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CINEMA E TECNOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS

Pedro Nunes1

Refletir acerca da face complexa e multifacetada do cinema contemporâneo


neste breve artigo é, no meu entender, tarefa difícil pois exige do autor um
certo poder de análise, e fundamentalmente síntese, sem ser reducionista
com a finalidade de identificar os principais traços desse fenômeno cultural
que marcou o século XX.

Dito isso, podemos afirmar que o cinema no desenrolar de toda a sua


trajetória histórica, experienciou transformações significativas sobretudo ao
nível de sua materialidade significante com a presença das novas
tecnologias. Essas transformações de base técnica, como sabemos, não
afetam só o cinema. O cinema enquanto um sistema de produção sígnica
(mensagem) é um componente que se situa no bojo das mutações operadas
na engrenagem do processo industrial na sociedade contemporânea.

Ao contrário da concepção corrente que anuncia a morte do cinema, o


suporte cinematográfico renasce integralmente ao dialogar com a eletrônica
analógica (televisão, vídeo, TV de alta definição, a eletrônica digital síntese
numérica) e a holografia.

No entanto, antes de visualizarmos essa interconexão do cinema com as


novas tecnologias estabelecendo uma espécie de osmose sígnica, é
interessante destacarmos que o surgimento trouxe à tona questões
específicas de uma nova maneira de representar, de estruturar, de produzir
sentidos, de mobilizar pessoas e, também, consegue provocar determinadas
fissuras de ordem epistemológica, ao colocar em crise o caráter de
representação naturalista.
1 *Videomaker. Professor das disciplinas Laboratório de Imagem (graduação) e Tradução Intersemiótica (mestrado e doutorado em Letras) na Universidade Federal de

Alagoas. Doutor em Comunicação e Semiótica -PUC-SP e Universidade Autônoma de Barcelona.


Ainda do ponto de vista histórico, o surgimento do suporte cinematográfico
consiste no que podemos denominar de aperfeiçoamento do suporte
fotográfico inscrevendo em sua estrutura dorsal um elemento ilusório, o
movimento, conferido às mensagens imagéticas a mobilidade, através da
ação da luz..

Assim, ao afirmar-se enquanto um novo sistema de linguagem, o cinema


com suas múltiplas perspectivas, se distancia das diretrizes definidas por
uma corrente pioneira de voltar-se para o registro da realidade social e
instrumento de investigação científica.

Dessa forma, o cinema ao afastar-se das premissas acima, volta-se


preponderantemente para o mercado e aprimora as estruturas de ficção com
o propósito de agradar o grande público. Mesmo integrado a essa
perspectiva mercadológica, sempre existiram propostas artísticas que
souberam explorar as potencialidades técnicas e plásticas do suporte
cinematográfico. Essas propostas que priorizaram as inovações estéticas
através de seus realizadores, confrontaram-se de certa forma com o
mercado de narrativa dominante.

É importante ressaltar que a transformação do cinema se processa a partir


de dois níveis: endógeno e exógeno.

Ao nível endógeno temos as mutações técnicas desencadeadas no seio do


próprio suporte cinematográfico como a entrada do som e da cor, o
refinamento nos processos de projeção e filmagem, as experiências com o
cinerama, 70 mm, cinemascope, vistavision, odorama e as experiências com
dispositivos óticos para se obter a impressão de relevo ou simular o efeito de
tridimensionalidade (estereoscopia).

Também como estratégia de mercado e como forma de incentivar e


descentralizar a produção cinematográfica para níveis informais, o cinema
nesse processo de transformação endógena reduziu a sua bitola de 35 mm
para 16 mm e posteriormente, para 8 mm. Essas transformações
(miniaturização...) das bitolas estimularam os tradicionais registros
famliliares e de lazer como também sedimentaram cinematografias
nacionais, impulsionaram o surgimento de novas propostas estéticas,
fortalecendo os movimentos sociais, viabilizando a formação de acervos
audiovisuais e, ainda estimularam a criação de novos circuitos de exibição e
o aumento efetivo da produção.

Dessa maneira, o cinema enquanto sistema de representação se aperfeiçoou


como suporte tecnológico provocando de certa forma impactos culturais na
sociedade. No entanto, a depuração técnica do suporte tecnológico teve seu
ponto máximo e também o seu fim. Exauridas as possibilidades de
renovação no âmbito do próprio suporte, o cinema estabeleceu um giro no
sentido oposto, estagnou enquanto suporte técnico e indústria, diminuindo o
fluxo de produção devido ao alto custo da matéria prima celulóide.

Assim, ao nível exógeno, o cinema passou a ganhar fôlego e adquirir nova


roupagem com o surgimento dos novos suportes de base eletrônica.

Foi então com as tecnologias eletrônicas, começando pelo sistema que


hipoteticamente representou uma ameaça - televisão -, que o cinema
ressuscitou do seu estado de inanição. Sofre uma verdadeira metamorfose
visto que se desnuda de suas marcas convencionais legitmadas pelo próprio
tempo, estabelecendo osmose ou mesmo transladando para outros suportes.
Com esse diálogo, o cinema reinventa-se, tornando-se mais apto ao
exercício de passagens das imagens.

O cinema absorve, de certa forma, características do processo eletrônico que


tem por base a simultaneidade e instantaneidade no ato de captação, edição
e reprodução da imagem e som. Esse diálogo do cinema com os suportes
eletrônicos envolvendo desde o planejamento, roteiro, gravação e pós-
produção, aumenta ainda mais com os sistemas analógicos de alta definição
(HDTV), uma vez que a imagem eletrônica adquire resolução equivalente ao
status alcançado pelo cinema.

Na verdade o que identificamos neste cenário de produção e transmissão de


mensagens imagéticas é um processo circular de transformação da imagem
onde diferentes suportes como a fotografia, o vídeo, a TV, a holografia, que
antecedem ou sucedem ao cinema, também se contaminam.

Ao beber na fonte da eletrônica o cinema reanima sua estrutura narrativa ao


absorver de forma parcial ou integral imagens produzidas e mescladas em
outros sistemas significantes, reduz sensivelmente os seus custos de
produção e passa a percorrer um novo espaço de circulação doméstica com
o videocassete.

Assim, filmes brasileiros como Eu Sei que Vou Te Amar (1985), de Arnaldo
Jabor, Anjos da Noite (1986) de Wilson Barros ou mesmo os mais
recentes, Jenipapo (1995) de Gardenberg e Terra Estrangeira (1995) de
Walter Sales e Daniela Tomas, incorporam parcialmente em suas respectivas
narrativas a imagem eletrônica e, também, utilizam monitores de vídeo
como objeto cênico no filme. Trata-se, nos diferentes filmes, da adoção da
eletrônica pelo cinema com o propósito estético e não simplesmente a
aplicação técnica das possibilidades pré - configuradas da máquina.

Dentre outros filmes que possuem a sua estrutura narrativa contaminada


esteticamente pela eletrônica, podemos citar Sexo, Mentiras e Videoteipe
(1989), de Steven Soderberg, O Vídeo de Benny (1992), de Micheal
Haneke, Amor e Restos Humanos (1993), de Dennis Arcand, Noites
Felinas (1992) de Ciryl Collard e Ladrões de Sabonetes (1989) de Maurízio
Nichetti, todos esses filmes utilizam parcialmente a eletrônica de baixa
definição com o propósito estético.
Já alguns filmes adotam integralmente a eletrônica como O Mistério de
Oberwald (1980) de Antonionni, em cuja proposta filosófica expõe uma
face dentre as varias possibilidades do cinema eletrônico.

Outro exemplo mais avançado de cinema eletrônico onde o filme se


transforma em um território de conjunções e interseções é A Última
Tempestade (1991) de Peter Greenaway, cuja arquitetura híbrida é tecida
por uma profusão de imagens, cores e sons que convidam o espectador para
o uso da imaginação.

Originalmente produzido em película, o filme A Última Tempestade é


transposto para tecnologia de alta definição. Essa passagem do fotoquímico
ao processo eletrônico, teve como finalidade realizar novo processo de
criação já na etapa de pós-produção onde a tecnologia de alta definição foi
acionada em interface com os sistema digitais.

Assim, A Última Tempestade é mais um exemplo onde a técnica é


utilizada com o propósito criativo e, ao mesmo tempo, materialização da
desordem estética. No processo de pós-produção do filme foi possível criar
imagens inexistentes, realizar tratamentos de imagens captadas por
câmeras cinematográficas, manipular e saturar cores, multiplicar e sobrepor
imagens e sons, etc.

A Última Tempestade é um filme em cuja concepção polifônica aglutina


diferentes imagens e texturas. Enquanto exercício de metalinguagem A
Última Tempestade possibilita efetivamente o trânsito entre linguagens ,
transformando-se em um espaço híbrido de conexões sígnicas

Mas, se A Última Tempestade é uma referência misógena de absorção


parcial da eletrônica analógica e digital com ênfase na criatividade, há ainda
um tipo de cinema eletrônico que assimila de forma mais intensa a
eletrônica digital. Neste caso, o objeto referente e a incidência da luz tão
estritamente necessários para a fotografia, o cinema a televisão e o vídeo,
tornam-se secundários no universo digital. Filmes como Taxandria (1994)
de Raoul Servais, explora as potencialidades da computação gráfica
conjugando atores reais e animação virtual, ou mesmo Toy Story (1996) de
John Lesseter e Cassiopéia (1996) de Clóvis Vieira inteiramente produzidos
no universo digital.

Grande parte desses filmes que incorporam parcial ou totalmente a


eletrônica digital não perseguem o gesto criativo, apenas expõem uma face
nova e complexa do cinema em constante deslocamento. Trata-se, enfim de
um cinema cada vez mais impuro, desterritorializado, ou por assim dizer,
andrógino.

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