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ComCiência - O que pode ser entendido por cidade digital, e de que forma esse
conceito se relaciona com os atuais mapas cartográficos digitais?
Rodrigo Firmino - A expressão "cidade digital" pode ser entendida de várias formas, e
já foi atribuída a diversas manifestações que relacionam a cidade às tecnologias da
informação e comunicação. Em síntese, nos anos 1990, cidade digital era simplesmente
a representação de cidades e municipalidades na internet – ou ciberespaço, como
preferem alguns. Alessandro Aurigi publicou em 2005 um livro bem interessante sobre
o assunto chamado Making the digital city no qual explica em detalhes o nascimento da
expressão e sua associação a portais e websites na internet. Ele diferencia dois tipos
básicos de cidades digitais: a mais comum, onde há relação direta com municípios e
cidades reais, que chama de "grounded digital city", e aquelas sem relação alguma com
uma cidade real, criadas exclusivamente no meio digital. Uma cidade imaginada, ou um
website qualquer que se utiliza da metáfora do espaço urbano para facilitar a navegação
de seus visitantes.
ComCiência - É possível dizer que está surgindo uma nova forma de cartografia?
Em 2003 publiquei um artigo no Journal of Urban Technology, "Not just portals: virtual
cities as complex sociotechnical phenomena", em que defendo a ideia de um fenômeno
urbano chamado "cidades digitais" onde tecnologias e experiências digitais misturam-se
a materiais e a vivências mais tradicionais do/no espaço para ampliá-lo, alargando,
assim, nossas capacidades comunicativas na constituição do que hoje chamo de espaço
ampliado.
Firmino – Esses mapas funcionam por meio de uma composição complexa de mapas e
imagens em alta resolução e são possíveis somente pela construção contínua de
empresas e diversas bases de dados. O início dessas construções parte de alguma
iniciativa isolada ou privada (o Google Earth, por exemplo, vinha sendo desenvolvido
por uma outra empresa, Keyhole, comprada pela Google posteriormente) e que depois
ganha complexidade, de dados e de uso, pela adição de ferramentas, funcionalidades e
informações de forma colaborativa e individual ao mesmo tempo. Ou seja, ao mesmo
tempo em que a empresa desenvolvedora incrementa novas ferramentas como o Street
View – em que faz o levantamento de fotos a partir de pontos de vista dos próprios
lugares, com veículos munidos de câmeras especiais –, outras funcionalidades, como
links para a Wikipédia e fotos pessoais no Panoramio são acrescentadas e desenvolvidas
pelos próprios usuários.
Os edifícios em 3D, por exemplo, são modelados por usuários em todo mundo
utilizando outro aplicativo adquirido pela empresa Google, o Sketch Up, e depois
adicionado ao Google Earth individualmente. Assim, o avanço nessas ferramentas e
aplicativos, além de depender da própria empresa que os fornece – na atualização das
fotos de satélite, por exemplo –, deve grande parcela de seu sucesso à colaboração de
usuários anônimos. Isso acontece de forma semelhante com aplicativos cartográficos
que utilizam mapas e imagens de satélite. E, claro, há versões menos e mais
sofisticadas, sendo que as gratuitas têm menos funcionalidades que as versões pagas
(Google Earth x Google Earth Pro, por exemplo).
Firmino – A China tem uma relação especial com a internet e monitora completamente
o que pode ou não ser usado e visualizado pelos usuários chineses. Recentemente o
Google anunciou que não obedeceria mais aos controles do governo e vejo o
lançamento desse aplicativo como uma alternativa aos próprios programas do Google.
Para entender melhor a situação na China, é interessante ler um artigo de Zixue Tai, em
número do International Journal of Advanced Pervasive and Ubiquitous Computing
(Ijapuc): "Casting the ubiquitous net of information control: internet surveillance in
China from golden shield to green dam".
ComCiência - Qual o uso que governos e militares fazem de mapas digitais? São
usados sistemas próprios ou eles apenas mudam a maneira de usar os mapas já
disponíveis? Em termos técnicos e de qualidade das imagens há alguma diferença
em relação ao que é disponibilizado ao público?
Firmino – Claro que as diferenças são enormes. Os órgãos militares utilizam satélites
dedicados, com resoluções e especificações técnicas desconhecidas dos civis. Empresas
como a Google utilizam imagens de diversos satélites, mas todos comerciais, com
alcances sabidamente menores que os militares, mas que mesmo assim geram
preocupações aos militares. Diversos governos já se manifestaram publicamente contra
as imagens fornecidas por aplicativos como o Google Maps ou Earth. O próprio
Pentágono, do governo dos EUA, já solicitou a retirada de certas imagens do ar. Não sei
qualificar exatamente o que não é liberado e a comparação desses dados com os que se
tornam públicos, mas certamente há diferenças enormes em termos de resolução e
detalhes.
Firmino – Até onde eu conheço o sistema e essas discussões sobre segredos militares ou
invasão de privacidade, não deve haver problema com relação à confiabilidade das
imagens disponibilizadas, já que, em tese, as imagens não são "alteradas", mas há a
exclusão de imagens sensíveis ou de interesse específico. É bem claro que sistemas e
aplicativos que envolvam informações sensíveis – com discussões transferidas
diretamente para os níveis aceitáveis de invasão de privacidade pessoal e coletiva, ou
ainda de interesse governamental ou militar –, envolvem questões de ordem política,
econômica e cultural.
Firmino – Essas questões são fundamentais e devem ser mais bem discutidas.
Infelizmente, não estamos fazendo isso no momento, a não ser em círculos restritos,
acadêmicos e institucionais. A população não tem sido chamada para essa discussão,
principalmente no Brasil.
Ainda discutimos pouco, especialmente no que diz respeito ao uso cada vez mais
intensivo de tecnologias de informação e comunicação no controle e vigilância de
grupos, indivíduos e espaços. No Brasil há uma tendência em imputar aos sistemas
tecnológicos a responsabilidade de correção e resolução de problemas que na verdade
têm outra ordem. Não são técnicos, mas sociais, políticos e econômicos. O caso do
Google e seus dispositivos entram certamente no contexto mais amplo de todos esses
meus argumentos sobre as discussões e preocupações com a privacidade no Brasil, ou
seja, é um tema que não é debatido como deveria.
ComCiência - Já existe alguma pesquisa que mostre a reação dos brasileiros diante
dessa nova tecnologia?
Firmino – Creio que os limites do uso dessas ferramentas deve ser discutido pela
sociedade e regulamentado em marcos e leis. Em países com altos índices de
criminalidade, como os latino-americanos, há uma forte tendência de governantes, da
mídia e da população exaltarem o papel da tecnologia como instrumento de prevenção
ou punição de crimes e delitos. Não tenho conhecimento específico do uso de
aplicativos cartográficos nesse sentido, a não ser aquele já descrito, como mapeamento
de suspeições e riscos a partir de impressões individuais, por exemplo, e muito menos
de legislação específica para o uso dessas tecnologias com esse propósito. Entretanto,
isso já ocorre com outros dispositivos, como o uso da vídeo-vigilância, por exemplo, em
que há uma crença altamente discutível sobre a eficiência desses aparatos na prevenção
e controle de crimes e delitos em várias cidades do Brasil e do mundo.
Sabe-se, apenas para citar um exemplo, que no Reino Unido – país com o maior número
de câmeras de vigilância no mundo – a vídeo-vigilância não serve como forma de
prevenção de crimes e, segundo relatórios do próprio governo britânico, as câmeras já
nem criam mais a sensação de segurança nos cidadãos. Esses dispositivos têm sido
utilizados tão somente, ao contrário do que se anuncia comercialmente, como forma de
produção de provas criminais na justiça, nada mais.
Assim, como venho insistindo, o maior problema não é com este ou aquele uso
específico que se faz desses dispositivos que despertam nossa preocupação em um
primeiro momento, mas com qual equilíbrio entre controle e privacidade queremos para
nossas sociedades. Precisamos discutir essa forma de construir nossas relações
individuais e coletivas, e só a partir desse entendimento teremos condições maduras de
regular o uso específico de dispositivos tecnológicos para o controle e a vigilância.