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Natal do outro lado do mundo

A lua estava redonda como a face de uma moeda naquela noite. Feérica e tranquila, a
donzela das noites banhava as terras abaixo de si com a sua luz pálida e fantasmagórica.
Os seus braços estendidos tocavam os telhados das casas, os montes verdes, os rios cris-
talinos e as árvores altas numa metade do Mundo. Numa dessas casas, uma cabana ve-
lha com paredes de madeira apodrecida, encontrava-se um rapazinho, escondido na pe-
numbra fria, que por certo não vira já mais de sete Invernos. Lenta e pacientemente, ele
manuseava um osso afiado que fazia as vezes de faca e, na outra mão, segurava um sa-
pato que parecia ter sido refeito, como um escultor profundamente concentrado. Lenta e
serenamente, o rapaz tentava arrancar a sola do sapato.
Enquanto isto, pensava em algo de que ouvira falar mais cedo nesse dia. Uma palavra
que lhe era familiar, apesar de não a conhecer tão bem quanto as palavras fome e sede.
Natal. Sobre ela sabia apenas que era muito importante para todos os cristãos, e que eles
comemoravam a noite de Natal com grandes festas. Aparentemente, era uma ocasião de
muita importância, relacionada com o Deus dos cristãos. Mas parecia-lhe faltar qualquer
coisa…ah, sim, lá estava o detalhe em falta – no Natal, as pessoas trocavam presentes.
Imaginou-se por instantes a procurar uma prenda para cada membro da sua família. Não
conseguiu encontrar nada que se adequasse aos seus pais, nem aos seus irmãos. Pakapak
era o mais fácil: um osso, provavelmente. E ele? O que gostaria de ter como presente?
Isto, claro, se lho dessem, porque tinha a certeza de que ninguém lhe ofereceria prenda
alguma, fosse em que dia fosse. Porém, se fosse possível…o que escolheria ele?
O carro dos vizinhos – lembrou-se imediatamente. Era um automóvel já com certa idade
e um pouco enferrujado…contudo, era mesmo assim um carro! Para ele, não interessava
a marca nem o modelo. Nem sabia quantos existiam. Para ele, um carro era uma máqui-
na mágica que podia levar os seus passageiros a qualquer lado. E havia tanto sítio onde
ir naquele mundo gigantesco! Todavia, ainda teria de esperar muitos anos para
conduzir.
E ninguém lhe ofereceria um carro – disso tinha certeza. Portanto, começou a pensar em
objectos pequenos que lhe proporcionassem alegria. Objectos baratos, simples…como
uma bola de futebol. Não daquelas com que ele jogava com os outros miúdos do bairro,
feitas de cascas de frutos, linhas de corda esfiapadas, trapos rasgados. Uma bola a sério.
O bebé chorou a seu lado. Frustrado, Menzi largou o osso. Era inútil, não conseguia.
Tocou no ombro da mãe, adormecida numa ponta do sofá cheio de ninhos de baratas.
- O que queres que eu faça? – protestou ela, aborrecida. – Enquanto o teu pai não voltar
com o jantar, não tenho nem força nem paciência para dar de mamar ao teu irmão.
Menzi encolheu os ombros e voltou a sentar-se no toco de madeira onde permanecera na
última hora, imóvel e pensativo. A ideia de receber um presente continuava a cativá-lo,
como a maçã proibida no cimo da árvore dourada, o desejo que jamais se concretizaria.
Esperou silenciosamente até a porta da rua se abrir e o pai entrar em casa, cambaleante.
Consigo trazia um saco de plástico de onde emanava o inevitável cheiro a comida. O pai
largou-o ao lado da mãe e Menzi farejou o ar como um cachorro: frango, parecia-lhe.
- É noite de Natal – declarou o pai. – O patrão foi generoso.
Ao ouvir a porta a abrir-se, Tega saíra prontamente do quarto, ansiosa por uma refeição.
Não comiam havia mais de doze horas e os quatro – o bebé continuava deitado no sofá,
aguardando a sua vez de ser alimentado – atiraram-se à comida como cães esfaimados.
Às vezes Menzi tinha vergonha do comportamento meio selvagem que parecia ter nas
raras ocasiões em que arranjavam com que se alimentar. Não podia evitá-lo: tinha fome.
Quando terminou, sentiu-se, pela primeira vez em muito tempo, vagamente insatisfeito.
Pensava nas grandes festas de que ouvira falar, aquelas com que os cristãos por todo o
mundo comemoravam a noite de Natal – aquela noite que, para ele, era como as outras.
Comida, bebida, presentes, alegria…tudo lhe parecia tão distante quanto desejável. Ele
devia ter mais, tinha direito a isso, devia poder ter mais...e com isto tomou uma decisão.
- Vou dar uma volta – disse, de repente, dirigindo-se para a porta.
- Espera! – exclamou a mãe, antes que ele desaparecesse na noite. – Já arrumaste tudo?
- Sim, mãe – assentiu, impaciente. – Já remendei o cobertor e lavei a casa-de-banho.
- E como correram as vendas hoje? – interrogou o pai, roendo uma coxa de frango.
- Mal – foi a resposta –, os turistas desapareceram como que por magia, não vendi nada.
“Deve ser por causa do Natal”, acrescentou, em silêncio. Imaginou-os nos seus hotéis
de cinco estrelas a comemorar com vinhos caros e carnes em abundância. Suspirou.
- No Natal trocam-se presentes – balbuciou inconscientemente.
Todos se calaram. Tega, desdenhosa, olhou para ele e retorquiu, num tom de voz ácido:
- Pára de sonhar, Menzi. Se pensas que alguém aqui te vai dar uma prenda…Não.
Aquele “não” definitivo apenas o aborreceu ainda mais. Saiu de casa em passos rápidos.
À porta, do lado de fora, um corpo magro e deitado no chão moveu-se ao vê-lo surgir.
- Vem, Pakapak – chamou Menzi, e o cão foi logo ter com ele. – Vamos dar uma volta.
Estava a atravessar a rua quando ouviu vozes a chamá-lo do outro lado, nas sombras:
- Hei, Ngubane! Ngubane, vem cá! Não imaginas o que a Salma encontrou hoje!
Foi ter com eles. Sentados nos degraus de uma antiga capela, um bando de miúdos da
rua passava algo entre si. Sorriam como se alguém tivesse andado a distribuir doces.
- O que foi que encontraram? – inquiriu, esforçando-se por reconhecer o objecto.
Até que um raio da lua o atingiu em cheio e ele descortinou o seu formato longilíneo e a
sua cor branca e soltou uma exclamação de surpresa, e, a seguir, outra de agrado.
- Um tubo de cola! – compreendeu, e a agitação que sentia contagiou os outros.
Sentou-se numa ponta de um degrau e esperou, irrequieto, a sua vez. Mal o tubo chegou
às suas mãos, levou-o à boca, prendeu-o com os lábios gretados e sorveu ruidosamente.
Largou-o e levou-o junto das narinas, inspirando calmamente. Uma, duas…três vezes.
O sabor, que não sabia bem se era ácido ou doce, agradável ou enjoativo, provocou-lhe
sensações luminosas que pareciam presentes no espírito de todos os outros.
- Olhem ali! – gritou subitamente um dos miúdos, encantado. Os seus dedos magros in-
dicaram o céu pontilhado de mil estrelas brilhantes. – Um arco-íris!
As crianças desataram a rir à gargalhada, incluindo Menzi. Salma, a rapariguinha que
dizia ter encontrado o tubo de cola, encostou-se a ele e fechou os olhos. O próprio Men-
zi não tardou a sentir uma sonolência que se adensava rapidamente, e que o fazia ver tu-
do desfocado e esquecer-se de todos os laços que o prendiam à Terra – a fome, a sede, a
família, os deveres e as preocupações. Assim como o seu pai procurava fugir através do
álcool, Menzi e os outros miúdos da rua tinham a cola. Uma droga potente e milagrosa.
Era um cenário triste, aquele, embora já muito conhecido de todos os que ali estavam.
Menzi olhou para o manto celeste, escuro como ele mesmo, onde as estrelas dançavam e
efectuavam acrobacias. Soltou uma risada divertida e deixou-se ali ficar, num transe…
Pinheiros iluminados, embrulhos com laços de seda, cores e pudins apelativos – todas as
imagens que ele vira nesses dias, mas que nunca pudera agarrar, apareciam ali no céu.
Mais tarde não saberia dizer quanto tempo passou junto da capela, com os outros.
Só soube que, ao despertar daquela bolha de harmonia e tranquilidade, sentiu de imedia-
to uma vontade intensa de passear. Passear, simplesmente. Afastar-se dali, de sua casa.
Chamou o cão e deixou os amigos para trás, todos eles ainda em volta do tubo de cola.
Silenciosamente, caminhou até se fundir com a escuridão da noite amena, perguntando-
se se os cristãos estariam agora a celebrar o Natal, se a sua mãe poderia fazer doce de
batata mais alguma vez na vida e se ele viria a ter o prazer de o provar de novo.
O cão sarnento e o rapaz de pés descalços não pararam até chegarem a outro bairro.
Menzi deteve-se ao reconhecê-lo, e aguardou, indeciso entre seguir em frente ou voltar.
Aquele era o bairro dos ricos (ou dos brancos) e a entrada era-lhe interdita.
Por momentos, temeu a investida assustadora dos guardas fardados, até se aperceber do
silêncio e calma invulgares naquele lugar. As mansões rodeadas de muros altos e por-
tões de ferro, iluminadas por holofotes fulminantes e recheadas de luxo e riquezas eram
vigiadas ininterruptamente…excepto em dias ou noites como aquela. Os guardas tinham
folga e os cães no interior das propriedades eram os únicos vigilantes, deixando as ruas
livres aos gatunos e passeantes. Menzi só se incluía na segunda categoria.
Avançou cautelosamente, vencido pela curiosidade e, não obstante, preocupado com as
recordações que tinha daquele lugar. Certa vez, ele e os amigos tinham ido até ali, pla-
neando uma incursão ao quarteirão onde todos os seus sonhos se tornavam realidade.
Tinham sido afugentados pelos guardas como um bando de moscas à volta de um bolo.
Ouviu vozes a seu lado, quando passava por uma majestosa casa branca, e cães a ladrar.
- Calma, Pak, eles não chegam aqui – tranquilizou o cão nervoso, colado às suas pernas.
“Como tens a certeza disso?”, parecia o cão perguntar-lhe, com os seus olhos tristes.
Menzi deu-lhe uma festinha na cabeça e içou-se para o muro de pedra, contente por ser
tão ágil quanto uma gazela e movido pelo sempiterno chamamento do desconhecido.
O seu olhar foi instantaneamente atraído por um pinheiro alto e robusto, bem no centro
do jardim relvado, repleto de decorações coloridas, figuras radiantes abrilhantadas pelas
dezenas de luzinhas que piscavam intermitentemente, presas a toda a árvore.
Logo a seguir, avistou um homem a escalar a parede da casa. Um homem?! A escalar a
parede da casa?! Perplexo, demorou algum tempo a descobrir que se tratava de um bo-
neco, todo vestido de vermelho, com longas barbas brancas e um saco castanho às cos-
tas, aparentemente tão grande que a família de Menzi podia meter lá todos os seus bens.
Não sabia quem aquela figura devia imitar, mas antes de se poder perguntar isso mesmo
a si próprio, voltou a ouvir vozes e distinguiu dois vultos no meio do relvado aparado.
Eram um homem – este de verdade – e uma criança, um rapazinho como ele. Falavam
em voz alta. No entanto, as suas palavras eram desconhecidas para ele, ininteligíveis,
porque não estava familiarizado com o dialecto Afrikaans e só o associava ao medo.
Então, o objecto que o rapazinho tinha nas mãos pareceu ganhar vida com um ronco so-
noro e turbulento. Menzi ia-se deixando cair do muro. O susto que apanhou fez com que
o seu coração galopasse furiosamente, para depois ser substituído pela estupefacção.
Ele não queria acreditar no que via. Não podia. Era demasiado…estranho…para ser ver-
dade. Um avião! Um avião de pequenas dimensões que voava sozinho por cima do jar-
dim! Um objecto voador de pequenas dimensões, idêntico aos de tantos sonhos seus!
Quantas vezes não já se imaginara a voar dentro de um daqueles, para outros mundos?
Quantas vezes não já se imaginara a voar num avião, para a outra ponta do Mundo? Um
sítio onde, esperava, a vida fosse mais fácil do que ali, menos miserável.
Até que viu uma coisa com botões nas mãos do rapazinho branco e percebeu que ele, de
algum modo complexo e impossível de entender, controlava o avião!
Os seus olhos arregalados presenciaram tudo o que aconteceu no instante seguinte, mal
o avião começou a soluçar e a descer na sua direcção, fora da protecção dos muros.
Quando ele aterrou no chão, ali, do lado de fora, Pakapak levantou-se e soltou um latido
assustado. Menzi saltou agilmente do muro, receando ser visto pelo homem e pelo seu
filho, que tinham seguido a trajectória do avião desviado com o olhar, estupefactos.
Aproximou-se do avião caído no meio da estrada com um misto de desejo e reverência.
Pakapak, escondido atrás dele, não conseguia evitar aproximar-se também, tal era a sua
vontade de o farejar para ter a certeza de que não era nada que o fosse atacar.
Soltou um gemido ao ver o dono apanhar o avião com cuidado. E se ele o atacasse?
Mas o objecto voador permaneceu absolutamente imóvel e silencioso, adormecido.
Menzi debatia-se com uma agressiva luta interior. Palavras conspiratórias sussurravam-
lhe na cabeça, tentando-o perigosamente…E se ele fugisse com o avião? Se o levasse
consigo? Afinal, não havia ali ninguém para o ver, nem para o impedir. O homem e o
seu filho, do lado de dentro dos muros, também não chegariam a tempo para o parar.
Tinha ali uma oportunidade única de fazer parte de uma ocasião tão especial…O Natal,
aquela noite cujo significado incendiava as almas de tanta gente no Mundo, e que para
ele era uma pequena descoberta, um fruto do desconhecido, atraente e sedutor…
O Natal, que para tantos significava felicidade, prosperidade, presentes…e que para tan-
tos outros, como ele, a sua família, os miúdos de rua…não era nada senão outro dia sem
comida nem alegria, tirando a generosidade de um patrão e meio frango para o jantar.
O avião seria o seu melhor amigo, a presença constante de que ele nunca se fartaria – ao
contrário dos seus irmãos queixosos e de todos os outros…tirando, talvez, Pakapak.
O cão continuava a olhar o avião com uma expressão desconfiada.
Menzi tomou uma decisão. Segurando a melhor prenda que alguma vez poderia ter com
todo o respeito, dirigiu-se aos portões de ferro e tocou à campainha uma, duas vezes.
Ele abriu-se tão depressa como se o homem já estivesse à espera dele. Menzi estendeu o
avião e ele pegou-lhe prontamente. Menzi olhou o homem nos olhos. Menzi recuou.
- Obrigado – disse o desconhecido, mesmo que ele não pudesse entendê-lo, e fechou o
portão, levando consigo o avião e todos os melhores sonhos de Natal do rapazinho.

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