Professional Documents
Culture Documents
RESUMO
O pensamento de Comenius tem sido revisitado por meio de alguns
pesquisadores comenianos preocupados em demonstrá-lo como pedagogo,
sendo esta uma das razões pelas quais é conhecido como o “pai da pedago-
gia moderna”. Por outro lado, há poucas pesquisas que apontam Comenius
como teólogo, enfatizando que ele não foi apenas um pedagogo, mas que sua
atividade principal era a teologia. A partir dessa constatação, esta pesquisa
objetivou demonstrar que só se pode compreender o conceito de educação de
Comenius tendo como pressuposto fundamental a inter-relação da teologia
com a pedagogia, entre as quais Comenius não faz distinção. É somente com
este pressuposto que se compreende o motivo pelo qual Comenius destacou a
educação, fundamentada no ensino, na moral e na piedade, como a salvação
ou o remédio divino para a cura da corrupção do gênero humano, uma vez
que ela tem como finalidade última fazer do homem um “paraíso de delícias
para o Criador”.1
PALAVRAS-CHAVE
Comenius; Teologia; Morávios; Ensino, moral e piedade.
INTRODUÇÃO
João Amós Comenius foi o primeiro indivíduo a instituir a educação como
uma ciência sistemática, sendo esta uma das razões pelas quais ficou conhecido
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Rev. José Manoel da Conceição; mestre em
Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; doutor em Ciências
da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, e professor da Escola Superior de Teologia da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
1 COMENIUS, J. A. Didática magna. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 26.
49
2 LOCHMAN, J. M. Acta comeniana. In: Comenius as theologian. Praga: Akademie ved Ceske
Republiky, 1993, v. 10, p. 35.
3 LOPES, E. P. A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius. São
Paulo: Mackenzie, 2006, p. 93.
4 COVELLO, S. Comenius: a construção da pedagogia. São Paulo: Editora Comenius, 1999,
p. 16.
50
5 CAULY, O. Comenius: o pai da pedagogia moderna. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 43, 48.
6 LOPES, E. P. O conceito de teologia e pedagogia na Didática Magna de Comenius. São Paulo:
Editora Mackenzie, 2003, p. 77.
7 COVELLO, Comenius, p. 30.
8 COVELLO, Comenius, p. 30.
51
52
novo espaço do saber com a tecnologia. São Paulo, 2002, Dissertação de Mestrado em Educação, Arte
e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie, p. 12.
53
como foco sua integralidade. Em outras palavras, o ser humano não pode ser
fragmentado, pois ele é, em sua concepção, um “micromundo”, na medida em
que é visto à luz das diferentes faces de sua existência: política, econômica,
social, psicológica e religiosa.15
Sua compreensão do “homem” permite que ele, à semelhança de Paulo
Freire, seja um dos idealizadores das campanhas de alfabetização cuja con-
cepção metodológica consiste em ensinar a partir das coisas reais conhecidas.
Esse princípio parece ser uma leitura bem próxima ao pressuposto de Paulo
Freire,16 ainda que Comenius pontue uma compreensão teocêntrica do homem
e Freire, uma concepção antropocêntrica. Para Freire, o homem não pode estar
alienado do seu contexto social, e sim ativo nas discussões de seu mundo. Daí,
a base de seu método educacional é permitir que o homem chegue a construir-
se como pessoa e transformar o mundo em que vive.17
Bohumila Araújo assinala o princípio de que é possível estabelecer um
diálogo entre Comenius e Paulo Freire:
54
vilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens [...]. A fé e a esperança, assim
como o amor ao próximo, o amor que alimenta os princípios igualitários que
Comenius professa com freqüência, são valores que não faltam no seu código
de ações e representações e que, continuamente, reconstituem e atualizam a
sua mensagem.18
55
sentido, ele foi influenciado pela Reforma Protestante, que também propôs a
democratização do ensino em países como a Alemanha e a Suíça. No estudo da
educação com foco em Martinho Lutero, observa-se que seu interesse inicial
em prover educação universal havia definhado e a população menos favorecida
continuava analfabeta.23 É com Comenius, a partir do princípio pansófico, ou
seja, “ensinar tudo a todos”, independentemente de sua nacionalidade e classe
social, que algumas transformações começam ocorrer na área educacional.
Em sua concepção, tanto homens quanto mulheres deveriam ter acesso
à educação.24 Comenius rompeu com a tradição daquele contexto e pontuou
que o reconhecimento da dignidade e do direito à educação são inerentes a
todos os membros da família, uma vez que todos são “imagem e semelhança
de Deus”.25
Bohumila Araújo, a partir do princípio comeniano de que a dignidade e
a educação são direitos inerentes a todos os membros da família, afirma:
23 TUTTLE, M. Zinzendorf and the Moravians. In: Christian history, v. 1, nº 1, 1982, p. 22, 23.
24 LOPES, O conceito de teologia e pedagogia na Didática Magna de Comenius, p. 91.
25 COMENIUS, Didática magna, p. 53.
26 ARAÚJO, A atualidade do pensamento de Comenius, p. 88.
27 LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 22.
28
Para esclarecimento, ler o artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível
em www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/íntegra. Acesso em 17/02/2008.
56
57
dele a criatura apta para entender e aprender todas as coisas.36 Para o autor da
Didática magna, o homem nasceu com a capacidade de adquirir a ciência das
coisas e aprender as diversas formas do conhecimento porque isso é resultado
de sua criação por Deus.37
Em síntese, a antropologia-teológica comeniana apresenta o homem como
a “coroa da glória de Deus”, a síntese de todas as coisas, pois nele foram “reu-
nidos todos os elementos materiais, todas as formas e seus graus para exprimir
toda a arte da divina Sabedoria”.38 Ora, se todos os homens foram criados por
Deus conforme sua imagem e sua semelhança, infere-se que todos devem ser
igualmente educados. Ninguém, inclusive as mulheres39 e os pobres,40 deve
ser excluído, pois isso seria uma ofensa a Deus.41
Por causa da queda dos primeiros pais, Adão e Eva, registrada no livro
de Gênesis, o gênero humano “foi lançado na solidão da terra, despojado das
abundâncias do paraíso e o nosso corpo e alma ficaram expostos à dor”.42 O
homem deixou de ser paraíso de delícias do Criador e se tornou “ingrato com
aqueles bens com os quais Deus o havia suprido em abundância no paraíso,
para o corpo e para a alma”.43
Comenius tem uma clara concepção das conseqüências da queda no gê-
nero humano. Todavia, Deus usou de misericórdia e graça e não abandonou
as suas criaturas, a coroa da criação, na solidão, mas por meio do seu próprio
sangue as enxertou novamente no Paraíso de Deus.44 Assim, de novo verdejou
o jardim das delícias de Deus, expresso na Igreja.45 Todavia, a própria Igreja, a
nova plantação do Paraíso, degenerou-se a ponto de Deus lamentar a situação
dessa nova plantação.46
Como prova da degeneração ou da corrupção da Igreja, Comenius
apresenta os seguintes argumentos 47: 1) Tudo está revirado e confuso, está
destruído ou está ruindo. Em lugar da inteligência, reina a estupidez. Em lu-
gar da prudência ou da preocupação com as coisas eternas, preocupamo-nos
com as coisas transitórias e terrestres, mesmo tendo consciência de que tudo
36 Ibid., p. 60.
37 Ibid., p. 58.
38 Ibid., p. 21, 22.
39 Ibid., p. 91.
40 Ibid., p. 90.
41 Ibid., p. 89.
42 Ibid., p. 22.
43 Ibid.
44 Ibid., p. 23.
45 Ibid.
46 Idem, p. 24.
47 Ibid.
58
Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte universal de
ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de ensinar
de modo fácil, portanto, sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem,
mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido, não super-
ficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos
bons costumes, a uma piedade mais profunda [...].51
48 Ibid.
49 Ibid., p. 25.
50 Ibid., p. 27.
51 Ibid., p. 13.
59
por intermédio desses órgãos que a mente chega a todos os objetos externos,
para que nada possa ficar oculto. Segue, assim, que “nada há no mundo que
um homem dotado de sentidos e razão não possa compreender”.52
Todavia, alguém poderia objetar quanto à razão pela qual algumas pessoas,
aparentemente, não conseguem aprender as coisas. Comenius responderia que a
mente humana, por natureza, tem a semente do conhecimento; entretanto, deve
ser despertada para tal fim: “Estão lâmpada, candeeiro, óleo e pavio, e tudo o que
é necessário: quem souber produzir a centelha, acolhê-la, acender a luz poderá
ver – belíssimo espetáculo – os maravilhosos tesouros da divina sabedoria”.53
Todavia, deve-se ressaltar que para Comenius há duas razões pelas quais a
pessoa não aprende: 1) o pecado humano; 2) a falta de habilidade do preceptor.54
A função da escola e do docente é despertar a inteligência dos alunos. Para que
ela seja uma “verdadeira oficina de homens”,55 é necessária a consciência de
que não só o ensino é relevante, mas também a moral. Esta é compreendida
como a arte de formar costumes56 e possui dezesseis cânones fundamentais.57 No
contexto da moral, os pais devem dar exemplos de honestidade, serem perfeitos
guardiões da disciplina familiar, manterem os filhos longe das más companhias.
Tendo em vista que os males são aprendidos com maior facilidade,58 as amas
e os preceptores devem ser exemplos de orientação e cuidado aos jovens,59 já
que a moral é parte integrante do ensino transformador.
Além da moral, Comenius acrescenta à educação ou ao ensino a piedade,
definida por ele da seguinte forma:
52 Ibid., p. 60.
53 Ibid., p. 61.
54 Ibid., p. 62.
55 Ibid., p. 103.
56 Ibid., p. 263-270.
57Para discussão mais aprofundada, ler LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius, p. 172-176.
58 Ibid., p. 269.
59 Ibid., p. 268.
60 Ibid., p. 270.
61 Ibid., p. 273.
60
62 Ibid., p. 272.
63Para discussão mais aprofundada, ler LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius, p. 140-157.
64 Ibid., p. 142.
65 Ibid., p. 141.
66 COMENIUS, Didática magna, p. 97.
67 Ibid., p. 26.
68 Ibid., p. 29.
69 Ibid., p. 11, 97, 98.
70 Ibid., p. 97.
71 Ibid., p. 11.
61
rupção do gênero humano, ele exorta os seus leitores, uma vez conscientizados
quanto à seriedade e à importância de sua obra, a não qualificá-lo como teme-
rário por ter ousado escrever e prometer na Didática magna um único “método
que ensine tudo a todos”.72 E é assim que, segundo Cauly, surge pela primeira
vez na Europa, uma ciência sistemática da educação, isto é, a pedagogia:
A pedagogia de Comenius não teria provavelmente visto a luz do dia sem esta
fé na educação, enquanto meio de reconduzir os homens à verdade [...] uma
religião da educação, que recorre [...] à fé na sua capacidade de salvar o homem
das trevas onde parece estar imerso.73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir daí, uma obra de tão grande valor não poderia ficar restrita à Mo-
rávia ou a um determinado grupo religioso, mas deveria se tornar acessível a
todos os homens. Motivado, então, a escrever a Didática tcheca, com o mesmo
princípio traduziu-a do tcheco para o latim e denominou-a Didática magna,
a fim de que ela pudesse ser mais facilmente compreendida e estivesse ao al-
cance de um público maior.74 Ele “colocava aquilo que o Senhor lhe concedeu
observar à disposição de todos”, para que se tornasse algo comum.75
Fica explicitado aqui que para Comenius a educação é oriunda da graça e
misericórdia de Deus e que serve como remédio divino para a cura do gênero
humano, desde que esteja fundamentada na indissociabilidade do ensino, da
moral e da piedade.76
ABSTRACT
Comenius’ thought has been revisited by various researchers concerned
with discussing his pedagogy, considering that he is known as “the father of
modern pedagogy”. In contrast with this perspective, some researchers identify
Comenius as a theologian, emphasizing that while he was a pedagogue, his
main area of activity was theology. Starting from these contrasting perspectives,
the objective of this research is to demonstrate that the concept of education
found in Comenius can best be understood as based on the presupposition of a
fundamental inter-relationship between theology and pedagogy, since Comenius
did not distinguish between both. It is only with this presupposition that it is
possible to understand the motive for Comenius’ understanding of education
72 Ibid., p. 15.
73 CAULY, Comenius, p. 43, 45.
74 COMENIUS, Didática magna, p. 18.
75 Ibid., p. 16.
76 Ibid., p. 143.
62
as salvation from, or the divine remedy for the cure of, the corruption of the
human species, based on teaching, morals and piety, since education has as
its end the regeneration and the transformation of each person into a “garden
of delights for the Creator”.
KEYWORDS
Comenius; Theology; Moravians; Teaching, morality, and piety.
63