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Curso de Desconstrução

Dissertação Final da Disciplina – Segundo Ciclo

Tema: A Origem do Traço em Mémorias de Cego de Jacques Derrida

Docente: Professora Dra. Fernanda Bernardo

Discente: Rafael Antonio Blanco


«A metafísica apagou em si mesma a cena fabulosa que a produziu e que permanece,
no entanto, ativa, turbulenta, inscrita com tinta branca, desenho invisível e oculto no
palimpsesto”1»

I. Considerações Gerais sobre Memórias de Cego (Mémoires d´Aveugle) de


Jacques Derrida

O livro Memórias de Cego apresenta de forma sofisticada, sutil e, ao mesmo


tempo complexa, boa parte do trabalho de Jacques Derrida ao longo de quatro décadas
em torno de indagações como: Quem ou o que escreve, traça? Quem pergunta por quem
ou o que escreve? Qual a forma de uma resposta adequada a essas perguntas? Qual o
meio que se revelará a resposta? Isso leva o trabalho de Derrida aos recônditos das
questões sobre interpretação e textualidade e, assim, até a semiótica em geral, que
muitas vezes aponta na direção de uma certa espontaneidade textual, que é capturada e
tematizada em Derrida sob o “conceito” de différance.

O insight que permeia a obra é aquele que diz que para ver ou escrever não é
necessário, de fato, o sentido da visão. Derrida se propõe a repensar o âmbito do visual.
No desenho ou no discurso há autor um cego, que produz algo sem “acessar” um
horizonte visual para depois, dotado das imagens captadas, tracejar. Em vez de advogar
por uma teoria monocular da visão, Derrida há situa num âmbito complexo e ambíguo.
Tudo se passa na entre-vista, ora um momento de revelação e luzes de soslaio, ora um
momento de cegueira e escuridão total.

Para melhor compreendermos uma parte específica do livro, tarefa que


levaremos a cabo no texto que se segue, passemos antes a elucidação de uma tese, ou
melhor, hipótese fundamental para a estrutura de Memórias de Cego, que Derrida cuida
de tratar tanto na introdução quanto na conclusão do livro, qual seja, a hipótese ab-
ocular. Derrida nos ensina a etimologia da palavra latina que legará o aveugle (cego,
cegueira) ao Francês: ab = fora de, com origem em; e oculis = olho. Pela dupla
semântica de “ab” geram-se duas hipóteses: ou algo de fato está fora, separado do olho,
ou algo emana e se origina no próprio olho, de dentro do olho.

1
Mythologie blanche (La métaphora dans le texte philosophique) apud A Metáfora Viva, p. 439.
Memórias de Cego é um livro que reinterpreta o tema da cegueira, da cegueira
como tema clássico que perpassa a história, por Narciso, Tirésias, Édipo, Homero, etc.
Porém a cegueira não é o único tema do livro. Este também busca dizer dos retratos, dos
auto-retratos, do desenho e da memória.

Derrida joga com as noções de traço (trait) e retraço (retrait = retirer, ôter,
enlever, se rétracter), enquanto o primeiro faz surgir a memória formadora de uma
identidade, este a torna velada, a esconde, a universaliza. Desenhar é um ato de
privacidade, ao mesmo tempo de velamento, ação que engendra uma singularidade.
Decorre disso a cegueira, a sombra inerente a qualquer obra. Pois além de velar,
esconder, preservar uma singularidade a obra revela, confessa algo de seu desenhador,
revela seu olhar turvo, na busca de se ver e se autografar, seu olhar permanece
enublado. A obra traça e retraça, aparece na luz e se esconde na escuridão revelando
com isso os limites e possibilidades dos seres humanos. Há como que uma cisão entre
aparecimento e velamento que interrompe um ao outro de forma perpétua.

Derrida nos alerta que o traço institui uma singularidade, uma manha e uma
auto-biografia e, ao mesmo tempo, engendra uma criação ficcional aleatória; coerência
interna concomitante a uma divergência transgressiva. Isso se dá pois aos homens é
vetado o acesso à totalidade da natureza; a origem da cultura, ao contrário do que
pensava Heidegger, não fornece um acesso privilegiado ao Ser. Em Derrida, a origem
como modelo total não é acessível, e isso marca a sinete todas as obras futuras. Releva-
se o aspecto de palimpsesto do texto e do quadro, que se dá apagando-se, escondendo-
se, já que não representa qualquer modelo canônico. Daí o ceticismo que aparece com
em Memórias de Cego exatamente anterior à exposição da hipótese ab-ocular.

A hipótese ab-ocular dá a ver outras duas hipóteses. Em primeiro lugar: o


desenho é cego. O desenho sempre reflete uma busca de constituição de um “si
mesmo”, astúcia de uma manha, por isso sempre perfaz um monólogo. Derrida vê aí, a
miopia e a cegueira de Narciso, aquele que só vê a si mesmo, e essa miopia e cegueira
estaria contida em todos os quadros e textos. Ao buscar por um si mesmo que se auto-
grafa nas obras, há uma revelação de uma natureza paradoxal e ficcional de qualquer
identidade, construída através de qualquer meio. Em segundo lugar, conseqüência direta
da primeira: ao desenhar o cego, ou a cegueira, o artista desenha cego. Pois engajar-se
no desenho é expor a sua origem multifacetada e, no limite, inefável. O desenho é filho
de um momento de desvelamento e busca por autoria de um lado, porém é, também,
filho de um ocultamento originário, de outro.

O auto-retrato se dá num duplo movimento, na verdade múltiplo e multifacetado,


que o idioma Inglês dá conta tão bem na polissemia de uma palavra: to draw, to draw,
ou seja, o primeiro no sentido de desenhar, traçar, o segundo no sentido de tirar, retrait
em Francês. No movimento de traçar um desenho, ou um texto, o autor apenas captura
um traço, um ponto de vista entre infinitos outros, o que é um indicador da cegueira,
tanto da mão que trabalha quanto de qualquer objeto representado. Derrida assegura o
direito das coisas de se manterem em segredo, longe da mão que sempre se precipita na
apreensão. O tom de fechamento de Memórias de Cego é de lamentação, de descoberta
da perda, da falta e da cegueira originária. Entretanto, da mesma maneira que a mão
segue seu caminho cego, o olho também se lançará; destino cego do olho que vê a
cegueira, eternamente constrangido a repensar sua única função.

II. Análise das páginas 72 à 96 de Memórias de Cego

Buscaremos considerar, no excerto que nos coube, como Jacques Derrida pensa
a questão da origem do traço, questão detalhada com mais pormenores na conclusão que
se seguirá.

A primeira figura da página 72, As Ruínas do Coliseu de Roma, remete ao cerne


da questão proposta. Derrida pensa que todo objeto cultural, quer seja um quadro, um
texto ou uma escultura, carrega um erro, uma falta em si. Esta falta arruína a obra, todas
as obras. Esta ruína inerente a qualquer obra adia para sempre a representação, trai as
pretensões do artista. Entretanto é daí que nasce o desejo pela obra. Através da
assombração de uma obra incompleta, imperfeita, o artista se lança no obrar. A falta
marca qualquer obra. Esta é filha de um sopro de semideus, enclausurado em suas
contingências terrenas. Na origem de uma obra, há uma sombra muda, que toma voz no
rastro traçado pelo artista. Por que, então, «no começo há a ruína»2? Derrida pensa a
subjetividade como sendo uma relação tácita de um próprio e um alheio. Nos recônditos
do que é mais próprio, há marcas indeléveis de outro, que interrompe e adia qualquer
individualidade. Dessa impropriedade consigo mesmo, nasce o dever para com o outro,

2
Memórias de Cego, p. 71.
que constitui o ser humano. Daí que toda a obra de arte tenha marcas de outra mão, para
além da mão que a tece. É desse outro no próprio que brota a peculiaridade da obra.

O traço que gera a obra é guiado por mais de uma mão, mais de uma
perspectiva, mais de uma língua, mais de uma individualidade. Nessa multiplicidade de
vozes e rastros nasce a cultura, o conjunto das obras humanas. Olhares vários que se
somam e se constrangem mutuamente, indecisos sobre como tornar memoráveis suas
vozes e olhares efêmeros.

É imperioso que façamos uma breve incursão através do mito de Narciso,


através da letra de Ovídio nas Metamorfoses, pois Derrida faz uso da sua significação na
página 74, e permeia várias de suas obra. Podemos interpretar que a personagem de Eco
simboliza a antípoda de Narciso. Enquanto aquela é atenta em olhar e amar o outro, este
olha apenas e incessantemente para si. Podemos especular que o pensamento de Derrida
como que busca fundir as simbologias de Eco e Narciso. Ao olhar para si vê-se o outro
e no outro se encontra o eu. Porém, as instâncias do si mesmo e do outro se juntam e
dissociam perpetuamente, não permitindo a ninguém a representação de Narciso ou de
Eco isoladamente. Narciso se entrega passionalmente no curvar-se perante si mesmo,
reflete sobre si e é refletido. Almeja tanto seu reflexo, pensamento que não prevê nem
possibilita alteridades, que padece inelutavelmente. Entretanto, toda reflexão de si
guarda uma sombra. A sombra remete ao não revelado, ao que se encontra segredado. A
sombra, muitas vezes, apavora pelo seu perpétuo adiamento. A sombra é do âmbito do
impróprio, do alheio, que interrompe a reflexão narcísica. Na sombra, no que não se
pode ver, estão em potência tudo o que é alheio a um solipsismo impossível e ingênuo
e, por isso, na sombra está contida a marca indelével de uma alteridade sempre
introjetada nas pretensões balbuciadas de qualquer eu.

A impossibilidade de se viver um narcisismo pleno, remete para a meta-ética de


Derrida, que considera a subjetividade primeiramente e fundamentalmente habitada pela
estranheza total, pela sombra, do outro. Quando cedemos ao narcótico que nos fornece
lampejos de um orgulho obstinado e obsessivo por um suposto eu, recuamos
assombrados ao reconhecer as marcas, os traços de um alienígena em nosso foro mais
íntimo. Derrida não acusa o fim do narcísico. Nesse mito recontado, desconstruído,
Derrida imagina um Narciso que cede ao amor de Eco, que aceita aquela que só se
projeta no sentido da alteridade, porém que sempre volta ao poço de onde se vê
refletido. A impossibilidade de um narcisismo pleno, em Derrida, milita por um
criticismo que nunca finda, contra a idealização do reflexo apaixonante e, por
conseguinte, contra a suspensão do pensar e a favor do abrigar o outro. Pela visão de si,
na reflexão de si mesmo, Narciso, o destinado ao conhecimento apenas de si, perece. Ao
crer-se poder bastar-se por si mesmo, Narciso não dá espaço a nenhuma alteridade,
constituindo, então, para Derrida, um ícone impossível, que nunca chega.

Na página 74, Derrida em poucas linhas dá a ler um dos principais insights de


sua filosofia: «Como amar outra coisa que não a possibilidade da ruína? Que a
totalidade impossível?»3 A totalização plena não chega nunca: do sujeito, da obra, do
futuro, do passado, do ideal. Em qualquer escopo de apreensão, sempre muito se esvai
por entre os dedos. O que se pode tematizar como que obedece ao princípio da
incerteza. A experiência mesma, no seu fluir não necessário, apresenta-se interrompida,
capturável apenas em partes, em suas bilhões de variáveis. Derrida se opõe a um
logocentrismo que vê no significado uma totalidade passível de ser abarcada pelo obrar
humano. O significante da linguagem sempre deixa escapar parcelas do significado por
entre os seus dedos. Essa dualidade de significante e significado desfaz-se, na origem do
traço, pois qualquer uma das dicotomias clássicas da metafísica sequer podem se referir
ao momento enclausurado e eclipsado da origem. Daí o modelo ótico ser apenas mais
um modelo, nunca o superior, nem o que atinge maior objetividade.

O conjunto de obras humanas relativiza o canônico, qualquer modelo. Porém,


cada contribuição particular deve ser salvaguardada com toda a força. Há um segredo
incontornável na origem de qualquer obra. Esse segredo mudo, cego, surdo e insensível
ultrapassa a apreensão sensível e intelectual humano, aponta para a limitação inerente
ao ser humano, que, por isso, se sente ultrajado, amedrontado. Daí a manha humana,
que se lança em cunhar artefatos técnicos com vistas de ludibriar o segredo contido na
origem. Derrida analisa os quadros de Chardin, nas páginas 78 e 79, sob o prisma dos
óculos que tentam, sempre em vão, suplementar a falta originária a qual os humanos
estão fadados. Por se auto-mostrar munido de tantos paliativos, o homem revela, de
fato, sua carência original.

3
Ibid, p. 74.
Nos desenhos que representam os olhos fechados, que permeiam as páginas 82-
85, Derrida vê o protótipo de todo ser humano. Os olhos fechados como que remetem
para a insuficiência do olhar, que por mais que busque apreender o que presencia,
sempre é remetido para um horizonte da não-visão, da obscuridade, do passado
originário inacessível que está contido em cada átimo do presente.

Não é possível a intuição direta do originário ao homem. O auto-retrato sempre


representa um ponto de vista e apenas um, atesta a insuficiência da obra de tornar
presente o que pretensamente é representado. Por isso o voltar-se, na discussão que se
segue de Memórias de Cego, para a máscara, que mascara, enlutando qualquer auto-
retrato. Aí se inscreve o mito de Perseu e de sua manha, que enfrenta e mata Medusa
mediante um olhar enviesado que expõe a vulnerabilidade que a fixidez de um olhar ou
de uma ideia engendra. Fixidez do olhar que metaforiza qualquer crença dogmática
assumida sem reflexão. Assim como Ulisses que fura o olha de Polifemo, singulariza
sua biografia através de uma manha, um ato e se recolhe no esquecimento, quando se
auto-declara: “Ninguém”. Ao mesmo tempo inscreve seu ato e apaga-o, ao tentar se
nadificar. Derrida vê aí a lógica implícita em toda obra humana e, especificamente, dos
auto-retratos. Ao mesmo tempo em que algo se revela, se esconde, se despede, diz
adeus. Assim como a música, em sua transitoriedade plena, fugacidade memorável que
anuncia um rastro de cometa fugaz, no seu vir-a-ser.

III. Conclusão

Derrida é visto e lido por Richard Rorty, em Contingência, Ironia e


Solidariedade como um ironista. Ironista é alguém que tem no centro do seu
vocabulário a noção de contingência. Aos olhos de Rorty, Derrida privatiza os grandes
temas da metafísica, sendo capaz, com isso, de uma enxertia altamente original.
Segundo o filósofo estadunidense, Derrida não joga o jogo de outro vocabulário pré-
instituído, busca fugir de ser estigmatizado como mais uma nota de rodapé de Platão.

O cenário em que se move Derrida, então, seria o de ter alcançado autenticidade


individual. Autenticidade, pensa Rorty, que apreendeu com Heidegger, porém, Derrida
é cauteloso ao ver a si mesmo como portador da voz do Ser ou de uma grande época da
história. Rorty advoga pela tese que a desconstrução não é uma metodologia descoberta
pelas novas pesquisas em filosofia. «A desconstrução é entendida como uma
recontextualização que re-inverte hierarquias entre conceitos como: forma-matéria,
presença-ausência, um-vários, mestre-escravo, Francês-Americano, Fido-“Fido”.4»

O que faz de Derrida um autor diferente então, nesse processo? Porque, de


alguma forma, Derrida atinge um tipo de texto que abala qualquer critério estético
anterior que o possa enquadrar em certo tipo de filosofia ou literatura. Algo que só
acontece às grandes obras da humanidade. Rorty vê no capítulo “Envois” de Cartão-
Postal o exemplo máximo dessa originalidade que nunca antes apareceu na história. Em
vez de fornecer respostas às questões metafísicas que pairam sob os seus antepassados,
enclausurando-os, Derrida prefere oferecer vislumbres que redescrevem a nossa
compreensão de mundo sem fornecer qualquer resposta, tanto para conseguir escapar do
jogo da metafísica quanto pela extensão diminuta do texto que comporta um Cartão-
Postal.

Deixando de lado as interpretações de Rorty, voltemo-nos por um instante para a


obra Gramatologia de Derrida. Num primeiro momento, o autor retorna aos primórdios
da Linguística para identificar em Rousseau e Saussure a primazia da língua fonética
sobre a língua escrita, ou escritura. Esta seria, para Rousseau: «A escritura não é senão a
representação da fala; é esquisito preocupar-se mais com a determinação da imagem que
do objeto 5 ». Com isso previu-se que a escritura seria uma aberração que, de fato,
atrapalhava a língua falada. A Linguística de Saussure, na esteira de Rousseau, busca
enclausurar num domínio o que seria objeto da disciplina e o que não seria. Dessa
limitação de domínios, a escritura estaria apartada.

A crítica de Derrida à Linguística ressalta, também, a importância dessa


disciplina, pois atinge os pilares das correntes metafísicas do racionalismo e do
empirismo. Negando um dogma fundamental do racionalismo, Saussure negou que o
“significado” fosse dado por nomes fixados por essências. Contra os empiristas ele
negou que o “significado” fosse originado por nomes dados segundo a experiência
sensível. O significado seria função de sua posição em uma subjacente estrutura da
linguagem. Tal estrutura não seria fixa. Cada objeto lingüístico não seria definido a
partir de elementos que lhe seriam inerentes e, sim, em uma relação negativa a outros
objetos lingüísticos em um sistema. A linguagem seria, então, um sistema de signos.

4
Contingency, Irony and Solidarity, p. 127.
5
Gramatologia, p. 33.
Estes, por sua vez, seriam combinações de sons e conceitos, relacionados por um
sistema de convenções. O caráter convencional da relação interna entre os componentes
do signo faria dele um elemento completamente arbitrário. Sendo assim, o signo não
teria essência e não apontaria para nenhuma finalidade, estaria longe de poder ser o aval
para a idéia platônica de conceitos universais, absolutos, dados pelas formas puras.

O problema fundamental é que a história da metafísica considerou a escrita


natural, a que por direito porta a voz do Ser, do âmbito da voz e do sopro, apenas.
Enquanto isso a escritura seria representativa, signo do signo fonológico, decaída,
portadora de morte. A história da metafísica, de Platão ao racionalismo do Séc. XVII
pensou o significante como uma totalidade, que seria passível de acesso e/ou “leitura”
pelos homens, como um livro, um grande livro da natureza. Desse logocentrismo
teológico sempre foi irmanada a linguagem fonética como portadora da presença. Pelo
contrário, a escritura foi relegada a um papel subserviente de mera representação que
interrompe o devir do ser e da presença, da substancialidade. Derrida pretende pensar a
escritura num outro âmbito: «Se “escritura” significa inscrição e primeiramente
instituição durável de um signo (e é este o único núcleo irredutível do conceito de
escritura), a escritura em geral abrange todo o campo dos signos linguísticos.6»

A instituição de um novo signo lingüístico arbitrário confronta com as noções de


physis e nomos, abalando-as. Com isso, cai por terra a tentativa saussuriana de advogar
pela primazia da linguagem fonética, como símbolo natural, sobre a escritura,
representação da representação, signo do signo. Não é apenas o texto de Saussure que
não dá conta de pensar a enxertia de novos signos operalizada pela escritura. As
próprias noções de epistéme e de metafísica logocêntrica não relevaram o poder da
escritura que, como propõe Derrida, não é signo exterior à fala. A escritura torna-se um
«rastro instituído7» .

Ao fazer menção a um arqui-rastro ou rastro originário, Derrida remete-nos para


um momento tal que escapa e é anterior a todo o escopo que distingui sensível e
inteligível, sendo, por isso, condição de possibilidade destes. Por isso, qualquer conceito
assente nas dualidades e estruturas da linguagem não pode nunca definir o traço
originário, que permanece segredado. Como é inalcançável o rastro originário, qualquer

6
Ibid, p. 54.
7
Ibid, p. 56.
rastro “presente” aponta para seu passado inefável. Qualquer grafema leva contido em
seu cerne o mistério da sua origem, que o torna, no presente, um sinal de um passado
imemorial. Na origem, que institui o rastro originário, não há possibilidade de decifrar
um sujeito, nem mesmo as coisas e os referentes.

Estamos dotados, nesse ponto, do aparato conceitual para entendermos porque a


necessidade de Derrida em criticar a historiografia que vê na língua fonética a origem de
toda língua. Pois na origem, não ocorre só a fala, nem só a escritura, são ambos porém
antes do verbo ser, e provavelmente há mais que essa díade, porém, não podemos
perscrutar, na origem. A distinção entre fala e escritura não se põe, na origem, porque
nenhuma oposição se dá. A origem é anterior as sedimentações da linguagem. O
logocentrismo, tendo pretensões de abarcar todas as potencialidades da origem, com
uma estrutura que forneceu à fala uma primazia ante a escritura, se aliou com a
possibilidade de totalização plena da metafísica como sistema. O logocentrismo, nesse
sentido, é teológico.

Da impossibilidade de diagnosticar essa presença-ausência do rastro, a


metafísica ocidental cunhou noções com vistas de totalização, como o monismo, as
teorias da imortalidade da alma, etc. É contra o logos totalizador da filosofia ocidental,
que desemboca na linguagem fonética como captação total do que é presente, em
detrimento da escritura, que se volta o texto derridiano. Essa lógica impossibilita a
diferença, o outro, entrava a filosofia a um pretenso vocabulário final total. A favor da
alteridade que institui outros traços, que preservam o laço indelével com a origem, ao
mesmo tempo em que anunciam a plena novidade.

Da potencialidade inescrutável da natureza de se manter outra aos homens, se


manter fechada, segredada, é que brotará o respeito absoluto pelo outro não conhecido
que, como uma sombra, acompanha todos os rastros, todas as singularidades. De fato, é
exatamente pela falta de um referencial modelar último que forneça um vocabulário e,
por conseguinte, ações canônicas, é que todos os componentes da cultura devem estar
permanentemente em reconstrução. E para que esta ocorra, sabemos, é preciso um solo
muitas vezes ocupado, ou seja, é necessária a desconstrução dos vocabulários que já
fizeram história.
Derrida nos alerta que o vocabulário pretensamente superior da filosofia, que
supostamente atinge as essências e os referentes últimos, está plenamente embasado
numa ficção. O discurso filosófico mantém com a literatura, as artes, as ciências
matemática, o mesmo patamar hierárquico, pois não consegue atingir a compreensão
total de uma gama de concepções tais como: significado, realidade, alma, essência, etc.
O discurso filosófico se mantém maculado pelas vicissitudes implícitas em qualquer
linguagem, pois o acesso ao seu ponto originário é-nos totalmente vetado. É tão
impossível quanto pensar em um ser humano que assiste ao evento do Big Bang para
descrevê-lo.

Derrida posiciona os pilares de sua filosofia numa aporia incontornável. Ao


mesmo tempo que assume um “isto é”, assume, também um “isto não é”, em outras
palavras, qualquer signo, fala, texto, rastro presente mantém em si mesmo sinais que
provam sua pertença a uma passado que anula sua presença, a torna ausente. Dessa
ausência faz-se a presença e vice-versa. A enunciação de uma mera palavra é sempre
incompleta, carece de significados ou vários outros se sobrepõem. O discurso, conforme
vai se construindo sobre essa dissimetria que torna ausente ou sobre-determina o
significado de cada palavra, pode abandonar os princípios lógicos com os quais ele se
inicia e se auto-desconstruir. É desse movimento que os conceitos da metafísica tornam-
se “meros” conceitos que não podem fundar qualquer tipo de apreensão unívoca sobre o
mundo. Em vez dos pensamentos espelharem idealidades fundamentais, Derrida
reafirma o caráter de constructo do pensar que é falível pela própria contingência dos
seres humanos. Daí surge a diferença entre os diversos vocabulários, nunca apaziguada,
diferença que foi pensada por Derrida primeiramente como respeito absoluto pela
alteridade contida em outrem.

A desconstrução, tal como entendida por Derrida, força uma formação


ininterrupta e obsessiva de um eu que se vê habitado pela alteridade. Sujeito esse que
busca ter claro para si mesmo que a linguagem a qual habita não pode ser totalmente
apreendida, portanto é sempre contingente e fundada inteiramente na ficção. A
desconstrução pretende ser pragmática porque não se desloca do horizonte da ação no
mundo, parasitária que é de qualquer âmbito da cultura. Derrida torna esse último
aspecto claro com os artigos que escreveu sobre a situação européia, terrorismo,
desemprego, etc. A desconstrução é engajada, porém não propõe uma teleologia. Esta
seria abarcada e destruída pela “máquina” desconstrutiva.

A contingência da linguagem, sua incapacidade de atingir um referencial “puro”


e seu caráter ficcional delimitam seus limites. É exatamente ao assumir esses limites que
o sujeito se vê dotado da força suficiente para manipular o passado o presente e o futuro
da língua, em criar outros mundos possíveis através das metáforas e ficções sempre
abertas para o novo que o futuro abriga e marcadas a ferro pelo passado que constrange
todo ato presente.

Últimas considerações sobre Memórias de Cego: Vimos que na “estrutura”


original do rastro estão contidas marcas indeléveis de algo que escapa, não capturável
para a nossa capacidade de conceituar, desenhar ou escrever. O mesmo traço
interrompido guia a mão do artista, que nunca vê completamente o objeto da sua arte.
Quer seja pela memória que aponta sempre para o passado, ou pela sobre-determinação
de múltiplas identidades que assume o objeto que se tenta capturar numa pintura, sua
totalidade sempre escapa à apreensão humana. Como se dissolve a pura identidade ou
“essência” referida no quadro, qualquer traço do artista mostra, revela sua inaptidão
originária, age como paliativo que busca sempre em vão suplementar as faltas inerentes
à incondição do ser humano. Decorre daí que a experiência visual fica escurecida por
tantos suplementos usados para “ludibriar” a cegueira original.

Ao longo do livro nos deparamos com duas hipóteses, que desembocam numa
terceira: (I) todos os artistas figuram o cego, (II) o próprio artista é o cego figurado, e,
portanto, (III) todos os desenhos são auto-retratos. Decorre disso que o artista desenha
cego, não é guiado pelo poder ocular, assim como no ato mesmo de escrever que nos é
ocultada a visão da ponta da caneta. Além disso, como todo desenho é levado a cabo por
um cego que procura se auto-representar, a obra final está sempre fadada ao insucesso,
pois seu artista a desenha sem ver. Por isso falarmos de obra enlutada e arruinada; a
obra dá provas da inaptidão visual de seu autor, que indica o acesso, sempre vetado aos
seres humanos, ao momento originário que compõe qualquer obra.
IV. Notas de Aula

02/10/2010

Apresentação da filosofia de Jacques Derrida. Desconstrução como a


desconstrução da metafísica da presença ocidental. A desconstrução tem caráter
edificador, construtivo, e é inerente a ela a justiça e a ética. A desconstrução é uma
atenção e respeito infinito para com a alteridade absoluta.

O absolutamente outro em Derrida não é o apenas humano diferentemente de


Levinas. A Professora pensa que esse ir mais longe de Derrida é ser mais justo, pois
permite pensar: as questões ecológicas e a ética ambiental.

Esse colocar-se da total alteridade pode ser uma religião, por exemplo. O
absolutamente outro pode ser o animal. Nem Kant, nem Descartes e a Bíblia não dão
conta de pensar o animal. (O animal é pensado como impotente). Bentham traz a
questão da necessidade de pensar o animal. “Nunca vi totalmente a absoluta alteridade
como nos olhos de um animal” Derrida

Não há nenhuma manifestação da Igreja contra a pena capital. É possível medir


o nível civilizacional do homem numa época através da sua relação com os animais que
o rodeiam. Há um livro dos conhecimentos humanos que permite atestarmos os custos
pagos pelas outras gerações para que algo nos fosse legado.

Crítica sutil, mas que me arrebatou sobre os direitos humanos: Os direitos


humanos são, primeiramente, os direitos dos outros. E eu? Onde fica a parcela da minha
subjetividade sempre única?

“A atenção é a oração natural da alma”. A alma se mantém atenta, escutando,


pronta para dizer Sim. Atestado indelével da sua necessidade inerente de ser outro, de
alcançar o outro.

A filosofia de Derrida obriga a releitura de toda história da filosofia.

Distingue-se cidadão, sempre definido limitado a um estado nacional, conceito


filosófico, jurídico e político, do outro que não remete a um individualismo e aponta
para um conceito meta-ético.
Não podemos pensar o político e a cidadania hoje como vinculados ao ambiente
físico de contornos nacionais. (Europeização, Mundialização, Cosmopolitismo
Kantiano)

Qual o alcance hiperpolítico das artes? A arte inicia-se por ser perturbante, non-
sense. O pensamento é monstruoso ou nâo é pensamento. A dissidência é uma
desobediência civil (Me lembrei do magnífico texto de Thoreau, que ficava no criado-
mudo do Gandhi)

O desenho é o paradigma das artes para Derrida. O ato mesmo de desenhar ou


traçar. Na origem do traço o que não se vê, o invisível. O momento do desenho é cego.
A origem de toda arte é, então, espectral.

A individualidade está aberta para a facticidade do mundo da vida, está aberta


para a alteridade, aberta para o projeto futuro.

09/10/10

Por que Derrida toma o desenho como o paradigma da arte? O desenho não se
reporta à apreciação, nem a presença e sim à memória. A arte se conjuga com a
melancolia. Esta conduz a mão do artista.

Há um luto originário da língua. A literatura a filosofia começam com a morte.


A morte de deus, de Sócrates. O luto é originário, porém o primeiro dos lutos é o da
origem.

Aristóteles já tinha visto na origem da arte a melancolia. Quanto mais


dolorosamente enlutado mais artístico. É exatamente porque não temos algo é que
corremos atrás de o ter. O escritor não possui a língua, por isso ele buscar englobar ao
máximo sua língua.

O que é então a desconstrução? Desconstruir é pensar, repensar. Pensar o quê?


Aquilo que sendo a condição de possibilidade de um constructo se ausenta. A
desconstrução é quase transcendental. Derrida procura pela condição de possibilidade
de um constructo. Isso é perceber sua impossibilidade enquanto tal. Todo constructo
tem uma falha, uma elipse. Daí todo constructo ser passível de desconstrução.
Então, não há mestres! O véu da desconstrução age desde o primeiro traço. A
desconstrução é uma confissão de modéstia. Noção de contingência no centro da rede de
crenças e desejo, segundo Rorty.

A desconstrução ataca suas próprias raízes, é sempre auto-desconstrutora. Há aí


uma aporia na Desconstrução. O traçado é impossível enquanto tal. O texto está
constantemente se desvanecendo, se desconstruindo. A desconstrução é uma
hipercrítica. A desconstrução é uma permanente crítica da filosofia como sistema.

A desconstrução é um movimento de pensamento que estará atenta aos limites


da filosofia. O que limita o conceito? O luto originário da língua. A linguagem
filosófica está eivada pela filosofia do senso comum.

A desconstrução é o ressoar de várias línguas. “A desconstrução é uma


apropriação amante e desesperada da língua.”Derrida

Como é possível poetar depois de Auschwitz (paradigma da violência)? “Saibam


o que aconteceu. Não esqueçam. E no entanto, não saberão” Paul Celan. É esse não dito
e não conhecido que nos obriga a dizer. Aquilo que nos convida ao silêncio nos obriga a
falar. A linguagem, quando fala, só fala através do incomunicável.

Quando digo algo o primeiro ato é o endereçar meu discurso a alguém. A


palavra é originariamente endereçada ao outro, pois a outra pessoa me é diferente. Uma
relação metaética respeita o outro na sua alteridade, na sua diferença.

O espaço entre eu e o outro não é vencido pela palavra. Interrompendo a relação,


alimenta a dinamis e o desejo de relação. O tu e o vós de Maurice Blanchot faz ver a
diferença inerente ao outro. Então na própria linguagem notamos o primeiro sinal da
interrupção entre os dois falantes.

Não se fala sobre algo: falar sobre é ter a pretensão de tomar a alteridade como
objeto. O que nunca se realiza completamente. A palavra aproxima e afasta ao mesmo
tempo. O sim como uma Urwort. A resposta inerente ao falar.

Insight interessante sobre a fundação do direito: há um momento pré-legal.


Nascimento místico do direito, que sempre é resultado de um ato de força.
16/10/10

A invisibilidade está na origem do visível. Através da cegueira passa-se a pensar


os olhos. Aquilo que tolda a luz do olhar. As lágrimas revelam a essência dos olhos. O
próprio dos olhos é o implorar, é o endereçar. Falar é responder a esse apelo. Há uma
relação entre o crer e o ver, ou melhor, entre a fé e a cegueira.

A desconstrução aponta para uma ética do respeito e da atenção ao outro. A


desconstrução é um ato de amor, implica ouvir escrupulosamente o outro. A atividade
por excelência da filosofia é um buscar nas obras aquilo que não está dito.

A língua pré-existe ao sujeito, este é expropriado da língua. Essa relação


dissimétrica dita o desejo da língua. Por nunca apropriar totalmente a língua é que
buscamos a arte.

Há três tipos de relações sem relação:

Primeira: relação da língua com o objeto

Segunda: relação do sujeito com a língua: o outro tal como eu diz primeiramente sim

Terceira: relação do sujeito consigo mesmo através da língua

O luto originário do sujeito que não possui a língua e portanto não possui nunca
a si próprio. Na origem é a ruína, o luto, a diferença. Porém a linguagem, para Derrida,
não é uma linguagem anônima, se endereça de uma singularidade para outra
singularidade. Ao contrário de Heidegger que há um anonimato da língua.

A palavra quando surge é espectral, não a vemos. Toda linguagem é metafórica,


porta um desvio originário. Derrida mostra aos filósofos que estes se esquecem do
desvio da origem. Este desvio arruína a origem, todas as significações históricas são
construídas sobre alicerces de cascalhos.

No limite tudo que é escrito brota da cegueira. Esta é o paradigma da escrita.

Releitura, durante a semana, do mito da caverna de Platão à luz da interpretação


de Heidegger:
“A ideia é o que tem o poder de brilhar. O ser da Ideia consiste em poder brilhar,
em poder ser visível” Heidegger. Queria reforçar o que havíamos comentado em aula,
que a visão foi desde os gregos até a filosofia contemporânea a menina dos olhos da
filosofia, um sentido dotado de absoluta primazia sobre os outros.

“O Bem pode ser designado por Ideia Suprema num duplo sentido. É a Ideia
mais elevada como fonte de possibilidade e olhar que se dirige para ela é o mais vertical
e portanto o mais penoso” Heidegger.

A verdade surge, no mito da caverna platônico e na interpretação de Heidegger,


como a adequação correta entre o espírito e a ideia. Então, a verdade se dá no plano do
entendimento, não no plano das coisas.

São Tomás de Aquino: “A verdade encontra-se propriamente no intelecto


humano e no divino” Aristóteles: “Com efeito, o falso e o verdadeiro não estão nas
coisas, mas no entendimento”

Alethéia é o não-velado: o que foi arrancado da ocultação, posto à luz, condição


de possibilidade da visão.

23/10/10

Qualquer tese e obra são abertas a infinitas interpretações, pois há uma


arquioriginalidade da língua, que é a própria condição de possibilidade de toda a arte.
Porém a secundariedade do sujeito não é negativa. Apesar da sua passibilidade
originária, os poetas, pintores, músicos, etc. sentem sua ex-apropriação da língua, sua
pobreza originária, a vulnerabilidade da língua os faz irem buscá-la. Daí a arte surgir
como o totalmente novo e revolucionário.

Há uma diferença entre os conceitos de unidade e unicidade. Enquanto o


primeiro aponta para toda a constelação da ipseidade, o segundo é o que torna cada qual
único, singular, autêntico.

A soberania é uma ficção. O pequeno-tirano é alguém que se pensa detentor da


usa própria língua, o que, sabemos, é impossível. Impossível, pois a língua
ininterruptamente interrompe o sujeito. A linguagem abissaliza-o. Essa dissimetria é
irredutível, não há inversão de papéis entre a origem e o sujeito. Daí o homem não ter
uma condição, e sim uma incondição. Do fato de o sujeito estar sempre enlutado brota o
desejo de se fazer obras.

A desconstrução é então uma relação de interrupção. Esta é o motor da relação


(relação sem relação, porque nunca é totalizável). É uma recusa da mesmidade a favor
de uma separação infinita que salienta a contínua estranheza do outro. Por isso, por mais
próximo que cheguemos de outrem, mais distante.

Leitura durante a semana de O Monolinguismo do Outro, versão em espanhol:

Considerações acerca da frase: “esta língua, a única que estou condenado a falar, nunca
será minha”. O interlocutor afirma haver uma contradição performativa em tal frase, o
que remete para o jargão da filosofia de Habermas. Porém, acusar de contradição
performativa é o mesmo que apontar para o caráter relativista do discurso. Ao perguntar
por algo, a própria possibilidade de uma resposta verdade seria impossível.

A afirmação primeira é resumida em: “É possível ser monolingue (eu verdadeiramente


o sou, não é assim?) e falar uma língua que não é a própria”

Chega-se à questão da identidade. Afirma-se um transtorno de identidade em relação


com o conceito de cidadania. Um dos interlocutores vê sua cidadania precária,
ameaçada.

Explica-se sobre a experiência pessoal do único Franco-Magreb e de um grupo de


argelinos que perderam a cidadania francesa. Fiz paralelo com a questão da falta de
origem.

Ao longo de todo o texto do Monolinguismo do Outro faz-se alusão à memória.


Pois para se mostrar é necessária a relação que utiliza de uma anamneses narrativa, por
assim dizer.

Ao descrever uma situação particular, a linguagem “eleva” essa particularidade


ao universal. A partir daí passa a valer para todos os outros. Há uma exemplaridade
pontual no testemunho e, ao mesmo tempo, um particular feito refém pela linguagem,
que aponta sempre para a universalidade.
Por mais que haja expropriação colonial sobre a língua de alguém, a ipseidade
dele nunca é soterrada. Há uma dialética incessante entre a especificidade e a
universalidade da língua.

Politicamente há um paralelo disso. Na relação metrópole-colônia, nunca se dá


uma apropriação-reapropriação absolutas. Há então um colonialismo essencial na
língua. “A língua é louca”. A língua apropria e desapropria suas marcas, seus rastros.
Daí a língua estar inerentemente alienada, é de outrem. No singular há traços, marcas
inefáveis da universalidade.

30/10/10

O sujeito nasce num mundo de responsabilidade prévia ao seu ser e sua


consciência. Disso decorre a hiper-eticidade originária, dada a gênese conjunta da
subjetividade e da responsabilidade.

Qui cosa é la poesia: “Todo poema é a fotografia enlutada da festa”.

A alteridade está dentro de mim. O um é heterogeneizado pelo outro. (Há uma


vampirização do eu). Isso confessa o eu ocupado por um outro.

Toda obra é já uma ruína. Essa tese da ruína da obre tem paralelo com o efeito
que a noção de inconsciente de Freud fez com a categoria da subjetividade. Ou seja,
impõe uma criatividade não comandada.

A língua é sempre metafórica, aponta para um desvio entre a palavra e a coisa.


A língua é sempre mais de uma. O que invalida as pretensões de uma meta-linguagem.
A crença na metalinguagem é um esquecimento do desvio originário da língua em
relação à coisa. Somos atrasados em relação à língua.

A ex-apropriação é um ato de vida e um de morte. Desejo de apropriar a língua e


a não possibilidade de apropriação da língua. Quanto mais próprio algo é, mais
inapropriado se torna. O que é mais nós é mais outrem.

Só realmente somos por relação com a língua do outro. Essa é uma condição
para se pensar a mundialização. (Pensamos numa língua, não fixos num local)
O que é anterior, ou seja, a língua tem primazia sobre o sujeito secundário. Este
é solitário, a sua singularidade advém do fato que só ele pode responder ao apelo da
língua. Nossa singularidade é intransmissível.

Levinas e Derrida colocam o sujeito no princípio do mundo para pensar sua


relação com o outro. Com isso aproxima-se de questões como a ética, a democracia. A
língua é um pathos. O amor e ódio só se dão através da língua.

Em Husserl está a matriz das filosofias de Derrida e Levinas, no conceito de


epocké, que põe tudo em questão por um momento. Daí o espírito filosófico ser um
contínuo deslocamento do hábito para recomeçar o pensamento. Husserl: vamos
imaginar que tudo volta ao zero. Nesse ato de suspender os juízos, Husserl encontra o
sujeito apodíctico.

Derrida e Levinas propõem que sejamos levados ao fim do mundo para iniciar
novamente. A epocké tem o sentido aqui do tempo do outro que faz ver a
secundariedade do sujeito. E isso é a própria condição de possibilidade do mundo.
(Responsabilidade arquioriginária). Na desconstrução há uma formação no sentido
de Bildung contínua, em busca de trair o que o hábito tão regula.

06/11/10

Qual a condição de possibilidade da escrita, do traço? A origem do traço é a


mesma do rastro da escrita e do desenho. Pois há uma gênese conjunta do sujeito e da
responsabilidade. Há um caráter aporético do sujeito: a sua identidade é estranheza e
isso o impossibilita como tal. Nosso foro íntimo é aberto. Há uma ferida íntima que faz
a alteridade ser mim. O sujeito é uma experiência de não identidade a si.

A ex-apropriação é o motor do evento e da obra. A antecipação da obra mostra


o desvio originário. O batimento instantâneo só pode ser captado, testemunhado no
contratempo do tempo. O artista é alguém assombrado pela obra, obcecado por qualquer
coisa que sempre lhe escapa por entre os dedos.

A escrita destina-se à memória. O sujeito é um herdeiro da palavra que é como


um túmulo. A memória porta o memorial e, portanto o imemorial absoluto. A memória
está enlutada. “Aquilo que não se pode falar deve-se escrevê-lo” Derrida
A desconstrução é um pensamento do impossível. Daí o caráter aporético da
desconstrução. Mesmo que eu queira fazer uma declaração de amor a uma pessoa, ao
falar eu te amo já se faz referência à universalidade (impossibilidade = a inerente
contaminação entre universalidade e particularidade).

Derrida pensa que a relação de Abraão com Deus é pré-bíblica. Abraão é o


protótipo do sujeito sempre condicionado pelo dizer sim ao outro.

13/11/10

O sujeito é uma experiência de não identidade de si. E essa estranheza que


engendra a obra e que dota a obra do poder de estar sempre além ou aquém do nosso
olhar. O tempo da obra remete para um passado absoluto. A originalidade da obra está
exatamente no não poder ser completamente esgotada pela reflexão humana, é estar
enlutada.

A abissalidade do foro íntimo, esse outro em mim, mais íntimo em mim do que
eu próprio e o mais estranho podemos chamar de deus em mim. Todos os homens e
mulheres são impróprios, estão endividados com o passado e com o futuro. Há nisso
então uma universalidade da incondição humana. Essa universalidade apaga os idiomas
e as singularidades, partindo de um respeito absoluto dessas singularidades. Esse
respeito absoluto é o motor da universalização e mundialização.

Há uma obrigatoriedade do dizer sim ao outro. Vemos aí a responsabilidade


arquioriginária hiperbólica perante o outro. Com isso pode-se questionar a eticidade da
ética. Nossa humanidade está baseada na plena aceitação da nossa sujeição originária ao
outro. Até o nome que recebemos atesta isso.

Há uma ferida narcísica na pretensão do sujeito em ser isolado e independente.


Há um desvio entre o próprio traço e a origem. Na origem é a diferença, a repetição. O
traço e o desenho brotam da noite. Na origem do traço está aquilo que se retrai, se retira.
Todo traço é um traço elíptico e isso está na origem da obsessão de um artista. O que se
retira constitui a dinâmica da obra.

Chôra: absolutamente outro sem rosto, fundamento da nossa ocidentalidade.


A chôra e o messiânico dão conta da duplicidade da origem, o tempo e o espaço.
A infância como paradigma de um passado absoluto, a infância que era nossa,
nunca será nossa. Não temos acesso ao encerrado na infância. A única atitude que posso
dirigir a esse passado absoluto é crer na sua existência encerrada.

Durante a semana, leitura de Fé e Saber de Derrida, parágrafo 20 ao 25:

O outro é apresentado como um deserto no deserto, um deserto sem rota e sem


interior que torna possível o religare (pois aponta para o infinito) pré-
religioso. Religare contém o legi na formação da palavra, afirmação que se reafirma
para dar conta do outro. Esse vínculo com o outro é ante-onto-antropológico.

A origem é duplicidade do rasgo [trait] e do retiro [retrait]. Nomeia-se a isso


com diversos nomes. Messiânico: abertura ao por vir ou para a vinda do outro, porém
sem horizonte de espera. Deixar vir o outro permanecendo passivo, aguardando ou não
à justiça. Essa messianidade remete para a fé, o crer em relação ao vínculo com o outro
que espera pela justiça pura.

Se fosse possível a tradução completa de uma alteridade e se isso se propagasse,


o que é impossível se daria uma cultura universalizável de singularidades. A relação
com o outro é, portanto, um ato de fé. Por se fundar desfundando-se há um segredo
inerente ao fundamento. Outro nome seria chôra. Chôra aponta para o externo a um
sistema, tradição, cultura, etc. Chôra é heterogeneidade absoluta, para além ou aquém
do humano e da cultura, para além ou aquém dos deuses. Chôra é um triton genos,
terceiro gênero que aponta para uma terceira via além do sensível ou do
inteligível. Chôra é o devir anterior à formação de oposições, é uma oscilação contínua.

20/11/10

Chôra é um sincategorema, conceito filosófico aberto. No Timeu de Platão, que


se pergunta sobre a origem do Cosmos, o sonho preside a questão. Chôra surge em
Platão como um lugar sem lugar que dá lugar a tudo que tem lugar. Ela se dá retirando-
se. Nesse sentido chôra é o deus ausente, que cria o mundo e se retira. Chôra revela a
necessidade do arruinar-se para se dar, na origem. O fundamento só funda ao cair em
escombros.
Desconstruir é repensar: o outro, a obra, a justiça etc. Porém repensar implica o
conhecimento da história do que já foi pensado sobre esses temas. A desconstrução
coloca um imperativo irrealizável de conhecer todo o pensamento humano.

Há dois grandes momentos da leitura e da assimilação de um pensamento:

1) Levantamento dos temas.

2) Enxertia: contra-assinatura do autor, que insere sua constelação semântica no


ponto de vista do texto levantado.

27/11/10

A fenomenologia é fundamental para se pensar a contemporaneidade. A


Hermenêutica filosófica aponta para a impossibilidade da radicalidade da
fenomenologia e busca pensar o homem na sua facticidade, lançado num mundo. A
Hermenêutica pensa o dasein a partir do horizonte do mundo.

Derrida e Levinas: A desconstrução radicaliza a hermenêutica. Parte-se do


silêncio da origem, parte de um horizonte asemântico e da epocké, da radicalidade do
pensamento de Husserl. Daí a dimensão ficcional. Por conseguinte, o eu não está
lançado no mundo. Não há mundo que dê a facticidade na desconstrução. “O homem
não está atirado no mundo” Levinas.

O existencialismo foi uma reação ao idealismo alemão. Primeiro existe-se depois


é-se. A singularidade absoluta é o ponto de partida para se pensar o absolutamente
outro. A experiência da intersubjetividade só faz sentido analogicamente na
fenomenologia, ou seja, é impossível. Daqui parte a desconstrução.

Conceito de decisão de Kierkegaard: é uma loucura. Aponta para o segredo da


singularidade absoluta; tese que teve influência no pensamento de Derrida.

Heidegger, Levinas e Blanchot são os pensadores que estão mais próximos de


Derrida. Discordância da tese que Derrida seria um pós-estruturalista. Os pós são apenas
poeiras: É infeliz falar em Derrida como continuador do estruturalismo.

A relação do ser humano com a obra é uma não-relação. Ver a obra é retirar-se.
A representação se torna a própria operalização que engendra a obra. Toda leitura
contra-assina uma obra autograficamente. A obra como auto-bio-thanato-hetero-
gráfica. A separação da língua estrangeiriza o sujeito, na sua autobiografia.

Na partida, há a falta de conjunto, de semântica, de conteúdo. Isso é anterior à


bipolaridade sexual, heterogeiniza a identidade da língua, da cultura, etc.

A mão desenha na noite. No quadro de Dibutade nota-se a recusa da presença a


favor da sombra, da espectralidade da sombra. A obra é sempre enlutada. A relação com
a obra é uma não-relação, e é isso que faz o desejo de relação. A não-relação é condição
de possibilidade da relação.

As origens do traço e do desenho juntamente com a origem da escrita brotam da


noite e do amor. Escrever é amar a melancolia. Quando o poeta experiencia uma
vivência, fica sem respiração, emudecido. Somente depois ele consegue por isso em
palavras. O poema é expirado. Entre as palavras e as linhas se encontra o mutismo
originário. A brancura da origem guia a mão do desenhador, do escritor.

O narcisista é impossível, por isso o desejamos. Se fosse possível, haveria uma


auto-suficiência. Os artistas são os maiores narcísicos.

04/12/10

O mito de Narciso é o paradigma do sujeito que se auto-referencia. Levinas


critica a maiêutica, associada a um conhecimento que já estaria no sujeito, a favor do
que é transcendente.

Derrida: o narcisismo é impossível, porém, por isso é que existem narcisos e


narcisas. A tentativa de Narciso acaba no seu afogamento. A identidade autocrática é
impossível. O Narciso é o sintoma do luto da própria identidade. Esta é uma experiência
absoluta de não identidade consigo mesmo.

Eco representa a anterioridade da língua. Repetindo a última fala, ela inventa a


sua própria singularidade. A manha pressupõe um sujeito consciente, Penélope tecia
durante o dia o que desfazia à noite.

O ordinário é interrompido pelo extraordinário. Este se traduz naquele. Há um


aleatório da inspiração. O artista não sabe quando o evento ocorre. O instante
meteorítico que não coincide nunca consigo mesmo é inapreensível em sua totalidade.
Há uma disjunção do tempo, que anula a contemporaneidade. “Il faut être absolument
moderne” Rimbaud. Derrida ouve a isso como o que falta, mas que exatamente por isso
é necessário. Por exemplo, a democracia falta, por isso é necessária.

A arte é esse poder de tudo inventar, porém que guarda segredo. Qualquer artista
guarda segredo. “A singularidade é o irredutível de uma idiomaticidade.” O mais
próprio é o mais estranho. “Como fazer apologia à universalidade mantendo o respeito
pela alteridade absoluta?”

Todos os sentidos estão maculados desde a origem. Antes de significar, a língua


diz: do silêncio. A ruína da obra só se dá através da própria obra. O silêncio é uma
condição de sentido. A música é o limite da significação. A música é pura passagem,
está sempre a ir embora, a dizer adeus! A música é a noite do filósofo, puro devir. A
música surge como o desafio maior da filosofia, é do âmbito do indomável.

A música interdita a harmonia. É a arte da fuga; desconstrói qualquer presença.


A música é escrita na água. A música impossibilita a fenomenalidade. O silêncio
envolve a palavra. Tudo está assente na abissalidade da origem.

11/12/10

Os sentidos estão contaminados uns com os outros. Desconstruir e repensar o


modelo ótico; pensar o limite do olhar, do ver. Dá a ver diferentemente a condição de
possibilidade do bem ver. A desconstrução atenta para o limite do ver, o saber, o
compreender. A cegueira é a condição de possibilidade do ver. Ver uma obra é ver a
visibilidade e, portanto, a invisibilidade. Os artistas mostram que somos vistos pelas
obras, não o contrário.

Questão sobre a filosofia primeira em Levinas: A filosofia primeira é o mesmo


que metafísica. Em Levinas a metafísica como filosofia primeira é a aceitação da
alteridade como transcendência. A metafísica é o acolhimento do infinito do outro. A
ética é uma meta-ética de acolhimento do outro. Em Levinas a ética se define através do
infinito positivo. Derrida abriga a meta-ética considerando o infinito negativo. Este
infinito é pré-ontológico. Ambos, Derrida e Levinas estão nas vésperas da ontologia.

Em Levinas: O outro é o local onde Deus se mostra.


O outro tem sempre primazia. Registro meta-ético. A experiência dissimétrica
sempre quer dizer de um duo. Todos os desenhos representam um duelo, própria
experiência dissimética. A língua é o primeiro vírus: desconstrói a identidade. Afasta a
identidade de si.
BIBLIOGRAFIA

DERRIDA, Jacques. Memórias de Cego, O auto-retrato e outras ruínas, Fundação


Calouste Gulbenkian, 2010, Lisboa.

_________________. Gramatologia, Editora Perspectiva, 2004, São Paulo.

RICOUER, Paul. A Metáfora Viva, Edições Loyola, 2005, São Paulo, Brasil.

RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, Cambridge University Press,


1989.

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