Professional Documents
Culture Documents
Pierre Clastres
Não que seja muito divertido, mas é preciso refletir um pouco sobre a antropologia
marxista, sobre suas causas e seus efeitos, suas vantagens e seus inconvenientes. Pois
se o etnomarxismo constitui, por um lado, uma corrente ainda poderosa nas ciências
humanas, a etnologia dos marxistas é, por outro, de uma nulidade absoluta ou, melhor,
radical: é nula na raiz. Eis por que não é necessário entrar no detalhe das obras: pode-se
sem dificuldade tomar em bloco homogêneo igual a zero. Convém portanto interrogarmo-
nos sobre esse nada transbordante de ser (veremos de qual se trata), sobre essas
conjunção entre discurso marxista e sociedade primitiva.
Antes algumas referencias históricas. A antropologia francesa desenvolveu-se, de vinte
anos para cá, graças a promoção institucional das ciências sociais ( criação de
numerosos cursos de etnologia nas universidades e no CNRS [ Centre National de
Recherches Scientifiques], mas também na esteira de um empreendimento muito
considerável por sua originalidade, o de Lévi-Strauss. Assim a etnologia desenvolveu-se,
até uma data recente, sob o signo principalmente do estruturalismo. Mas, há cerca de uns
dez anos , produziu-se uma mudança de tendência: o marxismo ( o que chamam
marxismo) aos poucos se impôs como linha importante de pesquisa antropológica,
reconhecida por numerosos pesquisadores não marxistas como discurso legitimo e
respeitável sobre as sociedades que os etnologos estudam. O discurso estruturalista
cedeu assim o passo aos discurso marxista, como discurso dominante da antropologia.
Por quais razões? Invocar, nesse ou naqueles marxista, um talento superior ao de Lévi-
Strauss, por exemplo, provocaria a hilaridade geral. Se os marxistas brilham, não é pelo
talento, pois não o possuem
(por definição, poder-se-ia dizer): a maquina marxista não funcionaria, precisamente, se
seus mecânicos tivessem o menor talento, como se verá. Por outro lado, atribuir, como se
faz amiúde, a regressão do estruturalismo à versatilidade da moda parece inteiramente
superficial. Na medida em que o discurso estruturalista veicula um pensamento forte (um
pensamento), ele é transconjuntural e indiferente à moda: um discurso vazio é
rapidamente esquecido. Veremos daqui algum tempo o que resta dele. Claro que não se
pode tampouco relacionar à moda a progressão do marxismo em etnologia. Este estava
pronto de antemão a preencher uma enorme lacuna do discurso estruturalista ( na
verdade, o marxismo não preenche absolutamente nada, como tentarei mostrar). Que
lacuna é essa onde se implanta o fracasso do estruturalismo? É que esse importante
discurso da antropologia social não fala da sociedade. O que é evacuado, apagado do
discurso estruturalista (essencialmente o de Lévi-Strauss: pois, salvo alguns discípulos
mais ou menos hábeis, capazes de ser no máximo um sub-Lévi-Strauss, quem são os
estruturalistas ?), aquilo de que esse discurso não pode falar, porque não é feito para
isso, é da sociedade primitiva concreta, de seu modo de funcionamento, sua dinâmica
interna, de sua economia e de sua política
Mas afinal, dirão, o parentesco, os mitos, não são importantes? Certamente. Com
exceção de alguns marxistas, todos concordam em reconhecer a importância decisiva do
trabalho de Lévi-Strauss sobre As estruturas elementares do parentesco. Aliás, esse livro
suscitou, entre os etnologos, uma formidável inflação de estudos de parentescos, que não
se cansam de falar do irmão da mão ou da filha da irmã. A ponto de perguntarmo-nos se
são capazes de falar outra coisa. Mas coloquemos de uma vez por todas a verdadeira
questão: o discurso sobre o parentesco é um discurso sobre a sociedade? O
conhecimento do sistema de parentescos de uma determinada tribo nos informa sobre
sua vida social? De modo nenhum: quando se descascou um sistema de parentesco,
pouco se avançou no conhecimento da sociedade que o emprega, ainda estamos no
limiar. O corpo social primitivo não se reduz aos laços de sangue e de aliança, ele não é
apenas uma maquina de fabricar relações de parentesco. Parentesco não é sociedade:
quer isso dizer que as relações de parentescos são secundarias no tecido social
primitivo? Muito pelo contrário, elas são fundamentais. Em outras palavras, a sociedade
primitiva, menos que qualquer outra, não pode ser pensada sem as relações de
parentescos, e no entanto o estudo do parentesco ( em todo caso, tal como foi conduzido
até o presente) nada ensina sobre o ser social primitivo. Para que servem as relações de
parentesco nas sociedades primitivas? O estruturalismo pode apenas fornecer uma única
resposta, maciça: para codificar a proibição do incesto. Essa função do parentesco ensina
que os homens não são animais, não são mais do que isso: ela não explica de que
maneira o homem primitivo é um homem particular, diferente dos outros, de que maneira
a sociedade primitiva é irredutível às outras. E, no entanto, os laços de parentescos
cumprem uma função determinada, imanente à sociedade primitiva como tal, isto é, como
sociedade indivisa constituída de iguais: parentesco, sociedade, igualdade estão do
mesmo lado. Mas essa é uma outra história, da qual falaremos numa outra oportunidade.
É no terreno as mitologia que se situa o outro grande êxito de Lévi-Strauss. A analise dos
mitos provocou menos vocações do que a do parentesco: entre outras coisas, porque é
mais difícil e porque certamente ninguém conseguiria fazer tão bem quanto o mestre.
Qual a condição para que sua analise possa se desenvolver? A de que os mitos
constituam um sistema homogêneo, a de que os mitos “se pensem entre si”, como diz o
próprio Lévi-Strauss. Os mitos têm portanto relação um com os outros, eles são
pensáveis. Muito bem. Mas o mito (tal mito particular) limita-se a pensar seus vizinhos
para que o mitólogo possa pensá-los todos juntos? Seguramente não. Aqui também a
concepção estruturalista abole, de uma maneira particularmente clara, a relação com o
social: é a relação dos mitos entre si que é desde o inicio privilegiada, por elisão do lugar
de produção e invenção do mito, a sociedade. Que os mitos se pensam entre si, que sua
estrutura seja analisável, não há duvida, e Lévi-Strauss oferece uma prova brilhante; mas
isso, de certo modo, é secundário: pois eles pensam primeiramente a sociedade que sem
pensa neles, e aí reside sua função. Os mitos constituem o discurso da sociedade
primitiva sobre si mesma, eles envolvem uma dimensão sociopolitica que a analise
estrutural evita, naturalmente, levar em conta sob pena de entrar em pane. O
estruturalismo só é operatório à condição de separar os mitos da sociedade, de aprendê-
los, etéreos, Flutuando a uma boa distancia de seu espaço de origem . E por isso quase
nunca se fala daquilo que, no entanto, impõe-se como experiência privilegiada da vida
social primitiva, a saber: o rito. Com efeito, que há mais de coletivo, de mais social do que
um ritual? O rito é a mediação religiosa entre o mito e a sociedade: mas, para a análise
estrutural, a dificuldade provém de que os ritos não se pensam entre si. Impossível pensá-
los. Logo, retira-se o rito e, com ele, a sociedade.
Quer se aborde o estruturalismo por seu cume (a obra de Lévi-Strauss) , quer se
considere esse cume segundo suas encostas principais (análises do parentesco; análise
dos mitos), Uma constatação se impõe, a constatação de uma ausência: esse discurso
elegante, com freqüência muito rico, não fala da sociedade. O estruturalismo é como uma
teologia sem deus: é uma sociologia sem sociedade.
Uma vez saboreando o espetáculo de toda esta farsa, abordemos agora a questão
importante: o que vem a ser o discurso marxista em antropologia? Eu falava, ao iniciar
este texto, da nulidade radical da etnologia marxista (leiam, leitores, as obras de
Meillassoux, Godelier e companhia: é edificante). Radical, ou seja, desde o ponto de
partida. E por que? Porque esse discurso não é um discurso científico (isto é, preocupado
com a verdade), mas um discurso puramente ideológico (isto é, preocupado com a
eficácia política). Para ver com clareza, convém primeiro distinguir entre o pensamento de
Marx e o marxismo. Marx foi, com Bakunin, o primeiro critico do marxismo. O pensamento
de Marx é uma grandiosa tentativa (às vezes bem, às vezes mal sucedida) de pensar a
sociedade de seu tempo ( o capitalismo ocidental) e a história que a fez surgir. O
marxismo contemporâneo é uma ideologia a serviço de uma política. De modo que os
marxistas nada têm a ver com Marx. Eles são os primeiros a reconhecer. Godelier e
Meillassoux não se tratam de impostores pseudo-marxistas? É inteiramente verdade,
estou de acordo com eles, ambos têm razão. Descaradamente, os dois se valem da barba
de Marx para melhor impingir sua mercadoria. Belo exemplo de publicidade enganosa.
Mas será preciso mais de um {?} para desonrar um Marx.
O marxismo pós-marxiano, ao tornar-se uma ideologia dominante do movimento
operário, tornou-se inimigo principal do movimento operário, constitui-se como a forma
mais arrogante daquilo que o século XIX produziu de mais estúpido: o Cientificismo. Em
outras palavras, O marxismo contemporâneo auto-institui-se como o discurso que enuncia
as leis do movimento histórico, as leis de transformação das sociedades que se
engendram umas a partir das outras. Logo, o marxismo pode falar de todo tipo de
sociedade, uma vez que conhece de antemão, seu principio de funcionamento. Mas tem
mais: o marxismo deve falar de todo tipo de sociedade possível ou real, pois a
universidade das leis que ele descobre não admite nenhuma exceção. Caso contrário, é a
doutrina em bloco que vem abaixo. Consequentemente, a fim de manter não apenas a
coerência mas a existência mesma desse discurso, é imperativo para os marxistas
formular a concepção marxista da sociedade primitiva, constituir uma antropologia
marxista. Sem o que não haveria teoria marxista da história, mas apenas a analise de
uma sociedade particular ( o capitalismo do século XIX) elaborada por um homem
chamado Marx.
Mas eis os marxistas pegos na armadilha de seu marxismo. De fato, eles não têm
escolha: precisam submeter os fatos sociais às mesmas regras de funcionamento e
transformação que regem as outras formações sociais. não poderia haver aqui dois pesos
e duas medidas: se há leis da história, elas devem se aplicar tanto a seu ponto de partida
( a sociedade primitiva) quanto à continuação de seu curso. Logo deve haver um só peso,
uma só medida. Qual a medida marxista dos fatos sociais? É a economia (4). O marxismo
é um economismo, ele reduz o corpo social à infra-estrutura econômica, o social é o
econômico. E por isso os antropólogos marxistas são obrigados a extrair do corpo social
primitivo o que, segundo eles, funciona noutras partes: as categorias de produção, de
relações de produção, de desenvolvimento das forças produtivas, de exploração etc. A
fórceps, como diz Adler. E é assim que os mais velhos exploram os mais jovens
(Meillassoux), que as relações de parentesco são relações de produção (Godelier).
Mas não voltemos a essas tolices. Quero apontar apenas o obscurantismo militante dos
antropólogos marxistas. eles falsificam sem o menor pudor os fatos, espezinham-nos e
trituram-nos até nada mais restar. Substituem a realidade dos fatos sociais pela ideologia
de seu discurso. Meillassoux, Godelier e companha são os Lissenko das ciências
humanas, insaciáveis em seu frenesi ideológico, em sua vontade de devastação da
etnologia: até o fim, isto é, até a supressão pura e simples da sociedade primitiva como
sociedade especifica, como ser social independente. Na lógica do discurso marxista, a
sociedade primitiva não pode simplesmente existir, não tem o direito a existência
autônoma, seu ser só se determina em função do que virá depois dela, do que é seu
futuro obrigatório. Para os marxistas, as sociedades primitivas são apenas, eles
proclamam doutamente, sociedades pré-capitalistas. Eis aí o modo de organização da
sociedade que foi o de toda a humanidade durante dezenas de milênios, mas para os
marxistas, {?}. Para eles, a sociedade primitiva só existe na medida em que se reduz à
figura da sociedade aparecida no final do século XVIII, o capitalismo. Antes disso nada
conta, tudo é pré-capitalista. Esses simplórios não complicam a existência, ser marxista é
repousante. Tudo se explica a partir do capitalismo, pois eles possuem a boa doutrina, a
chave que abre a sociedade capitalista e portanto todas as formações sociais históricas.
Resultado: para o marxismo em geral, o que {mede} a sociedade é a economia, e para os
etnomarxistas, que vão ainda mais longe, o que mede a sociedade primitiva é a
sociedade capitalista. E ponto final. Mas os que não recuam diante de um pouco de fadiga
colocam a questão à maneira de Montaigne ou de La Boétie ou de Rousseau, e julgam o
que veio depois em relação ao que havia antes: o que são sociedades primitivas? Por que
apareceram a desigualdade, a divisão social, o poder separado, o Estado?
Como é possível, perguntamo-nos, que possa funcionar essa visão tão vesga da
realidade? pois, se ela está em recessão de uns tempos para cá, ainda assim atrai
clientes. Não ha duvida que esses clientes (os ouvintes e leitores desses marxismos) não
são exigentes quanto à qualidade dos produtos que consomem, é o mínimo que se pode
dizer. Tanto pior para eles! Se gostam dessa sopa, que a engulam. Mas ficarmos nisso
seria ao mesmo tempo muito cruel e muito simples: ao denunciarmos o empreendimento
dos etnomarxistas, podemos, antes de mais nada, ajudar um certo numero de intoxicados
a não morrerem idiotas (esse marxismo é o ópio dos pobres de espirito). Mas seria muito
leviano, quase irresponsável, limitar-se a destacar (se posso dizer) a nulidade de um
Meillassoux ou de um Godelier. A produção deles não vale um vintém, é coisa sabida,
mas seria uma grande erro subestimá-la: com efeito, o nada de seu discurso marcara o
ser com que se farta, a saber: sua capacidade de difundir uma ideologia de conquista do
poder. Na sociedade francesa contemporânea, a Universidade ocupa um lugar
considerável. E na Universidade, sobretudo no campo das ciências humanas ( pois
parece ser mais difícil ser marxista em matemática ou em biologia), essa ideologia política
que é o marxismo atual tenta se estabelecer como ideologia dominante.
Nesse dispositivo global, nossos etnomarxistas ocupam um lugar modesto, certamente,
mas não negligenciavel. Há uma divisão do trabalho político e eles cumprem sua parte no
esforço geral: assegurar o triunfo de sua ideologia comum. Arre! Não seriam
simplesmente stalinianos, bons aspirantes à burocracia, perguntamo-nos? Isso explicaria,
em todo caso, seu desprezo pelas sociedades primitivas; estas lhe servem apenas de
pretexto para difundir sua ideologia monolítica e sua linguagem estereotipada. Por isso,
trata-se menos de zombar de sua estupidez que de desentocá-los do lugar real onde se
situam: o confronto política em sua dimensão ideológica. Com efeito, os stalinianos não
são conquistadores quaisquer do poder: o que eles querem é o poder total, o Estado de
seus sonhos é o Estado totalitário: inimigos, como os fascistas, da inteligência e da
liberdade, afirmam deter um saber total para legitimar o exercício de um poder total.
Temos toda a razão de desconfiar de gente que aplaude os massacres do Camboja ou da
Etiópia, porque os que massacram são marxistas. Se um dia desses Amim Dada
proclamar-se marxista, ouvi-los-emos bradar: Bravo, Dada!
E agora aguardemos e fiquemos à escuta: os brontossauros vão talvez zurrar.
* Publicado na revista Libre, n. 3, 1978, com a seguinte nota: “ Estas paginas forma
redigidas por Pierre Clastres alguns dias antes de sua morte. Ele não pôde fazer sua
transcrição e revisão, o que resultou em alguns problemas de decifração do manuscrito.
As palavras duvidosas estão entre chaves. As palavras ou expressões ilegíveis estão em
branco”.
notas:
1. Claude Meillassoux, Femmes, greniers et capitaux (Paris: Maspero, 1976); Alfred Adler,
"L'Éthnologie marxiste: vers un nouvel obscurantisme?". L'Homme, XVI, n.4.
2. Meillassoux, "Sur deux critiqus de Femmes, greniers et capitaux ou Fahrenheit 450,5".
L'Homme, XVII, n.i.
3. Maurice Godelier, Horizon, trajets marxistes en anthropologie (Paris: Maspero,1977)
4. E, sobre esse ponto, há realmente em Marx uma raiz de marxismo, seria ridículo querer
salvá-lo aqui dos marxistas. De fato, não se deixou ele escrever, em O Capital que: {falta
a citação original}