You are on page 1of 1

LAST EXIT

exercício impulsivo, para a misturadora de som que


foi o grupo. E Peter Brötzmann? O germânico barbudo
dispensa grandes apresentações. A sua gigantesca
discografia fala por si. Furioso e decibélico, denso e
complexo, o saxofone de Brötzmann é a transformação
do sopro numa postura incendiária de subversão do
A Última Fronteira tradicionalismo das regras do jazz. Aliás, depois do
epigonal “Machine Gun”, de 1968, ficaria associado
Por Nuno Martins em definitivo como uma das grandes vozes da ruptura
estética, e da reconfiguração abrasiva da linguagem do
jazz de vanguarda europeu. Trabalhos e projectos como
“The Chicago Octet/Tentet”, “Short Visit To Nowhere”
ou “Images” (Okka Disk) do Peter Brötzmann Tentet
(grande colectivo, permeável, que reagrupa alguns
dos melhores improvisadores free europeus e
Poucas vezes a recuperação de americanos), as obras do Die Like A Dog Quartet, os
um disco, há muito perdido, daqueles inúmeros discos na FMP, “Never Too Late But Always
que se esqueceram no tempo e foram Too Early/dedicated to Peter Kowald” , na Eremite
empurrados para o limbo das edições (em trio com a pujante secção rítmica William Parker
esgotadas e descatalogadas, suscita uma e Hamid Drake), “Sharp Knives Cut Deeper” (Splasch),
forte rememorização de emoções devido com o trio de Frode Gjerstad, entre dezenas de outros
à real superioridade do seu conteúdo. discos, ilustram o compêndio do saxofonista,
Serve este parágrafo introdutório caracterizado pela espantosa e excitante
para inserir o móbil deste texto: descoberta que o jazz europeu empreendeu,
a redisponibilização ao público em direcções autónomas da linguagem
de “Koln” (1986) do quarteto americana, e pelas tentativas, com
Last Exit, pela mão da excelente sucesso, de manter um nível de
Unheard Music Series da editora energia fora do habitual.
Atavistic, cuja actividade arqueológica
de detecção e edição de jóias esquecidas O legado discográfico do quarteto
ou perdidas do universo da é, à excepção de “Iron Path”,

UNDERWORLD
free-improv, se mantém num todo constituído por gravações
elevado nível. ao vivo, o que demonstra a
atitude empática intra-grupo,
Os Last Exit nunca foram um reflectida na mistura ascórbica
grupo de multidões, nunca e brutal destilada pelos
passearam pelos grandes quatro músicos. A potência do
palcos, nunca beneficiaram colectivo residiu na abordagem
das parangonas da imprensa,
e nunca encetaram uma via
pessoal, onde nenhuma das
partes se subordinava, quer ao
31
para o estrelato. Não era o grupo, quer ao próprio processo

Entulho Informativo 18
seu objectivo. Contudo, poucos criativo. Cada um dos músicos
grupos terão ultrapassado tinha livre-trânsito para explodir,
as barreiras normativas, e quando o espaço criado pela
abraçado uma criação musical chamada e resposta interactiva dos
de vanguarda, da mesma forma parceiros o permitisse, e apesar dos
que os Last Exit expandiram a sua quando para isso estilhaços sónicos arremessados em todas
mistura altamente inflamável de free existia oportunidade. as direcções, o grupo sempre deteve as rédeas da
jazz e noise rock, numa atitude urgente e frenética. Não se preocuparam com promoção, management, intuição, criando espaço de síntese, suficiente para a
Mais importante ainda, os Last Exit providenciaram ensaios, contratos. A música do grupo foi um processo respiração de cada músico. Demonstrou como a forma,
o léxico emotivo e o perigo da improvisação total à comunicativo, nada narcisista, de preenchimento e em relação com o conteúdo, se poderia desenvolver
linguagem do Rock, e tanto acreditaram neste conceito, desafio para as partes envolvidas. Existiram como numa abordagem livre, na conjugação de expressões
que a sua primeira aparição ao vivo em Zurique, em entidade, onde o colectivo foi superior à soma das individuais e de combinações entre elas. E a variedade
1986, seria completamente improvisada e não ensaiada. partes. E que parte! O quarteto foi fundado por de expressões nunca foi um problema de comunicação,
Todos os seus concertos foram sedimentados na máxima quatro músicos, que interagiram num todo emocional, cada qual, por definição e por necessidade, eram finitas
da improvisação total, a coda da paixão e da fúria. Claro intelectual e musical. e efémeras, apenas para se reformularem e reajustarem,
que a improvisação livre pode-se assemelhar ao caos no todo procriado, discernindo e valorizando os
total, para ouvidos destreinados ou sem paciência, mas Bill Laswell, conhecido produtor de tudo-e-mais- diferentes vocábulos.
os Last Exit eram mestres nos seus dotes individuais e, qualquer-coisa, desde rock, funk, jazz, ambiental
apesar de conceberem a música de uma forma extrema, ou dub-electrónica, músico e editor, era um dos Apesar da obscuridade, a trajectória de abordagem
no limite e sem rede, na borda do precipício, o abismo consortes da secção rítmica, responsável pelas musical dos Last Exit, encenou um futurismo primitivo
permaneceu o leitmotiv das explorações que o quarteto quatro cordas, num registo feérico de ritmo e noise, e titânico, numa essência libertária, que desbravaria
abraçou. contrabalançando numa textura blues. O seu parceiro terreno para outros colectivos em territórios similares,
foi Ronald Shannon Jackson, que providenciou uma como os Ruins, Melt Banana, Vajra, Massacre, ou até
Para muitos, a carreira do grupo permanece bateria percutida não regimentada pelo tempo e God Is My Co-Pilot. Como habitualmente, a música
desconhecida ou é uma obscura, e inócua, referência pela métrica. Antes, livre, tribal e ritual. Este duo funcionou como vaticínio de futuras possibilidades,
de uma qualquer biografia de nomes sonantes. encaixou na perfeição com outra dupla, visceral e tanto para além do horizonte das vanguardas europeia e
Redimem-se. Apesar de não ser nada fácil deixar o explosiva: Sonny Sharrock e Peter Brötzmann. americana, como da tradição do jazz.
grupo pontapear-nos em sucessivos golpes, e mesmo Sonny Sharrock usou e abusou da guitarra para infestar Infelizmente a carreira do grupo terminaria
sem a vocação masoquista que a maioria não suportará, a música com uma fusão sísmica de blues, plenos de abruptamente, com a morte de Sonny Sharrock, em
está na altura de recuperar o tempo perdido para quem groove e textura, saturados por camadas de feedback, 1994, e quando tantas emoções fort es estariam
quiser saborear música sem compromissos, assustadora, um arraial de efeitos, desestruturado e anti-regras, ainda em carteira para serem, sem pudor, despejadas
numa boa dose de violência locomotiva onde o risco é o sem receio de usar o espaço para delinear uma solidez directamente ao público. Sem a existência destes quatro
padrão e a ferocidade a linguagem. sob a selvajaria, uma musicalidade enterrada nas cavaleiros do apocalipse, a intensidade do noise rock
explosões caóticas da barragem de som do grupo. entroncado na linguagem da improvisação jazz, não
O grupo não se exibia na tradicional concepção dos Sharrock não se distrai com tradicionais solos de seria a mesma, e no magnetismo sonoro da música mais
grupos Rock. Apenas se juntavam para os concertos, guitarra, antes propulsiona uma paixão sónica, num extrema subsistiria um elo perdido.

You might also like