You are on page 1of 4

Aprender a vida

através de filmes
Por Sofia Barrocas

Deixar a escola e aprender a vida através de filmes. Foi a proposta de um pai, crítico de
cinema, ao filho adolescente que não queria estudar. Uma história de amor e descoberta entre
um homem e um rapaz a caminho de o ser. O Clube de Cinema, um livro a ler na noite em
que os prémios máximos da sétima arte são atribuídos.

O que fazer com um adolescente de 15 anos, completamente desmotivado da escola, que nem
sequer se esforça por tirar notas mínimas e não está nada preocupado com o que pode vir a ser
a sua vida? David Gilmour, um norte-americano que tem como profissão crítico de cinema,
decidiu tomar uma decisão radical em relação ao filho: pediu-lhe que fosse viver consigo
(Jesse morava com a mãe) e autorizou-o a deixar a escola, por ter chegado à conclusão de que
talvez não fosse o melhor local para o filho aprender o que é importante aprender nesta idade.
Com uma única condição: Jesse teria de passar três noites por semana a ver um filme com o
pai. Assim nasceu aquilo a que chamaram Clube de Cinema e que durante três anos permitiu a
ambos (re)descobrirem-se como indivíduos, como pai e filho, como amigos, como membros

1
de uma sociedade. Uma história verídica sobre uma opção com grandes riscos - a nível
escolar, a nível familiar e a nível pessoal.

«Escolher filmes para outras pessoas é uma coisa arriscada. De certa forma, pode ser tão
revelador como escrever uma carta a alguém. Mostra a forma como pensamos, mostra aquilo
que nos move; por vezes, pode até mostrar como pensamos que o mundo nos vê a nós. Por
isso, quando recomendamos entusiasticamente um filme a alguém; quando dizemos "é o
máximo, vais adorar!", é terrível quando nos voltamos a encontrar no dia seguinte e o nosso
amigo, de sobrolho franzido, pergunta: "Achaste aquilo divertido?"», diz David Gilmour, co-
personagem principal deste livro em que descreveu o crescimento e a passagem a homem de
um adolescente através de um modo pouco ortodoxo... mas eficaz.

A excepção na gramática

Gilmour começou por obrigar Jesse a ver Os 400 Golpes (1959), de François Truffaut:
«Pensei que era uma boa maneira de lhe apresentar o cinema de autor europeu que, já sabia,
iria aborrecê-lo até que aprendesse a ver. É como decorar uma excepção na gramática.» O
acordo entre pai e filho implicava que o filme fosse debatido entre os dois, analisado e
comentado. David aproveitou para explicar que Truffaut entrou para o mundo do cinema pela
porta do cavalo, que tal como Jesse tinha desistido de estudar, que era um marginal, que
cometia crimes sem importância, mas que adorava filmes e passou a infância a entrar à socapa
nos cinemas que havia por todo o lado no Paris do pós-guerra.

Instinto Fatal (1992), de Paul Verhoeven, com a célebre cena de Sharon Stone a descruzar as
pernas perante a polícia que a interrogava foi um óptimo pretexto para discutir sexo, terror,
drogas e lésbicas. Crimes e Escapadelas (1989), de Woody Allen, também entrou no pacote
das primeiras semanas do Clube de Cinema. «Muita gente já viu Crimes e Escapadelas uma e
outra vez mas, como acontece com os contos de Chekhov, não apreendeu toda a sua essência
à primeira. Sempre considerei que o filme nos deixa perceber a forma como Woody Allen vê
o mundo - um lugar onde as pessoas banais, como os nossos vizinhos do lado, conseguem
sempre escapar impunes, até de um homicídio, e os idiotas acabam sempre com namoradas
fantásticas», a opinião de David é transmitida ao filho: «Chamei a atenção de Jesse para a
elaborada narrativa do filme; a forma eficaz como descreve o romance entre o oftalmologista
(Martin Landau) e a namorada histérica (Angelica Huston). Em breves traços, percebemos
como chegaram onde estão, de um romance delirante a uma dupla de criminosos.»

Introdução à literatura

Debaixo do Vulcão permitiu a David fazer que o filho percebesse que existem alguns
escritores cujas vidas inspiram tanta curiosidade e admiração como aquilo que escreveram.
Falou-lhe de Virginia Woolf (que morreu afogada), de Sylvia Plath (que morreu envenenada
por gás) e de F. Scott Fitgerald (que enlouqueceu por causa do álcool e morreu demasiado
jovem). «Malcolm Lowry é um desses escritores. O seu romance é um dos hinos à
autodestruição mais românticos da história da literatura», conta Gilmour ao filho: «A história
do filme também é extraordinária: Malcolm Lowry, um rapaz de família rica, deixa a
Inglaterra aos 25 anos, viaja pelo mundo, sempre a beber, acabando por ir parar ao México,
onde começa a escrever um conto. Dez anos e um milhão de bebidas mais tarde, tinha
transformado aquele conto num dos romances mais extraordinários alguma vez escritos sobre
o alcoolismo, Debaixo do Vulcão, chegando ao fim quase louco por causa do álcool.»
Aproveita para «moralizar»: «É assustador imaginar quantos jovens da tua idade já se

2
embriagaram e se olharam ao espelho, achando que viam o Malcolm Lowry no seu reflexo.
Quantos jovens acharam que estavam a fazer algo mais importante, mais poético, do que
simplesmente a dar cabo das suas vidas. Li uma passagem do livro para lhe explicar porquê:
"Vejo-me a mim próprio como um grande explorador", escreveu ele, "que descobriu uma terra
extraordinária de que nunca poderá regressar para a descrever ao mundo. Mas o nome dessa
terra é... o inferno".»

O mundo no século XX

Passagens por O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Wells, A Noite da Iguana (1964), de
John Huston, e Há Lodo no Cais (1954), de Elia Kazan, que serviu a Gilmour não só para
explicar a revolução que O Método foi na história recente do cinema, mas também esse
conturbado período da vida americana que foram os anos cinquenta e a caça às bruxas: «O
realizador cometeu um daqueles erros terríveis que nos acompanham para sempre: nos anos
cinquenta, testemunhou de forma voluntária perante o Comité de Actividades Antiamericanas
do Congresso, presidido pelo senador Joseph McCarthy. Expliquei-lhe que durante as
"investigações" do comité, muitos actores, argumentistas e realizadores viram frequentemente
os seus nomes incluídos numa lista negra, por serem membros do partido comunista; várias
vidas ficaram destruídas. Kazan ganhou a alcunha de "Loose-Lips" ["Língua-Solta"] por
causa da sua disponibilidade para "revelar nomes". Os críticos acusaram Há Lodo no Cais de
ser, essencialmente, uma elaborada justificação para a traição aos amigos. Percebi que os
olhos de Jesse se turvavam...»

Os Quatro Cabeleiras do Após-Calypso (A Hard Day"s Night), 1964, foram uma grata
surpresa para David Gilmour. Pretexto para iniciar o filho no que era o mundo nos anos
sessenta e para o deixar para sempre fã de uma banda que até então Jesse desconhecia - os
Beatles.

O nazismo, os nazis, a guerra na Europa e como afectou os países de outros continentes foram
temas introduzidos por filmes como Casablanca e Intriga Internacional e Apocalypse Now os
horrores da presença americana no Vietname.

Um dos ciclos do Clube imaginados por Gilmour dava pelo nome de O Talento Vence
Sempre - «um pequeno grupo de filmes, por vezes não muito bons, em que um actor
desconhecido tem um desempenho tão bom que percebemos que é apenas uma questão de
tempo até se tornar uma grande estrela de cinema. É o caso de Samuel L. Jackson no papel de
viciado em crack em A Febre da Selva (1991), de Spike Lee. Ou o pequeno papel de Winona
Ryder em Os Fantasmas Divertem-se (1982), ou de Sean Penn no papel de um tipo que passa
a vida pedrado em Viver Depressa (1982)».

«És o máximo, és o máximo, és o máximo!»

Três anos passaram em que Jesse se sentava religiosamente ao lado do pai três noites por
semana. Um dia o pai pediu-lhe dez minutos e fez-lhe perguntas sobre filmes, cinema,
actores, realizadores, literatura, história - o filho tinha tudo na ponta da língua e Gilmour
informou-o que com mais dez anos do que ele não tinha nem metade daquela informação. Se
Jesse quisesse, poderia pelo menos ser crítico de cinema para ganhar a vida.

Um dia, Jesse informou os pais que queria voltar a estudar. Em três meses fez um curso
intensivo em que estudou com determinação tudo aquilo que anos antes o tinha feito

3
abandonar a escola. Passou. Voltou para casa da mãe e depois foi viver com um amigo que
conheceu durante as aulas. Nunca mais voltou a viver com o pai: «Ele ficou demasiado
crescido para o clube de cinema e, de certa forma, demasiado crescido para mim, para ser uma
criança aos olhos do pai. Há anos que eu sentia que acabaria por acontecer, lentamente. Mas
de repente, já tinha acontecido. Não é nada fácil. Percebo que ele nunca voltará da mesma
maneira. A partir de agora, será uma visita. Mas que presente tão raro, tão extraordinário e
inesperado foram aqueles três anos da vida de um jovem numa altura em que geralmente
começam a fechar a porta na cara dos pais. Não sei bem porque é que chorei - por ele,
suponho, por causa dele, pela natureza irrecuperável do tempo; e não me saem da cabeça
aquelas palavras de Amor à Queima-Roupa: "És o máximo, és o máximo,
és o máximo!".»

Livro

O Clube de Cinema é uma história verídica, tão comovente como irónica.


Os filmes como motor do processo de descoberta e despedida de um pai e
de um filho. Escrito por David Gilmour, crítico norte-americano de
cinema.

O Clube de Cinema, David Gilmour, Grupo Bertrand Círculo, 2011

http://www.jn.pt/revistas/nm/interior.aspx?content_id=1793015

You might also like