venenos cruéis, e a própria matou criminosamente a seu filho; tu
também, infeliz menino a ser por nós sempre chorado, jazes morto, apenas uma estrela no
firmamento, coluna da casa augusta, Britânico, ai de mim!, agora és apenas uma leve cinza
e uma triste sombra; por quem mesmo a cruel madrasta verteu lágrimas quando deu à
cremação teus membros e articulações, e a chama fúnebre, esvoaçante, consumiu teu rosto
similar ao de um deus. [137-173]
OCT: Mate-me, para que não caia por nossa mão![174]
AMA: A Natureza não te deu tantas forças. [175]
OCT.: A dor, a ira, a aflição, as misérias, o luto darão. [176]
AMA: Obedecendo vencerá melhor o homem feroz.[177]
OCT.: Para que me restitua o irmão criminosamente suprimido? [178]
AMA: Para que tu estejas a salvo, para que um dia restituas a oscilante casa de teu pai à tua
descendência. [179-180]
OCT.: A casa espera do príncipe outra descendência; a mim trazem o destino terrível de
meu pobre irmão.[181-182]
AMA: Tamanho favor confirmará o espírito dos cidadãos. [183]
OCT.: Este é assolado pelos nossos males, mas não os alivia. [184]
AMA: A força do povo é grande. OCT.: Todavia a do Príncipe é maior. [185]
AMA: Ele protegerá a esposa. OCT.: A amante o proíbe. [186]
AMA: Certamente ela é indesejável a todos. OCT.: Mas é cara ao homem. [187]
AMA: Mas ainda não é sua esposa. OCT.: Logo o será, e mãe também. [188]
AMA: O ardor juvenil delira ao primeiro ímpeto, mas para vergonha de Vênus,
languidesce facilmente e, assim como o vapor da chama, não dura nem um dia. O amor
pela esposa casta permanece. A primeira serva que ousou violar teus leitos e possuiu o
espírito do senhor durante um tempo, já temeu a senhora. OCT.: Certamente esta é sua
preferida.[189-195]
AMA: Submissa e humilde, e a confessa eleva monumentos pelos quais atesta seu medo. E
um alado deus Cupido, rápido e falaz a destituirá: embora seja de formas eminentes,
soberba em recursos, em breve tomará a alegria. Ela, a rainha dos deuses, passou as
mesmas dores, quando o senhor do céu e pai dos deuses se transformou em diversas
formas, e então assumiu as penas de um cisne, logo os chifres do touro de Sidônia, e ainda
como ouro fluiu na chuva; as estrelas de Leda brilham no céu, Baco reside no Olimpo
paterno, o deus Alcides (Hércules) possui Hebe sem temer mais as iras de Juno, que foi sua
inimiga e de quem hoje é genro. A paciente Juno conquistou todavia o agrado do marido,
que diminuiu a dor da suprema esposa. Juno retém, sozinha e com a máxima segurança, o
Tonante preso ao leito etéreo, nem apanhado em forma de mortal, Júpiter faltará ao altivo
quarto. Tu também, outra Juno na terra, irmã e esposa do Augusto, vencerás grandes
padecimentos.[196-221]
OCT.: Unem-se pelas estrelas diante de mares cruéis e ondas de fogo, o triste céu ao
Tártaro, a luz fértil às trevas, o dia à noite orvalhada, a nossa mente - que recorda sempre o
irmão morto - com a mente ímpia do celestial marido. Oxalá o senhor dos deuses - que
sempre sacode as terras com o trovão hostil, e aterroriza nossas mentes com os fogos
sagrados e com novos monstros - decida oprimir terrivelmente com chamas a cabeça do
nefando príncipe; vimos no céu o cometa mostrar no céu a cauda hostil, na qual Bootes
governa os carros tardios da noite alternando-se no frio com o regente Arctoo: eis que o
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próprio éter é poluído com o terrível espírito do cruel general, os astros ameaçam as gentes
com novos flagelos, que o impiedoso senhor ordena. Não tão feroz quanto Typhon ao ser
desprezado por Júpiter a irada Terra produziu embora mãe: este é mais importante que
aquele a peste, este inimigo dos deuses e dos homens expulsou os sacerdotes de seu templo
e os cidadãos da pátria, lançou fora o espírito do irmão, exauriu o sangue da mãe -- e vê e
goza a luz e retira da vida a alma e a ofensa! Ó grande pai, por que atiras tantas vezes, ao
acaso e em vão, com mão real, as poderosas teias? Por que a tua direita pára contra mão tão
nociva? Oxalá o tirano do mundo pague as penas de seus crimes, que oprimem o nome dos
Augustos com torpe jugo e o sujam com costumes viciosos! [222-247]
AMA: Reconheço que ele, Nero, um adotivo, gerado por Domício, é indigno do teu leito,
mas eu te peço: cede ao Destino e à tua sorte, filha, e não mova a ira violenta do teu
marido. Talvez um deus vingador apareça de algum lugar e advenha um dia feliz. [248-
256]
OCT.: Nossa casa foi outrora perseguida pela ira dos grandes deuses, primeiramente a dura
Vênus oprimiu com furor as bodas da minha pobre mãe, as quais a louca contraiu sob uma
tocha incestuosa, esquecida de nós, do marido, olvidada das leis. A este leito, a vingadora
Erínea - com o cabelo solto e cingida com serpentes – fez vir aos leitos estígeos e apagou
com sangue as tochas roubadas do leito nupcial; o peito feroz do príncipe ardeu em ira,
ocasionando um nefando massacre: assassinou com ferro nossa mãe infeliz, ai!, e
esmagou-me em luto perpétuo; lançou a mulher e seu filho às sombras, abandonou a casa
decaída. [257-269]
AMA: Deixa de renovar os lutos apiadados com teu choro, e não invoques o espírito de tua
mãe, a qual deu grandes castigos a seu furor. [270-272]
O CORO DOS ROMANOS: Que novas chegam agora a nossos ouvidos? Oxalá perca-se a
fé no mentiroso, pelos créditos tantas vezes dados em vão, que nenhuma nova mulher
adentre o leito de nosso príncipe e que a esposa mantenha seus penates e a prole cláudia; e,
com o parto, dê à luz a um penhor de paz, que tranquilo alegrará o mundo e conservará a
honra eterna de Roma. A grande Juno manterá os leitos do irmão para a lançada à sorte;
por que a irmã casada do Augusto é expulsa do palácio paterno? Que a ela é útil a Santa
Piedade e o divino pai? Qual a pureza e o pudor mais castos? Nós também estamos
esquecidos, após o destino de nosso senhor, cuja estirpe abandonamos, persuadidos por um
medo doentio.
A verdadeira virtude romana foi a dos antigos e a verdadeira estirpe de Marte estava em
seus sangue e forças. Eles expulsaram desta cidade os reis soberbos e bem vingados estão
os teus manes e a tua imolada filha de Lucrécio, liberta por mão compadecida de ser
estuprada pelo cruel tirano. [ó virgem morta pela destra mão do pai para que não sofresse
com a pesada escravidão e a ímproba vencedora levasse prêmios pela vontade da sorte, a ti
também seguiu a guerra,] Como Túlia, esposa do cruel Tarquínio, deu penas criminosas, a
qual pelos membros mortos do pai levou os carros cruéis e a filha violenta negou seis
pedidos ao dilacerado.
Estes séculos também viram um sacrilégio maior, quando o príncipe enviou ao mar Tirreno
a mãe fraudulentamente presa em barco fatal. Apressam-se os obedientes marinheiros em
deixar os portos tranquilos; impulsionados pelos remos, ressoam pelos estreitos; a
embarcação é conduzida ao alto mar pelo avanço dos remos; a qual atingida por uma trave
solta é jogada ao mar que se abre e a absorve. Envia-se um grande clamor aos céus,
misturado ao choro da mulher. A Morte vaga praguejando ante os olhos; cada um procura
para si uma fuga da destruição: uns, feridos, se agarram como bonecos às tabuas e rasgam
as ondas desprotegidos, outros, nadando, alcançam o litoral; afundam muitos nas
profundezas do abismo. A Augusta rasga suas vestes, desenlaça os cabelos, e molha as
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faces com prantos entristecidos. Quando é já nula a esperança de salvação, ardendo em ira,
já vencida pelo mal, exclama: “Estes são, ñ filho!, os prêmios que me dás por tantas
ofertas? Sou digna desta nave, confesso, pois te gerei, dei-te à luz, e, enlouquecida, dei-te
ainda o nome e o poder de César. Ergue teu rosto do Aqueronte e farte-se com meus
pesares, ó marido: eu sou, ó pobre, a causa da tua morte e autora da morte do teu filho: eis
que, como merecido, sou levada a teus manes, tragada pelas cruéis ondas do mar...”. Ferem
as ondas o rosto da que fala, que cai ao mar e logo ressurge batida pela maré; impelida pelo
medo, afasta as águas com as mãos, mas desiste cansada pelo esforço. A fé - já desprezada
pela triste morte - permaneceu no coração dos criados: muitos, com as forças alquebradas
pelo alto mar ousam trazer auxílio à senhora, braços já fatigados a puxam, exortam com
palavras e a levantam com as mãos.
Por que ter fugido do cruel (se) a ti alcançaram as ondas do mar? Teu filho, cujo
crime a posteridade apenas sempre lentamente os séculos crerá, há de morrer pela espada.
A que foi roubada ao mar enlouquece; mas o ímpio cruel sofre porque a mãe vive, e
duplica o crime: irrompe contra o destino da pobre mãe e sem demora alguma a ataca. A
guarda enviada cumpre as ordens: abre à espada os peitos da senhora. A infeliz moribunda
pede ao assassino que enfie terrivelmente a espada em seu útero: “Aqui, Aqui deve ser
enterrada a espada” diz, “pois é quem gerou a tal monstro.” Apñs esta fala, mesclada a um
supremo gemido, entregou a alma entristecida através de uma chaga atroz. [273-376]
II ATO
SENECA: Por quê, ó Impotente Fortuna que me acaricia com o rosto falacioso, elevaste
tanto minha sorte que, sendo recebido com arcos, desabasse e descobrisse tamanho medo?
Melhor me ocultava, distante do mal da inveja, escondido entre os rochedos do mar da
Córsega, onde por direito meu espírito sempre vagava livre a refletir meus estudos. Oh!
Quanto me alegrava ao observar atentamente nada mais disciplinado quanto o céu que a
mãe Natureza, artífice de um imenso trabalho, gerou, e [o sol e os sagrados cursos do sol e
o movimento do mundo] as vezes alternadas da noite e de Febo, astros vagantes que
circundam o mundo, e o esplendor amplamente brilhante do grande éter; que, se envelhece,
há de cair profundamente no cego caos. Então chega aquele dia supremo, que a ruína do
céu desabe sobre a gente ímpia, para que, renascendo, depois gerasse melhor uma nova
estirpe, que o jovem que ora possui os reinos de Saturno trouxe outrora do céu . Então a
Justiça, essa virgem, deusa de grande espírito, enviada do céu com a santa Fé, regia com
doçura as terras e o gênero humano. As gentes não ignoram as armas, as guerras, os
violentos frêmitos das trompas; nem costumam circundar com muros suas cidades, o
caminho e a passagem de tudo, o uso de todas as coisas foi comum a todos; e ademais
mesmo a alegre Terra mostrava recantos fecundos, como a mãe feliz que está segura com
os filhos piedosos. Mas outras linhagens menos dóceis se apresentam, (...) Uma terceira
gente solerte, mas ainda santo, ergueu às novas artes, logo inquieto porque ousasse seguir
as feras cruéis em seu curso, arrancar das ondas, com a rede ou com o caniço, pesados
peixes; enganar os animais velozes com armadilhas ou prendê-los com um laço;
emparelhar os ferozes touros, já domados, os primeiros a sulcar a terra pura com um arado,
a qual, ferida, ergueu ao alto seus produtos ao longo do santo sulco. Mas sucedeu-a uma
era pior que penetrou as entranhas dos pais: logo extraiu em quantidade o ferro e o ouro, e
armou as mãos cruéis; estabeleceu limites aos reinos partidos, elevou novas cidades,
defendeu seus telhados dos dardos alheios ou ameaçou saques. A virgem Astraea, grande
esplendor das estrelas, desprezada, foge das terras e costumes ferozes dos homens e das
mãos sujas pela traição cruel. Cupido fez brotar por todo o mundo a grande nascente da
220
guerra e a fome do ouro. A luxúria dos maus é uma peste macia, a quem o longo tempo e o
grave erro deram forças e robustez. Os vícios coletados por todas as eras caem sobre nós
em um único dia: somos premidos por um tempo pesado, no qual os crimes reinam, a
impiedade furiosa age com crueldade, o poderoso é dominado pela torpe libido de Vênus, a
luxúria vencedora já rouba com mãos avarentas, apenas para perdê-las, as imensas riquezas
do mundo. Mais eis que chega Nero, com um passo atônito e com o semblante cruel.
Tenho horror ao que quer que traga na mente. [377-436]
NER.: Mande agir seus subordinados: que me tragam a cabeça cortada dos mortos Plauto e
Sulla. [437-8]
PREF.: Não retardarei as ordens, agora mesmo enviarei os soldados. [439]
SEN.: Convém nada constituir que atemorize os próximos. [440]
NER.: É fácil ao peito a que falta o medo ser justo. [441]
SEN.: A clemência é o grande remédio para o temor. [442]
NER.: Extinguir o inimigo é a maior virtude de um líder. [443]
SEN.: Proteger os cidadãos é a maior do pai da pátria. [444]
NER.: Convém a um velho indulgente dar conselhos aos meninos. [445]
SEN.: A de reinar é a mais febril adolescência. [446]
NER.: Creio que nesta idade estamos fartos de conselhos. [447]
SEN.: Que os deuses aprovem sempre os teus feitos. [448]
NER.: Tolamente venerarei os deuses, quando eu mesmo os faça? [449]
SEN.: Isto é venerares a ti próprio mais do que se permite .[450]
NER.: Toda nossa Fortuna o permite a mim. [451]
SEN.: Pensa em ser mais complacente: a Fortuna é uma deusa fugaz. [452]
NER.: É apropriado a um tolo desconhecer o que lhe é permitido.[453]
SEN.: É louvável fazer o que é certo, não o que é permitido. [454]
NER.: O povo pisa quem descansa. SEN.: O inimigo oprime. [455]
NER.: A espada protegerá o príncipe. SEN.: A confiança é melhor. [456]
NER.: É correto a César ser temido. SEN.: E mais ainda ser querido. [457]
NER.: É necessário que temam... SEN.: O que quer que seja expressado é importante.
[458]
NER.: ...e obedeçam a nossas ordens. SEN.: Governa com ordens justas. [459]
NER.: Isso eu mesmo decidirei. SEN.: As quais o consenso farão ratificar. [460]
NER.: A espada desembainhada fará. SEN.: Que nos falte este crime. [461]
NER.: Acaso sofrerei ter pedido além de nosso sangue, para que impune e desprezado
rapidamente seja oprimido? Os exílios não atemorizaram os decaídos Plauto e Sulla, cujo
ódio pertinaz arma para meu assassinato os ministros da vítima, enquanto também
permanecer na nossa cidade um grande favor dos ausentes, que protege a esperança dos
proscritos. Que os inimigos suspeitos a mim sejam tomados pela espada, a esposa odiosa
pereça e siga seu querido irmão. Caia o que quer que há no céu! [462-471]
SEN.: É belo sobressair entre os homens ilustres, aconselhar a pátria, poupar os aflitos,
abster-se do feroz assassinato, dar tempo à ira, quietude ao mundo, paz a seu século.
Exige-se esta suprema virtude, este caminho celeste. Assim aquele primeiro Augusto, pai
da pátria, foi tomado às estrelas e elevado a deus nos templos. Também a Fortuna jogou-o
um dia por terra e mares, por entre graves lances de guerra, enquanto pisou os inimigos de
seu pai. Um espírito pacífico submeteu a ti o teu e deu-te com mão amiga as rédeas do
império e com um sinal subjugou terras e mares a ti; o triste senado cedeu por inveja,
221
vencida esta por piedoso consenso, que ergueu o apoio dos equestres e dos desejos da
plebe e o juízo dos pais, tu, autor da paz, juiz do gênero humano, pai da pátria, regerás o
mundo escolhido já sob o sagrado auspício que o título de “Augusto” exige e Roma
recomenda seus cidadãos e serviçais a ti . [472-491]
NER.: O presente dos deuses é que é a própria Roma que serve a mim, e que o senado
expressa medo de nós com preces constrangidas e palavras humildes. Não é um sinal claro
de loucura conservar aqueles grandes cidadãos da pátria que se enfurecem contra o
príncipe, enquanto possa com uma palavra ordenar serem mortos os suspeitos a si? Bruto
ergueu a mão para assassinar o líder de quem obtivera a salvação: César, invicto no aço,
conquistador de povos, igualado a Júpiter nos altos graus das honrarias, morreu por um
crime horrível dos cidadãos. Quanto Roma, dilacerada por todos, viu de sangue então!
Aquele Augusto, que mereceu o divino pela piedosa virtude dos céus, matou quantos
nobres, jovens, velhos, espalhados pelo mundo, como afugentassem seus penates por medo
da morte, e das armas dos três chefes, anotando em tabuletas os nomes dos entregues à
triste morte! Não permitiu aos tristes pais ver ou chorar as cabeças expostas com o pus
terrível destilando sânie pelos pesados rostos apodrecidos, nem gemer imprecações
terríveis no sujo fórum. Tampouco demarcou aí o fim do sangue ou da morte: feras cruéis e
rápidas apavoraram um dia os tristes Filipos, e muitas vezes derramou seus navios e
homens sangrentos ao mar Siculo. Perseguido pelo mundo pelos homens do grande líder:
superado em batalha pede o Nilo aos marinheiros preparados à fuga, há de morrer em
breve: Uma vez mais o impuro Egito drenou o sangue de um líder romano e sequer cobriu-
lhe o corpo com sombras leves, e foi impiamente sepultado durante a guerrra civil. O
vencedor, embora já exausto, embainhou suas espadas debilitadas entre as feridas atrozes e
perpetuou o império do medo: que assegurou com confiança nas armas dos soldados, pela
exímia piedade do filho tornou-se um deus, consagrado pelos destinos e estabelecido nos
templos. Nós também alcançaremos os astros, se antes tiver me ocupado com uma espada
cruel de quem quer que tenha sido contrário a mim e tiver fundado nossa casa com uma
digna descendência. [492-532]
SEN.: Povoará teu palácio com a linhagem celeste gerada de um deus, glória da gens
Cláudia, tirada à sorte ao irmão pelo costume de Juno. [533-5]
NER.: A mãe incestuosa subtrai a confiança à gente, e o espírito da cônjuge nunca foi
unido ao meu. [536-7]
SEN.: A confiança não se mostrou bastante clara nos anos de infância; quando ardeu em
chamas, o amor foi vencido pelo pudor . [538-9]
NER.: Eu mesmo sem dúvida acreditei em vão nisto um dia, ainda que sinais evidentes no
peito e no rosto insociável mostrassem ódio por mim, até que por fim a dor ardente decidiu
que se vingaria: sendo vencida, Vênus, a esposa de Júpiter e a deusa feroz em armas
permitirão uma esposa digna em tipo e forma ser levada a meu leito. [540-6]
SEN.: Que a probidade e a confiança da esposa, os costumes e o pudor agradem ao marido:
pois permanecem para sempre únicas e submissas a alguém de mente e espírito bons; um a
um os dias apanharão a flor do decoro. [547-550]
NER.: Um deus colocou todos esses louvores em uma mulher, e os destinos quiseram que
essa tivesse nascido para mim. [551-2]
SEN.: Acaso creias temer que o amor se distancie de ti. [553]
NER.: Quem não pode ser punido por derrubar o senhor do trovão, o tirano do céu, que
penetra mares cruéis e reinos de Plutão, arranca os deuses do céu? [554-6]
SEN.: Um engano mortal finge ser o alado Cupido um deus sem medo, Vulcano confia em
Vênus, arma as mãos sagradas com flechas de arco e ensina com cruel ardor o filho: o
amor é uma grande força da mente e um macio calor da alma, engendra a juventude, nutre-
222
se com luxo e ócio entre os alegres bens da Fortuna. Tomara desistas de favorecer e voar,
pois logo perde suas forças e cai morto. [557-565]
NER.: Creio ser essa a máxima causa da vida, pela qual é gerada a volúpia; enquanto -
graças ao Amor, que emudece as feras sanguinárias - for sempre procriado o gênero
humano, que não tem destruição. Que esse deus leve adiante de mim os fachos conjugais e
una Popéia a nosso leito. [566-571]
SEN.: Nem a dor e a confiança do povo, nem a santa piedade com dificuldade demonstra
possa sustentar este leito. [572-3]
NER.: Serei proibido de fazer algo que a todos se permite? [574]
SEN.: O povo sempre exige mais dos maiores. [575]
NER.: Agrada por à prova, acaso o furor recebido, alquebrado por minhas forças, permita
aos espíritos temer.[576-7]
SEN.: É melhor, benevolente, obedecer a teus cidadãos. [578]
NER.: Mal se governa, quando o povo rege os chefes. [579]
SEN.: Dói, e com razão, o nada tentar enquanto se pode. [580]
NER.: É certo pronunciar e conduzir orações que não podem ser ouvidas? [581]
SEN.: Negar é duro. NER.: É nefasto coagir o príncipe. [582]
SEN.: O próprio príncipe a mande embora. NER.: Mas então levará fama de vencido. [583]
SEN.: A fama é leve e vã. NER.: Embora seja assim, notabiliza a muitos. [584]
SEN.: A excelsa temeu. NER.: Todavia não aproveita menos. [585]
SEN.: Facilmente será subjugada. A honestidade e o pudor da esposa e a vida do divino pai
derrube os méritos . [586-7]
NER.: Desiste já então de instar a mim com essa severidade excessiva: que se me permita
fazer o que Sêneca desaprova. E eu mesmo retardo os votos à noiva, quando já carrega no
útero um presente que é parte de mim. Por que não marcamos o casamento para amanhã?
[588-590]
III ATO
AGRIPINA: Pela Terra rompida deixei o Tártaro, com a destra ensanguentada portando
adiante o facho estígeo do leito criminoso: Popéia se case com meu filho sob essas chamas,
as quais a mão vingadora e a dor de mãe derrramará a tristes pedidos. A memória da minha
morte impiedosa permanece sempre entre as sombras, para aqui dos nossos severos Manes
não-vingados: aquela funesta noite em que, devolvida as pagas dos marinheiros aos meus
méritos, chorei meu naufrágio e o preço do poder; embora meu desejo fosse chorar o crime
do filho terrível e a morte dos companheiros: não foi dado tempo às lágrimas, mas o cruel
repetiu criminosamente o ato nefasto. Atravessada pela espada, enterrada pelas feridas
derramei o grave espírito sagrados penates adentro, rastejando até o mar tempestuoso, mas
não acalmei os ódios do meu filho com meu sangue. O cruel tirano enfureceu-se contra o
nome da mãe, desejou o mérito de destruir-me as imagens, derrubou as placas em minha
memória por todo esse mundo que, para meu castigo, nosso amor infeliz deu ao menino
para governar. O espectro sinistro insiste, ameaça, joga sobre mim o destino e o túmulo do
filho, exigindo seu assassino. Acalma-te já: será dado, peço um tempo breve. Ainda que
raramente seja concedido, não peço um tempo longo. A Erínea Vingadora prepara um fim
digno ao ímpio tirano, açoites e uma horrível fuga que supere a sede de Tântalo, o trabalho
maldito de Sísifo, o pássaro de Títio e a roda que rouba os membros de Ixio. Embora o
soberbo erga um palácio de mármore, cubra-o com ouro e envie para lá as imensas obras
de um mundo exausto, coortes de soldados armados guardem seu umbral e peçam
suplicantes a destra ensanguentada dos partos, que os reinos tragam suas riquezas: virá o
223
dia e o tempo no qual, abandonado, destruído e perseguido por todos, entregue aos
inimigos a garganta e a alma culpada por seus crimes. Ai, por onde decaíram meu trabalho
e meus desejos? Para onde, atônito, tua raiva e os destinos te conduzirem, ó filho, que, por
tantos males, caia a ira da mãe, que morreu por um teu crime! Quem dera, quando dei-te à
luz pequenino, nutri e alimentei, feras cuéis tivessem dilacerado nossas entranhas, tivesses
morrido meu e inocente, sem qualquer crime, sem qualquer sentido; e unido e agarrado a
mim - sempre quieta - discernisses os infernos, os ancestrais e o pai, homens de grande
nome, que o pudor e o luto perpétuo afastam agora de ti, ó nefasto, e a mim que tal
situação sofri. Por quê, sendo madrasta, esposa, mãe infeliz cesso a esconder meu rosto dos
meus no Tártaro ? [593-645]
OCTAVIA: Poupai as lágrimas da cidade para um dia festivo e alegre, que o tamanho
favor para conosco não suscite a ira do príncipe e eu não seja para vós uma causa de males.
Esta não será a primeira ferida que meu peito recebeu: levei mais graves; este dia sem
morte dará fim a nossas preocupações. Eu não serei levada a separar-me da face do marido
cruel, nem a deixar entrar escravas em meu leito inimigo; serei irmã do Augusto, não
esposa. Louca coitada, como podes - lembrada dos crimes de um homem cruel - ter
esperança de que faltem tanto as tristes penas quanto o medo da morte? Cairás um dia
sobre este leito, embora como uma vítima funesta. Mas, confusa, e muitas vezes de
joelhos, a quais penates dirigirás teu olhar? Apressa-te em deixar esse teto, abandona o
palácio ensanguentado do príncipe. [646-667]
CORO: Eis que raia o perigoso dia, dia de fama espalhada a todos, a Cláudia, expulsa,
deixou o leito do sinistro Nero, que a vencedora Popéia já detém, enquanto se esgotam
nossa grave piedade e vagarosa dor, comprimidas por um medo pesado. Onde está a força
do povo romano, que muitas vezes quebrou os chefes malditos, deu leis invencíveis à
pátria, deu outrora os feixes aos cidadãos dignos, governou a guerra e a paz, domou gentes
ferozes, encerrou no cárcere os reis cativos? Eis que por toda a parte, ante nossos olhos
pesados, refulge já a estátua de Popéia unida à de Nero. A mão violenta atire ao chão o
rosto excessivamente parecido ao da senhora, e puxe a mesma de volta ao leito supremo,
exija com chamas e dardos ser levados ao palácio do príncipe. [668-689]
IV ATO
A AMA DE POPÉIA: Para onde, tremendo, teu passo te afasta do leito conjugal, filha, e
que segredo pedes com o rosto transtornado? Por que tuas faces se molham com o choro?
Certamente o dia resplandeceu como pedido em nossas preces e votos: foste unida a César
- a quem teu decoro santamente agarrou - pela tocha conjugal, e a adornada Vênus, a mãe
de Amor, a maior dos numes, trouxe vencido a ti. Oh, já residindo no palácio, com quanta
força venceste a outra no leito supremo! Um senado atônito vê enfeitares a tua estátua com
os melhores incensos e espargires os sagrados altares com o vinho puro, eu, quando muito,
mantive a cabeça escondida com um véu brilhante; e o próprio príncipe parado e unido a
teu lado e dos sublimes cidadãos caminhou entre os presságios alegres, trazendo alegria no
rosto e nas palavras ditas pelo soberbo apoio, tal como Peleus aceitou a esposa Tétis
emersa dentre a espuma, cujo casamento do par os habitantes do céu celestes e os do mar
anunciam ter celebrado com todo o consenso. Qual súbita razão mudou teu semblante?
Explica que palidez é essa, que te leva às lágrimas. [690-711]
POP.: Sou vista com a mente confusa, perturbada e privada de sentido, ó ama, e com o
rosto triste pelo medo da próxima noite. Pois o dia, embora feliz, cedeu o pórtico às
estrelas e o céu não permitiu à noite desfrutar em paz um dia tranquilo e, presa entre o
abraço de Nero e o meu me liberto no sono; ora a triste turba deseja celebrar minhas boda:
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as mães latinas davam choros comovidos, com os cabelos soltos; com um rosto ameaçador
a cruel mãe de meu marido sacudia, entre o terrível som acelerado das trompas, uma tocha
nupcial banhada em sangue. Enquanto continuo coagida pelo medo ao presente, fui levada
a diversas partes no momento em que, de repente, apareceu a mim um grande buraco na
terra; entendo ser atirada de cabeça aonde estão os meus leitos conjugais e ao mesmo
tempo os contemplo, nos quais, cansada, tornei a sentar. Descubro então meu marido e
filho acompanhando a turba; Crispinus apressa-se em pedir meus braços e em oferecer-me
os beijos interrompidos, mas irrompeu o cruel Nero em minha casa com a espada trépida e
enfiou-a na garganta. Enfim um grande medo abala a tranquilidade; um tremor horrível
sacode nossos ossos e músculos e faz pulsar nosso peito; o temor contém a voz, que agora
divulga tua piedade e fé. Ai! Por que os manes infernais ameaçam a mim ou por que vi o
sangue de meu marido? [712-739]
AMA: Todo esforço que conduz à ampliação da mente leva-a novamente, através da
quietude, ao sentido sagrado, arcano e veloz. Admira-te de ter visto o marido, o casamento,
o leito, agarrando as núpcias com o abraço do teu novo marido? Os peitos pulsantes e os
cabelos arranjados movem-te no dia alegre com palmas? Choraram as separações de
Otávia do irmão entre os santos penates e lares dos pais. Essa tocha, que seguiste, levada à
frente pela mão da Augusta, pressagia para ti o nome limpo da inveja das partes, o assento
estável do inferno anuncia o leito futuro da casa eterna. O teu príncipe, que enfiou a espada
no pescoço, não moverá guerras, mas cobrirá a espada com a paz. Recupera o ânimo,
retoma a alegria, peço, devolve-te a teu casamento com o temor afastado. [740-755]
POP.: Estabeleci santuários e ergui santos altares, para aplacar o nume do deus com as
vítimas imoladas, para que as ameaças da noite e do sono sejam expiadas e o terror
atemorizado se volte contra meus inimigos. Lança votos por mim e adora os deuses com
preces piedosas, para que o presente estado das coisas permaneça. [756-761]
CORO: Se é verdadeira a fama loquaz e furtiva de Júpiter que narra seus amores felizes
(que contam que escondido apenas sob uma pele de plumas e penas tenha seguido o jarro
de Leda, que como touro selvagem tenha carregado Europa pelo mar, que outrora, para
admirar a Dánae derramou-se em radiante ouro, que governa os astros mas agora os
deixará, pois pedirá Popeia, teus braços e a ti, os quais pode preferir aos de Leda. Esparta
jactar-se-á da beleza da sua filha e o pastor frígio dos seus prêmios, esta (Popeia) vencerá
os rostos dos filhos de Tíndaro, que moveram guerras terríveis e apenas deram os reinos à
Frígia. Mas... quem corre com um passo atemorizado ou quem porta o desejo no peito?
[762-779]
MENS.: Quaisquer que seja o soldado do líder que guarde sentinela nos telhados, defenda
o palácio a que o furor do povo ameaça. Eis que as coortes trépidas do prefeito impõem o
governo à cidade, que nem vencida abandonou com medo a raiva temerariamente recebida,
mas ganhou forças. [780-784]
CORO: Por quê esse furor atônito agita as mentes? [785]
MENS.: As multidões agitadas e manifestas em favor de Otávia incorrem em um grande
crime. [786-787]
CORO: Explica o que ousaram fazer, e sob conselho de quem. [788]
NÚN.: Buscam devolver os divinos penates paternos, os leitos do irmão e a parte devida do
poder à filha de Cláudio, os quais já Popéia retém com confiança e concórdia. Para cá o
favor excessivo e pertinaz arde e conduz temerariamente à fúria os espíritos precipitados:
Todas aquelas efígies em que o rosto de Popéia permaneceu, seja no mármore límpido ou
no bronze brilhante, jaz maltratada pelas mãos do povo e derrubada a ferro; trazem-lhe os
membros despedaçados amarrados por nós, que pisoteados mergulham, à luz do dia, no
lodo imundo. Encontram palavras confusas para os feitos ferozes, as quais calo de repetir
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por temor. Tentam cercar com chamas o palácio do príncipe, caso não entregue a nova
mulher à ira do povo, e devolva, vencido, seus penates à Cláudia. Para que o próprio
conheça por minha voz a revolta dos cidadãos, não me demorarei a executar as ordens do
prefeito. [789-805]
CORO: Por que moveis vãs guerras ferozes? Cupido cria uma teia invencível: aquele que
muitas vezes extinguiu os raios e trouxe Júpiter cativo ao céu derrubará com fogo vossas
chamas. Pagareis tristes penas com vosso sangue, pela ofensa cometida; pois Cupido não é
paciente e dócil ao rei Júpiter quando férvido de ira: ele ordenou ao feroz Aquiles tocar a
lira, enfrentou os gregos, enfrentou os átridas, derrubou os reinos de Príamo, aterrorizou
nobres cidades e agora a força violenta e intimorata que o povo traga horroriza o espírito
do deus. [806-819]
V ATO
NER.: Oh! A mão de nossos soldados é muito lenta e a minha ira, sofrida após tamanho
crime, não se sacia com o sangue do cidadão, nem com a matança do povo, pois a fúnebre
Roma que gerou tais homens não apaga em nós a lembrança das tochas erguidas. Mas a
tropa já foi instruída a punir com a morte: o ímpio crime da plebe merece a mais grave
punição. E aquela que levantou o furor dos cidadãos contra mim, esposa e irmã de quem
sempre suspeitarei, entregue enfim o espírito à minha dor e extingua nossa ira com seu
sangue; que logo sucumbam os tetos das minhas cidades às chamas: fogo, ruína, horrível
miséria e fome cruel oprimam com o luto o povo daninho. A grande turba corrupta se
ensoberbece das riquezas de nosso governo, não recebe a nossa clemência, não pode trazer
nem fazer a paz, mas com sua inquieta audácia, com sua temeridade, é arrastada para cá e
levada ao abismo. A plebe deve ser domada por males e oprimida sempre por pesado jugo,
não para que ouse tentar algo semelhante e erguer os olhos contra o santo rosto de minha
mulher; alquebrada pelos castigos, aprenda pelo medo a obedecer ao menor sinal de seu
príncipe. Mas percebo estar presente o homem que a rara piedade e conhecida confiança
dos meus quartéis dispôs. [820-845]
PREF.: Cessei a raiva do povo oprimido com a morte de poucos, que resistiram
temerariamente durante o dia. [846-7]
NER.: E isto é o bastante? Assim, soldado, ouviste o chefe? Ser dominado? É esta a
vingança devida a mim? [848-9]
PREF.: Os comandantes destruíram a revolta dos ímpios à espada. [850]
NER.: Acaso falta uma pena devida a essa turba, que ousou lançar meus penates às
chamas, dar leis ao príncipe, subtrair do leito nossa querida esposa, violar com a mão
terrível e com voz amaldiçoada o quanto pôde? [851-855]
PREF.: A dor constituirá a pena contra teus cidadãos? [856]
NER.: Constituirá, e não excluas a ninguém pela idade. [857]
PREF.: Tua ira nos moderará, não nosso temor. [858]
NER.: Esperará minha ira a primeira que a mereceu. [859]
PREF.: Devore o quanto deseje, não poupe nossa mão. [860]
NER.: Pois nossa mão pede uma morte horrível e a cabeça da irmã. [861]
PREF.: O rigor trépido apertou horrorosamente o laço. [862]
NER.: Hesitas em prepará-lo? PREF.: Por que duvidas de minha lealdade? [863]
NER.: Pois poupas a cabeça do inimigo. PREF.: Uma mulher apenas toma este nome?
[864]
NER.: Se tomou o de traidora. PREF.: Acaso há quem denuncie a criminosa? [865]
NER.: O furor do povo. PREF.: Quem vai reger os loucos? [866]
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NER.: Quem pôde incitá-los. PREF.: De modo algum creio ter sido a mulher. [867]
NER.: A natureza deu o ânimo benévolo a quem é mau, instruiu o peito ao erro para que
fosse morto.PREF.: Mas negou a força. [868-869]
NER.: Para que acaso tivesse sido inatacável, mas o temor ou castigo partisse as forças
alquebradas; que já a tarde oprime a culpada e condenada. Receba conselho e preces e
cumpra nossas ordens: manda a vencida por barco longe a uma praia remota, para que lé
seja executada. [870-876]
CORO: Oh, sombrio e terrível favor para muitos do povo, que com uma brisa favorável
inflou a vela e levantou com remos, abatido abandona o mesmo ao mar alto e cruel.
Chorou a mãe miseranda dos Gracos, os quais o grande amor e o enorme favor da plebe
pôs a perder, ilustres em família em piedade, em fé, na língua irrefreada, fortes de peito,
amargos nas leis. A ti também, Lívio, a Fortuna deu semelhante dor, que nem pôde tecer os
fasces, nem os telhados de sua casa - a dor presente proíbe recordar mais exemplos: tão
logo os cidadãos entenderam a quem entregar a pátria e fazer voltar o leito da irmã ao
palácio, agora podem ver a pobre Otávia, ser levada em lágrimas ao castigo e ao
esquecimento. Bem sorri a pobreza contente em seu teto humilde: muitas vezes as
tempestades ou a Fortuna derruba altas casas. [877-898]
OCT.: Para onde me trazeis e que tirano ou a rainha ordena o exílio? Tão cedo a vida me
retoma, já eu quebrada e vencida por nossos males? Mas se com minha morte prepara
exceder nossos lutos por que me impede também morrer na pátria que me foi sempre
cruel? Mas já é nula a esperança de salvação: digna de pena, percebo o barco do irmão.
Eis esta em cuja quilha será erguida agora a pobre irmã expulsa do leito, como o foi
outrora a mãe derrotada. Nenhuma Piedade agora o espírito tem, nem há deuses: as tristes
Eríneas governam o mundo. Quem pode chorar dignamente meus males? Que rouxinol
pediu para levar nossas lágrimas? Oxalá os destinos dessem à pobre de mim as penas dele!
Eu ,separada através de asas aladas, logo fugiria às tristes façanhas dos homens, ao meu
luto e à morte feroz. Só, no vazio bosque, e pendurada em um fino galho poderia espalhar
o murmúrio queixoso da garganta. [899-923]
CORO: O gênero humano é mortalmente regido pelos destinos, que o sol quis. por vários
motivos. sendo sempre temido por nós; ninguém pode garantir-se firme e estável. Os
exemplos reforçem teu ânimo, já são muitos os que vossa casa trouxe: por que a Fortuna é
mais cruel contigo? Tu, nascida de Agripa, nora de Augusto, esposa de César, cujo nome
nobre refulge pelo mundo inteiro, logo deves lembrar como Lívia de Druso, feliz pelo
casamento, e mãe primeira da tua descendência, cai por causa do crime do filho cruel e
qual sua pena: tantas vezes esforçada por um importante penhor de paz no útero, teve em
seguida o exílio, castigos, foi presa a cruéis correntes, morte, luto, condenada ainda ao
esquecimento. Júlia seguiu o destino da mãe: mesmo após tanto tempo foi morta pela
espada, ainda que sem crime algum. O quê não pôde tua própria mãe que governou o
palácio do príncipe, e poderosa e querida pelo marido em razão de um parto? Mas a
própria morreu sujeita a um escravo seu pela espada terrível de um soldado. Por que a
alguém a tão grande mãe de Nero permitiu esperar um reino no céu? Intocada por mão
funesta antes de embarcar, logo caiu vítima do filho, atravessada pela espada num dia
terrível. [924-957]
OCT.: Eis que a mim também o feroz tirano envia às tristes sombras e aos manes. Por que
já detenho as vãs lembranças? Partamos rapidamente ao sono que a Fortuna deu-nos por
direito. Declaro aos deuses... - que fazes, demente? Desprezada pelos deuses, poupa-te de
invocá-los: declaro às deusas vingadoras de crimes do Tártaro e do Érebo não a ti, ó pai,
digno de tal morte e castigo: essa sorte não foi desejada por mim. Armai o barco, dai a vela
aos ventos e pelo mar alcance logo, capitão, as praias de Pandatária. [958-971]
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CORO: Ó brisas leves e sonolentas do Zéfiro, que outrora por uma nuvem etérea
arrebatastes a Ifigênia raptada e escondida dos altares da virgem cruel, levai também uma
vez esta, de um triste castigo, aos templos de Diana Trívia. Nossa cidade é mais branda que
Áulis ou a bárbara Táurida: se ali o estrangeiro é sacrificado aos deuses, Roma se contenta
com o sangue de seus cidadãos. [972-982]
FIM