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ATOS COMUNICACIONAIS DE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI :

VOZES DA PRISÂO
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Resumo
Analisando a produção textual dos adolescentes em conflito com a lei em medida
socieducativa de privação de liberdade- internação, do Centro de Atendimento
Intensivo de Belford Roxo – Rio de Janeiro e a sua relação com os meios de
comunicação, este artigo procura mostrar que para cada estratégia de poder
elaborada nas instituições totais, correspondem novas modulações de resistência ou
táticas difusas, que se ritualizam em atos de comunicação. Para isso foram
analisadas falas e imagens registradas nos corpos, textualidades produzidas pelos
adolescentes em conflito com a lei. Realizamos mais de uma centena de entrevistas
com esses jovens e, ao mesmo tempo, nos valemos dos registros administrativos
dessa unidade de internação e de diversos outros documentos, para compor o
cenário da expressão comunicativa desses adolescentes.
Introdução
Na sociedade brasileira, as crianças e os adolescentes representam à
parcela mais exposta a violações de direitos, apesar de estarem definidos e
defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os maus tratos, a exploração do trabalho infantil, o abuso e a exploração
sexual, a fome, o extermínio, a tortura, as prisões arbitrárias, o desaparecimento e o
tráfico de crianças fazem parte do quotidiano brasileiro e mapeiam, de forma
contundente, o cenário nacional no que diz respeito ao descaso em relação a esta
parcela que só encontra amparo em leis que na prática não se materializam.
Um grupo cada vez mais expressivo da população tem se mobilizado para
mudar esse quadro. Mas em relação aos adolescentes em conflito com a lei, a
situação é bem diferente. Seus direitos não mobilizam nem a opinião pública de
maneira geral, nem a parcela que tradicionalmente se preocupa com os direitos da
infância e da adolescência. Reconhecer no “infrator” um sujeito com direitos, ou seja,
um cidadão parece ser um exercício extremamente difícil.
2

Nosso olhar, portanto, focará este grupo excluído das preocupações


sociais e humanas – os adolescentes em conflito com a lei.
O Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo
As instituições de atendimento a adolescentes em conflito com a lei, no
Brasil, sempre tiveram como característica o aprisionamento. Em especial as de
atendimento em regime de privação de liberdade, internação.
Bazílio (1985) faz uma análise destas instituições, comparando-as às
"instituições totais" definidas por Goffman (1999), cuja característica principal é o
fechamento, constituindo uma barreira simbólica às relações sociais com o mundo
externo. Assim, essas instituições totais proíbem explicitamente o contato físico dos
aprisionados com o exterior. Portas fechadas, paredes altas, arames farpados fazem
parte do aparato real criado para possibilitar o seu êxito.
No Estado do Rio de Janeiro, as unidades de atendimento são mantidas e
administradas pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas, DEGASE, órgão
vinculado à Secretaria de Estadual de Educação.
Esse sistema tem sido objeto de sucessivos programas de investimentos
para melhorar progressivamente sua infra-estrutura. Com o objetivo de
descentralizar o atendimento ao adolescente em cumprimento de medida
socieducativa de privação de liberdade foram criadas unidades "correcionais"
menores, onde, em tese, seria atendido um número menor de adolescentes. O
Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo, onde estão os adolescentes que
fazem parte dessa pesquisa, foi fundado em 1998.
Funcionando no último município emancipado da Baixada Fluminense, o
CAI Belford Roxo atende a adolescentes encaminhados pelo Juizado da Infância e
Juventude da Baixada Fluminense e de outras regiões do interior do Estado. Com
capacidade inicial para 80 adolescentes, em 2006 chegou a atender 230 1
adolescentes internados.
O objetivo deste artigo é visualizar o rosto e as vozes dos adolescentes.
A fala desses sujeitos, suas expectativas e seus sonhos constituem um
universo comunicacional capaz de configurar o seu lugar social, sua relação com a
instituição e o mundo exterior.
Sujeitos com história

1
Formulário Único – Estatística da DEGASE junho de 2006
3

Moradores da Baixada Fluminense, uma das maiores áreas de baixa


renda do Estado do Rio de Janeiro, os adolescentes do CAI Belford Roxo
apresentam o perfil dos meninos empregados como mão-de-obra pelo tráfico.
Franzinos (não aparentam ter a idade real), com baixa escolaridade e negros.
2
Possuem média de idade em torno de 16 e 17 anos.
Dos adolescentes pesquisados de 1998 a 2002, que passaram pelo CAI
Belford Roxo, no que diz respeito aos atos infracionais, foi constatado que o tráfico
de substância entorpecente, Art. 12 da Lei 6368/76, e o roubo com emprego de
arma, Art. 157 do Código Penal, representam significativamente a ação desviante do
grupo: juntos são 73% do total de casos, enquanto os casos de homicídios (Art. 121)
representam apenas 5% do total.
Situado num bairro pobre e violento, como tantos outros da Baixada
Fluminense, que ironicamente possui o nome de Bom Pastor, o CAI Belford Roxo é
invisível para quem passa na rua, percebe-se apenas o muro: mais de cinco metros
de altura separam a rua daqueles que ficam do lado de dentro.
Não há saída. Há apenas uma entrada lateral, por meio de um portão de
ferro. Para entrar é necessário se identificar. E quando a entrada é permitida,
através de autorização prévia da equipe técnica ou da direção, o visitante é
revistado, precisando algumas vezes se despir na presença dos chamados agentes
disciplinar.
No dia da visita coletiva semanal, pais, irmãos e filhos dos adolescentes
podem entrar com biscoitos, refrigerantes e cigarros. As cartas e fotos devem ser
entregues às equipes técnicas, que as avaliarão e só depois serão entregues aos
adolescentes ou arquivadas nos prontuários ou devolvidas à família. Nenhum
adolescente pode manter correspondência escrita sem a avaliação da equipe, por
medida de segurança da instituição.
Erving Goffman (1999) define como instituições totais aquelas que se
caracterizam pelo fechamento em si mesmas. O aspecto central das instituições
totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente separam as
esferas da vida. Assim sendo, todos os aspectos da existência são realizados no
mesmo local e em grupo, submetidos a uma autoridade, com regras e horários
estabelecidos e impostos para atender aos objetivos da instituição.

2
Como anexo apresentamos dois quadros referentes aos dados mostrados a seguir. São eles: Lugar de moradia
dos adolescentes e Ato Infracional.
4

Para Bazílio, o indivíduo submetido às práticas de tais instituições tende a


pensar a sociedade (realidade externa) nos moldes de sua vivência intra-
institucional. As instituições totais reproduzem esquemas totalitários de poder.
Aquilo que para Goffman é caracterizado como instituições totais é
classificado por Foucault (1987) como instituições complexas e austeras, cuja
principal tarefa é treinar corpos, codificando comportamentos.
Esses lugares de aprisionamento mantêm o indivíduo, segundo Foucault,
“numa visilibilidade sem lacuna”, formando em torno dele um aparelho completo de
observação, registro e notações. Assim, constitui-se sobre esses indivíduos um
saber que se acumula de forma centralizada.
Após ultrapassar os muros do CAI Belford Roxo, deparamo-nos com um
grande terreno. A estrutura do prédio de dois andares situa-se na lateral direita
desse espaço. Para entrar no interior da instituição há a necessidade de percorrer
um corredor estreito, onde há algumas portas de ferro e no final à esquerda um
portão que dá para o pátio interno, de onde não é possível ver a parte externa.
Neste pátio, distribuem-se, em círculo, os banheiros, a rouparia e as demais áreas,
como alojamentos superiores, enfermaria, triagem, Centro Pedagógico (salas de
aula), refeitório, administração (salas das equipes e direção) e quadra esportiva.
Todas remetem para o pátio interno. Observa-se, pois, nessa unidade de
aprisionamento todos os signos da sociedade disciplinar e das estruturas de poder
que devem produzir corpos docilizados. A vigilância se faz em todas as horas do dia.
A disposição física da unidade, na qual a marca mais significativa são os muros
alvos impedindo a visibilidade do mundo exterior, mostra que a disciplina é a palavra
de ordem no CAI Belford Roxo.
Como uma prisão, possui também todas as marcas necessárias ao
controle daqueles que estão sob suas teias. Agentes disciplinares constituem-se
como espécies de vigias do corpo, necessários à vigilância contínua.
Os adolescentes, ao ingressarem na Instituição, recebem seus uniformes
e seus números de matrícula, raspam os cabelos e são agrupados nos alojamentos.
É preciso despir o indivíduo de sua aparência usual. Para isso deve ser
retirado tudo aquilo que provocaria a sua disfiguração pessoal. Roupas, pentes,
cosméticos, aparelhos de barba, tudo isso é tirado dele e a ele negado. Goffman
afirma que o conjunto de bens individuais tem uma relação muito grande com o eu.
Esse conjunto dá ao indivíduo uma espécie de controle da maneira como se
5

apresenta diante do outro. Por isso a necessidade de manter esses objetos que o
ligam ao mundo exterior e à formação da própria identidade. São espécies de
“estojos de identidade” (1999: 28-29).
A perda da identidade faz parte também da lógica disciplinar. Ao deixar do
lado de fora dos muros os nomes e ao assumirem um número, deixam de ser
sujeitos individuais, para se tornarem sujeitos de uma nova sujeição. Numerados e
desnomeados são agrupados. Por força da disciplina, perdem a individualidade e
passam a receber, em grupo, o epíteto pelo qual são conhecidos na sociedade:
menores infratores.
"Isto aqui é o maior massacre. Eu queria ver a minha mãe de cabeça
erguida. Peço perdão pela humilhação que a senhora tem de passar pra
me vê, por tudo que eu tenho feito a senhora passar. Peço mais uma
oportunidade, eu quero a minha liberdade. Aqui a gente não é gente. Eu
não agüento mais ser chamado pelo numero". 3 (Grifo da Autora. B., 18
anos – Carta endereçada à mãe.)

Ao ser internado, a instituição define um novo status jurídico, social e civil


para o adolescente: infrator, bandido e menor. Assim, a priori, atribui-se uma
identidade ao adolescente e passa-se a tratá-lo como tal.
Os adolescentes são encaminhados para os alojamentos superiores e
dois outros no térreo (anteriormente enfermaria e triagem). A esses locais só têm
acesso os agentes de disciplina e a direção.
Os alojamentos, utilizados para atividades de descanso e "recolhimento",
são, na verdade, celas coletivas com camas de alvenaria e colchões, onde os
adolescentes colocam seus objetos pessoais: escovas de dente, desodorante,
sabonete, toalha, lençol, ventiladores, rádios portáteis ou walkman, televisores
(doados pelos familiares à instituição).
“Trangüilo vou embora
É mas Um dia que passa
Trancado e cela que saudade da favela
Aos olhos da vendosa

3
Optou-se por reproduzir literalmente a fala/escrita dos adolescentes, conservando gírias, incorreções
gramaticais e outras imperfeições em relação à norma culta da língua. Esses modos de falar serão também
analisados.
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Vendo o sol nascer quadrado


Isto não é pessadelo
Eu estou acordado” 04 ALJ” ( U, 16 anos.Poesia/desenho)
Na percepção expressa na poesia-desenho pelo adolescente U, ou
simplesmente n° 101 no CAI Belford Roxo, denominada “Tranqüilo vou embora”, o
alojamento número 4, onde ele estava encarcerado, era de fato uma prisão. O sol
que, reproduzindo a expressão popular, via “nascer quadrado”, aparece também no
desenho e esta situação é reafirmada no texto. Para ele os dias passavam todos
iguais e o que marcava a diferença era a sua relação sentimental com o mundo
exterior: a saudade da favela. A saudade era a marca do tempo.
Através da pequena abertura de cimento armado (“olhos da vendonsa”
(sic), via “o sol nascer quadrado”, situação que ele compara a um pesadelo. Ao se
deparar com a realidade, percebe que está acordado, naquele alojamento-cela.
“A gente paga a cadeia lá em cima do jeito que pode. Tem gente que
fica meando de lutinha, outros vêem televisão, ouve música, quando
alguma mãe traz pro menor do alojamento”.(T, 18 anos. Depoimento à
Autora)

O quotidiano desses adolescentes indica que sua ligação com o mundo


exterior se faz através dos artefatos comunicacionais. O rádio, a televisão, ao lado
das brincadeiras agressivas entre eles (meando de lutinha) mostram o universo,
muitas vezes desconhecido, existente nessas prisões-alojamentos.
“Tem vezes que a gente pra acender o cigarro faz curto, ai pifa a TV ou o
ventilador, ai todo a alojamento paga, e o seu descobre, todo mundo fica
sem sucata, é o maior massacre”. (C, 16 anos. Depoimento à Autora)

“Tem menor que faz lembrança pra mãe de sabonete. Tem alojamento
no capricho: a gente descasca a tinta da parede e junta com tinta das
roupas, água e sabão e faz desenho no alojamento, quando consegue
caneta e folhas dos abargados, desenha e escreve. Ás vezes a gente
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lixa a caneta, fica bem fininha, e faz tatuagem..". 4 (A, 14 anos.


Depoimento à Autora)

Nos relatos dos adolescentes percebe-se que o internamento nesse tipo


de instituição que enclausura para disciplinar se dá de modo a que passe por um
processo de perda da dimensão de individualidade e de sujeito. Ocorre o que
Goffmam (1999) chamou de mortificação do eu. O adolescente depara-se com a
perda do seu próprio nome, passa a ser simplesmente menor. Há ainda a
insegurança física diária, sem falar na perda de sua intimidade, na degradação de
sua higienização corporal. Esses elementos provocam a violação de sua própria
identidade e, portanto, de toda linhagem simbólica do que o significou até então.
No interior CAI Belford Roxo observa-se a veemência da disciplina. A
estruturação do espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde
os adolescentes estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são
controlados, onde todos os movimentos são registrados. Mas esta disciplina não é
tão totalizante quanto se poderia imaginar, um tipo de resposta defensiva precisa ser
construída, os adolescentes procuram resignificar à realidade através de seus
próprios atos comunicacionais rompendo a barreira colocada entre ele, como
indivíduo, e mundo lá fora: ouvem música, vem televisão, desenham nas paredes,
escrevem e registram em seus próprios corpos, elementos de sustentação da sua
subjetividade. As marcas comunicacionais dos adolescentes – cartas, falas, pinturas,
tatuagens – evidenciam o caráter falho da disciplina, mas, sobretudo a construção
de táticas ou de resistências quotidianas.
Marcas no corpo
O encarceramento na instituição, entretanto, não produz silenciamento
em relação ao mundo exterior. Intramuros continuam se organizando com a mesma
lógica de quando possuíam alguma liberdade. Essa ligação com o mundo se faz
através de marcas distintivas nos seus corpos. Essa resistência, igualmente capilar,
tal como a disciplina que lhe é imposta se faz através de ações e atos
comunicacionais. Os atos comunicacionais dos adolescentes significam a
possibilidade de sobrevivência real e simbólica.

4
Comarca : camas de alvenaria; Boi : privada em forma de cavidade na superfície do piso.; meando de lutinha :
brincando de lutar ; Seu : abreviação de senhor – agente de disciplina; abargados: adolescentes com privilégios-
apadrinhados; sucata : biscoitos e refrigerantes que as famílias trazem durante as visitas.
8

“Eu pedi para fazer no braço o CV de Comando Vermelho e os colegas


fizeram também R L que era o nome do dono da boca lá onde eu era
gerente da boca de dois". (A., 14 anos, referindo-se a tatuagens no braço
direito e à função no trafico de entorpecente: gerente do local onde
comercializava drogas no valor de dois reais )"
"Olha o que fizeram com meu filho? O corpo da gente é templo de Deus.
Ele vai ficar marcado pra sempre que esteve aqui ." (Mãe do adolescente.
Depoimentos à Autora)

Os adolescentes do CAI Belford Roxo, assim como os demais internos em


outras unidades do sistema DEGASE, organizam-se em facções diretamente filiadas
aos grupos existentes fora muros: Comando Vermelho, Terceiro Comando, etc.
Apesar de este tipo de organização não ser explícita, devido à repressão contínua
das equipes e das estruturas coletivas de atendimento, percebe-se a organização e
a filiação às facções nos corpos tatuados, nos gestos, na fala, na "proteção das
famílias", nos atos comunicativos.
“A imagem de Cristo tatuada no ombro direito contrasta com a inscrição
CV (Comando Vermelho) riscada no braço esquerdo de G. Aos 15 anos,
o adolescente – aliciado pelo tráfico quando tinha apenas 10 anos –
ilustra com perfeição o emprego de crianças e adolescentes no tráfico de
drogas no Brasil – especificamente no Rio de Janeiro" (“A pior forma de
trabalho”. O Dia, 01/03/2002).

O corpo dos adolescentes se integra e resiste à instituição. Deixa de ser


único na medida em que o espetáculo-instituição tem sua escritura desenhada
através dos movimentos dos corpos, de seus itinerários que riscam e territorializam a
prisão - estratégias de poder.
É assim que a violência da instituição suscita nos internos uma densa
narração, que se materializa no poder disciplinar sobre o seu próprio corpo. Mas, a
partir do momento em que o poder produz este efeito, como conseqüência direta de
suas conquistas emerge, inevitavelmente, a reivindicação de seu próprio corpo
contra o poder: é batalha continua - astúcia. Corpos em confronto se espacializam,
se fazem ver em diferentes configurações.
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O corpo relativo à era da comunicação imagética se, por um lado, se


apresenta como território circundado de fronteiras, como corpo-limite,
individualizado, por outro transborda essa leitura e se mostra através de um estoque
de imagens não necessariamente projetivas ou sequer, ainda, projetadas. Imagens
que se dispõem muitas vezes como arranhaduras, tatuagens furadas, sinais, lugares
de enunciação silenciosos do corpo.
Entre os adolescentes do Cai Belford Roxo a tatuagem é uma das formas
de comunicação utilizada nas tramas da identificação da delinqüência juvenil. Ela
revela por imagens o que as palavras não conseguem exprimir.
"Assim que eu ganhei a rua eu fiz esta tatuagem. Quando eu estava aqui
eu gostei(...) Eu só deixo a senhora tirar foto porque sei que é para a
faculdade. Os cana usam as tatuagens para saber da gente". (A, 18 anos.
Depoimento à Autora)
"Eu tatuei uma arma quando eu entrei nesta vida. Eu escolhi esta, e o
cara perguntou se era para colocar uma caveira embaixo, aqui
(apontando para o braço e o espaço entre as tatuagens das armas
cruzadas). Ele disse que era igual dos canas, acho que era do BOPE. Eu
disse não, eu só queria armas". (D., 16 anos. Depoimento à Autora )
“Eu tatuei na minha mão o nome do meu irmão. Ele morreu nesta vida...
(B., 18 anos. Depoimento à Autora)
“Todo mundo me chama DaNiKe” ( H. 17 anos . Aponta para tatuagem
com o símbolo da Nike, tatuado em sua cabeça próximo a nuca, no coro
cabeludo , apenas visto a partir do corte rente de cabelo feito na
instituição . Depoimento à Autora)

Imagens expostas e, paradoxalmente, cifradas/decifradas ao olhar do


outro. As marcas nos corpos dos adolescentes do CAI Belford Roxo são relatos
sobre situações de sofrimento, de prazer, de consumo, de pertencimento... Imagens
recortadas do silêncio, fixas, até mesmas marcadas por simples tentativas de
enunciação: cada pessoa, cada lugar pretende ser apenas a imagem registrada,
nítida, sólida, demarcada. Uma arma, uma mulher bonita, um pássaro, um nome:
liberdade.
Os adolescentes e as suas imagens na televisão
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Os adolescentes do CAI Belford Roxo têm acesso às produções culturais


via canais da televisão aberta. Realizamos uma pesquisa sobre quais os programas
que vêm como percebem as imagens difundidas pela televisão, suas preferências ao
selecionar as programações, o tempo passado diante do aparelho e como fazem
uma leitura sobre estes programas, refletindo sobre aquilo que fabricam a partir
destas imagens.
Buscamos clarificar a problemática do uso do consumo, pois acreditamos
como Certeau, que o homem ordinário não é um consumidor passivo diante da
televisão, livros, tecnologias, moda e crenças, mas um agente declaradamente
transformador e afortunadamente, em muitos casos, descrente e questionador das
versões empregadas para condicionar e criar ilusões pelos provedores destes
instrumentos.
Esta pesquisa foi realizada com quarenta e três adolescentes, divididos
em grupos de oito ou nove, dos diferentes alojamentos onde existem aparelhos
receptores doados por colegas e familiares. Estas conversas foram guiadas pelo
pesquisador de modo a que aflorasse através das palavras dos adolescentes os
procedimentos de seleção dos programas, os horários, a freqüência com que viam
a programação e repercussão dessas imagens nos seus atos e pensamentos.
De modo geral os adolescentes destacaram os filmes de aventura, com
cenas de luta, tiros e sexo, como os mais procurados e desejados, logo abaixo das
reportagens sobre o Rio de Janeiro, em especial as que enfocam a criminalidade e o
sistema penitenciário. Reportagens e programas envolvendo a violência urbana
ganharam primazia na sua fala.
"Eu vejo o RJ–TV e o Jornal Nacional, pra vê se tem nós na fita, ou se
tem os donos. Viu o parangolé com Fernandinho Beira Mar, a senhora
viu? Ninguém quer ficar com ele. Na de maior tudo tem tela, vídeo,
celular, som de cd, a gente fica sabendo de tudo. Aqui tem alojamento
sem tela. Quando um menor deixa e vai embora, a direção pega e dá
para os abargados ou fica pros seus. Tem vezes que a gente sabe que
tem rebelião nas outras unidades pela tela e eles mandam apagar, até
recolhe. E a gente liga os walkmans e fica sabendo das paradas da pista
" 5 (G., 17 anos. Depoimento à Autora)

5
Tem nós na fita: imagens das facções criminosas do trafico de entorpecentes ; tem os donos: criminosos que
chefiam as facções; parangolé : assunto, entrave; na de maior: na prisão de adultos; tela:tv; abargados :
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Na produção quotidiana da astúcia, da resistência silenciosa, não adianta


desligar a televisão ou, num ato de violência simbólica e real, mandar retirar o
aparelho dos alojamentos. A violência da retirada da informação contrapõe-se a
resposta da informação recebida através dos walkmans, aparelhos de interação
desses jovens com o mundo fora muros, seja através das músicas, seja através do
noticiário.
Por outro lado, a notícia é vista para saber se enfoca suas questões – “se
tem nós na fita” – ou se, ao contrário, “tem os donos”, os chefes reconhecidos nesta
luta quotidiana contra a miséria. A fala da autoridade é percebida, portanto, por outro
víeis: o do quotidiano da representação da própria notícia.
Para Certeau (2000), uma produção racionalizada, expansionista e
centralizada, ruidosa e espetacular como a televisiva, corresponde a outra produção
astuta, silenciosa e quase invisível, que opera com as maneiras pelos quais os
sujeitos dela se utilizam e como a consomem. Não vamos neste capítulo analisar os
bens culturais televisivos, o sistema de sua produção, o mapa de sua distribuição,
mas considerá-los como repertórios com os quais os adolescentes em conflito com a
lei procedem a operações próprias.
Assim, na fala de G., percebemos que estes adolescentes encarcerados
no CAI Belford Roxo fabricam uma imagem de si - pra vê se tem nos na fita - a
partir de uma produção que deveria afastá-lo como espectador, excluindo-o. Ao
mesmo tempo, esta imagem é alterada pelo uso que os adolescentes dela fazem,
empregando-a a serviço de regras, costumes e convicções estranhas à cultura
difundida pelos produtores da linguagem televisiva: a das elites.
Podemos pensar que os programas jornalísticos, os telejornais, não
teriam como público alvo o consumidor "adolescente infrator", isto é, os telejornais
não poderiam identificar o consumidor que deles se servem, pois há o
distanciamento do uso que se faz e dos indícios da ordem que lhe é imposta.
Na fala de G., podemos perceber ainda as relações de forças definidas
nas redes onde se inscrevem e delimitam as circunstâncias que os adolescentes
podem se aproveitar para obterem a "informação": de maior tudo tem tela, vídeo,
celular, som de cd, a gente fica sabendo de tudo. Aqui tem alojamento sem tela.

protegidos com privilégios ; pros seus: para os agentes de disciplina; mandam apagar: mandam desligar a tv;
paradas da pista : assuntos ou noticias de fora da prisão.
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Quando um menor deixa e vai embora, a direção pega e da para os abargados ou


fica pros seu . Trata-se de combates ou jogos entre o forte e fracos, ações que os
adolescentes podem empreender como táticas e que estão sujeitas às estratégias,
às técnicas organizadoras do poder da instituição.
As noções de 'estratégias' e 'táticas' construídas por Certeau diferenciam-
se dos significados mais freqüentes que são atribuídos aos dois termos. Para o
autor, a necessidade de se estabelecer esta distinção (oposição) situa-se na base
da construção de um novo modelo de compreensão da realidade social e das ações
que nela são desenvolvidas. De um lado pelo sistema e de outro pelos sujeitos
'praticantes' em sua vida quotidiana. O novo modelo pretende superar os limites do
atual modelo científico e estatístico dominante.
Diz Certeau: “chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das
relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de
querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica)
pode ser isolado”.
Assim, “a estratégia postula um 'lugar' suscetível de ser circunscrito como
'algo próprio' e ser a base de onde se podem gerir as relações com 'uma
exterioridade' de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o
campo em torno da cidade, os objetivos e objetos de pesquisa, etc.)”. (CERTEAU,
2000: 99)
Estratégicas, portanto, são as ações e concepções próprias de um poder,
no caso da nossa análise, da instituição de internação dos adolescentes infratores,
na gestão de suas relações com "outro": o adolescente em conflito com a lei, sujeitos
reais, em princípio submetidos a este poder, mas potencialmente ameaçadores em
suas ações instituintes.
Afirma G: Tem vezes que a gente sabe que tem rebelião nas outras
unidades pela tela e eles mandam apagar, até recolhe. Esta concepção de
estratégia traz como efeito principal o corte entre um lugar apropriado e o outro,
tornando-se primeiramente uma vitória do lugar sobre o tempo. É um domínio do
tempo pela fundação de um lugar autônomo, como enfatiza Certeau. (Idem: 99). Em
segundo lugar, é também o domínio dos lugares pela visão. A divisão do espaço
permite a 'prática panóptica' a partir de um lugar de onde a visão transforma as
forças estranhas em objetos que podem ser observados, medidos e controlados e,
portanto, incluídos na sua própria visão. É preciso, pois, apagar a cena da televisão,
13

impedir, para colocar em destaque uma outra visão, onde aquela realidade não
existiria.
Mas não adianta apagar, não adianta retirar. Outro aparelho de ligação
com o mundo exterior é imediatamente acionado: “... eles mandam apagar, até
recolhe. E a gente liga os walkmans e fica sabendo das paradas da pista "
O poder do saber poderia, deste modo, ser definido pela criação de um
lugar próprio, autônomo em relação ao tempo (e às ações e aos acontecimentos
reais ocorridos), de onde se vê e se controla, tornando legível e previsível a
realidade, viabilizando o "trabalho científico". Por outro lado, este saber tem um
poder que permite e comanda suas características e que, portanto, lhe é preliminar.
Em relação às táticas, Certeau as define como ações calculadas e
determinadas pela ausência de um próprio. Afirma que a tática é movimento dentro
do espaço de ação do inimigo e por ele controlado. Ela não tem, portanto, a
possibilidade de dar a si mesma um projeto global, nem de totalizar o adversário
num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance.
Aproveita as ocasiões e delas depende, sem base para estocar benefícios,
aumentar a propriedade e prever saídas. Retomamos o relato de G : E a gente liga
os "walkmans" e fica sabendo das paradas da pista. São saídas momentâneas.
O que as táticas ganham não se conserva. Este não-lugar lhe permite,
sem dúvida, mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no
vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as
falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera.
É astúcia. (CERTEAU, 2000: 100-101)
CONCLUSÃO
O propósito principal deste estudo foi apreender os processos
comunicativos dos adolescentes em conflito com a lei em instituição de privação
de liberdade, produzidos situacionalmente e que se constituem em manifestações
singulares em um lugar/espaço – o CAI Belford Roxo. Ao mesmo tempo em que
procuramos desvelar essas práticas discursivas e o panorama sócio-cultural que as
constituem, tentamos compreender os sentidos produzidos por essas narrativas.
Ao registrar as relações e ações comunicativas dentro da instituição,
materializadas em práticas cotidianas, ora disciplinares, ora de resistências,
estratégias e astúcias em que essas marcas de identificação espaço-temporal se
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revelam, pretendemos fazer destes relatos um espelho onde o leitor possa mirar-se
e refletir sobre a construção da história da violência, do estigma, dos processos de
segregação dos jovens hoje encarcerados nas unidades de internação.
Tomando como base às ações comunicativas dos adolescentes como
processos de troca, ação partilhada, práticas concretas, estabelecidas no
quotidiano do CAI Belford Roxo e além muro da instituição, procuramos visualizar
esses adolescentes enquanto interlocutores, sujeitos sociais desempenhando
papeis, envolvidos em processos de produção e interpretação de sentidos, mais do
que simples emissores e receptores. Pautados, portanto, numa visão que considera
as relações dialógicas, foi possível desvelar os múltiplos caminhos e sentidos da
polifonia dessa realidade específica. Assim, foram sendo reveladas camadas de
semiotização, levando a interpretações que nos permitiram apontar para outro tipo
de visibilidade do contexto das instituições de internação dos adolescentes em
conflito com a lei.

BIBLIOGRAFIA E FONTES
1. Fontes primárias
1.1 Depoimentos:
Entrevistas realizadas com 143 internos do CAI Belford Roxo
Entrevistas realizadas com 78 familiares de internos do CAI Belford Roxo
Entrevistas realizadas com 16 Agentes de Disciplina e Agentes Educacionais
Entrevistas realizadas com 10 profissionais da Equipe Técnica do CAI Belford
Roxo

1.2 Relatórios e outros documentos impressos:


Prontuários de 143 internos do CAI Belford Roxo
Sentenças judiciais referentes aos internos do CAI Belford Roxo
Correspondências diversas
2 Fontes Secundárias :
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