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MANA 4(2):119-126, 1998

ENTREVISTA
LÉVI-STRAUSS NOS 90
A ANTROPOLOGIA DE CABEÇA PARA BAIXO
Eduardo Viveiros de Castro

Viveiros de Castro Viveiros de Castro


Vejo que se trata aqui [“Voltas ao Pas- A propósito – vejo que o tema figura em
sado”] de suas relações com Merleau- sua resposta –, por que pensa o senhor
Ponty… que sua distinção entre “história quen-
te” e “história fria” deu lugar a tanta in-
Lévi-Strauss compreensão, sobretudo nos países de
Os autores dizem que Merleau-Ponty língua inglesa?
deu as costas para mim. O que lhes atra-
palhou enormemente, é claro, é que Lévi-Strauss
Merleau-Ponty havia publicado um tex- Porque ninguém se deu ao trabalho de
to muito caloroso a meu respeito. Então, refletir. Havia uma velha distinção, po-
eles dizem: “ele parece caloroso, mas is- vos com história e povos sem história,
so é falso; na realidade, trata-se de um então eles dizem que minha distinção é
texto que é profundamente hostil a Lé- idêntica a essa…
vi-Strauss, e que marca divergências
fundamentais”. O que os autores não Viveiros de Castro
sabiam é que o artigo de Merleau-Ponty Tal mal-entendido não se deveria à as-
é o memorial que ele leu perante a as- similação de sua distinção a idéias de
sembléia dos professores do Collège de que a antropologia anglo-saxã queria
France para a criação de minha cátedra. se livrar: Malinowski, Radcliffe-Brown,
a ênfase na sincronia etc.?
Viveiros de Castro
Mas em “De Mauss a Claude Lévi- Lévi-Strauss
Strauss” não se acha nenhuma crítica. Mas foram eles que congelaram essas
sociedades, não eu!
Lévi-Strauss
Pois se era o memorial para a criação de Viveiros de Castro
minha cátedra … Agora essas sociedades “frias” pare-
cem estar esquentando, não é mesmo?
Viveiros de Castro
Nota-se hoje uma retomada do interes- Lévi-Strauss
se por Merleau-Ponty entre os antropó- Sim, é justamente o que digo em meu
logos. artigo: elas estão esquentando, ao pas-
so que as nossas esfriam. Na França is-
Lévi-Strauss so é muito claro: o interesse pelo patri-
Ele está efetivamente retornando, e isso mônio, os esforços para se reencontra-
me deixa muito contente. rem as raízes…
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Viveiros de Castro nova escolástica, e que tudo isso se tor-


Diz-se com freqüência, nos Estados ne tão abstrato que… Não posso mais
Unidos, que os cultural studies vão aca- acompanhar o que vem sendo feito, e
bar com a antropologia, o que pensa o não pretendo fazer disso um argumen-
senhor? to, mas, de modo geral, minha impres-
são é que o cognitivismo começa a per-
Lévi-Strauss der o contato com a realidade.
Com efeito, falo justamente disso em
minha resposta… O artigo dos Temps Viveiros de Castro
Modernes diz que a antropologia mo- O senhor não pensa então que os resul-
derna é Rosaldo… E que agora é só isso tados sejam encorajadores? Na França,
que interessa… por exemplo, temos as pesquisas de
Sperber…
Viveiros de Castro
E o que pensa o senhor disso? Lévi-Strauss
Assim me parece, mas… Isso é prova-
Lévi-Strauss velmente uma questão da idade que te-
Mas o que posso pensar disso?… (risos). nho e da época a que pertenço, mas o
começo me parece ter sido muito mais
Viveiros de Castro interessante do que o que se faz hoje
Com efeito, parece-me que há alguns em dia. Quanto a Sperber, não com-
conceitos-chave da antropologia que preendo nada do que ele escreve! En-
hoje estão a ponto de se tornar impro- fim, essa história de epidemiologia, isso
nunciáveis: diferença, alteridade… Eles me parece uma tal volta ao passado…
agora são politicamente suspeitos.
Viveiros de Castro
Lévi-Strauss Em geral, o senhor crê que a etnologia
A antropologia virou de cabeça para faz uma grande volta ao passado?
baixo, sem dúvida. Seria preciso recolo-
cá-la de pé. Mas isso não seria nem um Lévi-Strauss
pouco politicamente correto… Não, eu me dirigia aos Temps Moder-
nes, em particular. Creio que há coisas
Viveiros de Castro que não ousamos mais dizer, e que é
Como o senhor vê os resultados obtidos preciso dizer, ou em breve não se com-
pelas novas tendências cognitivistas na preenderá mais coisa alguma. É preciso
antropologia? Elas estão cumprindo o afinal dizer que a antropologia é uma
programa que o senhor traçou, de refor- disciplina que nasceu no século XIX; ela
mular a antropologia como uma psico- é a obra de uma civilização, a nossa, que
logia? possuía uma superioridade técnica es-
magadora sobre todas as outras, e que,
Lévi-Strauss ciente de que ia dominá-las e transfor-
Sim, mas tratava-se de algo muito me- má-las completamente, disse a si mes-
nos ambicioso, quando me exprimi as- ma: é urgente que se registre tudo que
sim… Penso que o que fazem os cogni- pode ser registrado, antes que isso
tivistas é muito interessante; houve pro- aconteça. É isso a antropologia; ela não
gressos incontestáveis. O perigo, entre- é outra coisa: ela é a obra de uma socie-
tanto, é que eles estejam a criar uma dade sobre outras sociedades. E quando
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nos dizem que essas sociedades não são antropologia, mas em uma mutação?
diferentes da nossa, que elas têm a mes-
ma história que a nossa etc., esta não é Lévi-Strauss
absolutamente a questão. O que pedía- De fato, não acredito, e por vários moti-
mos a essas sociedades que estudáva- vos. O primeiro é que há ainda algumas
mos é que elas não nos devessem nada: possibilidades, como você mesmo de-
que elas representassem experiências monstrou com os Araweté, Descola com
humanas completamente independen- os Jívaro… Nem tudo está acabado; vai
tes da nossa. À parte isso, elas podem acabar logo, mas enfim… não está com-
ter todas as histórias que se queira, mas pletamente acabado. Em segundo lu-
essa não é a questão. Devem-nos elas o gar, há ainda, em toda parte, uma
que são, ou não? Se elas nos devem, elas quantidade de coisas a rebuscar, coisas
nos interessam moderadamente; se elas que foram, digamos assim, negligencia-
não nos devem, elas nos interessam das, e que se pode recolher, que é pre-
apaixonadamente. ciso recolher. O terceiro motivo, é que
esses povos mesmos vão em breve dar
Viveiros de Castro origem a eruditos, a historiadores de
Nesse caso, à medida que começam a suas próprias culturas, e assim aquilo
nos dever muito, elas nos interessariam que foi nossa antropologia vai ser apro-
cada vez menos? priado por eles, e ela será algo interes-
sante, e importante. Então, nem tudo
Lévi-Strauss está acabado; isto posto, a velha con-
Elas se tornam objeto de outras pesqui- cepção de antropologia está morta.
sas, de outras disciplinas. Se você me
permite uma comparação musical, eu Viveiros de Castro
diria que a antropologia tal como a con- Então, de um lado, há essas mudanças
cebo, como a conheci, como nossos mes- objetivas, essas sociedades que se apro-
tres a praticaram, era tonal, e agora ela ximam da nossa; de outro, e no plano
se tornou serial. Isto quer dizer que as teórico, há outra espécie de abertura –
sociedades humanas não significam penso ainda nos cognitivistas –, a pro-
mais nada fora de suas relações recípro- messa de que finalmente poderemos fa-
cas. Porque a nossa se enfraqueceu, lar da Cultura como um objeto natural:
porque ela mostrou seus vícios, porque as capacidades cognitivas da espécie
as outras começaram a trilhar o mesmo etc.
caminho que a nossa – isso é como as
notas em um sistema dodecafônico, elas Lévi-Strauss
não têm mais um fundamento absoluto, Sem dúvida, mas sob a condição de que
elas existem apenas umas em relação às não se pretenda chegar a mais nada
outras. Enfim, é assim que as coisas são, que a resultados de ordem formal. Os
teremos uma outra antropologia, como a conteúdos, isso continua a ser história,
música serial é uma outra música. Uma a experiência dos homens no curso do
antropologia que será tão diferente da tempo. Mas que todos tenhamos o mes-
antropologia clássica como a música se- mo cérebro, e que esse cérebro é fabri-
rial é diferente da música tonal. cado do mesmo modo, sim, sim…

Viveiros de Castro Viveiros de Castro


Então o senhor não acredita no fim da O que me inquieta, entretanto, é que,
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se o estruturalismo era uma tentativa de também as comparações que se fazem


manter unidas a experiência histórica e atualmente… os seminários entre mela-
a forma, o particular e o universal, o nesianistas e amazonistas… Isso me pa-
que vemos hoje é que esses dois lados rece muito frágil.
estão cada vez mais separados, senão
mesmo em guerra aberta… Viveiros de Castro
Por que o senhor pensa assim?
Lévi-Strauss
Sim, isso é profundamente verdadeiro. Lévi-Strauss
O valor de Merleau-Ponty, justamente, Os ameríndios são restos, são fragmen-
é que ele sempre procurava manter o tos de sociedades que viveram vários
laço. séculos de drama e destruição. Os me-
lanésios, em contrapartida, são gente
Viveiros de Castro que estava absolutamente intacta no
O senhor vê com simpatia os estudos momento em que se os descobriu. O
recentes que focalizam os modos de co- que se pode tirar dessas comparações?
municação: a distinção entre o oral e o Fazem-se correlações… vi isso outro
escrito, as condições de memorização dia, já não me lembro onde, uma corre-
etc.? lação entre o uso de bebidas alcoólicas
e a densidade da população. Na Améri-
Lévi-Strauss ca usavam-se substâncias intoxicantes
Não tenho acompanhado muito de per- porque a população era dispersa; na
to. A que você está referindo-se? Melanésia elas não seriam necessárias
porque a população era muito densa…
Viveiros de Castro
Aos trabalhos de Jack Goody, dentre Viveiros de Castro
outros; às pesquisas que procuram de- Qual a lógica dessa correlação?
duzir várias características das socieda-
des primitivas a partir das condições de Lévi-Strauss
transmissão do saber, e em particular Pois se os melanésios usavam cogume-
das propriedades da comunicação ex- los alucinógenos, ausentes entre os ín-
clusivamente oral. dios sul-americanos, e se no sudeste
asiático, onde a população é densa, to-
Lévi-Strauss mam-se bebidas alcoólicas a valer…
Mas isso me parece um truísmo. Ou é
um truísmo, ou é falso. Viveiros de Castro
Falando na Amazônia, como o senhor
Viveiros de Castro vê a paisagem do americanismo con-
Com efeito, essas tendências me pare- temporâneo?
cem marcadas por um grande formalis-
mo, e pouco capazes de enxergar as Lévi-Strauss
enormes diferenças internas a catego- Mas o que está acontecendo no Brasil é
rias tão vastas e vagas como “socieda- formidável! É algo de praticamente iné-
des de tradição oral”. dito! Quando conheci o Brasil, o que era
a etnologia? Eram velhos eruditos de
Lévi-Strauss gabinete que se debruçavam sobre a fi-
Tudo isso é realmente absurdo. Assim lologia tupi; era isso, e nada mais. E
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agora, vemos uma das escolas mais bri- os índios no Chile é enormemente inte-
lhantes da atualidade. ressante.

Viveiros de Castro Viveiros de Castro


Foi em grande parte graças ao senhor E o que pensa o senhor sobre as pesqui-
que isso ocorreu. sas recentes em arqueologia amazôni-
ca? Irão elas realmente modificar a ima-
Lévi-Strauss gem não só do passado, mas também
Não, não, isso teria acontecido de qual- do presente da Amazônia?
quer maneira. Os meios de comunica-
ção tiveram muito a ver com isso. Se os Lévi-Strauss
Estados Unidos estiveram à frente da Tudo depende do que vai acontecer nos
antropologia durante um certo período, anos vindouros. Pode muito bem ser
foi porque os índios estavam no mesmo que se encontrou tudo que há a encon-
país que os antropólogos, e era relativa- trar. Parece-me que as coisas começam
mente fácil ir até eles. O Brasil se acha- a ir mais devagar, efetivamente. A me-
va, no período em que ali vivi, na vés- nos que se façam novas e sensacionais
pera da Segunda Guerra, na mesma si- descobertas.
tuação: os povos indígenas em seu ter-
ritório, podia-se ir até lá sem muita difi- Viveiros de Castro
culdade. O senhor, já em 1952, falava em cultu-
ras complexas na várzea amazônica.
Viveiros de Castro
Mas minha impressão é que o impulso Lévi-Strauss
da etnologia brasileira deu-se nos anos Mas era algo puramente intuitivo, não
60, justamente quando seus trabalhos tinha outro valor que o de um feeling….
sobre a mitologia ameríndia vieram a
ser publicados. Viveiros de Castro
E quanto aos problemas da data de che-
Lévi-Strauss gada dos humanos nas Américas? Quão
Eu recuaria um pouco mais, mas se vo- longe o senhor pensa que esta data será
cê pensa assim, tanto melhor… recuada?

Viveiros de Castro Lévi-Strauss


Parece-me, de qualquer modo, que foi Evidentemente, as descobertas de Mon-
nos últimos trinta anos que se atingiu te Verde, no Chile, são extraordinaria-
uma massa etnográfica crítica. mente perturbadoras*. Seria absurdo
fazer predições, entretanto.
Lévi-Strauss
E foi sem dúvida a contribuição brasi- Viveiros de Castro
leira a principal responsável por isso. Qual é seu feeling, de qualquer modo?
Avistei-me ontem com um colega de
Santiago do Chile. Ele me dizia: não Lévi-Strauss
conseguimos formar etnólogos, os estu- Ah, nesses assuntos há tal dose de wish-
dantes não querem ser etnólogos. Isso ful feeling… Mas 50 mil anos seria uma
não lhes interessa mais. E contudo, me data razoável. Mesmo se supuséssemos
dizia ele, o que está acontecendo com que o Homo erectus tenha estado na
124 ENTREVISTA

América, o que foi sustentado por al- Viveiros de Castro


guns, como Lumley, que uma vez fez Nos últimos anos, certas noções que de-
uma nota a esse respeito para a Acade- sempenham um papel central em sua
mia de Ciências…. De qualquer manei- obra sobre o parentesco, como recipro-
ra, ele não seria de grande interesse pa- cidade e troca, têm recebido muitas crí-
ra nós etnólogos, porque o Homo erec- ticas.
tus não estava mais lá quando os ame-
ríndios chegaram… Quanto ao povoa- Lévi-Strauss
mento ameríndio, algo como 50 mil anos Sim, sim, tenho assistido a isso um pou-
parece razoável. Pierre Gourou, que co de longe… Mas enfim, quando al-
era… digo era, mas ele não está morto, guém como Godelier acredita ter feito
enfim, ele está tão idoso que não é mais uma grande descoberta quando diz que
possível se comunicar com ele – há uns nem tudo se troca… Grande novidade…
dez anos, quando nos víamos muito, Mas é claro que nem tudo se troca – na-
Gourou dizia que havia argumentos turalmente! Sabíamos disso desde que
geográficos absolutos em favor de uma Boas explicou que entre os povos da
chegada anterior a 45 mil anos, devido a costa noroeste havia bens inalienáveis,
questões relacionadas à circulação das além daqueles que se alienam…
águas do Ártico em direção ao Pacífico.
Viveiros de Castro
Viveiros de Castro Parece-me que alguns deslocamentos
Em uma conhecida passagem de O Cru importantes se produziram nessa revi-
e o Cozido, o senhor diz que a América são crítica. Tomemos a noção de troca.
indígena foi “uma Idade Média que não Nas Estruturas Elementares ela desig-
teve sua Roma”. Não se poderia dizer, nava uma instituição empírica, mas
entretanto, que ela teve sua Atenas – também e sobretudo um princípio. Mi-
não no sentido geográfico, mas espiri- nha impressão é que, agora, reduz-se a
tual? Pois seu trabalho sobre a mitolo- troca a uma instituição, que se pode en-
gia demonstra a existência de um siste- contrar ali ou acolá, mas que não é cer-
ma pan-americano de pensamento. tamente um universal.

Lévi-Strauss Lévi-Strauss
Há incontestavelmente um sistema de Você tem toda a razão. Creio que o que
pensamento. O que coloca muitos pro- acontece nesse domínio, e em muitos
blemas: isso supõe que esses povos to- outros, é que as pessoas não têm mais
dos circularam muito mais do que nós cultura, e que elas se acham na mesma
imaginamos, e em todos os sentidos. situação intelectual de um século e
meio atrás, mais ou menos.
Viveiros de Castro
Como o senhor vê o estado atual dos es- Viveiros de Castro
tudos sobre o parentesco? Estaríamos O senhor permanece acreditando que a
vivendo uma fase de recuo de interesse noção de troca que o senhor propôs nas
no tema? Estruturas Elementares é adequada?

Lévi-Strauss Lévi-Strauss
Penso que sim; há coisas mais interes- Sim, se lhe conferimos um sentido
santes a fazer, agora… transcendental – ela é a condição que
A ANTROPOLOGIA DE CABEÇA PARA BAIXO 125

nos permite simplificar o problema, isso indígenas procuram mostrar como a


é tudo. Não me pergunto se em tal ou cultura se entende com a natureza.
tal caso, neste ou naquele povo… en-
fim, quantas coisas se trocam ou não se Viveiros de Castro
trocam! Admitindo-se a presença de uma distin-
ção entre natureza e cultura no pensa-
Viveiros de Castro mento indígena, ela de qualquer modo
E sobre a célebre distinção entre natu- parece inverter nossa versão clássica da
reza e cultura, ela também é bastante mesma distinção, e isso tanto do ponto
discutida. de vista diacrônico como sincrônico. As-
sim, concebemos a cultura como se cons-
Lévi-Strauss tituindo historicamente a partir da natu-
Ainda não pude ler o livro organizado reza, e a humanidade como emergindo
por Descola, que ele acaba justamente de um fundo geral de animalidade…
de me dar**. Mas penso que há vários
mal-entendidos. Em primeiro lugar, ele Lévi-Strauss
[Descola] coloca o problema em termos Mas essa é uma visão científica, não
exclusivamente sincrônicos. Em termos uma visão bíblica…
diacrônicos, todas as sociedades que
conhecemos pensam que houve uma Viveiros de Castro
época em que os homens viviam no es- Nos termos em que a formulei, ela me
tado de natureza antes de alcançar o parece caracterizar antes o evolucionis-
estado de sociedade. Quando lhe opo- mo popular ocidental, que é da ordem
nho este argumento, Descola me res- do mito, que a teoria científica da evo-
ponde: mas nesse estado de natureza lução. E nesses termos, haveria um con-
tudo – os animais e os homens – estava traste com a mitologia ameríndia. Co-
confundido. Sem dúvida, tudo estava mo o senhor mesmo observou em A
confundido, mas, justamente, era ne- Oleira Ciumenta, essa mitologia postu-
cessário que os animais e os homens se la que a humanidade é o fundo comum
separassem. Em segundo lugar, creio dos seres, e que os animais atuais são
que, quando se diz que a distinção en- humanos transformados. Nesse caso,
tre natureza e cultura é algo próprio do não é a cultura que se separa da natu-
pensamento ocidental, há um equívoco: reza, mas o contrário.
não é a distinção em si que é ocidental,
mas uma certa atitude diante da natu- Lévi-Strauss
reza. Tal atitude, com efeito, não existe Sim, de modo geral concordo com isso.
entre os povos estudados pelos etnólo- Penso apenas que seria preciso matizar
gos. Mas, do fato de esses povos senti- um pouco sua formulação, porque ela
rem a necessidade de descobrir uma es- não se encontra, nesses termos, em to-
pécie de arbitragem entre a natureza e da parte.
a cultura, um meio de fazê-las coabitar
de maneira satisfatória, não se deduz Viveiros de Castro
de modo algum que eles ignorem a E como o senhor formularia a diferença
oposição. Eles simplesmente a resolve- entre a concepção contemporânea de
ram de uma forma diferente da escolhi- natureza – falo do mundo da física, da
da pelo ocidente, o qual nega pura e relatividade, da mecânica quântica etc.
simplesmente os dois termos. Os mitos – e a concepção ameríndia?
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Lévi-Strauss Viveiros de Castro


A representação da física parece muito Há alguma coisa que o senhor gostaria
mais, no fundo, com o que no caso indí- de ter feito, como pesquisa, e que não
gena chamaríamos uma sobrenatureza. pôde realizar?
Nós consideramos que o mundo da físi-
ca é mais verdadeiro que o mundo da Lévi-Strauss
experiência, mas ao mesmo tempo ad- Sim, fora de minha disciplina; dentro
mitimos que não compreendemos nada dela, não.
dele. Nosso mundo físico é nossa sobre-
natureza. Viveiros de Castro
Sobre o que o senhor está trabalhando
Viveiros de Castro no momento?
O senhor se refere esporadicamente à
noção de sobrenatureza em suas análi- Lévi-Strauss
ses da mitologia ameríndia. Como ela Sobre nada. Não trabalho – apenas me
se disporia em relação à distinção entre ocupo, por assim dizer. Sem planos,
natureza e cultura? sem visar resultados, escrevo um artigo
de vez em quando. Não tenho um pro-
Lévi-Strauss grama, porque sei que se traçar um pro-
Com efeito, isto é algo sobre o qual não grama definido não poderei concluí-lo.
refleti o suficiente. Reconheço que de- Não tenho ilusões: estou bastante bem,
veria tê-lo feito. Mas não tenho um pen- e talvez ainda viva mais alguns anos;
samento claro sobre isso; não cheguei a mas o pensamento, isso se deteriora.
aprofundar a questão. Não se pode pretender exigir-lhe o
mesmo que outrora.
Viveiros de Castro
De qual livro seu o senhor gosta mais? Viveiros de Castro
O pensamento se deteriora com a ida-
Lévi-Strauss de, é certo – mas na imensa maioria dos
Não tenho a menor idéia, meus livros já casos isso começa muito antes dos no-
não me estão mais muito presentes à venta anos… O senhor ainda viaja?
mente.
Lévi-Strauss
Viveiros de Castro Não, não viajo mais. Não tenho mais se-
Mas o senhor não parece gostar dema- quer um passaporte válido. Deixei o
siado das Estruturas Elementares, não é? meu vencer.

Lévi-Strauss
Quando reabro este livro, digo-me: Notas
aprendi a escrever melhor desde en-
tão… Mas ele tem, ainda assim, um * Lévi-Strauss está-se referindo às pes-
frescor que perdi. É um livro cheio de quisas dirigidas por Tom Dillehay em Monte
Verde, Chile, que estabeleceram uma data
defeitos – é uma obra de juventude, há
de ocupação humana em torno de 25.000
uma quantidade de coisas inúteis den- a.C.
tro dele… e outras coisas que são pro- **P. Descola e G. Pálsson (orgs.), Nature
vavelmente falsas… and Society: Anthropological Perspectives,
London, Routledge, 1996.

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