You are on page 1of 23

Políticas públicas de Estado

e eqüidade de gênero
Perspectivas comparativas

Nelly P. Stromquist
School of Education, University of Southern California

Tradução de Vera M.D. Renoldi


Trabalho apresentado no II Simpósio Anual de Missouri
sobre Pesquisa e Política Pública Educacional,
Universidade de Missouri/Columbia, 30 a 31 de março de 1995.

Compreendendo as tido a tantos equívocos e abusos nas últimas dé-


políticas públicas cadas (Leichter, 1979). Em princípio, ele se refere
a declarações oficiais de intenção de agir sobre de-
O termo política pública* é um conceito de de- terminados problemas. Entretanto, na prática, as
finição vaga. Na verdade, afirma-se que nenhum políticas públicas podem assumir múltiplas formas:
outro, na área de ciências sociais, tem sido subme- legislação, recomendações oficiais em relatórios de
organismos e departamentos governamentais e re-
sultados apurados por comissões apontadas pelos
* Em português tanto o termo policy ou policies quan-
governos. Cada vez mais essas políticas públicas
to o termo politic ou politics são traduzidos pelo termo po- estão sendo estabelecidas por organismos interna-
lítica ou políticas. Em inglês, os termos têm acepções diver- cionais, por meio de conferências também interna-
sas, embora sua origem etimológica seja originalmente a cionais, e criam para os países um compromisso
mesma. Politic ou politics significa a arte ou a ciência de moral de seguirem recomendações específicas, em-
governar, regulando e controlando os homens que vivem em
bora não sejam convenções e portanto não impo-
sociedade, ocupando-se da organização, administração e
nham nenhuma obrigação legal. Nos países em de-
direção de unidades políticas, como nações e Estados. No
caso de policy ou policies o sentido é o de um método ou senvolvimento, há uma outra forma de criação de
curso de ação definido e selecionado — seja por instituições, políticas públicas, derivadas de projetos realizados
grupos, indivíduos ou governos — entre diferentes alterna- em países que contam com apoio externo.
tivas e à luz de determinadas condições, para determinar
decisões presentes ou futuras. Essas decisões específicas, ou
o conjunto de decisões, carregam consigo as ações relacio- atingi-los. Esses meios seriam a formulação da política. A
nadas à sua implementação. O conceito engloba também o tradução mais correta seria, portanto, política pública, con-
sentido de um programa projetado que consiste de duas siderando-se que cada política implica sua própria estraté-
partes: os objetivos a atingir e os meios necessários para gia. (N. T.)

Revista Brasileira de Educação 27


Nelly P. Stromquist

Quando em forma de declarações públicas, as tão de que todas as políticas públicas sejam impre-
políticas públicas educacionais seguem um proces- visíveis. Desvios da intenção e dos objetivos origi-
so de quatro fases, no mínimo, iniciando-se com a nais, ao longo do tempo, revelam-se particularmen-
identificação do problema, evoluindo para a formu- te verdadeiros no caso de políticas públicas contro-
lação e a autorização da política pública (leis apro- vertidas ou não consensuais como são as políticas
vadas), implementação das mesmas e finalização ou públicas de gênero. Existem fortes elementos de sur-
mudança (Harman, 1984). Uma vez que estas fa- presa e contingência circundando essas políticas
ses colocam em ação diferentes atores, é comum públicas, em especial na sua implementação. Con-
existir uma falta de conexão entre elas e, ocasional- tudo, enquanto elas continuarem a ser um territó-
mente, bons programas no papel são mal imple- rio disputado por forças em oposição, pode-se pre-
mentados em campo. Entretanto, estudantes de po- ver, ocasionalmente, vitória das partes mais fortes.
lítica pública têm também consciência de que polí- Este trabalho não descarta a possibilidade de fato-
ticas públicas não se apresentam como “um obje- res contingentes no processo de estabelecimento e
to ou texto concreto e constante que se transmite implementação de políticas públicas. Nós queremos
de um local para outro”. Pelo contrário, são pro- descrever o caráter e os objetivos das políticas pú-
duzidas por indivíduos atuando dentro de contex- blicas educacionais de gênero e explicar até que pon-
tos, os quais ora apresentam limitações, ora opor- to essas tem se empenhado em promover mudan-
tunidades (Hall, em elaboração). Uma compreen- ças significativas dentro do sistema educacional.
são da complexidade dessas políticas públicas de- Portanto, nosso interesse está em captar a semelhan-
veria nos conscientizar da existência de múltiplos ça existente em políticas públicas, que se mostram
elementos em ação, tais como intencionalidade, ins- aparentemente diferentes, a respeito de gênero na
trumentalidade, interação, poder e temporalidade educação. Este trabalho pretende fornecer uma
que condicionam os contextos sociais (Hall, 1995). apreciação comparativa das políticas públicas de
Ozlack (1984, p. 5) define-as como “um conjunto gênero na educação, tanto as internas como as de
de tomadas de decisão face a face com temas so- outros países, documentando a gama de significa-
cialmente problematizados”. Essa conceitualização dos e compreensões que tem caracterizado as polí-
acurada ajuda a reconhecer que as políticas públi- ticas públicas de gênero sobre a igualdade educa-
cas apresentam a intenção de solucionar problemas cional e oferecendo explicações para as conquistas
identificados, que essas soluções devem contar com das mesmas.
um mínimo de apoio da sociedade e que a defini-
ção do problema evolui através de sucessivas ondas Políticas públicas de gênero
de tomadas de decisão. Em outras palavras, contra-
riando a visão que postula a seqüência linear na A formulação de uma política pública, que su-
formulação de uma política pública, começamos a põe exigências diretas sobre o Estado, tem sido bus-
apreender que, pelo fato de vários atores estarem cada por muitas feministas. Os temas englobados
implicados no processo — de políticos a burocra- nessas exigências são a igualdade de status para as
tas a equipes escolares — essas pessoas inserem cer- mulheres, a remoção da discriminação sexual, a
tas modificações nas políticas públicas, alterações introdução de regulamentos contra assédio sexual
que têm origem em sua interpretação sobre as po- e a introdução de cotas que garantam a represen-
líticas públicas em si e na extensão de sua concor- tatividade feminina.
dância em relação a elas. Entretanto, não existe um consenso, dentro do
Entretanto, a presença de fatores contingentes movimento feminista, em relação ao papel do Es-
na formulação e na implementação de políticas pú- tado nas relações de gênero. O grupo geralmente
blicas não deve ser interpretada como uma suges- caracterizado como “feministas liberais” conside-

28 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

ra que o Estado é neutro e corrigirá desigualdades o princípio de igualdade de oportunidade em vez de


de gênero quando lhe forem fornecidas informações reconhecer a necessidade de uma educação anti-
pertinentes sobre as disparidades existentes. Um sexista (Yates, 1993; Kelly, 1988).
outro grupo, compreendendo feministas com pers- Com o tempo, a posição feminista de distan-
pectivas “radicais” ou “socialistas”, está mais in- ciamento do Estado evoluiu para a utilização de uma
clinado a considerar o Estado como uma institui- estratégia dupla: trabalhar com o Estado através de
ção patriarcal que reflete divisões de gênero ao mes- pressões e desenvolver um trabalho independente
mo tempo que as produz. Nessas situações, as mu- através de grupos de mulheres, particularmente or-
lheres são geralmente excluídas de um acesso dire- ganizações não-governamentais (ONGs). Essa nova
to aos recursos estatais devido a sua ausência nos postura passou a existir como conseqüência do re-
departamentos estatais e, de forma indireta, por conhecimento de que as mulheres tem maiores chan-
forças políticas “sexistas” que atuam sobre o Estado ces de aumentar sua influência no processo político
(Connell, 1987; Pateman, 1988). Na verdade, se- — em alianças com homens que apóiam a causa e
gundo o Human Development Report, as mulheres fazem lobby pelos interesses das mulheres — do que
representam apenas 10% dos representantes par- através do mercado ou das ONGs, que tendem a ser
lamentares no mundo e bem menos de 4% de mi- pequenas e fragmentadas (Young, 1988).
nistros de gabinete ou posições de autoridade exe- Numa apreciação do comportamento dos Es-
cutiva similares.1 tados, as teóricas feministas observaram que as po-
O Estado molda as relações de gênero através líticas estatais nem sempre tendem para o status
de regulamentações relativas ao divórcio, ao casa- quo. Enquanto os Estados consideram a mulher e
mento, ao aborto, à anticoncepção, à discrimina- a família como um duo inseparável, no qual os pro-
ção salarial, à sexualidade, à prostituição, à por- blemas de uma se tornam os problemas da outra,
nografia, ao estupro e à violência contra a mulher com freqüência assumem políticas públicas contra-
(Walby, 1990). Entretanto, a natureza patriarcal do ditórias em relação às mulheres. Por um lado, a
Estado não é considerada estática. Afirma-se que necessidade de contar com elas como sendo mães
forças dominantes modernizaram a posição femi- e esposas induz o Estado a formular projetos mui-
nina ao permitir a participação plena das mulheres to convencionais nas linhas de gênero. Por outro,
no mercado de trabalho. Mas, simultaneamente, o a necessidade de depender das mesmas como força
Estado tem neutralizado as exigências feministas de trabalho — ainda que este seja facilmente ex-
através de várias concessões as quais, embora me- plorável, barato e manipulável — cria oportunida-
lhorem a situação, não eliminam os obstáculos fun- des para que elas se insiram no mercado de traba-
damentais para a igualdade feminina. Uma das res- lho, adquiram um relativo padrão de autonomia
postas estatais na área de educação é a de admitir financeira e, eventualmente, questionem sua condi-
ção de subordinação. Da mesma forma, tendências
globais a favor de normas democráticas obrigam os
1 Os dados disponíveis não permitem comparações Estados a oferecer direitos iguais para todos os ci-
claras. Entretanto, poder-se-ia argumentar que a mulher tem dadãos. Essas contradições criam janelas de opor-
um nível mais baixo de representação na política formal do tunidade para possibilidades de transformação e
que no setor de economia formal: em 35 países, as mulhe- ação organizada.
res representam mais de 25% das posições administrativas
As desigualdades relativas às mulheres nas áreas
e de gerência (dado de 1990), mas apenas em 28 países elas
econômicas, sociais e políticas em todo o mundo per-
constituem mais do que 15% dos ministros e submininistros
e em 25 países representam pelo menos 20% dos represen- sistem a despeito de vinte anos de trabalho ativo por
tantes parlamentares (as duas informações são dados de parte do movimento de mulheres. Um dos indicado-
1994) (ONU, 1995, p. 151-155). res mais aceitos do bem estar sócio-econômico é o

Revista Brasileira de Educação 29


Nelly P. Stromquist

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) publi- doméstico reprodutivo) o qual suplanta divisões de
cado anualmente no Relatório de Desenvolvimen- classe e é também apoiado por relações extra-eco-
to Humano, produzido pelo Programa de Desenvol- nômicas de dominação (Feijóo, 1993). Entretanto,
vimento das Nações Unidas (PNUD). Esse índice sin- as mulheres não representam um grupo homogêneo
tetiza a condições da população em um determina- e nem todas vêem a si mesmas em circunstâncias
do país em termos de expectativa de vida no nasci- iguais. Os temas abordados por mulheres da clas-
mento, desempenho educacional e GPD real ajustado se média enfocam melhoria de acesso à educação
per capita. A PNUD também desenvolveu um IDH superior, direitos das mulheres casadas, melhora-
sensível ao gênero, fundamentado na posição das mentos na legislação trabalhista. Esses interesses
mulheres em relação à dos homens em termos de ex- não são partilhados pela mulher pobre porque mui-
pectativa de vida, alfabetização na idade adulta, sa- to poucas freqüentam universidades, casam-se le-
lários e anos de instrução básica. O Relatório de De- galmente ou trabalham no setor formal da econo-
senvolvimento Humano de 1993 constatou que o mia. Pelo contrário, os problemas das mulheres po-
IDH médio das mulheres é apenas 60% daquele dos bres se concentram em moradia, débitos, saúde e
homens2 (PNUD, 1993, p. 260). Denominando as desemprego (Fisher, 1993). A emergência de assun-
mulheres como “o maior grupo excluído no mun- tos abrangendo todas as classes sociais, como o di-
do”, o mesmo relatório também verificou que elas reito de controlarem seus próprios corpos (incluin-
sofrem uma séria desvantagem em comparação aos do-se o aborto) e a preponderância do tópico de
homens em relação a emprego, educação superior, violência contra a esposa são temas que estão crian-
direitos legais, patrimônios financeiros e represen- do uma maior unidade entre as mulheres.
tação política. Esse relatório fornece uma evidência
clara de que a industrialização não é concomitante Políticas públicas de gênero
à igualdade das mulheres, sendo o exemplo mais na educação
notável o do Japão, cujo IDH é o primeiro do mun-
do mas, quando ajustado à disparidade de gênero, Conforme declarado anteriormente, o Rela-
ocupa o décimo-sétimo lugar. Da mesma forma que tório de Desenvolvimento Humano de 1993, da
o gênero, o aspecto étnico é uma outra variável de PNDU, evidencia a substancial desvantagem das
importância na criação da desigualdade sócio-eco- mulheres. Entretanto, não aponta causas ou atores/
nômica: se a população dos Estados Unidos fosse instituições responsabilizáveis por essa situação.
dividida em grupos étnicos, o IDH da parcela bran- Trata-se de um posicionamento comum às declara-
ca estaria em primeiro lugar entre todas as nações, ções de muitos governos e organismos internacio-
com a parcela negra ocupando o trigésimo-primei- nais. Existe uma nítida preferência para a elabora-
ro lugar e a parcela hispânica estando “ainda mais ção de projetos destacando as desigualdades para
abaixo” (PNUD, 1993, p. 26). o acesso das mulheres à instrução e à força de tra-
Embora não exista uma concordância entre as balho, enquanto enfatiza-se bem menos a identifi-
teóricas feministas sobre o papel do gênero sob o cação das forças sociais, econômicas e ideológicas
capitalismo, aceita-se, de forma crescente, que as que estão subjacentes à subordinação e à domina-
mulheres sejam um dos elementos importantes no ção femininas.
processo de acumulação (através de seu trabalho A fim de se compreender a intenção dos ela-
boradores de políticas públicas (como também aju-
2 dá-los na criação de políticas públicas eficazes), os
Poder-se-ia sugerir que o fato de dados desse tipo
existirem, em 1991, apenas para 33 países — dos quais 22 estudiosos se concentraram no exame dos instru-
são países industrializados — seria um indicativo da limitada mentos da política pública — “mecanismos que
importância dada à mulher nos países em desenvolvimento. transformam os objetivos de uma política pública

30 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

substantiva em ações concretas” (McDonnell e TABELA 1. Comparação entre políticas


Elmore, 1987, p. 133).3 Com o intuito de analisar genéricas e sensíveis a gênero (continuação)
as políticas públicas de gênero, minha proposta é POLÍTICAS GENÉRICAS (continuação)
uma classificação embasada no nível de transforma-
Modelos Efeito desejado Mecanismos
ção social pretendido pela legislação. Três tipos de de aplicação
legislação podem ser identificados: Mudança Devolução de Boa vontade
> Leis de coerção — as ativadas para pre- do sistema autoridade, do Estado,
criação de novos fundos para
venção no caso de ocorrer ou de continuar
organismos criar novas
ocorrendo qualquer discriminação sexual (o
instituições
aspecto “vara de marmelo” da lei);
Criação de Novas Recursos para
> Leis de apoio — as criadoras de orga- capacidade capacidades em provisão de
nismos para promover ou monitorar a imple- indivíduos e serviços
mentação de novas práticas (isto é, criação de instituições
comissões e unidades compostas por mulheres Incentivos Provisão de
e ministérios encarregados de assuntos femi- novos serviços e
administração de
ninos, etc.)
novos serviços
> Leis de construção — as promotoras de
POLÍTICAS SENSÍVEIS A GÊNERO
incentivos para novas práticas nas instituições
Modelos Efeito desejado Mecanismos
educacionais, relacionadas a desenvolvimen-
de aplicação
to de programas e cursos, treinamento de pro-
De coerção Eliminar Retirada de
fessores, maior número de bolsas de estudo discriminação contratos ou
para mulheres, etc. (o aspecto “isca” da lei). de gênero multas para
A Tabela 1 apresenta uma classificação de po- encorajar
obediência
líticas públicas genéricas e com enfoque no gênero,
De apoio Instituições/
comparando a tipologia oferecida por McDonnell
unidades para
e Elmore (1987) com as minhas.
promoverem
problemas de
TABELA 1. Comparação entre políticas gênero e monitorar
genéricas e sensíveis a gênero legislação de
gênero, coerção e
POLÍTICAS GENÉRICAS
de construção
Modelos Efeito desejado Mecanismos
De suporte Unidades/
de aplicação
instituições para
Comando Eliminar Punições promoverem
discriminações, para assuntos de gênero
desperdícios, encorajar e monitorar
danos etc. obediência legislação de
gênero coerciva
e construtiva
3 Ao examinar vários tipos de políticas públicas, De construção Novos
McDonnell e Elmore propõem uma classificação para po- comportamentos
líticas públicas em geral. Essa classificação genérica não pode conhecimentos e
ser aplicada diretamente em políticas públicas de eqüidade atitudes relativas
de gênero, cuja maioria deveria visar, necessariamente, uma a mulheres e homens
mudança social sistemática. na sociedade

Revista Brasileira de Educação 31


Nelly P. Stromquist

Se a sutileza das diferenças de gênero na so- vidos também estão sendo estudados e incluem Ar-
ciedade estão intimamente ligadas à influência da gentina, Burkina Faso, Sri Lanka, Uruguai, Coréia
ideologia e do discurso, a teoria feminista argumen- do Sul e Zimbabwe.4
taria que as políticas públicas são necessárias a fim De acordo com a visão da maioria dos gover-
de modificar as práticas pelas quais as escolas criam nos, o problema chave na educação das mulheres
o gênero e preparam estudantes tanto do sexo mas- é essencialmente o de acesso — ou seja, “garantir
culino como feminino para a paternidade, a ma- uma oportunidade igual para as mulheres em todos
ternidade e a vida doméstica. As políticas públicas os níveis de educação”. Eles também reconhecem
deveriam também desenvolver alternativas para a a necessidade de lhes assegurar um acesso adequa-
divisão sexual convencional de trabalho na família do ao treinamento, à ciência e à tecnologia. Quan-
nuclear e na economia (Deem, no prelo). Com a do se considera o conteúdo educacional, eles exi-
finalidade de apoiar essa dupla de objetivos, deve- girão, sem grande relutância, a eliminação de este-
riam se promover pesquisas, em particular estudos reótipos sexuais de livros didáticos e outros mate-
qualitativos da educação, a fim de tornar transpa- riais educativos. A ênfase no acesso feminino à ins-
rentes o “submundo sexual da educação”, através trução e às habilitações fornecidas pela educação
de linguagem e provocação sexual e racialmente traz em seu bojo o pressuposto de que escolas se-
abusivas, comportamento condescendente para com jam “instituições neutras, as quais proporcionarão
estudantes do sexo feminino e noções racistas de conhecimentos às mulheres da mesma forma que
feminilidade e masculinidade (Arnot, 1993). Em aos homens e que estes serão de igual valor para
outras palavras, são obrigatórias as políticas públi- ambos os sexos” (Kelly, 1988, p. 12).
cas construtivas. Consciente ou inconscientemente, são evita-
As políticas públicas de gênero podem ser de dos, de maneira constante, os temas curriculares
três tipos, em termos de seu alcance: as de enfoque mais complexos como a modificação dos modelos
genérico contra discriminação (cobrindo todas as de conhecimento transmitidos e a inclusão de no-
áreas, não apenas a da educação), as específicas para vas visões de uma sociedade com maior eqüidade
a área educacional, mas referindo-se às mulheres de gênero. Este fato ocorre não apenas nos níveis
apenas por implicação nas mencionadas políticas, mais baixos de instrução, mas também no nível uni-
e as que se referem especificamente à educação das versitário. O resultado é que o conhecimento obti-
mulheres. As genéricas contra a discriminação são, do nessas instituições não chega sequer a tocar as
obviamente, coercitivas por natureza. As específi- mensagens ideológicas e as práticas educacionais
cas para a área educacional e as enfocadas nas mu- que reproduzem as identidades femininas e mas-
lheres em especial podem ser de coerção, de apoio culinas. Por exemplo, textos econômicos em nível
ou construtivas. de faculdade invocam modelos de “excesso de pro-
cura” ocupacional ou modelos estatísticos de dis-
Políticas públicas de gênero na
educação em âmbito nacional
4 Para um estudo comparativo de políticas públicas
Começam a emergir diversos estudos empí- educacionais entre treze países industrializados e países em
ricos sobre políticas públicas educacionais de Estado desenvolvimento, ver Sutherland e Baudoux, 1994. Para este
relativas a gênero. Esta pesquisa abrange principal- estudo, baseei-me em dados primários para todas as refe-
rências aos Estados Unidos (Stromquist, 1993a) e em dados
mente as políticas públicas em países desenvolvidos
secundários para os outros países. Estes últimos apresentam
como Suécia, Austrália, Dinamarca, Alemanha, Rei- um alto grau de variação quanto aos problemas que abran-
no Unido, Estados Unidos, França, Itália, Espanha, gem e, como resultado, os dados são inexistentes no que diz
Canadá e Hungria. Mas os países menos desenvol- respeito a vários aspectos.

32 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

criminação para explicar a renda relativamente mais cessidade de ampliar a perspectiva das estudantes,
baixa das mulheres, contudo não oferecem uma ex- salientar sua participação e sua realização, prover
plicação para o fato das mulheres ou das minorias suas necessidades, aumentar sua confiança na ma-
continuarem a adquirir as habilitações tradicionais temática e garantir conteúdo, práticas, processo e
que irão provocar o mencionado excesso de procura ambientação de ampla abrangência (1993, p. 174),
ocupacional e em explicar as escolhas ocupacionais mas evita tocar em qualquer política pública de sig-
como resultado de um comportamento de super- nificado contestatório.
valorização por parte das pessoas, com base em Desconsiderando-se níveis econômicos de de-
preferências de origem exterior, tais como tecno- senvolvimento e filosofia política (esta última en-
logias, talentos individuais e instituições (Feiner e caminhando-se, de forma generalizada, para uma
Roberts, 1990). Quando se desenvolvem políticas uniformização, em especial no estado democrático
públicas para aumentar o número de estudantes do com economia de mercado), todos os países apre-
sexo feminino em cursos de matemática e ciências, sentam fortes semelhanças nas condições de educa-
o problema se estrutura sobre a reduzida represen- ção para as mulheres e para os homens. Entre es-
tação feminina em carreiras não tradicionais. Essa sas semelhanças destacam-se as seguintes: a) seus
visão condiciona o problema a uma questão de re- sistemas educacionais estão passando por um pro-
sultado de escolhas individuais e de realização, des- cesso de contínua expansão; b) com o aumento cres-
viando a atenção do setor de serviços, que é a maior cente de admissões, também há uma tendência de
área de emprego para mulheres (Yates, 1993). aumento na participação educacional de estudan-
A área de conteúdo educacional — ou currí- tes do sexo feminino; c) na maioria dos países, os
culo — deveria ser da maior importância no desen- livros didáticos continuam a apresentar estereóti-
volvimento de políticas públicas de gênero. Confor- pos sexuais; d) os professores tendem a evidenciar
me comenta Connell, “o quanto e quem (isto é, o expectativas mais baixas em relação às meninas e
acesso) não podem ser separados do quê”. Em suas a tratá-las de forma diferenciada dos meninos; e)
próprias palavras: embora existam muitas professoras, poucas mulhe-
res são administradoras; f) existem poucas mulhe-
Cada maneira particular de construir o currículo
res em posições administrativas nas universidades;
(isto é, de organizar o campo de conhecimento e de-
g) ainda persiste uma grande concentração de mu-
finir o que deve ser ensinado e ser aprendido) traz em
lheres nas áreas de estudo tradicionalmente femi-
seu bojo efeitos sociais. O currículo fornece poder e
ninas e uma baixa representatividade em campos
o retira, autoriza e desautoriza, reconhece correta ou
importantes para o desenvolvimento nacional, tais
erradamente grupos sociais diferentes, seus conheci-
como agricultura, ciência e tecnologia e, como con-
mentos e suas identidades. Por exemplo, o currículo
seqüência, persiste a segregação ocupacional e o
desenvolvido em instituições acadêmicas controladas
diferencial de renda entre homens e mulheres; h)
por homens tem, das mais diversas maneiras, autori-
quase universalmente, as mulheres apresentam um
zado as práticas e as experiências masculinas, margi-
percentual mais alto de analfabetismo.
nalizando as femininas” (Connell, 1994, p. 14).
No Brasil, também existem posições de pari-
A despeito da importância do conteúdo, a re- dade de gênero em todos os níveis de educação, mas
forma curricular — nos poucos casos em que é ten- os efeitos compostos de gênero, residência rural,
tada — mostra-se dependente de estratégias de as- etnia (o ser negro), criam desvantagens educacio-
similação. Ao examinar o relatório da Comissão de nais substanciais.
Escolas de 1987, que apresentou a Política Nacio- O engajamento dos Estados em trabalhos com
nal para Educação Feminina nas Escolas Australia- o objetivo de aumentar a consciência feminista das
nas, Yates descobriu que o relatório aponta a ne- mulheres adultas é muito limitado. Existe um for-

Revista Brasileira de Educação 33


Nelly P. Stromquist

te paralelo entre o tratamento de jovens na escola nero direta ou indireta — esta última incluindo a
e mulheres em programas educacionais para adul- colocação de condições não necessárias para um
tos: ambos são apolíticos, ampliando e promoven- cargo, mas com tendência a serem preenchidas mais
do definições convencionais de feminilidade e mas- dificilmente pelas mulheres do que pelos homens,
culinidade. Em termos genéricos, muitas das polí- tais como anos de experiência de trabalho no exte-
ticas públicas governamentais continuam a ver as rior. A Parte III desse ato estipula acesso igual à
mulheres como recipientes passivas do bem-estar instrução, instalações e cursos para as mulheres. O
social. Sendo assim, as políticas públicas são orien- Ato também cria uma Comissão de Oportunidade
tadas em sua maior parte para as mulheres de bai- Igual para trabalhar em prol da eliminação da dis-
xa renda da área urbana, da área rural ou autócto- criminação, promover igualdade entre homens e
nes, a fim de que elas possam melhorar suas habi- mulheres e monitorar a implementação do ato. A
litações na costura, na nutrição, na saúde, no pla- Comissão pode desenvolver investigações, prestar
nejamento familiar e no artesanato, e para que seus assistência a pessoas a fim de evitarem discrimina-
filhos possam ter melhores oportunidades de vida. ção e estabelecer pesquisas. O orçamento da Comis-
Essas políticas públicas refletem a propensão do são é pequeno e foi reduzido em termos reais nos
Estado em prover bem-estar social para a maioria últimos anos (Sutherland, 1994).
das mulheres carentes, mas não de proporcionar Em 1977, os três governos do Reino Unido
autonomia, nem a estas, nem às mulheres como um deram expressão ao seu compromisso para com a
grupo. Com escassas exceções — casos em que edu- igualdade de oportunidade e de condições na edu-
cadores feministas se posicionaram dentro da bu- cação ao acrescentar ao Green Paper on Education
rocracia estatal, como na Índia e na Argentina, os in the Schools de 1977 um documento subseqüen-
únicos grupos que trabalham para promover uma te, o The School Curriculum, o qual visava estabe-
consciência de gênero entre as mulheres adultas lecer tratamento igual para homens e mulheres no
são as organizações de mulheres não governamen- currículo. Notadamente, as duas políticas públicas
tais (ONGs). não foram concomitantemente apoiadas por um
treinamento de professores. Algumas feministas no
Políticas públicas educacionais de Reino Unido exigiram currículos “mais abrangentes
gênero em países desenvolvidos quanto a gênero” a fim de dar maior cobertura às
A fim de concretizar as afirmações anteriores, realizações das mulheres em diversos setores, além
apresento as políticas públicas educacionais de três da exclusão de perguntas de exames que fossem
nações industrializadas com maiores detalhes. Es- genericamente sexistas. Também requisitaram o de-
ses países foram escolhidos por terem culturas pre- senvolvimento de diversas estratégias e iniciativas
dominantemente anglo-saxônicas e uma total pa- para superar os problemas de sexismo na educação,
ridade de gênero nos níveis escolares primário e entre os quais uma auto-avaliação por parte dos
secundário, permitindo assim uma análise de polí- professores (o Genderwatch é um manual para esse
ticas públicas educacionais que ultrapasse o enfoque tipo de avaliação). Essas exigências ainda não fo-
de acesso básico. ram atendidas (Deem, no prelo).
Reino Unido — Canadá —
Este país tem três sistemas educacionais sepa- Este país apresenta um interesse digno de nota
rados, os quais determinam suas próprias políticas porque é considerado, de forma geral, um dos mais
públicas: Inglaterra e País de Gales, Escócia e Irlan- adiantados no tratamento de problemas de gênero.
da do Norte. Em âmbito nacional, há uma política O governo nacional aprovou uma lei geral sobre
pública de gênero ampla, o Ato de Discriminação Direitos Iguais (incluindo a área de educação) em
Sexual de 1975, o qual proíbe discriminação de gê- 1977, a qual proíbe discriminação relativa a gêne-

34 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

ro. Uma vez que cada província é responsável pela esfera federal. O governo federal aprovou, em 1972,
educação, ocorre uma considerável variação neste um ato abrangente sobre eqüidade de gênero na
nível. Todas as províncias têm leis antidiscrimina- educação. O Título IX proíbe discriminação de es-
tórias na educação, mas apenas uma, Ontario, dá tudantes em inúmeras áreas como: admissões, re-
obrigatoriedade a programas que promovam igual- crutamento, salários, bolsas de estudo, moradia,
dade de acesso educacional. Duas províncias (Que- acesso a cursos, assistência financeira e esportes.
bec e Nova Scotia) elaboraram leis educacionais Esse mesmo título também proíbe discriminação no
abrangentes. Três províncias contam com políticas corpo de funcionários das escolas, como professo-
públicas de treinamento anti-sexista para professo- res, administradores e conselheiros. O governo fe-
res, mas este é voluntário. Dados sobre conquistas deral também passou o Ato de Eqüidade Educacio-
políticas públicas indicam que poucas províncias nal para as Mulheres (WEEA), aprovado em 1974,
se dedicaram a mudanças no programa escolar. A o qual financia governos estaduais, centros de pes-
maior parcela de progresso realizou-se em termos quisa e pesquisadores individuais para desenvolver,
de abertura de cursos de economia industrial e do- avaliar e disseminar currículos e livros didáticos,
méstica a meninos e meninas, na remoção de este- fornece serviços de treinamento prévios e no inte-
reótipos sexuais dos livros didáticos; atualmente, no rior das escolas, aperfeiçoa a orientação de carrei-
mundo francófono, considera-se a província de ras e promove a qualidade de educação para mu-
Quebec como sendo a líder na remoção do sexis- lheres. Uma outra legislação de importância, o Vo-
mo na linguagem. Seis províncias modificaram seus cacional Education Act5 se dirige à educação vo-
programas de educação superior a fim de permitir cacional e técnica, financia esforços para eliminar
que mulheres voltassem a estudar através de edu- preconceitos sexuais e discriminação, além de for-
cação à distância e programas universitários de pe- necer programas de aconselhamento para encora-
ríodo parcial ou recebendo créditos por experiên- jar a participação de mulheres em ocupações femi-
cias relevantes. Apenas duas províncias estabelece- ninas não tradicionais.
ram ajuda financeira para algumas categorias de O Ato de Educação Vocacional presta serviço
mulheres. Na educação, apenas algumas províncias a estudantes secundários e pós-graduados no siste-
direcionam-se para eliminar estereótipos sexuais, ma de educação vocacional e recebeu recursos subs-
mas a maioria delas oferece serviços de creche em tanciais para seus programas relativos a gênero. Num
instituições acima do nível secundário. Os estudos nítido contraste, o Título IX e a WEEA — que pres-
disponíveis sobre as políticas públicas canadenses tam serviço à grande maioria dos estudantes — re-
de gênero não fazem referência a recursos, mas pa- ceberam fundos muito limitados para sua implemen-
rece claro que houve uma alocação dos mesmos, tação. Durante as administrações Reagan e Bush, os
pelo menos para cursos de treinamento de profes- tribunais redefiniram a intenção da legislação refe-
sores e ajuda financeira para mulheres (Baudoux, rente ao Título IX e o reduziram consideravelmen-
1994). te, ao interpretar que sua autoridade se aplicava ape-
Estados Unidos — nas a programas e não a toda instituição ou univer-
Este país aprovou políticas públicas relaciona- sidade recebendo fundos federais. A WEEA deveria
das a gênero em âmbito federal e estadual. Como receber 49 milhões de dólares por ano. Em seu ponto
no caso do Canadá, os EUA apresentam uma con-
siderável variação quando se trata dos estados, com
treze deles contando com leis que proíbem a discri- 5 Os atos sobre educação vocacional foram promul-
minação em todos os níveis de educação e 31 ape- gados três vezes. Inicialmente conhecidos como Ato Voca-
nas nos programas de educação primária e secun- cional Educacional, a versão atual é chamada Carl Perkins
dária. Aqui, enfocarei apenas políticas públicas na Vocational and Applied Technology Act of 1990.

Revista Brasileira de Educação 35


Nelly P. Stromquist

máximo, recebeu dez milhões e, a partir daí, a quan- Políticas públicas educacionais de gênero
tia diminuiu para apenas um milhão por ano até che- nos países em desenvolvimento
gar a meros quinhentos mil em 1993 (Stromquist, Países em desenvolvimento apresentam sérios
1993a). Sob o governo Reagan, o Estado se mobili- problemas quanto à participação de mulheres na
zou, direta e indiretamente, contra o feminismo e escola, mesmo nos níveis básicos de educação. Na
outras causas progressistas e então as feministas pre- América Latina, o acesso de meninas e mulheres à
cisaram usar o Estado não mais para promover novas educação está alcançando paridade em termos de
conquistas e sim para defender as previamente al- coeficientes brutos, mas a disparidade na instrução
cançadas (Nelson e Johnson, 1994). Em 1994, du- primária entre meninos e meninas atinge 33 pon-
rante os anos de tendência mais socializante da ad- tos percentuais na África e 18 pontos percentuais
ministração Clinton, a WEEA foi novamente auto- na Ásia. No nível secundário, as disparidades atin-
rizada a receber cinco milhões de dólares por ano. gem uma diferença de 37 e 26 pontos percentuais
Essa soma, para cobrir um país com quinze mil dis- para África e Ásia, respectivamente (ONU, 1991,
tritos escolares locais, três mil e quinhentas faculda- p. 50-53). No Brasil, como em muitos outros paí-
des e universidades e nove mil instituições de edu- ses da América Latina, existe uma relativa parida-
cação pós-graduada, representa um investimento de de entre meninos e meninas, na educação. Curio-
181 dólares por instituição. samente, no Brasil, as mulheres têm um percentual
O caráter das políticas públicas de gênero pro- de matrículas ligeiramente mais alto que o dos ho-
mulgadas nos três países desenvolvidos discutidos mens nos níveis secundários e terciários de instru-
acima proporciona o seguinte panorama: no Rei- ção. Muitas dessas mulheres se matriculam em es-
no Unido, as políticas públicas educacionais de gê- colas para professoras e outras continuam sua edu-
nero são em sua maioria de coerção e, em menor cação como um meio de ter condições de reduzir a
amplitude, de construção e de apoio. No Canadá, discriminação de gênero na força de trabalho. Se-
elas cobrem toda a gama: são de coerção, apoio e gundo o ECLAC (1995), a discriminação salarial na
construção. Os Estados Unidos se dedicam mais às região é equivalente a cerca de quatro anos de edu-
de coerção e, em menor escala, às de construção. cação formal (isto é, a mulher deve ter quatro anos
Com exceção do Ato Vocacional, o qual autoriza de educação a mais do que o homem para ganhar
a indicação de funcionários em escala distrital para o mesmo salário).
monitorar e promover a implementação dessa legis- As políticas públicas educacionais do Sri Lan-
lação, os Estados Unidos não tem aprovado políti- ka e da Argentina apresentam interesse porque esses
cas públicas de apoio. países são dos mais adiantados, no Terceiro Mun-
Deveria se notar que nenhum desses três paí- do, em termos de educação.
ses, nem outros nos quais se encontram disponíveis Sri Lanka —
estudos de política pública de gênero (Sutherland Este país evidenciou admissões na educação
e Baudoux, 1994), estão engajados em uma discri- primária e secundária bastante próximas a uma pa-
minação positiva, uma política pública que dê pre- ridade de gênero desde o início da década de ses-
ferência a membros de um grupo, para educação, senta. Orientando-se por essa paridade, o governo
empregos ou promoção, sobre pessoas com iguais concluiu não serem necessárias políticas públicas
ou melhores qualificações. No máximo, os Estados específicas de gênero para assegurar o acesso de
se dedicaram a ação positiva ou ação afirmativa, meninas e mulheres à educação, passando a consi-
isto é, o fato dos empregadores considerarem a pro- derar a implementação de políticas públicas neutras
moção de oportunidades iguais a mulheres e mino- em relação a gênero. O Estado admite dificuldades
rias étnicas (Carter, 1988). de acesso de meninas à educação primária nas po-
pulações muçulmanas na Província Leste e entre os

36 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

trabalhadores das plantações de chá de origem sul- mulher na família, mas também na história, na eco-
indiana. O Estado nota que os meninos abandonam nomia, na política e na sociedade; conduzindo pro-
a escola mais do que as meninas, em especial no jetos de pesquisa a fim de obter um conhecimento
nível secundário o que, presumivelmente, os torna amplo, sistemático e permanente das condições das
mais desfavorecidos do que as meninas. Os livros mulheres na educação e criando um banco de da-
didáticos não foram modificados, embora pesqui- dos sobre os problemas enfrentados pelas mulhe-
sas tenham detectado estereótipos sexuais nos mes- res na esfera educacional (Ministerio de Cultura y
mos. O governo do Sri Lanka também reconhece Educación, 1992). O PRIOM implementou seu pro-
que as mulheres podem ser admitidas em apenas grama em vinte províncias. Também estabeleceu
uma das três faculdades de agricultura do país e, ligações com as Unidades de Mulheres nos gover-
nessa única faculdade que lhes permite o ingresso, nos das províncias, com as universidades e com as
elas representam apenas 20% do total das matrí- ONGs femininas. Em 1995, exatamente quando
culas. Também nota que 75% das mulheres nos co- o PRIOM se encaminhava para integrar o novo cur-
légios técnicos são admitidas em cursos comerciais rículo de gênero nos esforços em andamento para
e as mulheres em cursos vocacionais são admitidas uma melhoria dos currículos nacionais em outros
em aulas de secretariado e costura. Como o Estado aspectos, a Igreja Católica da Argentina atacou
segue uma política pública neutra em relação a gê- seu trabalho, acusando a coordenadora do PRIOM
nero, não se destinam fundos para direcionar esfor- de estar tentando destruir a família e introduzir a
ços para problemas de gênero (Jayaweera, 1994). homossexualidade nas escolas. Um dos motivos
Incidentalmente, o caso do Sri Lanka é muito seme- principais da oposição da Igreja — à qual o gover-
lhante ao da Hungria em seus dias de socialismo. no respondeu com o fechamento do programa —
Por terem alcançado paridade na instrução primária era que o trabalho do PRIOM estava comprometi-
e secundária, declarou-se que as mulheres húngaras do com as questões de educação sexual e o contro-
não enfrentavam problemas na área de educação. le das mulheres sobre seus próprios corpos.
Argentina —
Como parte do retorno da Argentina ao regi- Políticas públicas de gênero na
me democrático, o governo mostrou-se muito coo- educação em âmbito internacional
perativo para com as exigências da sociedade civil.
Em 1991, criou um Programa Nacional para a Pro- As políticas públicas educacionais que afetam
moção de Oportunidade Igual para Mulheres na as mulheres são moldadas através de uma grande
Área Educacional (PRIOM), estabelecido median- variedade de meios: as prioridades institucionais dos
te um acordo entre o Ministério de Educação e organismos bilaterais e multilaterais, as conferên-
Cultura e o Conselho Nacional das Mulheres. Este cias internacionais tratando de problemas de desen-
programa identificou e implementou uma agenda volvimento (nas quais a educação costumeiramente
abrangente: aumentando a consciência de gênero e surge como um fator importante) e as diversas con-
fornecendo treinamento para professores, estudan- ferências internacionais sobre a mulher (já se reali-
tes e equipe administrativa; fornecendo programas zaram quatro destas e em todas a educação foi um
especiais de todos os níveis e modelos a fim de me- subtema persistente).
lhorar o potencial educacional das mulheres; for-
necendo orientação vocacional, profissional e edu- Financiamento internacional de
cacional para incentivar a participação e o desem- organismos bilaterais e multilaterais
penho das mulheres na vida política, profissional e Ao se discutir políticas públicas educacionais
social; introduzindo temas femininos nos livros di- nos países em desenvolvimento (e de maneira cres-
dáticos a fim de descrever não apenas o papel da cente também políticas públicas para outros servi-

Revista Brasileira de Educação 37


Nelly P. Stromquist

ços sociais), é necessário fazer referência à ajuda tratação de mais mulheres como assistentes e pro-
externa. Nestes dias de retração econômica em fessoras a fim de encorajar os pais a matricularem
muitos dos países desenvolvidos, a ajuda interna- suas filhas (cuja sexualidade passa a não correr pe-
cional para o desenvolvimento provê o meio cru- rigo). Apenas em um punhado de casos, os livros
cial para se engajar em outros esforços além dos didáticos foram revisados sob o enfoque de este-
que suprem a educação regular. Nos países mais reótipos sexuais e corrigidos de forma a eliminá-los.
pobres, a ajuda internacional é necessária até para O conteúdo anti-sexista em livros e em atitudes ra-
a expansão das escolas. Existem dois conjuntos ramente foi incentivado (Stromquist, 1994). No ge-
principais de atores fornecendo essa ajuda externa: ral, esses esforços se acomodam ao patriarcado em
as organizações bilaterais e as multilaterais — es- vez de desafiá-lo. É importante dizer que esses es-
tas últimas são essencialmente as que pertencem ao forços não foram codificados como políticas públi-
sistema da ONU. cas nacionais, embora representem as medidas que
Organismos de desenvolvimento bilateral re- mais se aproximam da existência de uma política
presentam seu próprio Estado doador. As multila- pública. Na verdade, como esses projetos são, fre-
terais — essencialmente as da família da ONU — qüentemente, os únicos voltados para problemas de
refletem também seus Estados membros.6 O papel gênero, alguns observadores confundem projetos
mediador dos membros das equipes desses organis- pontuais com política pública nacional (ver, por
mos pode fornecer uma definição maior quanto à exemplo, o recente trabalho de King e Hill, 1993).
natureza dos problemas internos do setor educa- Existem algumas ocorrências — certamente
cional e resultam em maior ou menor apoio para não muitas — de projetos promovendo o aumento
programas e projetos de gênero. O poder de ação de poder ou a autonomia de mulheres adultas. Es-
desses organismos na introdução de esforços vol- tes projetos, com raras exceções, estão sendo con-
tados para gênero está relacionado ao tamanho de duzidos por ONGs de mulheres (Stromquist, 1994).
suas contribuições e a outras formas de apoio po-
lítico doado aos países receptores. Conferências internacionais
No presente momento, os países desenvolvi- Através da realização de conferências interna-
dos evidenciam muito interesse em expandir o aces- cionais são criadas importantes formas de apoio
so das meninas às escolas primárias. Com esse ob- para o trabalho em problemas de gênero. Além dis-
jetivo, um certo número de países está — com aju- so, essas conferências atingem tanto países desen-
da externa — envolvendo-se em esforços como a volvidos como em desenvolvimento. As várias con-
construção de escolas mais próximas às moradias ferências mundiais da ONU sobre a mulher (Mé-
dos estudantes, a eliminação ou redução de men- xico, 1975; Copenhague, 1980; Nairóbi, 1985; Bei-
salidades escolares para meninas, eliminação da ne- jing, 1995) serviram para definir mais claramente
cessidade de uniforme (que prejudica as famílias a natureza e a gama de problemas que afetam as
mais pobres), a construção de mais escolas com re- mulheres e propiciaram a elaboração de programas
sidência para adolescentes do sexo feminino e a con- e políticas públicas sensíveis a gênero. Durante es-
sas conferências mundiais sobre a mulher, às quais
compareceram funcionários do Estado, as mulhe-
res das ONGs realizaram conferências paralelas que
6 O filósofo Stephen Toulmin chama a ONU de “cartel
denominaram de “contra-encontros”, nas mesmas
de governos de Estado” (1995, p. 4), uma vigorosa descri-
cidades, e apresentaram suas deliberações e reco-
ção que acentua o fato de certos Estados influenciarem a
política pública não apenas na área doméstica como tam- mendações a seus representantes junto ao Estado,
bém no exterior, a despeito de esforços retóricos de mini- freqüentemente com sucesso considerável em ter-
mizar a “intervenção” em outros países. mos de conseguir que seus pontos de vista fossem

38 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

incorporados nos documentos oficiais finais. Na entre as nações. Um dos problemas em comum é a
opinião da historiadora Francisca Miller, o legado identificação da violência doméstica como um pro-
mais importante da Década da ONU para a Mu- blema social amplamente difundido que afeta as
lher foi o fato de os partidos políticos e governos mulheres.
em busca de legitimidade agora considerarem van- Desde o Ano Internacional da Mulher, em
tajoso abordar problemas da mulher (1981, p. 188). 1975, os governos assumiram compromissos a fim
Um dos documentos mais poderosos da ONU, de garantir igualdade de acesso a todos os mode-
a Convenção sobre a Eliminação de Todas as For- los e níveis de educação e a reformular o conteú-
mas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), do e a prática da educação de forma a torná-lo
em vigor desde 1981 e ratificado por 148 Estados mais sensível ao gênero. Pode-se discernir algumas
em julho de 1995 — o Brasil é um dos países que conquistas quanto ao acesso à instrução, mas não
retificou o CEDAW —, é um acordo com obriga- está claro até que ponto estas não passam de sim-
ções legalizadas e representa a mais forte acusação ples produtos de uma propensão do sistema edu-
contra o domínio patriarcal, ao investir contra vio- cacional em crescer com o tempo. Muitas das re-
lência conjugal, casamentos precoces e discrimi- comendações educacionais (uma forma de políti-
nação sexual na educação e no trabalho. Embora ca pública) das diversas conferências mundiais so-
muitos países tenham expressado suas reservas so- bre a mulher continuam não atendidas, mas esses
bre certos artigos dessa Convenção, existe uma problemas estão sendo definidos, de forma cres-
pressão mundial crescente para a implementação da cente, em termos muito mais precisos e nítidos,
mesma. A Conferência de Direitos Humanos em assim como discutidos por grupos sempre maiores
Viena (1993) agiu como uma importante força de de formadores de opinião.
pressão na renovação de ímpeto para a CEDAW e Embora tenha sempre existido o fenômeno de
conseguiu que os direitos da mulher fossem incluí- contágio social entre países, este se acelerou em vir-
dos entre os direitos humanos. As recentes confe- tude da criação formal de blocos econômicos. Em
rências por todo o mundo, como a de Meio Am- 1982, a Comissão Econômica Européia autorizou
biente e Desenvolvimento (Rio, 1992), População a formação de um Conselho para a Paridade entre
e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Desenvolvimento a Mulher e o Homem, a níveis nacionais. Tal polí-
Social (Copenhague, 1995) e a Quarta Conferên- tica pública levou a Itália e a Espanha a estabele-
cia sobre a Mulher (Beijing, 1995)7 foram de espe- cerem organismos desse tipo. O Tribunal de Justi-
cial importância para manter os problemas de gê- ça Europeu, criado para impor obediência ao Tra-
nero presentes nas agendas governamentais como tado de Roma, toma decisões que impõem obriga-
também para desenvolver laços de solidariedade ções aos estados membros. Seu tratamento de pro-
blemas como igualdade salarial, pensões e aposen-
7
tadoria teve repercussões na legislação de outros
Os vários esforços internacionais nas linhas de gê-
países europeus. A Corte Européia de Direitos Hu-
nero sempre foram iniciados por grupos de mulheres, geral-
mente mulheres nas redes de desenvolvimento (WID) den- manos, em Estrasburgo, vem abordando questões
tro das ONGs (Maguire, 1984). A Convenção para a Eli- de discriminação sexual e racial de imigrantes. As
minação de Todas as Formas de Discriminação recebeu um decisões desses organismos supranacionais têm (e
forte apoio após o encontro de 1975, no México, durante continuará tendo) efeitos indiretos na eqüidade de
o Ano Internacional da Mulher. As idéias contidas na con- gênero na educação.
venção se originaram de esforços da Comissão da Mulher
A conferência de Nairóbi, em 1985, encerrou
na Organização dos Estados da América desde 1920. A
Quarta Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995) a Década da ONU sobre a Mulher com um do-
incluiu, pela primeira vez, delegações de jovens, facilitan- cumento, Estratégias para o futuro (FLS), o qual
do assim a criação de uma nova geração de feministas. identifica áreas de ação em setores específicos tais

Revista Brasileira de Educação 39


Nelly P. Stromquist

como emprego, educação, saúde, agricultura e in- Motivos para diferenças entre políticas
dústria, para serem conduzidas pelos governos na- públicas nacionais e internacionais
cionais e organismos internacionais. Especifica-
mente na área de educação, o FLS apresenta mui- Políticas públicas supranacionais originárias
tas recomendações sobre acesso, livros didáticos, de blocos econômicos envolvem uma legislação, em
treinamento de professores, programas de alfabeti- sua maior parte, de coerção e, em menor escala, de
zação para mulheres, educação vocacional e acon- apoio. As recomendações aceitas em encontros in-
selhamento de carreira. Esse valioso conjunto de ternacionais propõem todos os três tipos de legis-
recomendações a ser implementado pelas nações lação, com esforços que vão de coercitivos a cons-
do mundo revela, dez anos depois, apenas um dé- trutivos. Já as políticas públicas nacionais tendem
bil teor de implementação. A maioria dos relató- a se concentrar em políticas públicas coercitivas ou,
rios feitos para avaliação do desempenho do país como tem sido denominadas “políticas públicas de
no FLS concentra-se em números relativos a ad- gênero neutras”.
missões nos três níveis de educação. Certamente, David (1981) comenta que, sob uma perspec-
cresceram as admissões, embora persista uma con- tiva feminista, as regras da política pública não po-
centração de gênero em certos campos de estudo. dem ser identificadas “sem compreender o motivo
Não fica claro até que ponto esse crescimento de dos contornos dos fenômenos envolvendo a criação
admissões é simplesmente uma manifestação da e a manutenção do gênero” (p. 116). Ela argumenta
inexorável expansão da instrução: à medida que os que a análise baseada em uma abordagem de eco-
pais recebem mais educação, querem mais educa- nomia política pública pode ser eficaz para forne-
ção para seus filhos. A conferência de Beijing, em cer explicações sobre políticas públicas de Estado.
1995, reiterou a recomendação do FLS em um Dentro dessa estrutura, caberia a pergunta: “Por
novo documento, Plataforma de ação. Este do- que as políticas públicas de gênero sugeridas em
cumento apresentou um conjunto de recomenda- escala internacional são abrangentes e portanto
ções mais completo e coeso, tornando mais rígidos mais enfocadas em uma mudança do sistema social
os mecanismos de aplicação e monitoria. Embora do que as políticas públicas nacionais?” Talvez a
identificasse unidades dentro da ONU e dos gover- explicação se encontre na ausência de uma obriga-
nos para servirem de mecanismos monitores, não ção legal contida nessas recomendações interna-
teve sucesso em estabelecer mínimos financeiros cionais. Ao endossar as diversas políticas públicas
para garantir a implementação. que são recomendadas, os Estados assumem a apa-
Apesar de tudo, as conferências internacionais rência de ser cooperativos e sensíveis ao gênero. No
têm um enorme valor como fórum público, com clube das nações, ganham importância por se mos-
muita participação e troca de pontos de vista. Es- trarem progressistas; entre seus próprios cidadãos,
ses fóruns internacionais atraem a atenção para a são vistos como democráticos e justos. O endosso
mulher e trazem a público um enfoque altamente de declarações de conferências internacionais não
visível sobre o trabalho dos Estados. Em geral, es- obriga os países a se empenharem em uma imple-
ses encontros terminam com as recomendações — mentação e portanto servem ao papel mais impor-
sejam elas consensuais ou duramente disputadas. tante, o de legitimação, em vez do papel corretivo.
Embora recomendações cujo acordo foi feito duran- Na área doméstica, os países se mostram mais
te conferências internacionais não possuam valor cautelosos. Embora estejam respondendo, de for-
legal — em oposição àquelas assinadas em conven- ma crescente, à pressão feminista ao aprovar uma
ções internacionais — essas declarações oficiais po- legislação de eqüidade de gênero, as evidências su-
dem ser usadas como pontos de apoio. gerem certas características comuns nessas leis.
Freqüentemente, a legislação apresenta parâmetros

40 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

estreitos, concentrando-se mais na proibição de quais exigem recursos estatais regulares e podem,
comportamentos indesejáveis do que no desenvol- eventualmente, ameaçar o acesso de alguma das ou-
vimento de atitudes e de conhecimento significati- tras instituições do Estado a esses recursos. Revi-
vos para a construção de uma ordem social alter- sando a legislação de gênero nos países nórdicos,
nativa. As poucas medidas legislativas visando ob- Eduards et al. (1985) nota que a maioria das leis de
jetivos construtivos tendem a oferecer recursos li- gênero promulgadas na região são neutras quanto
mitados, decididamente desproporcionais à neces- ao gênero, formas passivas de legislação que ofere-
sidade global. Realizaram-se inúmeros esforços para cem as mesmas oportunidades aos dois sexos, mas
garantir uma legislação de apoio através da criação evitam conflito. A análise de Gelb e Palley sobre cinco
de unidades de mulheres ou organizações similares. iniciativas relativas a gênero nos Estados Unidos che-
Há necessidade de maiores estudos sobre os fundos gou à conclusão de que as leis tem sucesso quando
e a autoridade que essas leis possam proporcionar; a mulher se submete “às regras políticas do jogo”.
a evidência existente revela que tais unidades têm Eles apontam e descrevem quatro dessas normas:
sido, em geral, pouco beneficiadas em termos de 1. serem reconhecidas como legítimas;
pessoal, recursos e influência global. As exceções 2. enfocarem problemas emergentes;
são raras: entre elas está o Canadá, que estabeleceu 3. fornecerem informação e se concentrarem
um Ministro Responsável pela Posição da Mulher, na mobilização de aliados;
na esfera federal, e várias unidades de mulheres ope- 4. definirem a situação pela manipulação de
rando na esfera das províncias, além das unidades símbolos favoráveis à sua causa.
semelhantes existentes em países escandinavos.8 Esses autores descobriram que a legislação re-
Por que se tem um número maior de leis coer- lativa a gênero de menor sucesso nos Estados Uni-
citivas do que construtivas no âmbito nacional? Exis- dos — o Título IX — mesmo sendo meramente
tem vários motivos. Leis coercitivas são considera- coercitiva, criou problemas quando a oposição
velmente menos dispendiosas do que as dos dois ou- sentiu que o acesso das meninas aos esportes po-
tros tipos. Elas podem ser ou não seguidas de meca- deria resultar em políticas públicas de mudança de
nismos de execução e, se as unidades encarregadas papel, “os quais parecem produzir mudança no
desses mecanismos tiverem uma autoridade limita- papel feminino dependente de esposa, mãe e dona
da, a implementação das mesmas ficará seriamente de casa, contendo um potencial para maior liber-
enfraquecida. As leis também podem ser formuladas dade sexual e independência em variados contex-
de forma que a ação seja limitada. Segundo a obser- tos” (1982, p. 6). Um ponto semelhante foi ressal-
vação de Meehan e Sevenhuijsen sobre os atos de tado por Nelson (1984), o qual estudou o proble-
eqüidade de gênero aprovados no Reino Unido e nos ma de violência contra a criança nos Estados Uni-
Estados Unidos, essas leis individualizam a igualdade dos. Ela observou que, embora alguns aspectos re-
de oportunidades de modo a haver necessidade de lativos à violência contra a criança não apresentas-
uma interminável luta da mulher para que ocorram sem ameaças ao status quo, a exemplo as “leis de
até os mais insignificantes tipos de mudança. denúncia de assédio”, outras, por exemplo as que
As leis de apoio são ainda mais ameaçadoras autorizam “medidas de custódia protetora”, tra-
porque estabelecem organismos governamentais, os ziam todo o tipo de implicações e conexões com
problemas maiores como pobreza, racismo e pa-
triarcado. Em conseqüência disso, a legislação re-
8 O ministro federal é apoiado por um departamento
ferente à violência contra a criança que foi apro-
chamado Status of Women Canada, o qual se reporta dire-
tamente a ele. É interessante notar que essa posição minis- vada era muito limitada. Nelson atribui esses re-
terial existe desde 1971 e o SWC, desde 1976, precedendo sultados à existência de um Estado liberal, o qual
o movimento feminista. se predispõe a apoiar mudanças gradativas e não

Revista Brasileira de Educação 41


Nelly P. Stromquist

radicais. Ela também lançou um desafio às femi- dos casos, resultar apenas em sucessos limitados. Mas
nistas, declarando: a lei poderá ser um instrumento de valia para mudança
se for bem estruturada e aplicada, se for apoiada por
Elas podem apoiar mudanças incrementais, ali-
pressão política pública e suplementada por ação po-
mentando alguma esperança de sucesso, mas saben-
sitiva e por políticas públicas econômicas e sociais
do que seus esforços não serão proporcionais ao pro-
generalizadas que fortaleçam a posição da mulher.
blema. Ou podem apoiar uma mudança mais abran-
gente cujo momento nunca chegará. No Estado libe- Uma variedade de agentes sociais têm surgido
ral, o “bom” habitualmente triunfa sobre o “melhor”, em apoio do assuntos de gênero na sociedade em
pelo menos por algum tempo (p. 137). geral e na educação em particular. Entre eles se in-
cluem coalizões entre ONGs (domésticas e interna-
Leis construtivas na educação requerem trei-
cionais), como também atores individuais estrate-
namento para professores com orientação quanto
gicamente situados em instituições estatais (minis-
ao gênero,9 desenvolvimento de currículo e elabo-
térios e outros departamentos), organismos bilate-
ração de material curricular, livros didáticos novos
rais e multilateriais e universidades. Também tem
ou suplementares, disseminação do novo material
sido importantes fontes de apoio os elementos mas-
educacional e pesquisa para identificar novos pro-
culinos simpatizantes e em posições de liderança nos
blemas relativos à experiência de gênero na escola
organismos internacionais de desenvolvimento.
e na sociedade ou para avaliar o impacto da legis-
lação existente. É evidente que a legislação constru-
Feministas e ONGs
tiva requer consideráveis recursos financeiros. Num
nítido contraste, a legislação coercitiva permite que
As feministas têm utilizado dois canais para
o Estado não apenas se mostre simpático, moder-
promover mudanças educacionais: 1) pressionar o
no e cooperativo, mas também obtenha esses be-
Estado a fim de conseguir melhorias na educação
nefícios de percepção com um investimento muito
formal pública; 2) estabelecer e expandir ONGs
reduzido.
independentes, operadas por mulheres. Cada canal
apresenta possibilidades diferentes: o Estado é uma
Promotores de política
das instituições mais fortes na sociedade, sendo as-
pública de gênero
sim capaz de atingir um grande número de pessoas,
mas é relutante no engajar-se em ação substancial-
Carter (1988) observa que:
mente transformadora. As mulheres em ONGs ten-
as tentativas individuais de usar a lei sem a reta- dem a ser muito mais propensas à transformação,
guarda de uma organização adequada e num contex- mas seu trabalho é realizado em escala micropolítica
to político-econômico desfavorável poderá, no melhor e limitado em sua extensão geográfica e numérica.
PNUD (1993) observou que:

9Poucos professores consideram que seja tarefa sua Até o início dos anos sessenta, a maioria das in-
alterar a divisão de gênero. Esse fato não deveria causar tervenções das ONGs eram cegas quanto ao gênero,
surpresa uma vez que os professores, como o restante da como os demais organismos de desenvolvimento. Em-
população, foram socializados dentro de conceitos tradicio- bora houvesse um pequeno número e projetos e pro-
nais de feminilidade e masculinidade. Além do mais, desco- gramas interessados em apoiar grupos de mulheres de
briu-se que os estudantes do sexo masculino se opõem à
baixa renda, as necessidades específicas da mulher em
eqüidade de gênero nas salas de aula. Estudos sobre instru-
ção primária e secundária mostram que os meninos exigem programas gerais contra a pobreza eram freqüente-
mais tempo do professor do que as meninas (Carter, 1988; mente ignoradas (p. 96).
AAUW, 1992).

42 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

Mas em termos de ações transformadoras re- ticipação e luta (Safa, 1990; Stromquist, 1993b;
lacionadas a gênero, é aceito de forma generaliza- Radcliffe e Westwood, 1993; Schild, 1994).
da que as ONGs dirigidas por mulheres funcionem A Organização da Mulher para Meio Ambien-
como organismos chave para qualquer transforma- te e Desenvolvimento (WEDO), uma coalizão de
ção social feminista (Deere e León, 1987). Alguns ativistas e acadêmicas do movimento feminista, pro-
observadores das ações executadas por grupos de moveu uma reunião especial em dezembro de 1994,
mulheres coincidem ao avaliar seu trabalho como à qual compareceram 148 mulheres de cinqüenta
um esforço consciente para redefinir e reconstituir países. Como resultado das deliberações, a WEDO
os limites entre o público e o privado e entre as es- iniciou uma “campanha global das mulheres”, de
feras políticas e a pessoal. 180 dias, destinada a chamar atenção para assun-
Dentre as ONGs de mulheres, deve-se fazer tos de gênero e para desenvolver uma lista de obje-
menção especial aos grupos de mulheres profissio- tivos, estratégias e ações. Em seu preâmbulo, o do-
nais com elevado nível de acesso às instâncias de- cumento promulgado na reunião afirmava:
cisórias do Estado. Um desses grupos é o Fórum da
Nos anos finais do século vinte, o movimento
Mulher Africana em Assuntos e Educação (FAWE),
internacional da mulher encontra-se maior, com mais
uma organização de afiliados que reúne mulheres
atividades, mais abrangente e com objetivos mais am-
em ministérios de educação, vice-reitoras de univer-
plos, mais diversificado nas linhas demarcatórias de
sidade e outros cargos de alto escalão na formula-
cultura, classe, cor, etnia, idade, orientação sexual,
ção de políticas públicas de educação. Fundada em
situação econômica, ideologias, religiões e geografia
1992 como uma ONG internacional sem fins lucra-
do que jamais aconteceu antes na história.
tivos, a FAWE procura promover investimentos na
Também está mais criativa, mais analítica, mais
educação em geral e na educação de meninas em
enfocada na luta, com maiores conhecimentos sobre
particular.
a história e as realizações da mulher, mais experiente
É importante salientar algumas diferenças de
politicamente, mais bem treinada na parte de organi-
classe social entre os grupos de mulheres. Muitas
zação e com uma visão mais ampla quanto ao tipo de
ONGs de mulheres tendem a ser dirigidas por re-
futuro que nós desejamos para meninas e mulheres,
presentantes da classe média mas, por outro lado,
meninos e homens, crianças e para nossa vida nesse
existe uma ação significativa sendo executada por
planeta no próximo século (WEDO, 1994, p. 91).
pessoas de baixa renda em comunidades urbanas
pobres. Esses últimos grupos, envolvidos em movi- As propostas colocadas pela WEDO estão en-
mentos de bairro, têm lutado para obtenção de as- tre as mais incisivas e claras na arena internacional.
sistência econômica para moradia, alimentação, em- A WEDO colocou a Secretaria da ONU e todo o seu
pregos e educação para seus filhos. Esses esforços sistema como alvo de mudança. Procurou expandir
decorrem dos interesses e necessidades coletivas das o mandato da Comissão do Status da Mulher, rela-
mulheres e se direcionam basicamente às “necessi- tivo aos chamados “assuntos de gênero”, para o pa-
dades práticas” (Molyneux, 1985; Radcliffe e West- pel mais amplo de aplicar as perspectivas de gênero
wood, 1993; Moulin e Pereira, 1994). Embora es- a todos os itens da agenda da ONU. A WEDO tam-
sas mulheres pobres não tenham rejeitado seus pa- bém requereu um orçamento anual de 300-400 mi-
péis domésticos, elas os usaram como pivôs para lhões para o Fundo Unido de Desenvolvimento da
conseguir força e legitimidade às suas demandas ao Mulher (UNIFEM) e para o Instituto de Pesquisa e
Estado. Há evidências de que, em muitos casos, es- Treinamento para a Mulher (INSTRAM) — os quais
sas mulheres levaram suas preocupações domésti- funcionavam, juntos, com cerca de dezesseis milhões
cas à arena pública, redefinindo os significados que em 1995 — apoiando uma realocação de recursos
são associados à domesticidade a fim de incluir par- (WEDO, 1994, p. 9) e requerendo mais acadêmicos

Revista Brasileira de Educação 43


Nelly P. Stromquist

e especialistas de ONGs para trabalharem com a Homens líderes em organizações de


Divisão da ONU para Promoção da Mulher. As par- desenvolvimento internacionais
ticipantes da WEDO estão convencidas de que al-
terações nas linhas de gênero exigirão “acesso maior Staudt (1985) afirma que as políticas públicas
e continuado aos recursos humanos e financeiros que de gênero são redistributivas porque, em última
o Banco Mundial e o PNUD possuem, a fim de as- análise, buscam realocar recursos entre homens e
segurar que seja alcançada e mantida a eqüidade de mulheres. As políticas públicas de gênero implicam
gênero (WEDO, 1994, p. 9). numa alteração profunda de valores e ideologias,
Ao examinar o relatório da WEDO, torna-se não apenas entre os receptores, mas também entre
evidente que existe um estado de consciência polí- o pessoal do organismo provedor.10 Nos últimos
tica de alto nível entre as participantes do movi- dez anos, os organismos internacionais de desen-
mento. Uma indicação desse estado é sua relutân- volvimento se tornaram mais sensíveis aos interes-
cia em apoiar um “enfoque em áreas específicas de ses da mulher, criando unidades de mulheres em
necessidades como educação ou emprego para me- suas organizações, subsidiando pesquisas impor-
ninas”. Elas temem que isso resulte em “isolar tais tantes e estabelecendo projetos melhores e mais
necessidades do conjunto de direitos que estabele- sensíveis ao gênero (Stromquist, 1994). A despeito
cerão o direito das mulheres aos serviços e progra- desse progresso significativo, a maioria dos profis-
mas”. A não visualização dos direitos é crítica para sionais em um bom número de organismos bilate-
o avanço e o fortalecimento da mulher (WEDO, rais e internacionais não se mostra interessado em
1994, p. 11). promover projetos que beneficiarão a mulher em
Feministas de nível acadêmico — incluindo-se especial. Devido a essas condições, a defesa dos lí-
homens nesta área — também desempenharam um deres dos organismos internacionais (que são prin-
papel significativo. Particularmente os acadêmicos cipalmente homens), têm sido uma base importan-
do Reino Unido fizeram um exame cuidadoso da te para mudança nesses próprios departamentos.
política pública governamental com relação ao gê-
nero. Sua análise foi incisiva e eles argumentaram
que a ausência de intervenção nos conflitos sexuais
10 Diversos homens em posições de liderança nas or-
ou raciais na instrução constitui um “ato político
ganizações internacionais expressaram posições que foram
significativo a favor da ordem de gênero em curso”
de amplo apoio para assuntos de gênero. Entre esses se in-
(Arnot, 1993). Nas universidades de todo o mun- clui Lawrence Summers que, enquanto economista chefe do
do, mas em especial nas dos países industrializados, Banco Mundial, produziu um artigo de grande influência e
têm surgido estudos sobre a mulher, propiciando muito citado, denominado “Investindo em Todas as Pes-
uma concepção de cultura e de conhecimentos mais soas” (1992). Um outro homem que apoia a causa da mu-
rica e mais diversificada. Avalia-se que, nos Esta- lher é Jan Pronk que, em setembro de 1990, sendo Minis-
tro do Exterior da Holanda, apresentou ao parlamento ho-
dos Unidos, existam mais de seiscentos programas
landês um trabalho denominado “Um Mundo de Diferen-
de estudos sobre a mulher. Embora não se possa ça”. Este documento endossa a autonomia como conceito
afirmar que esses programas tenham influenciado central para a melhoria das condições da mulher nos paí-
o restante das universidades, eles conseguiram le- ses em desenvolvimento (The Netherlands Ministry of Fo-
var um grande número de estudantes a adotar pon- reign Affairs, 1991). O status desses dois indivíduos, mais
tos de vista mais críticos quanto ao gênero na socie- o fato de serem homens, contribuiu para dar uma legiti-
midade substancial à noção de problemas de gênero. Note-
dade. É possível apenas conjeturar que as novas ge-
se que os trabalhos de posicionamento tanto de Lawrence
rações promoverão políticas públicas diferentes das quanto de Pronk buscaram subsídios nas contribuições fe-
realizadas no passado. ministas de sua equipe (no caso do Banco Mundial) e aca-
dêmicas (no caso da Holanda).

44 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

Mulheres em organismos ciada entre educadores progressistas e feministas


internacionais de desenvolvimento do que entre as feministas de outras disciplinas.
e organizações acadêmicas Como um todo, o feminismo ainda não dedica
atenção suficiente ao papel ideológico do Estado e
As organizações de mulheres têm desafiado tende a se concentrar em assuntos relativos a tra-
não apenas a agenda da política pública tradicio- balho (público e privado) e a outros problemas
nal, mas também o modo de fazer política tradi- tangíveis, tais como assistência à criança, saúde e
cional. Essas organizações mostraram a importân- violência doméstica.
cia da vida cotidiana (Fisher, 1993) e colocaram o
treinamento e a educação como uma prioridade Conclusões
para ajudar a mulher no que concerne a sua falta
de experiência política. Embora as mulheres te- As políticas públicas governamentais predomi-
nham se manifestado com reclamações quanto a nantes — na educação e em outros campos sociais
ações de transformação externas ao Estado (atra- — não visam promover um processo que altere as
vés de sua participação em ONGs), também foram estruturas de poder. Políticas públicas de coerção
tomadas posições importantes dentro do mesmo. facilitam a distribuição mais do que a redistribuição
Organismos bilaterais contam com mais especialis- dos bens sociais porque, embora aumentem a repre-
tas em gênero do que há dez anos atrás e, em mui- sentação dos grupos oprimidos, não despertam ne-
tos casos, estabeleceram as Unidades de Mulheres les novas compreensões e visões sociais.
(Stromquist, 1994). O papel dessas mulheres têm Conforme documentadas neste trabalho, po-
sido essencial no auxílio da formação da política dem ser fornecidas várias hipóteses alternativas para
pública de gênero desses organismos, embora suas o padrão de comportamento do Estado:
contribuições ainda não tenham sido objeto de es- 1. Uma hipótese se estrutura em teorias rela-
tudos de pesquisa. tivas à adoção e implementação de inovações e trata
Ironicamente, embora as escolas e as salas de as políticas públicas de gênero como uma ocorrên-
aula sejam amplamente aceitas hoje em dia como cia de significativa inovação organizacional. Em-
locais em que se transmitem, impõem e produzem basada em uma síntese de pesquisa persuasiva so-
cultura e ideologia, as intervenções feministas para bre a implementação de inovações, Fullan (1994)
atingir o conteúdo e a experiência da instrução afirma que se as características da inovação forem
não foram tão intensas nem tiveram o sucesso de- imprecisas, ou se os governos tiverem um grande
sejado. A idéia anti-sexista, que não ataca apenas número de burocratas incompetentes, que não pos-
o sexismo e o racismo, mas também procura en- suam capacidades de implementar a inovação den-
corajar a criação de uma ordem social alternativa, tro de seu sistema ou não contem com o conheci-
com concepções modificadas de feminilidade e mento técnico para avaliar os custos da nova prá-
masculinidade, de diferença e de poder, ainda pre- tica, a inovação a ser tentada fracassará em ser im-
cisa ser exigida de formas mais sistemáticas e ma- plementada (ver também Deble, 1988; McDonnell
ciças. Atualmente, muitos observadores conside- e Elmore, 1987). Ao revisar as várias políticas pú-
ram que a educação seja “um terreno disputado blicas de gênero, parece haver a necessidade de uma
entre aqueles que querem utilizar escolas mantidas maior clareza concernente à natureza das inovações,
pelo Estado como um meio de disciplinar, contro- mas a disposição dos Estados em operar principal-
lar e excluir grupos subordinados, frente aos que mente através de políticas públicas de coerção e de
visualizam a educação como um meio de atingir a destinar poucos recursos para todos os tipos de po-
democracia” (Weiler, 1993, p. 223). Entretanto, líticas públicas de gênero sugere que esta hipótese
essa conscientização tem sido muito mais pronun- não se encaixe na realidade.

Revista Brasileira de Educação 45


Nelly P. Stromquist

2. Uma segunda hipótese, utilizando e amplian- ria aditiva” (Agarwal, 1994), as estruturas sociais
do os conceitos de pluralismo e políticas públicas de básicas são mantidas. Numa colocação contrária
interesse de grupo propostos por Dahl (1967), ar- à posição assumida por Gelb e Palley (1982) de
gumenta que os Estados não implementarão inova- que os Estados mudam lentamente porque são li-
ções se não encontrarem pressão suficiente para que berais e preferem se envolver em mudanças incre-
o façam. Sob esta perspectiva, poderia se dizer que mentais, poderia se argumentar que estes — libe-
as políticas públicas de gênero emergiram através da rais ou não — mudam lentamente porque são pa-
pressão dos movimentos de mulheres e de feminis- triarcais e não desejam alterar um status quo que
tas mas, embora estes atores tenham encontrado con- é benéfico a seus interesses. De qualquer forma,
dições de exercer pressão para a adoção de legisla- inúmeras políticas públicas de gênero poderão ser
ção, seus pontos de apoio subseqüentes em questões formuladas, mas a ênfase em sua aprovação será
de alocação de fundos e de monitoria da política pú- nitidamente simbólica. Como resultado, a imple-
blica de implantação foram muito fracos. Um seg- mentação de políticas públicas se enfraquece pela
mento social que poderia ter servido como um po- limitada alocação de fundos e pela redução desses
deroso promotor de políticas públicas de gênero na recursos com o tempo, pela redefinição das inten-
educação — os sindicatos de professores — mante- ções legais ou pela afirmação de que o “problema”
ve-se ausente nos esforços de criar uma educação de gênero foi solucionado.
sensível ao gênero por intermédio da arena da polí- Esta hipótese é vigorosamente validada pelas
tica pública. As poucas feministas nos governos e análises apresentadas acima. A educação oferece
aquelas dentro do movimento feminista exauriram retornos simbólicos substanciais para o Estado. Por
suas energias na fase de transformação da política sua própria natureza, a educação contém a promes-
pública em lei. Esta hipótese não encontra apoio nos sa de inclusão e de justiça distributiva. Conforme
casos nacionais que revisamos. observa Weiler, a educação fornece uma legitimação
3. Uma terceira hipótese recorre às teorias fe- compensatória porque enfatiza a importância dos
ministas sobre a construção do Estado como uma símbolos poderosos de legalidade, racionalidade e
entidade masculina e patriarcal (Pateman, 1988; democracia (1983). Nos Estados industriais mais
Connell, 1987) e no conceito de legitimidade pro- desenvolvidos, foi feita uma legislação específica
posto por Habermas (1975). De acordo com essa sobre as condições da educação da mulher; entre-
hipótese, o Estado não considera prioritários os tanto, os aspectos principais de gênero ficaram cir-
problemas de gênero porque eles ameaçam tanto cunscritos à baixa representação da mulher em car-
o status quo quanto sua própria hegemonia. Os reiras não tradicionais. Mas, como Yates aponta de
Estados procuram satisfazer, em primeiro lugar, as maneira incisiva (1993), a maioria das mulheres
necessidades da economia e posteriormente as que trabalha no setor de serviços, um padrão que con-
são uma conseqüência da ideologia patriarcal. En- tinua a se realizar sem interrupções. Nos países em
tretanto, por existir, no momento, uma crise de le- desenvolvimento, a agenda política pública foi de-
gitimidade — com Estados industrializados sendo finida em termos de acesso à instrução, dessa for-
contestados e criticados ao mesmo tempo e de for- ma deferindo os objetivos mais cruciais de transfor-
ma crescente — eles precisam se envolver em ações mação social. Com poucas exceções — principal-
simbólicas, democráticas mas relativamente inó- mente em países com considerável participação das
cuas, a fim de demonstrar sua boa vontade em res- mulheres na força de trabalho — a legislação sobre
ponder a todos os cidadãos (ver também Edleman, a eqüidade de gênero foi acompanhada por quan-
1972). Como a maioria das políticas públicas de tias mínimas de recursos financeiros. Entretanto, os
gênero não questionam relações entre mulher e esforços desenvolvidos pelas mulheres foram deci-
homem, mas tratam o gênero como uma “catego- sivos para a introdução de uma nova agenda social

46 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

e para considerar o Estado publicamente responsá-


NELLY P. STROMQUIST é professora de desenvol-
vel pela resposta aos assuntos de gênero. O terre-
vimento internacional da educação na University of Southern
no simbólico é um terreno em que operam tanto as California (Los Angeles). Dedica-se a pesquisa que trata de
feministas quanto o Estado. questões de gênero, eqüidade política e educação de adul-
Um corolário desta hipótese é que políticas tos em países em desenvolvimento. Seu livro mais recente é
públicas controvertidas ou com pouco apoio serão Literacy for Citizenship: Gender and Grassroots Dynamics
menos suscetíveis às condições de contingência do in Brazil (Suny Press, no prelo). Organizou também recen-
temente um volume sobre Gender Dimensions in Education
que outras políticas públicas. O motivo para essa
in Latin America (Organization of American States, 1996).
trajetória relativa e previsível é que as políticas pú-
blicas controvertidas são as que tendem a afetar
valores e normas arraigadas na sociedade. Sendo
assim, a oposição a elas será mais ampla e com pos- Referências bibliográficas
sibilidades de vir à tona em muitos pontos; além
AMERICAN ASSOCIATION OF UNIVERSITY WOMEN,
disso, os aspectos regulatórios dos comportamen-
(1992). How schools shortchange girls. Washington.
tos de Estado tornam essas políticas públicas pre-
ARGAWAL, Bina, (1994). Gender and command over pro-
visíveis. Conforme observa Harding, em sociedades
perty: a critical gap in economic analisys and policy in
com indicações de raça, etnia, classe, gênero, sexua-
South Asia. World Development, v. 22, nº 10, p. 1455-
lidade e outros indicadores, as atividades dos que 1478, Oxford.
estão no controle “não só organizam como também
ARNOT, Madeleine, (1993). A crisis in patriarchy?: British
colocam os limites no que as pessoas que exercem feminist educational politics and state regulation of
tais atividades podem compreender sobre si mesmas gender. In: ARNOT, Madeleine, WEILER, Katherine
e sobre o mundo ao seu redor” (Harding, 1993, p. (orgs.). Feminism and social justice in education: inter-
54). Embora a forma e o momento dessa oposição nacional perpectives. Londres: The Falmer Press.
possam variar, a constante será a tendência de der- BAUDOUX, Claudine, (1994). Politiques educatives et
rotar a intervenção. droits des femmes au Canada. Les cahiers du LABRAPS,
Para concluir, deveria ser sublinhado que as v. 13, p. 95-138, Quebec.

feministas precisam aprender a ver as escolas como CARTER, April, (1988). The politics of women’s rights.
parte do Estado em vez de parte da sociedade civil. Londres: Longman.

As escolas representam muito mais o poder orga- CONNEL, Robert, (1987). Gender and power. Stanford:
nizado da sociedade do que as percepções e dese- Stanford University Press.

jos de grupos generalizados. Esta posição é crucial. __________, (1994). The state, gender and sexual politics:
Deste ponto privilegiado, deveria se perguntar: sob theory and appraisal. In: RADTKE, Lorraine, STAM,
Henderikus (orgs.). Power/ gender: social relations in
que circunstâncias a política pública do Estado en-
theory and pratice. Londres: Sage.
corajará a organização das mulheres a formar or-
DAHL, Robert, (1967). Pluralist democracy in the United
ganizações autônomas? Isto talvez não venha a
States: conflict and consent. Chicago: Rand McNally.
ocorrer num futuro próximo, o que não deve deter
DAVID, Miriam, (1981). Social policy and education: to-
as iniciativas das feministas. Por outro lado, as fe-
wards a political economy of schooling and sexual di-
ministas deveriam se acautelar com relação a polí- visions. British Journal of Sociology of Education, v. 2,
ticas públicas que, por adaptar a mulher ao status nº 1, p. 115-127, Oxfordshire.
quo, servirão para reforçar as relações patriarcais DEBLÉ, Isabelle, (1988). Reflections on a methodology for
e a divisão sexual de trabalho. integrating women’s concerns. In: YOUNG, Kate, (org.).
Women and economic development. Paris: UNESCO/
Berg Publishers.

Revista Brasileira de Educação 47


Nelly P. Stromquist

DEEM, Rosemary, (no prelo). Feminist interventions in JAYAWEERA, Swarna, (1994). National policies for the
schooling: 1975-1990. In: READER, D., RAFFARSI, education of girls and women in Sri Lanka. Les cahiers
A. (orgs.). Radical education. Londres: Lawrence and du LABRAPS, v. 13, p. 299-235, Quebec.
Wishat. KELLY, Gail, (1988). Liberating women’s education from
DEERE, Diana, LEÓN, Magdalena (orgs.), (1987). Rural development: a critique of the women in development
women and state policy: feminist perspectives in Latin literature. Buffalo: State University of New York. Mimeo.
American agricultural development. Boulder Westview KING, Elizabeth, HILL, Anne. (orgs.), (1993). Women’s
Press. education in developing countries: barriers, benefits and
EDLEMAN, Murray, (1971). The symbolic uses of politics. policies. Baltimore/Londres: The John Hopkins Press/
Urbana: University of Illinois Press. World Bank.
EDUARDS, Maud et al., (1985). Equality: how equal public LEICHTER, Howard, (1979). A comparative approach to
equity policies in the Nordic countries. In: HAAVIO- policy analysis. Cambridge: Cambridge University Press.
MANILA, Elina et al., (orgs.). Unfinished democracy: LES CAHIERS DU LABRAPS, (1994). Femmes et education:
women in Nordic politics. Oxford: Pergamon Press. politiques nationales et variations internationales, v. 13.
FEIJÓO, Maria del Carmen (org.), (1993). Tiempo y espa- Quebec: University of Laval.
cio: las luchas sociales de las mujeres latinoamericanas. MAGUIRE, Patricia, (1984). Women in development. Am-
Buenos Aires: Comision Latinoamericana de Ciencias herst: University of Massachusetts.
Sociales.
McDONNELL, Loraine, ELMORE, Richard, (1987). Get-
FEINER, Susan, ROBERTS, Bruce, (1990). Hidden by the ting the job done: alternative policy instruments. Edu-
invisible hand: neoclassical economic theory and text- cational evaluation and policy analisys, v. 9, nº 2, p. 133-
book treatment of race and gender. Gender and Society, 153, Washington.
v. 4, nº 2, p. 159-181.
MEEHAN, Elizabeth, SEVENHUIJSEN, Selma, (1991).
FISHER, Jo, (1993). Out of the shadows: women, resistance Equality politics and gender. Londres: Sage.
and politics in South America. Londres: Latin American
Bureau. MILLER, Francisca, (1991). Latin American women and the
search for social justice. Hanover/Londres: University
FULLAN, Michael, (1994). Implementation of inovations. Press of New England.
In: TORSTEN, Husen, POSTLETHWAITE, Neville
(orgs.). The international enciclopedia of education. 2ª MILLET, Kate, (1972). Sexual politics. Londres: Abacus.
ed.. Kidlington: Elsevier Science. MINISTÉRIO DE CULTURA Y EDUCACIÓN, (1992).
GELB, Joyce, PALLEY, Marian, (1982). Women and public Programa nacional de promoción de la igualdad de opor-
policies. Princeton: Princeton University Press. tunidades para la mujer en el area educativa. Buenos
Aires.
HABERMAS, Jürgen, (1975). Legitimation crisis. Boston:
Beacon Press. MOLINEUX, Kate, (1985). Mobilization without eman-
cipation?: women’s interests, state and revolution in Ni-
HALL, Peter, (1995). The consequences of qualitative ana- caragua. Feminist Studies, v. 11, nº 2, p. 227-254, Mary-
lisys for sociological theory: beyond the microlevel. The land.
Sociological Quaterly, v. 36, nº 2, p. 397-423, Carbondale.
MOULIN, Nelly, PEREIRA, Isabel, (1994). Neighbourhood
__________, (work in progress). The social organization of Associations and the fight for public schooling in Rio de
the policy process: linking intentions, actions and levels. Janeiro State. In: STROMQUIST, Nelly P. (org.). Edu-
Columbia: University of Missoury. cation in urban areas: cross-national dimensions. West-
HARDING, Sandra, (1993). Rethinking standpoint epis- port: Praeger.
temology: what is strong objectivity? In: ALCOFF, Lin- NELSON, Barbara, (1984). Making an issue of child abu-
da, POTTER, E. (orgs.). Feminist epistemologies. Nova se: political agenda setting for social problems. Chicago:
York: Routledge. The University of Chicago Press.
HARMAN, Grant, (1984). Conceptual and theoretical is- ONU, (1985). The Nairobi forward-looking strategies for
sues. In: HOUGH, J. H. (org.). Educational policy: an the advancement of women. Nova York.
international survey. Londres: Croom Helm.

48 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero

__________, (1991). The world’s women 1970-1990: trends TOULMIN, Stephen, (1995). Wither the nation-state?
and statistics. Nova York. CMTS Newsletter, v. 1, nº 1.
__________, (1995). The world’s women 1995: trends and WALBY, Sylvia, (1990). Theorizing patriarchy. Oxford:
statistics. Nova York. Basil Blackwell.
OSLAK, Oscar, (1984). Políticas públicas y régimenes po- WEDO, (1994). Women’s global strategies meeting. Nova
líticos: reflexiones a partir de algunas experiencias la- York. Mimeo
tinoamericanas. Buenos Aires: Estudios CEDES. WEILER, Hans, (1983). West Germany: educational policy
PATEMAN, Carole, (1988). The sexual contract. Stanford: as compensatory legitimation. In: THOMAS, R. Murray
Stanford University Press. (org.). Politics and education: cases from eleven nations.
PNUD, (1993). Human development report 1993. Nova Oxford: Pergamon Press.
York. WEILER, Kathleen, (1993). In: ARNOT, Madeleine, WE-
RADCLIFFE, Sarah, WESTWOOD, Sallie (orgs.), (1993). LIER, Kathleen (orgs.). Feminism and social justice in
education: international perspectives. Londres: The Fal-
Viva: women and popular protest in Latin America. Nova
York: Routledge. mer Press.
YATES, Lyn, (1993). Feminism and australian state policy:
SAFA, Helen, (1994). Women’s social movements in Latin
America: gender and political learning in neighborhood some questions for the 1990s. In: ARNOT, Madeleine,
WEILER, Kathleen (orgs.). Feminism and social justice
organizations in Chile. Latin American Perspectives, v.
in education: international perspectives. Londres: The
21, nº 2, p. 59-80, Newbury Park.
Falmer Press. p. 167-185.
SENGUPTA, Arjun, (1993). Aid and development policy in
the 1990s. Helsinki: ONU World Institute for Develop- YOUNG, Kate, (org.), (1988). Women and economic de-
velopment. Paris: Unesco/Berg Publishers.
ment Economic Research.
STAUDT, Kathleen, (1985). Women, foreign assistance and
advocacy administration. Nova York: Praeger.
STROMQUIST, Nelly P., (1994). Gender and basic edu-
cation in internacional development cooperation. Nova
York: Unicef.
__________, (1993a). Sex-equity legislation in education: the
state as promoter of women’s rights. Review of Edu-
cational Research, v. 63, nº 4, p. 379-407, Washington.
__________, (1993b). The political experience of women:
linking micro- and macro-democracies. La Educacion, v.
37, nº 116, p. 341-559, Washington.
SUMMER, Lawrence, (1992). Investing in all the people.
Washington: The World Bank.
SUTHERLAND, Margaret, (1994). National policies for the
education of girls and women: the situation in the United
Kingdom. Les Cahiers du LABRAPS, v. 13, p. 397-430,
Quebec.
THE NETHERLANDS MINISTRY OF FOREIGN AF-
FAIRS, (1991). A world of difference. The Hague: Mi-
nistry of Foreign Affairs.
TOMES, Hilary, (1985). Women and education. In: ASH-
WORTH, Georgina, BONNERJEA, Lucy (orgs.). The
invisible decade: UK women and the UN decade 1976-
1985. Aldershot: Gower.

Revista Brasileira de Educação 49

You might also like