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Michelangelo Buonarroti

Sonetos
Selecçom, traduçom e apresentaçom por Roi Ferreiro
Apresentaçom

Os seguintes poemas forom escolhidos a partir da ediçom bilingüe dos Sonetos Completos de Michelangelo em espanhol,
publicada em 1987 por Catedra e preparada e traduzida por Luis Antonio de Villena. A traduçom ao galego realizou-
se com apoio da traduçom espanhola, mas esta foi revisada em numerosos pontos, buscando primar a literalidade
semántica e a concordáncia estrutural dos versos, em detrimento da forma, que só foi modificada ali onde parecia
imprescindível. As referências em números romanos dos sonetos correspondem à orde da ediçom espanhola. As
notas sinaladas com asterisco som autoria do tradutor ao galego.

Com exceiçom dos dous primeiros sonetos, que tratam fundamentalmente da apreciaçom da beleza, e do último,
que é umha reflexom perante a certeça da morte, os poemas centrais estám inspirados na relaçom amorosa do autor
co moço Tommaso de Cavalieri. Estes poemas a Cavalieri podem, bem, server para ver com outros olhos as esculturas
de Michelangelo, tendo presente que el desenvolveu sempre a sua actividade poética como algo paralelo e vinculado à
escultura (e à pintura e à arquitetura), sem considera-la nunca como “ofício”. E se o conhecimento da sua sensibilidade
homosexual, igual que o do seu pensamento espiritual poético, podem iluminar, para os nossos olhos, outros matices
da sua escultura, bem podem tamém botar luz sobre o intenso conflito que animava a sua arte, conflito entre a sua
paixom pola beleza material e o anelo dumha plenitude espiritual.

Ao final adjunta-se, como apéndice, a traduçom duns extratos da Introduçom à ediçom espanhola de L. A. de Villena,
que constituem umha análise sintética da temática poética miguelanjesca.

Somentes advertir, antes da leitura, que o estilo poético de Micheangelo está caracterizado, como afirma Villena,
pola «sua dureza, as suas contorsons, os seus inegáveis defeitos de forma literária». «Mais atento aos conteúdos que à
estrita elaboraçom formal (pese a que sabemos que Miguel Anjo reelaborou muitos dos seus textos), o resultado será
um poema apretado de ideas, conceptual -no sentido barroco do termo-» (a Introduçom). «Trata-se, em efeito, dumha
poesia como talhada na pedra», «irregular, chea de aristas», e a traduçom «ha de manter, no possível, essa, digamos-lhe,
divina rudeza» (O texto miguelanjesco e a nossa traduçom).

R.F.
Sonetos
IX

Espirito bem nascido, no qual se espelha e ve


nos teus belos membros, honestos e caros
quanto natura e céu podem em nós fazer,
quando a nengumha outra a sua bela obra cede:
espirito delicioso, no que se espera e crê
dentro, como afora na face aparece,
amor, piedade, mercede, cousas tam raras,
que nunca na beldade uniram-se com tanta fé;
o amor prende-me e a beldade ata-me;
a piedade, a mercede com doce olhar
firme esperança ao coraçom outorgam.
Qual uso ou qual governo ao mundo nega,
qual crueldade de hoje ou qual mais tarde,
que a tam fermosa obra nom perdoe?

(Datado algo depois de 1528)


X

Di-me por graça, Amor, se estes olhos meus


vem de verdade a beldade à que aspiro
ou se vai dentro de mim que, onde miro,
vejo esculpida entom a sua face.
Tu o deves saber, posto que ves com ela
a arrincar-me toda a paz e a dar-me enojo;
mas nom quereria perder um mínimo suspiro,
nem pedir um foco menos ardente.
--A beleza que ti vês é bem de aquela,
mas cresce pois que a melhor lugar sube,
se polos olhos mortais a alma corre.
Aqui ela fai-se divina, honesta e bela;
como a si semelhante quere cousa imortal:
esta e nom aquela nos teus olhos se antecipa.--

(Posterior a 1528.)
XIV

Se o imortal desejo, que alça e corrige


os outros pensamentos, aflorasse os meus,
quiçais que ainda, na casa do Amor,
faría piadoso a quem despiadado reina.
Mas porque a alma por divina lei
tem longa vida, e o corpo em breve morre,
nom pode o sentido o seu elogio ou valor
descrever de tudo, já que de tudo nom entende*.
Entom, ai de mim!, como será ouvido
o casto anseio que ao coraçom dentro acende
por aqueles que sempre se vem a si mesmos nos outros?
A minha preçada jornada é-me impedida**
com o meu senhor que às mentiras atende,
que a dizer verdade, embusteiro é quem nom crê.

(1532. Provavelmente o primeiro dos sonetos dedicados a Tommaso dei Cavalieri)

Notas ao poema XIV:

*
Existe um paralelismo semántico no original entre a «lei» (legge) divina e o último «entende» (legge) -referindo-se ao entendimento
da alma-. Em ambos casos a etimologia de leggere refire-se à escrita e à lectura. Lei tería o sentido de «o que está escrito», de
modo que se afirma, entom, que o «sentido» nom é capaz de ler completamente a alma porque esta está escrita em caracteres
divinos.

**
«La mie cara giornatta m’è impedita». A fonte espanhola traduz: «Mi jornada mejor no me es posible». Penso esta versom força a
traduçom a partir de reempraçar «impedida» por «nom possível». Se traduzisse: «A minha melhor jornada é-me impedida»,
entom aqui «melhor» ficaria somentes como umha traduçom algo forçada de «cara» e nom alteraria tanto a estrofa em
conjunto.
XVI

Tu sabes que sei, senhor meu, que sabes


que venho para gozar-te mais de perto,
e sabes que sei que ti sabes que som disso:
a que mais retardo em saudar-se, pois?
Se verdade é a esperança que me das,
se verdade é o grande desejo que me é concedido,
rompa-se o muro posto entre o um e o outro,
que dupla força tenhem as ocultas dificuldades.
Se amo só de ti, meu caro senhor,
o que de ti mais amas, nom te indignes,
que um espírito do outro namora-se.

O que no teu belo semblante anseio e apreendo,


e mal compreendido é polo ingénio humano,
quem queira sabe-lo convém que primeiro morra.

(1532)
XXXIII

Vejo cos vossos olhos belos umha doce luz


que cos meus cegos ver nom podo;
porto cos vossos pés um peso acima,
que cos meus coxos nom é já costume.
Vóo coas vossas alas sem plumage;
co vosso ingénio ao céu sempre me movo;
polo vosso arbítrio som pálido e vermelho,
frio ante o sol, quente ante as mais frias brumas.
No vosso querer habita somentes o meu,
os meus pensamentos no vosso coraçom fam-se,
no vosso alento som as minhas palavras.
Como a lua polo sol parece que eu seja*,
pois que os olhos nossos no céu nom sabem ver
senom só aquelo que o sol acende.

(Escrito ao redor de 1534.)

Nota ao poema XXXIII:

* O original italiano utiliza a forma «sol» às vezes para significar “só”, e às vezes para o astro “sol”, pois o autor suprime a
última vogal que os diferenciaria. Neste verso, o tradutor ao espanhol interpreta “só”, e traduz assi: “Como una luna sólo me parece
ser”. Embora, isto desconecta este verso do terceiro e desintegra a estrofa, que fai referencia a que o brilo da lua é o reflexo
na sua superfície dos raios do sol.
XXXVII

Ao coraçom de enxofre, à carne de estopa,


aos ossos que de seco lenho som;
à alma sem guia e sem freno
ao desejo pronto, à vaguidade de mais;
à cega razom debil e manca
ao viscoso, aos laços dos que o mundo é pleno;
nom é grande maravilha, num raio
arder no primeiro lume que se atopa.
À bela arte que, se do céu consigo
cada um a porta, vence a natureza,
no enquanto se prema bem em todo lugar;
se eu nom nascim a aquela nem xordo nem cego,
proporcionado a quem o coraçom me faga arder e furte,
culpa é de quem me tem destinado ao lume.

(Escrito entre 1534 e 1538.)


LXI

Bem pode às vezes co meu ardente desejo


sair a esperança e nom ser falaz que,
se todo o nosso afecto ao céu desgosta,
a que fim teria feito Deus o mundo?
Qual mais justa causa para amar-te eu
é que dar glória a aquela eterna paz
onde pende o divino que de ti praze,
e que todo coraçom gentil fai casto e pio?
Falaz esperança tem só o amor que morre
coa beleza, que todo momento mingua,
assi sujeita ao variar dum belo semblante.
Bem doce é aquela num coraçom puro,
que por cámbio de casca ou da hora extrema
nom falta, e que garante o paraíso.

(Escrito entre finais de 1545 e começos de 1546)


LXIX

Chegado é já o curso da vida minha,


com tempestuoso mar, em frágil barca,
ao comum porto, onde se vai render
conta e razom de toda obra triste e pia.
Assi a afetuosa fantasia,
que da arte me fixo ídolo e monarca
conheço ora bem estava de error carregada
e a que, mal o seu grado, todo home deseja.
Os amorosos pensamentos, vaos e alegres,
o que farám agora, se a duas mortes me achego?
De umha estou certo, e a outra ameaça-me.
Nem pintar nem esculpir dam mais que quietude*
à alma, volta para aquel amor divino
que abre, para aprehender-nos, na cruz os seus braços.

(Escrito entre 1552 e 1554.)

Nota ao poema LXIX:

* A traduçom espanhola resolve assi: «Ni pintar ni esculpir me dan sosiego». O original italiano di, sem embargo, «piu che quieti»,
«mais que quietude», co qual a diferência alteraria a significaçom fundamental. Michelangelo, na minha opiniom, considera
aqui a arte material como umha fonte de calma, mas el anseia umha plenitude de amor que tem reconhecido que este nom
lhe proporciona, de modo que se volve para Deus, deixando assi a um lado o amor terrenal. Penso que esta traduçom é mais
coherente co próprio curso da vida de Michelangelo.
De ninguén a poesía...

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