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O ONZENEIRO

Eis um cristão que conservava algo de comum com os judeus: a sua paixão pelo
dinheiro. Era um usurário que enriquecera à custa dos altos juros (11% - onzena) do
dinheiro que emprestara aos necessitados – um antepassado dos nossos modernos
penhoristas e banqueiros, a quem o Diabo chama seu parente (183).
Apresenta-se no estrado com um bolsão que ocupa quase toda a barca. O
Onzeneiro informa-nos que vai vazio, certamente porque não pudera trazer com ele os
vinte e seis milhões de cruzados que deixou bem escondidos no fundo de uma arca. Mas
é só neles que ele pensa e chega a rogar ao Diabo que o deixe voltar ao mundo para ir
buscá-los. Mas ali, no espaço para além da vida, apresenta-se tão pobre que nem sequer
dispõe de uma moeda para pagar a viagem ao barqueiro.
O símbolo do Onzeneiro é um bolsão onde guardava o dinheiro. Significa ele a
ambição, a avareza, a cobiça e a ganância.

Exercícios

1. Identifica a actividade do Onzeneiro:

a) Aquele que trabalha durante onze anos.


b) Aquele que paga um juro de onze por cento ao banco.
c) Aquele que vive de um juro de onze por cento aplicado aos empréstimos de
dinheiro.

2. Assinala os pretextos utilizados pelo Onzeneiro para tentar fugir às


consequências das acusações.

a) Diz que o bolsão vai vazio.


b) Manifesta o desejo de ir ao mundo buscar dinheiro para comprar a salvação.
c) Lembra que tem quem reze pela sua alma.

3. Organiza, colocando por ordem, o percurso cénico desta personagem.

a) Barca da Glória
b) Barca do Inferno
c) Cais
d) Barca do Inferno

4. Desta lista de adjectivos, selecciona os que te pareçam adequados para descrever


o retrato psicológico do Onzeneiro (se não conheceres algum significado, consulta o
dicionário):

a) sensato
b) leal
c) interesseiro
d) presunçoso
e) avarento
f) ganancioso
g) altruísta
h) usurário

Efectivamente, através desta personagem-tipo, Gil Vicente critica a ganância, a


exploração e a cobiça do usurário e denuncia aqueles que fazem fortunas
desonestamente, explorando as necessidades alheias.

Recursos que contribuem para o cómico

Com a intenção de divertir a corte, seguindo a máxima “a rir, corrigem-se os


costumes”, Gil Vicente recorre a alguns recursos estilísticos.

Atenta no seguinte exemplo:

“Onz. – Na safra do apanhar


me deu Saturno quebranto.”

Nestes versos, o Onzeneiro refere-se indirectamente à sua morte, utilizando


expressões menos bruscas. A este recurso damos o nome de eufemismo.

A ironia é também um recurso estilístico muito usado por Gil Vicente para
provocar o riso.

“Dia. – Oh! Que gentil recear,


E que cousas pera mim!”
Atitude trocista e mordaz por parte do Diabo.

Para saber

O eufemismo consiste em suavizar a expressão de uma ideia ou realidade que é


considerada violenta ou desagradável, substituindo a palavra ou expressão directa por
outra mais agradável.

Relembra

A ironia consiste na expressão do contrário daquilo que se pensa ou sente.


Através da ironia pode-se zombar de alguém, assim como censurar ou humilhar.
Origem da língua portuguesa: latim vulgar

Já reparaste que o português do séc. XVI, que é usado no Auto da Barca do


Inferno, é muito diferente do actual?
Conhecer a origem e a evolução da língua portuguesa pode ajudar-te a
compreender o porquê da utilização de certas palavras.

O português provem do latim, língua que se falava na região do Lácio, cuja


capital era Roma. Os romanos através das suas conquistas construíram um grande
império, levando a que muitos povos conquistados passassem a falar o latim. No séc. III
antes de Cristo, os romanos conquistaram também a Península Ibérica. Como os
soldados que ocupavam os territórios conquistados eram quase todos incultos e
iletrados, o latim que falavam era o latim vulgar, usado por pessoas com pouca
instrução e, por isso, muito diferente do latim falado pelas pessoas mais cultas que se
expressavam no chamado latim erudito.

Foi através do latim vulgar, que se ia espalhando pelas terras conquistadas


pelos romanos e misturando com as línguas já faladas nesses locais, que algumas
línguas foram nascendo. As que se formaram a partir do latim designam-se por línguas
novilatinas e são o português, o castelhano, o francês, o italiano e o romeno.

Noção de estrato, substrato e superstrato

A língua actual não é só constituída pelo latim. Como acabámos de ver, quando
os romanos conquistavam um novo território, nele já habitavam outros povos que
tinham a sua própria língua. Estes passavam a misturar a sua língua com o latim vulgar,
dando origem às diferentes línguas. Mais tarde, outros povos chegaram a esses
territórios, trazendo também a sua influência. Assim, a língua que hoje falamos parece
construída em várias camadas ou estratos.

Estrato

Designa a língua que se impôs numa determinada região, sobrepondo-se às


que já existiam e às que surgiram mais tarde.
A maioria das palavras portuguesas é de origem latina.

Substrato

Refere-se às línguas que já existiam antes do estrato e que deixaram as suas


influências, pois não desapareceram completamente. No caso da língua portuguesa, o
substrato mais importante é o céltico. Exemplos de palavras de origem celta são:
camisa, cabana, dólmen, etc.
Superstrato

Refere-se às línguas que surgiram depois do estrato, através de povos que


ocuparam essas regiões, deixando também as suas influências. Os superstratos
germânicos e árabe são os que mais marcaram a língua portuguesa. Dos germânicos
ficaram vocábulos relacionados com actividades guerreiras: guerra, bandeira, dardo,
etc.
Os árabes deixaram muitas palavras, normalmente começadas por “al”:
algarismo, álgebra, Alcácer do Sal, Algarve, etc..

Palavras divergentes e convergentes

Como viste, o latim vulgar esteve na origem da língua portuguesa.


Mas, durante o séc. XVI, o século do Renascimento, em que se procurou imitar
a civilização greco-latina, adoptaram-se palavras novas retiradas directamente do latim
erudito ou clássico.

Diz-se então que estas palavras chegaram por via erudita, porque entraram
tardiamente na língua portuguesa, entre os sécs. XVI e XIX, e que, por isso, sofreram
poucas alterações.

As palavras que entraram por via erudita estão, normalmente, mais próximas do
étimo latino, porque não sofreram tantas evoluções.

As palavras que entraram no nosso léxico, aquando da romanização e que, por


isso, sofreram várias evoluções ao longo dos tempos, diz-se que chegaram até nós por
via popular, porque se afastam muito do étimo latino.

Cheio (via popular) areia


Exemplo: plenum arenam
pleno (via erudita) arena

Pode verificar-se o inverso:

Palavras iguais, provenientes de étimos latinos diferentes e com significados


diferentes.

Exemplo: rivu → rio (substantivo)


rideo → rio (verbo rir)

sanu → são (adjectivo)


sunt → são (verbo)
sanctu → são (adjectivo)
Para saber

As palavras com étimos latinos e significados diferentes que dão origem a


palavras que, embora com significados diferentes, têm a mesma forma, o mesmo
significante (som), dizem-se CONVERGENTES.
__________________________________________________________________
As palavras que provêm do mesmo étimo latino, com formas diferentes (via popular
e erudita) e significados iguais dizem-se DIVERGENTES.

Exercícios

1. Identifica os fenómenos fonéticos que ocorreram na evolução das seguintes


palavras para o português actual. Se ainda tiveres dúvidas sobre os processos,
podes consultar a descrição dos mesmos na ficha de “O Fidalgo”.

Apócope
a) avantagem > vantagem Aférese
Síncope

b) mihi > mii Nasalação do (i) por influência do (m)


mii > mi Síncope do (h)
mi > mim Crase dos (ii)

2. Identifica as palavras convergentes e divergentes:

Sanu (adj.); sunt (verbo ser) > são

Atrium > adro; átrio

Catedram > cadeira; cátedra

Vanu (adj.); vadunt (verbo ir) > vão

Integru > inteiro; íntegro Palavras convergentes

Rivu (subs.); rideo (verbo rir) > rio Palavras divergentes

Oculum > olho; óculo

Frigidum > frio; frígido

Balaina (subst.); baleat (verbo) > baleia

flamma > chama; flama


Prof. Maria Filomena Ruivo Ferreira

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