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Viagens na narrativa
Helena Bomeny
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estudos históricos - 2003 - 32
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da, entre literatura e ciências sociais, história e ficção, narrativa ficcional e relato
científico. Embora permanente na tradição das ciências sociais, o debate acir
rou-se na década de 1980, e certamente os lrabalhos de Hayden White, desde o
Melahistory. Tlle historical imagillatioll ill Nine/een/II Ce/Ul/.ry Europe (1973), segui
do de livros e artigos até o Tropics ofdiscol.me (1985), e o livro de WolfLepenies,
BelWeen li/erature and sciellce: lhe rise of sociology (1988), publicado originalmente
na Alemanha em 1985 com o títuloDie Drei Kulturell e, no Brasil (1996), comoAs
três culturas, são ótimas referências se quisermos recuperar as discussões aqui tra
vadas, vindas da literatura ou das ciências sociais. As publicações de Hayden
White lembram-nos da ruptura do processo de convivência pacífica entre histó
ria e literatura provocada, menos por esgotamento de rotina anterior, e mais por
determinação externa. A aproximação da história com a literatura - quebrada ar
tificialmente no século XIX em nome do rigor metodológico e da comprovação
científica -, mais do que consentida, era um constrangimento, uma vez que um
dos sinais fortes na apreciação positiva do relato historiográfico era exatamente a
configuração de uma narrativa em molde literário. Antes da Revolução France
sa, a historiografia era vista como arte literária, diz Hayden White em um de seus
textos. Reconhecia-se como inevitável a utilização de técnicas ficcionais na re
presentação dos eventos reais, na forma de discurso histórico. No caso da interes
sante viagem deLepenies, não há propriamente uma ruptura desse contato ou de
mútua relação, uma vez que tal convivência nunca foi tão cultivada com a exper
tise com que se deu na história, mas também não esteve ausente. T endo na socio
logia O pretexto de sua incursão, Lepenies vai mostrar como, entre duas culturas
- a das ciências exatas e a literária-, a sociologia teve que lidar com os constrangi
mentos de consentir ou de recusar a intimidade com a narrativa literária. E, além
de atribuir aos campos específicos uma cultura própria, Lepenies passeia por
culturas nacionais (França, Inglaterra e Alemanha) para mostrar com que inten
sidade a aproximaçao e a convivência foram buriladas entre os homens das letras
e os homens da ciência da sociedade, a sociologia, que nascia e defendia seu lugar
na constelação dos saberes considerados científicos. Portanto, o momento do
que Hayden White chama de ruptura é o momento em que nasce a sociologia.
Podemos dizer que já nasceu tendo que lidar com o que para alguns é um dilema,
para outros uma tensão, para outros ainda uma falsa questão por deslocada e im
própria. Mas já nasceu no cenário de suspeição, tendo que explicar os limites da
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aproxlmaçao.
Essas discussões são conhecidas de Valter Sinder. São também familia
res para ele as múltiplas possibilidades de lidar com elas. Ele escolheu um cami
nho para entrar pelo viés da antropologia. E explicitou nas primeiras páginas o
que, em sua perspectiva, está em questão quando as ciências sociais prelendem
enfrentar a relação entre narrativa e ciência, ou narrativa da ciência, se preferir-
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mos. Seu ponto de partida: "A mudança de regime discursivo operada na época
das grandes navegações". E a permanência: "A verdade, toda verdade, nada mais
do que a verdade. A idéia de que uma verdade eterna, universal, onipresente,
deve ser descoberta por qualquer um de nós parece ser uma idéia dominante em
nossa civilização" CP. 14). A verdade dos e a verdade nos relatos dos viajantes - e
ele toma dois viajantes célebres, Cristóvão Colombo dos Diários da descoberta
da América, e Cervantes, das aventuras do ingenioso hidalgo Dom Quixote de la
Mancha. A pista quem dá é Michel Foucault, e a verdade dos relatos estará na
correspondência ou na equação buscada entre "a autoridade dos livros e o teste
munho da verdade dos fatos". O que se passou, pergunta Sinder, no que diz res
peito à questão da relação entre conhecimento e coisas a conhecer? "Dom Quixo
te, por um lado, assim como Colombo, acredita que sabe antecipadamente o que
vai encontrar. A experiência concreta deveria simplesmente ilustrar uma verda
de que possui" CP. 37). Como garantir veracidade a um relato fundado, basica
mente, na apresentação de seres estranhos e acontecimentos fantásticos, de luga
res exóticos a que chegou o viajante atravessando mares nunca dantes navega
dos? Quem garante é a presença daquele que vê e que escreve o que vê. "A garan
tia da veracidade do relato será dada pelo fato de ter sido presenciada por aquele
que escreve, de preferência em uma longa permanência e convivência", sintetiza
Sinder, a propósito de Colombo. Ainda que o relato seja impregnado das "pos
sessões maravilhosas", à Stephen Greenblatt, a autoridade da fala e do escrito se
cola à autoridade conferida àquele que tem delegação para a fala e a escrita. Mas
ao contrário de Colombo, as aventuras de Dom Quixote são uma constante busca
de comprovação desta verdade. Em Colombo, teria prevalecido o argumento de
autoridade. O lugar da imaginação encontrou mais espaço na loucura de Dom
Quixote, temperada e controlada pelos contatos e lembranças das referências ao
mundo concreto trazidas a todo instante pelo seu fiel escudeiro, Sancho Pança,
escudeiro de si, cúmplice de si, como convém à liberdade de expressão e à auto
nomia vivenciadas pelo indivíduo moderno, pelo sujeito reflexivo, portador de
dubiedades, tensões e contradições. Seguindo Foucault, Sinder subscreve a tese
de que Dom Quixote é a primeira das obras modernas, uma obra em que o herói é
a um só tempo santo e louco.
O mote das viagens é o passaporte para o percurso que o livro ilumina no
interior da antropologia. E não é casual a associação. Instituída como saber sobre
o "outro", o "distante", o "estranho", o "estrangeiro", a antropologia lidou desde
os seus primórdios - que, a propósito, coincidem com os da sociologia - com os
desafios da aventura, até alcançar o universo que não se assemelha ao universo do
investigador. Os mesmos desafios postos a Colombo e a Dom Quixote insistiam
em permanecer na escrita anrropológica: como relatar aquilo que foi visto?
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tões do fazer ciência na antropologia voltam com força redobrada. E preciso ul-
trapassar os dados empíricos, as relações sociais das quais partilhamos, é preciso
construir modelos verdadeiros ("aquele que, sendo o mais simples, responder à
dupla condição de não utilizar outros fatos além dos considerados e explicar to
dos") capazes de desvendar a estrutura social profunda, o que vale dizer, o in-
conscIente.
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