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Jürgen Habermas

C O N H E C I M E N T O E INTERESSE
com um novo posfácio

Introdução e Tradução
JOSÉ N. H E C K

Revisão dc Texto
GUSTAVO BAYJER

A
Escola ds Ad.nlnlstroçS©
% 8I8LIUTÉCA r

Z A H A R EDITORES

RIO DE JANEIRO
T í t u l o original: Erkenntnis und Interesse

T r a d u ç ã o autorizada da segunda edição alemã,


publicada em 1973 por Suhrkamp Verlag, Frankfurt am M a i n ,
Alemanha Ocidental.

Copyright © by Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main,


1968, 1971 e 1973.

Todos os direitos reservados.


A r e p r o d u ç ã o não autorizada
desta p u b l i c a ç ã o , no todo ou em parte,
f r i e d B e r g h a h n
constitui violação d o copyright. ( L e i 5.988) Wü
(1930-1964)
Edição para o Brasil.
ao amigo inesquecível

Capa: L u i z Stein

JJÁ c i e -ò 0. S A
i

l 2 f

1982

Direitos para a edição brasileira adquiridos por


Z A H A R EDITORES S.A.
Caixa Postal 207 (ZC-00) R i o
que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil
ÍNDICE

Introdução

Prefácio

I A Crise da Crítica do Conhecimento

1. Crítica de Hegel a Kant:


radicalização ou supressão da teoria do conheci-
mento
2. Metacrítica de Marx a Hegel:
síntese mediante trabalho social
3. A idéia de uma teoria do conhecimento como teoria
da sociedade

II Positivismo, Pragmatismo e Historismo

4. Comte e Mach:
a i n t e n ç ã o do antigo positivismo
5. A lógica da pesquisa de C h . S. Pierce:
a aporia de um renovado realismo l ó g i c o - s e m â n t i c o
dos universais
6. Auto-reflexão das ciências da natureza:
a crítica pragmatista do sentido
7. Teoria da compreensão expressiva de Dilthey:
eu-identidade e c o m u n i c a ç ã o semântica
8. Auto-reflexão das ciências do espírito:
a crítica histórica do sentido
8 ÍNDICE

III C r í t i c a como Unidade de Conhecimento e Interesse

9. R a z ã o e interesse:
retrospecção — Kant e Fichte
10. Auto-reflexão como ciência:
a crítica psicanalítica do sentido em Freud
11. O auto-eqiiívoco cientificista da metapsicologia.
A lógica da interpretação genéxico-universal
12. Psicanálise e teoria societária.
A r e d u ç ã o dos interesses do conhecimento em INTRODUÇÃO
Nietzsche

Posfácio (1973)
B i b l i o g r a f i a
O nome Habermas dispensa, por certo, a p r e s e n t a ç ã o . Sua pro-
ximidade com os conhecidos representantes da E s c o l a de Frank¬
furt bem como a ampla r e p e r c u s s ã o de seus livros em inglês e
francês e a t r a d u ç ã o de alguns de seus textos tornaram seu pen¬
1
samento acessível no B r a s i l . Se, assim mesmo, me decidi a
uma breve i n t r o d u ç ã o foi para chamar a a t e n ç ã o do leitor para
certas peculiaridades de Conhecimento e interesse, O p r ó p r i o
autor achou oportuno acrescentar à e d i ç ã o de 1973 um posfá-
cio, relativamente extenso, onde comenta aspectos controverti¬
dos de sua obra.
Na esperança de, talvez, facilitar a leitura do livro e poder
contribuir para sua c o m p r e e n s ã o , antecipo t r ê s paradoxos que,
em meu entender, traspassam a a r g u m e n t a ç ã o do texto.

O nexo teoria-práxis
A t e n s ã o conceituai deste b i n ô m i o , genuinamente marxista,
2
Habermas a herdou da Escola de Frankfurt. Esta promovera,
respeitadas as diferenças entre Horkheimer, A d o r n o e Marcuse,

1
Cf. a excelente i n t r o d u ç ã o de Barbara Freitag e S é r g i o P. Rouanet. In
Habermas, S ã o Paulo, Editora Á t i c a , 1980, p, 9-67.
2
S L A T E R , Ph.: Origem e significado' da Escola de Frankfurt, Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1978.
210 CONHECIMENTO E INTERESSE

173) Gadamer analisa essa recaída no objetivismo de forma excepcional;


de qualquer maneira n ã o sou de o p i n i ã o que o possamos entender
cm base de um d i v ó r c i o entre c i ê n c i a e filosofia vitalista.
174) V I I , p. 213 et seqs.
175) VII, p. 204.
176) V , p. 317.
177) VII, p. 219.
178) VII, p. 213.
179) Ibidem
180) VII, p. 146.
181) I, 49/51 et seqs.
182) V , p. 258. III
183) Cf. meu ensaio " Z u r Logik der Sozialwissenschaften", op. cit., cap.
III, p. 95 et seqs. ;
184) VII, p. 188 (as n o í a s entre p a r ê n t e s e s s ã o do autor). CRÍTICA C O M O U N I D A D E DE
C O N H E C I M E N T O E INTERESSE

A r e d u ç ã o da teoria do conhecimento à teoria da ciência, a qual


o positivismo mais antigo encenou pela primeira vez, foi inter¬
ceptada por uma contracorrente que tem em Pierce e D i l t h e y seus
p r ó c e r c s mais exemplares. M a s a a u t o - r e f l e x ã o das c i ê n c i a s da
natureza c do e s p í r i t o apenas sustou, mas n ã o interrompeu a mar¬
cha vitoriosa do positivismo. Assim se explica por que os inte¬
resses orientadores do conhecimento, uma vez descobertos, pude¬
ram logo mais ser identificados como mal-entendidos p s i c o l ó g i c o s
e sucumbir à crítica do psicologismo; o positivismo mais recente
foi instaurado sobre os fundamentos desta crítica na forma de
um empirismo l ó g i c o e determina, até boje, a a u t o c o m p r e e n s ã o
cientificista das ciências.
Pela r e c o r r ê n c i a ao conceito do interesse da razão em K a n t ,
e sobretudo em Fichte, é p o s s í v e l clarear a c o n e x ã o entre conhe¬
cimento e interesse, descoberta metodologicamente, e p r e s e r v á - l a
frente às i n t e r p r e t a ç õ e s e r r ô n e a s . Verdade c que uma mera son¬
dagem h i s t ó r i c a junto à filosofia da r e f l e x ã o n ã o é capaz de rea¬
bilitar a dimensão da auto-reflexão. É por isso que o exemplo
da p s i c a n á l i s e nos irá servir de d e m o n s t r a ç ã o para o fato desta
d i m e n s ã o irromper no seio do p r ó p r i o positivismo: Freud elabo¬
rou uma moldura interpretativa para processos de f o r m a ç ã o , per¬
turbados e obliterados, os quais podem, a t r a v é s de uma reflexão
de o r i e n t a ç ã o t e r a p ê u t i c a , ser conduzidos para vias normais. N ã o
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 213
212 CONHECIMENTO E INTERESSE

há d ú v i d a de que ele precisamente n ã o concebeu sua teoria como ções p r ó p r i a s ) . As ciências experimentais, em sentido estrito, es¬
uma auto-reflexão universal em termos sistemáticos, mas como tão submetidas às c o n d i ç õ e s transcendentais da atividade instru¬
uma ciência experimental em termos estritos. Freud não formula mental, enquanto as ciências h e r m e n ê u t i c a s operam ao nível de
conscientemente aquilo que separa a psicanálise das ciências que uma atividade própria à c o m u n i c a ç ã o .
procedem de acordo com m é t o d o s e m p í r i c o - a n a l í t i c o s , nem da¬ Em ambos os casos a constelação da linguagem, da atividade
quelas que operam exclusivamente segundo critérios hermenêuti¬ e da experiência é basicamente diferente. No c í r c u l o funcional
cos; ele simplesmente atribui a psicanálise aos domínios da técnica do agir instrumental a realidade consitui-se como q u i n t a - e s s ê n c i a
analítica. Esta é a r a z ã o por que a teoria de Freud permanece um daquilo que, sob o ponto de vista de uma p o s s í v e l disponibilidade
bocado que a lógica positivista das ciências, desde então, em vão técnica, pode ser experimentado: à realidade objetivada em con¬
procura digerir e que o empreendimento behaviorista da pesquisa dições transcendentais corresponde uma e x p e r i ê n c i a restrita. A
inutilmente tenta integrar; de fato, p o r é m , a auto-reflexão encober¬ linguagem dos enunciados e m p í r i c o - a n a l í t i c o s acerca da realidade
ta, a qual constitui a pedra de e s c â n d a l o da psicanálise, não se toma corpo sob as mesmas c o n d i ç õ e s . P r o p o s i ç õ e s t e ó r i c a s fazem
torna r e c o n h e c í v e l como tal. Nietzsche é um dos poucos contem¬ parte de uma linguagem formalizada ou, no m í n i m o , passível de
p o r â n e o s que unem a sensibilidade para a amplitude das investi¬ f o r m a l i z a ç ã o . De acordo com sua forma l ó g i c a trata-se de cál¬
gações m e t o d o l ó g i c a s com a capacidade de se movimentar, sem culos que, por meio de uma m a n i p u l a ç ã o ordenada dos signos,
alarde, na d i m e n s ã o da a u t o - r e f l e x ã o . Mas exatamente ele, um n ó s mesmos produzimos e cada qual pode reconstruir a qualquer
d i a l é t i c o do antiiluminismo, faz tudo para denegar, na forma da momento. Sob as condições de um agir instrumental a linguagem
auto-reflexão, a força da reflexão, abandonando ao psicologismo pura constitui-se como q u i n t a - e s s ê n c i a de tais c o n e x õ e s simbóli¬
os interesses orientadores do conhecimento, dos quais, na verda¬ cas, as quais podem ser engendradas a t r a v é s de um ato o p e r a t ó r i o
de, ele estava plenamente convencido. de acordo com leis estabelecidas. A "linguagem pura" deve-se a
uma abstração operada a partir do material desordenado das l i n ¬
guagens ordinárias, tanto quanto a "natureza" objetivada deve-se
9. Ramo e interesse: retrospecção — Kant e Fichte a uma abstração feita a partir do material c a ó t i c o da e x p e r i ê n c i a
cotidiana. U m a e outra, a linguagem restrita, n ã o menos do que
a experiência delimitada, são definidas pelo fato de resultarem de
Picrce incentivou a auto-reflexão das ciências naturais, Dilthey a
o p e r a ç õ e s , sejam essas efetuadas com signos ou com corpos mó¬
das ciências do e s p í r i t o ; ambos até um ponto em que os interesses
veis. A s s i m como o agir instrumental em si, t a m b é m o emprego
orientadores do conhecimento se tornaram p a l p á v e i s . A pesquisa
lingüístico que o integra é m o n o l ó g i c o . E l e assegura às proposi¬
empírico-analítica é a continuação sistemática de um processo
ções teóricas uma coerência s i s t e m á t i c a entre si, e isso de acordo
cumulativo de aprendizagem, o qual se exerce, ao nível pré-cien-
com regras dedutivas cogentes. A função transcendental da ati¬
tífico, no círculo funcional do agir instrumental. A investigação
vidade instrumental é corroborada por processos relativos à arti¬
h e r m e n ê u t i c a dá uma forma m e t ó d i c a a um processo de com¬
culação de teoria e experiência: a observação sistemática possui
p r e e n s ã o entre i n d i v í d u o s (e da c o m p r e e n s ã o de si) que, na fase
a forma de uma d e m o n s t r a ç ã o experimental (ou quase experi¬
pré-científica, está integrada em um complexo de tradições, pró¬
mental), permitindo registrar sucessos de o p e r a ç õ e s m e n s u r á v e i s .
prio a i n t e r a ç õ e s medializadas simbolicamente. No primeiro caso Estas tornam possíveis a p r e d i c a ç ã o irreversivelmente u n í v o c a de
trata-se da p r o d u ç ã o de um saber tecnicamente explorável, no acontecimentos, constados por v i a operativa, a signos interligados
segundo, da e l u c i d a ç ã o de um saber praticamente eficaz. A anᬠde modo sistemático. Caso ao quadro da pesquisa e m p í r i c o - a n a -
lise empírica descerra o pano da realidade sob o ponto de vista lítica correspondesse um sujeito transcendental, a medida seria
da disponibilidade técnica possível sobre processos objetivados a realização sintética que o caracterizaria de forma mais g e n u í n a .
da natureza, enquanto a h e r m e n ê u t i c a assegura a intersubjetivi- É por isso que apenas uma teoria do medir pode esclareeer as
dade de uma c o m p r e e n s ã o entre i n d i v í d u o s , capaz de orientar a condições de objetividade de um conhecimento possível no sen¬
a ç ã o (horizontalmente, em vista da i n t e r p r e t a ç ã o de culturas es¬ tido das ciências nomológicas.
tranhas, e verticalmente, tendo em vista a a p r o p r i a ç ã o de tradi-
214 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 215

No contexto do agir inerente à comunicação a linguagem e


a e x p e r i ê n c i a n ã o se apresentam sob as c o n d i ç õ e s transcendentais materna e motivado, em termos genéricos, para o exercício da
da ação enquanto tal. Pelo c o n t r á r i o , uma função transcendental i n t e r p r e t a ç ã o , n ã o opera em junção de regras transcendentais, mas
cabe, muito mais, à g r a m á t i c a da linguagem cotidiana, a qual ao nível dos p r ó p r i o s complexos transcendentais. E l e n ã o pode
regula, ao mesmo tempo, elementos n ã o - v e r b a i s de uma p r á x i s decifrar o c o n t e ú d o da e x p e r i ê n c i a de um texto, legado por tradi-
vital exercida habitualmente. Uma gramática dos jogos de l i n - d i ç ã o , senão em í n t i m o contato com a constituição transcendental
guagem entrelaça símbolos, ações e expressões; ela fixa os esque- de um mundo do qual ele, enquanto tal, faz parte. Teoria e ex¬
mas de apreensão da mundividência e da interação. As regras periência n ã o se afirmam aqui, diferentemente do que ocorre
gramaticais definem o terreno de uma fragmentada intersubjeti- nas ciências e m p í r i c o - a n a l í t i c a s , como grandezas separadas. A in¬
vidade entre i n d i v í d u o s socializados; e não podemos engajar-nos t e r p r e t a ç ã o , que precisa entrar em ação no momento em que
nesse plano senão na medida em que internalizamos tais regras entra em crise uma e x p e r i ê n c i a comunicativa, comprovada sob
— como participantes socializados e n ã o como observadores im¬ os esquemas comuns da a p r e e n s ã o do mundo e da ação, n ã o visa
parciais. A realidade constitui-se ma moldura de uma forma vital só às experiências adquiridas no seio de um mundo c o n s t i t u í d o
exercitada por grupos que se comunicam e organizada nos termos pela linguagem o r d i n á r i a , mas t a m b é m às regras gramaticais,
da linguagem o r d i n á r i a . Nesse sentido é real aquilo que pode correspondentes ao ato-de-constituir o mundo enquanto tal. Esta
ser experimentado de acordo com a i n t e r p r e t a ç ã o de uma simbó¬ interpretação é, simultaneamente, análise lingüística e experiên¬
l i c a vigente. Nessa medida podemos conceber a realidade sob cia. E l a corrige, em c o n s e q ü ê n c i a , suas antecipações h e r m e n ê u ¬
o ponto de vista da m a n i p u l a ç ã o técnica possível, e apreender a ticas, apoiando-se sobre um consenso de interlocutores, a l c a n ç a d o
e x p e r i ê n c i a operacional correspondente como sendo um caso l i ¬ de acordo com regras gramaticais — t a m b é m nesse sentido ex¬
mite. Este caso limite possui os seguintes caracteres: a linguagem periência e p e r c e p ç ã o analítica convergem de uma forma toda
está dissociada das interações nas quais se encontra engajada e . particular.
tende a ser m o n o l ó g i c a ; a atividade está separada da comunica- . Pierce e Dilthey desenvolvem a metodologia das ciências da
ção c reduzida ao ato solitário dc uma u t i l i z a ç ã o dc recursos natureza e do espírito como lógica da investigação e concebem,
racionais-finalistas; por fim, a experiência biográfica individuali¬ cada qual por sua vez, o processo da pesquisa a partir de um
zada está eliminada cm favor da experiência repetitiva dos su¬ complexo vital objetivo, seja este entendido como técnica ou como
cessos do agir instrumental — cm suma, as c o n d i ç õ e s da ativi¬ práxis da vida. A lógica da ciência recupera assim a d i m e n s ã o
dade p r ó p r i a à c o m u n i c a ç ã o encontram-se, precisamente aqui, da teoria do conhecimento, a qual a teoria positivista da ciência
suprimidas. Se concebermos o quadro transcendental da atividade abandonara: como outrora a lógica transcendental, assim ela pro¬
instrumental desta maneira, como uma v a r i a ç ã o extremada de cura uma resposta para a q u e s t ã o das condições a priori de todo
mundos vitais constituídos pela linguagem o r d i n á r i a (e, mais pre¬ conhecimento. Não há dúvida, porém, que para a lógica da ciência
cisamente, como realidade na qual todos os mundos vitais, histo¬ estas c o n d i ç õ e s n ã o são mais em-si, mas t ã o - s o m e n t e para o
ricamente individualizados, devem chegar a um acordo no abs¬ processo i n v e s t i g a t ó r i o . O exame l ó g i c o - i m a n e n t e do progresso
trato), e n t ã o ficará claro que o modelo da atividade de um agir nas ciências empírico-analíticas e o avanço do modo explicativo
próprio à comunicação não exerce, para as ciências hermenêu¬ da h e r m e n ê u t i c a n ã o tardam a encontrar seus limites: sob o visor
ticas, uma função transcendental e q u i p a r á v e l à q u e l a que o qua¬ da lógica nem a c o n e x ã o dos modos-de-concluir, analisados por A

dro da atividade instrumental possui para as ciências n o m o l ó g i c a s .


Pierce, nem a d i n â m i c a circular da interpretação, apreendida por
Pois, o d o m í n i o do objeto das ciências do espírito n ã o se cons¬
Dilthey, podem ser consideradas satisfatórias. Como são possí¬
titui exclusivamente nas condições transcendentais da metodolo¬
veis a indução, por um lado, e o círculo hermenêutico, por
gia da pesquisa; na verdade, deparamos com ele como algo já
outro, isto não pode ser mostrado por i n t e r m é d i o da lógica mas,
c o n s t i t u í d o . As regras de qualquer i n t e r p r e t a ç ã o e s t ã o , por certo,
exclusivamente, nos termos de uma teoria do conhecimento. Em
fixadas pelo modelo das i n t e r a ç õ e s mediatizadas por s í m b o l o s uni¬
ambos os casos trata-se de regras que objetivam a t r a n s f o r m a ç ã o
versais. M a s o i n t é r p r e t e , uma vez socializado em sua linguagem
lógica de s e n t e n ç a s ; sua validade somente se torna plausível
quando as p r o p o s i ç õ e s transformadas são comprometidas, u priori,
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com determinadas categorias inerentes a determinadas experiên¬ p í r i c o - a n a l í t i c a s exploram a realidade na medida em que esta se
cias no interior de um quadro transcendental, seja este da ordem manifesta no raio da atividade instrumental; enunciados nomo-
do agir instrumental ou próprio a uma forma vital, constituída lógicos acerca deste d o m í n i o do objeto e s t ã o assim presos, de
pela linguagem cotidiana. T a l sistema de referências possui um acordo com seu sentido imanente, a um determinado contexto
peso valorativo transcendental, mas ele determina a arquitetura de aplicação — eles apreendem a realidade em vista de uma
dos processos i n v e s t i g a t ó r i o s e n ã o a da c o n s c i ê n c i a transcenden¬ disponibilidade técnica que, em condições específicas, é sempre
tal em si. A lógica das ciências da natureza e dó espírito não se e em toda parte possível. As c i ê n c i a s h e r m e n ê u t i c a s n ã o explo¬
ocupa, como a lógica transcendental, com a organização da razão ram a realidade sob um outro ponto de vista transcendental; elas
pura e t e ó r i c a , mas com as regras m e t o d o l ó g i c a s , tendo em vista têm por objetivo, muito mais, uma e l a b o r a ç ã o transcendental de
a o r g a n i z a ç ã o dos processos de pesquisa. Tais regras n ã o con¬ diversas formas fáticas de vida, no interior das quais a realidade
tinuam tendo o status de puras regras transcendentais; elas pos¬ é interpretada de maneira diferente, em função de g r a m á t i c a s
suem um peso valorativo transcendental, mas irrompem em co¬ que formulam o mundo e da atividade que o transforma; é por
n e x õ e s vitais p r á t i c a s : a partir das estruturas de uma espécie que isso que, rastreando seu sentido imanente, as p r o p o s i ç õ e s da her¬
reproduz sua vida a t r a v é s de processos de aprendizagem, pró¬ m e n ê u t i c a visam um contexto de a p l i c a ç ã o correspondente —
prios ao trabalho social organizado, da mesma forma do que por elas apreendem interpretações da realidade em vista da intersub-
meio de processos de compreensão, próprios a interações mediati- jetividade de uma compreensão mútua, suscetível de orientar a
zadas pela linguagem cotidiana. Na i n t e r d e p e n d ê n c i a de tais re¬ ação para uma situação hermenêutica inicial. Falamos, portanto,
l a ç õ e s vitais subjacentes mede-se, por isso, o sentido da validade de um interesse técnico ou prático na medida em que, através
de p r o p o s i ç õ e s que podem ser obtidas no seio dos sistemas de dos recursos da lógica da pesquisa, as c o n e x õ e s vitais da atividade
r e f e r ê n c i a quase transcendentais dos processos i n v e s t i g a t ó r i o s nas instrumental e das i n t e r a ç õ e s mediatizadas pelos s í m b o l o s p r é -
c i ê n c i a s da natureza e do espírito: o saber n o m o l ó g i c o é tecnica¬ molduram o sentido da validade de enunciados possíveis de tal
mente utilizável da mesma forma como o saber h e r m e n ê u t i c o é forma que estes, enquanto representam conhecimentos, n ã o pos¬
praticamente eficaz. suem outra função s e n ã o aquela que lhes c o n v é m cm tais con¬
Remeter o quadro das ciências n o m o l ó g i c a s e h e r m e n ê u t i c a s textos vitais: serem a p l i c á v e i s tecnicamente ou serem pratica¬
a um conjunto vital, bem como à correspondente d e d u ç ã o do mente eficazes.
sentido da validade relativa a enunciados provindos de interesses O conceito do "interesse" n ã o deve sugerir uma r e d u ç ã o
cognitivos, torna-se n e c e s s á r i o no momento em que um sujeito naturalista de d e t e r m i n a ç õ e s transcendentais a dados e m p í r i c o s
transcendental e s u b s t i t u í d o por uma espécie que se reproduz em mas, pelo c o n t r á r i o , evitar que uma tal r e d u ç ã o venha a ser ine¬
c o n d i ç õ e s culturais, isto é, que não se constitui, ela própria, senão vitável. Interesses capazes dc orientar o saber (o que n ã o posso
em um processo de f o r m a ç ã o a constituir a espécie. Os proces¬ ainda demonstrar aqui, mas apenas asseverar) mediatizam a his¬
sos de pesquisa — e esta espécie nos interessa, antes de tudo, tória natural com base na lógica de seu processo formativo; mas
como sujeito de tais processos — são partes do processo forma-, estes interesses não podem ser invocados para reduzir a lógica a
tivo global que perfaz a história desta espécie. As condições de alguma base natural. Chamo de interesses as o r i e n t a ç õ e s b á s i c a s
objetividade de uma experiência possível, as quais estão fixadas que aderem a certas c o n d i ç õ e s fundamentais da r e p r o d u ç ã o e da
pela moldura transcendental do processo i n v e s t i g a t ó r i o das ciên¬ a u t o c o n s t i t u i ç ã o p o s s í v e i s da espécie humana: trabalho e inte¬
cias da natureza e do espírito, n ã o apenas n ã o mais explicitam ração. E por isso que cada uma destas o r i e n t a ç õ e s fundamentais
o sentido transcendental de um conhecimento finito, restrito às n ã o visam à satisfação de necessidades e m p í r i c a s e imediatas,
formas f e n o m ê n i c a s enquanto tais; elas p r é - m o l d u r a m , muito mas à solução de problemas sistêmicos propriamente ditos. N ã o
mais, um determinado sentido dos modos m e t ó d i c o s do conhecer, há dúvida de que aqui não é possível falar em soluções de pro¬
como t a l ; e isso, a cada vez, de acordo com um critério p r ó p r i o blemas senão em termos aproximativos. Pois, interesses capazes
à c o n e x ã o vital objetiva, a qual aflora de dentro para fora da de orientar o conhecimento n ã o devem ser definidos em base de
estrutura de ambas as direções i n v e s t i g a t ó r i a s . As c i ê n c i a s em- c o n s t e l a ç õ e s p r o b l e m á t i c a s ; essas só podem irromper como pro-
218 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 219

blemas no interior de um quadro m e t o d o l ó g i c o determinado p o i


esses mesmos interesses. Os interesses orientadores do conheci¬ tuir, foi desenvolvido por Hegel e retomado por M a r x em termos
mento deixam-se avaliar unicamente pelos problemas objetivos de p r e s s u p o s i ç õ e s materialistas. Sobre a base do positivismo, o re¬
da c o n s e r v a ç ã o da vida, os quais receberam resposta a t r a v é s da tomo imediato a esta idéia deveria afigurar-se como um retorno
forma cultural da existência. Trabalho e i n t e r a ç ã o englobam ipso à m e t a f í s i c a ; deste ponto não há senão um legítimo caminho de
jacto processos de aprendizagem e de c o m p r e e n s ã o r e c í p r o c a ; e volta; este é percorrido por Pierce e Dilthey, na medida em que
a partir de um estágio determinado de desenvolvimento tais pro¬ eles refletem sobre a gênese das ciências a partir de um complexo
cessos necessitam estar assegurados na forma de uma i n v e s t i g a ç ã o vital objetivo e praticam, assim, a metodologia na perspectiva da
m e t ó d i c a , caso o processo formativo da e s p é c i e n ã o deva correr teoria do conhecimento. M a s aquilo que fazem, isto nem um nem
o risco de uma estagnação. Pelo fato de a r e p r o d u ç ã o da vida outro percebem. Caso c o n t r á r i o eles n ã o poderiam ter-se sub¬
estar determinada culturalmente, ao n í v e l a n t r o p o l ó g i c o , pelo traído à experiência da reflexão desenvolvida por Hegel na Fe-
trabalho e pela i n t e r a ç ã o , os iriteresses do conhecimento com¬ nomenologia. Penso aqui na experiência da força emancipatória
prometidos com as c o n d i ç õ e s existenciais deste trabalho e desta da reflexão, que experimenta em si o sujeito na medida em que
i n t e r a ç ã o , n ã o podem ser concebidos nos quadros referenciais da ela p r ó p r i a se torna, a si mesma, transparente na h i s t ó r i a de sua
biologia, próprios à reprodução e à conservação da espécie. A gênese. A experiência da reflexão articula-se, em termos de con¬
r e p r o d u ç ã o da vida social — os interesses orientadores do co¬ t e ú d o , no conceito do processo formativo; metodicamente ela
nhecimento n ã o passariam de um mal-entendido, fossem eles leva a um ponto de vista a partir do qual a identidade da r a z ã o
entendidos como mera função desta vida — n ã o pode, de forma com a vontade resulta como que espontaneamente. Na auto-re-
alguma, ser adequadamente caracterizada sem o recurso às fon¬ flexão um conhecimento entendido com o fim em si mesmo
tes culturais da r e p r o d u ç ã o , isto é, sem recorrer a um processo de chega a coincidir, por força do próprio conhecimento, com o
f o r m a ç ã o que i m p l i c a , sempre já, o conhecimento sob estas duas interesse e m a n c i p a t ó r i o ; pois, o ato-de-executar da reflexão sa¬
formas. É por isso que o "interesse do conhecimento" perfaz be-se, simultaneamente, como movimento da e m a n c i p a ç ã o . Ra¬
uma categoria sui gencris, a qual tampouco sc sujeita à d i s t i n ç ã o z ã o encontra-se, ao mesmo tempo, submetida ao interesse por cia
entre d e t e r m i n a ç õ e s e m p í r i c a s c transcendentais ou fáticas c sim¬ mesma. Podemos dizer que ele persegue um interesse emanci-
b ó l i c a s como à q u e l a entre d e t e r m i n a ç õ e s inerentes à m o t i v a ç ã o p a t ó r i o do conhecimento e que este tem por objetivo a r e a l i z a ç ã o
e ao conhecimento. Pois, conhecimento n ã o é nem mero instru¬ da reflexão.
mento de a d a p t a ç ã o de um organismo a um circum-ambiente em
As coisas por certo se apresentam da seguinte maneira: a
alteração, nem ato m o m e n t â n e o de um puro ser racional e, como
categoria do interesse, suscetível de orientar o conhecimento, é
contemplação, subtraído às conexões da vida enquanto tal.
chancelada pelo interesse inato à r a z ã o . Interesse cognitivo téc¬
Pierce e Dilthey defrontaram-se com os interesses- que cons¬ nico e p r á t i c o só podem ser entendidos isentos de a m b i g ü i d a d e —
tituem a base do conhecimento científico, mas eles n ã o os refle¬ isto é, sem decaírem ao nível de uma psicologização ou reaviva¬
tiram. Eles n ã o elaboraram o conceito do interesse capaz de rem os critérios de um novo objetivismo — como interesse orien¬
orientar o conhecimento e, na verdade, n ã o entenderam aquilo tador do conhecimento em base de sua c o n e x ã o com o interes¬
que tal conceito toma por objetivo. N ã o há d ú v i d a dc que eles se emancipatório do conhecimento da reflexão racional. Pelo
analisaram a constituição do fundamento da lógica investigatória fato de Pierce e Dilthey n ã o entenderem sua metodologia como
nas c o n d i ç õ e s gerais da v i d a ; mas eles só poderiam ter identifi¬ a a u t o - r e f l e x ã o da ciência, que ela na verdade é, eles n ã o atin¬
cado as orientações fundamentais da ciências empírico-analíticas gem o ponto de i n t e r s e c ç ã o entre conhecimento e interesse.
e h e r m e n ê u t i c a s como interesses a orientar o conhecimento no • O conceito do interesse da razão já irrompe na filosofia trans-
quadro que, a rigor, lhes era estranho, a saber: no interior da cendental de Kant; mas somente Fichte pode, após haver subor¬
c o n c e p ç ã o de uma história da espécie considerada como processo dinado a r a z ã o t e ó r i c a à p r á t i c a , desdobrar o conceito no sentido
formativo. A idéia de um processo de f o r m a ç ã o no qual o su¬ de um interesse e m a n c i p a t ó r i o , inerente como tal à r a z ã o em a ç ã o .
jeito da espécie tem, pela primeira vez, c o n d i ç õ e s para se consti- • O interesse por excelência é aquele do bem-estar que com¬
binamos com a idéia da existência de um objeto ou uma ação.
CRÍTTCA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 221
220 CONHECIMENTO E INTERESSE

pulsos e m p í r i c o s ; uma e x p l i c a ç ã o da liberdade só seria (assim)


O interesse toma por objetivo o existir, eis que exprime uma
possível através do recurso às leis da natureza. O que denomi¬
r e l a ç ã o do objeto que interessa para com nossa capacidade de
desejar. O interesse p r e s s u p õ e uma necessidade, ou então o in¬ namos liberdade só se deixaria explicar pelo fato de qualificar¬
1
teresse engendra uma necessidade. A esta d i s t i n ç ã o corresponde mos um interesse que leva os homens a obedecer às leis morais.
aquela do interesse e m p í r i c o è do interesse puro. Kant a introduz De outro modo a o b e d i ê n c i a de tais leis n ã o e q ü i v a l e r i a a um
em vista da razão prática. O bem-estar prático naquilo que cha¬ agir moral e, por conseguinte, n ã o seria um agir l i v r e , caso esta
mamos de bem, isto é, a p e r c e p ç ã o prazeirosa das ações deter¬ o b e d i ê n c i a tivesse por base uma m o t i v a ç ã o sensitiva. Seja como
minadas pelos "princípios da r a z ã o é um interesse puro. Enquanto for, o sentimento moral atesta algo assim como um interesse efe¬
a vontade age por deferência frente às leis da razão prática, ela tivo na execução das leis morais, a saber, a i n t e n ç ã o de que se
possui um interesse no bem mas n ã o age por interesse: torne realidade "o magnífico ideal de um reino universal de fins
em si mesmos (de seres r a c i o n a i s ) , aos quais n ó s n ã o podemos
"A primeira constelação designa o jmteresso prático na ação, a segunda
pertencer como membros s e n ã o quando nos comportarmos zelo¬
o interesse patológico no objeto da ação. A primeira apenas mostra a samente de acordo com as m á x i m a s da liberdade como se fossem
4
dependência da vontade dos princípios da r a z ã o em si, a segunda dos leis da natureza". A q u i n ã o pode tratar-se, por d e f i n i ç ã o , de
princípios da mesma ( r a z ã o ) posta a serviço da i n c l i n a ç ã o , eis que a r a z ã o um interesse sensitivo; em c o n s e q ü ê n c i a devemos contar com um
apenas indicia a regra p r á t i c a pela qual a necessidade da i n c l i n a ç ã o pode
interesse puro, na verdade, c o m um efeito subjetivo, o qual a
ser satisfeita. No primeiro caso me interessa a ação, no segundo o objeto
2
lei da r a z ã o exerce sobre a vontade. Kant vê-se forçado a atri¬
da ação (enquanto ela me é gratificante)".
buir à r a z ã o uma causalidade em o p o s i ç ã o à faculdade natural
do desejar; para ser p r á t i c a essa causalidade racional precisa ser
O interesse ( p a t o l ó g i c o ) dos sentidos naquilo que é agradá¬
capaz de afetar a sensitividade:
vel ou útil decorre da necessidade; o interesse ( p r á t i c o ) da r a z ã o
naquilo que chamamos de bem desperta uma necessidade. No
primeiro caso a faculdade dc desejar 6 estimulada por urna i n c l i ¬ "Para que alguém, racionai e simultaneamente afetado pela sensitividade,
queira aquilo que somente a razão prescreve como imperativo para a ação,,
n a ç ã o , no segundo caso ela 6 determinada pelos p r i n c í p i o s da
é sem d ú v i d a n e c e s s á r i o que a r a z ã o possua uma faculdade de lhe incutir
r a z ã o . Em analogia com a inclinação sensitiva, enquanto desejos um sentimento de prazer ou de bem-estar, ligado ao cumprimento do
habituais, podemos falar de uma inclinação intelectual isenta de dever; cm c o n s e q ü ê n c i a , uma causalidade dela mesma, no sentido de de-
influências sensuais, desde que ela se tenha cristalizado como uma terminar a sensibilidade de acordo com seus próprios printíípios. Mas é
atitude pennamente a partir de um interesse puro: dc todo impossível compreender, isto é, tornar conceitualmente claro,
como uma simples i d é i a , a qual n ã o c o n t é m nada de s e n s í v e l em si, pro¬
duza uma sensação de prazer ou de desprazer; pois, aqui se trata de
"Embora onde deva ser admitido um puro interesse da r a z ã o n ã o possa
uma e s p é c i e particular de causalidade, acerca da qual não podemos de¬
ser possível predicar-lhe um interesse (provido) da inclinação, mesmo
terminar absolutamente nada a priori, como n ã o o podemos sobre qual¬
assim podemos, conformando-nos ao uso do linguajar corrente, conceder
quer causalidade mas para o qual devemos, única e exclusivamente, re¬
a uma i n c l i n a ç ã o , mesmo para aquilo que só pode ser objeto de um pra- 6
correr à e x p e r i ê n c i a " .
zer intelectual, um desejo habitual, e isso a partir do interesse puro da
razão; tal inclinação n ã o seria, porém, a causa mas, sim, o efeito deste
(último) interesse; poderíamos designá-lo a inclinação livre-de-sentidos A tarefa de explicar a liberdade da vontade rompe inespe¬
(propensio mtellectuaUs)".^
radamente o quadro da lógica transcendental; pois, a maneira de
p ô r a q u e s t ã o — como a liberdade é p o s s í v e l ? — nos engoda
A função sistemática do conceito de interesse, peculiar à com o fato de que, frente à r a z ã o p r á t i c a , nos estamos infor¬
razão prática pura, fica clara na última seção dos Fundamentos mando acerca das c o n d i ç õ e s da liberdade real e n ã o da liberdade
da metafísica dos costumes. Sob o título "Os limites extremos p o s s í v e l . Na verdade, esta q u e s t ã o p õ e - s e da seguinte maneira:
de toda filosofia prática" Kant expõe a questão da possibilidade como pode a r a z ã o pura ser p r á t i c a ? Este é o motivo por que
da liberdade. E x p l i c a r a liberdade da vontade é uma tarefa pa¬ somos obrigados a nos referir a um momento racional que, se-
radoxal, eis que ela é definida pela i n d e p e n d ê n c i a frente aos i m -
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 223-
2 2 2 CONHECIMENTO E INTERESSE

perfaz um fato contingente que n ã o pode ser admitido a priori.


gundo K a n t é propriamente i n c o m p a t í v e l com as d e t e r m i n a ç õ e s Neste sentido um interesse engendrado pela r a z ã o i m p l i c a tam¬
da r a z ã o , a saber: um interesse da r a z ã o . N ã o há dúvida de b é m um momento que determina a r a z ã o . T a l r a c i o c í n i o conduzA
que a r a z ã o n ã o pode estar submetida às c o n d i ç õ e s e m p í r i c a s porém, a uma gênese não-empírica da razão, ainda que não intei¬
da sensitividade; mas a idéia do estar-ajetado-da-sensitividaãe ramente dissociada da e x p e r i ê n c i a , o que na verdade constitui
pela razão, tornando p o s s í v e l um interesse através de uma ativi¬ um absurdo de acordo com as d e t e r m i n a ç õ e s da filosofia trans¬
dade que o b e d e ç a às leis morais, tal idéia apenas aparentemente cendental. Kant é c o n s e q ü e n t e ao abordar este absurdo n ã o como
protege a r a z ã o contra ingredientes e m p í r i c o s . Caso o efeito desta uma aparência transcendental da razão prática; ele se dá por sa¬
causalidade especial da r a z ã o , o bem-estar p r á t i c o puro, forA ape¬ tisfeito em constatar que o bem-estar p r á t i c o puro nos assegura
nas contingente e, como tal, t ã o - s ó engendrado pela experiência, que a r a z ã o pura pode ser p r á t i c a sem que estejamos em con¬
e n t ã o t a m b é m a causa deste bem-estar só p o d e r á ser pensada dições de compreender como isto seja possível. A causa da l i ¬
•como um factum. A figura conceituai de um interesse determi- berdade n ã o é empírica, mas ela t a m b é m n ã o é apenas intelec¬
nado unicamente pela r a z ã o pode distinguir tal interesse _ dos tual; nós a podemos qualificar como um fato mas n ã o a entender.
impulsos meramente fatuais, mas isso sob a c o n d i ç ã o de injetar O designativo "interesse puro" remete-nos a uma base da r a z ã o :
um momento de faticidade no miolo da p r ó p r i a r a z ã o . Um inte¬ somente essa garante as c o n d i ç õ e s da r e a l i z a ç ã o da r a z ã o , muito-
resse puro n ã o é c o n c e b í v e l s e n ã o sob a p r e s s u p o s i ç ã o de que embora ela n ã o possa ser reduzida aos p r i n c í p i o s racionais; pe¬
a r a z ã o , na medida em que ela inspire um sentimento de prazer, lo c o n t r á r i o , como fato de uma ordem superior, esta base sus¬
•obedeça ela mesma a uma inclinação, independente da questão tenta os p r i n c í p i o s da r a z ã o . T a l base da razão está comprovada
•de saber algo sobre a diferença entre essa i n c l i n a ç ã o e as chama¬ pelos interesses da r a z ã o , mas ela é arredia ao conhecimento;
das inclinações imediatas — no âmago da razão afirma-se a pul- caso esse chegasse ao nível da liberdade, ele n ã o deveria ser nem
-são que visa a execução do que é racional. Isto não é, porém, e m p í r i c o , nem puro mas tanto um quanto outro, É por isso que
c o n c e b í v e l nos termos das d e t e r m i n a ç õ e s transcendentais. E ou¬ Kant previne contra a t r a n s g r e s s ã o cios limites extremos da r a z ã o
tra coisa K a n t n ã o concede nos limites extremos de toda filo¬ pura p r á t i c a , pois aqui, diferentemente do que ocorre nos limites
sofia p r á t i c a : o nome dc um interesse puro exprime este dado da razão teórica aplicada, a razão não ultrapassa a experiência
i n c o n c e b í v e l — uma r e l a ç ã o causai entre r a z ã o e sensitividade mas, sim, a experiência do sentimento moral vai além da razão.
•como elo que garante a existência do sentimento moral: O "interesse puro" c um conceito-limite que articula uma expe¬
riência inconcebível:
" O r a , como esta ú l t i m a (causalidade) n ã o pode oferecer nenhuma i e l a ç ã o
entre causa e efeito senão aquela entre dois objetos da experiência, "Ora, como uma r a z ã o pura, sem outros impulsos s e n ã o aqueles engendra-
como aqui a r a z ã o pura deve ser, a t r a v é s dc i d é i a s simples (as quais, n ã o dos por ela mesma, pode ser p r á t i c a , isto é, como o simples princípio da
liberam objeto algum para a e x p e r i ê n c i a ) , a causa de u m efeito (a saber, validade universal dc todas as máximas enquanto leis..., sem matéria,
a satisfação que se tem ao cumprir o dever) que, por certo, so encontra alguma da vontade e na qual p u d é s s e m o s dc a n t e m ã o ter interesse, pode
na e x p e r i ê n c i a , a n ó s homens permanece de todo i m p o s s í v e l explicar por conceder a si mesmo uma p u l s ã o e produzir um interesse que c h a m á s s e ¬
•que e como nos interessam, a universalidade da máxima enquanto lei c, mos puramente moral; ou, em outros termos, como pode uma ramo ser
0
por conseguinte, (também) a moralidade". prática? Para explicar isto a r a z ã o humana é, em sua totalidade, abso¬
lutamente incapaz, e todo e s f o r ç o e labor para encontrar uma e x p l i c a ç ã o -
7
permanecem i n f r u t í f e r o s " .
O conceito do interesse puro possui um peso valorativo
•sui generis no interior do sistema kantiano. E l e determina um
fato sobre o qual nossa certeza acerca da realidade da r a z ã o M a s , curiosamente, Kant transfere o conceito do interesse
p r á t i c a pode se apoiar. N ã o há d ú v i d a de que este fato n ã o se puro, o qual ele desenvolvera a propósito da razão prática, a to¬
torna acessível em uma e x p e r i ê n c i a comum, mas é atestado atra¬ das as potencialidades do sentimento: "A cada faculdade do sen¬
v é s de um sentimento moral que deve reivindicar a função de timento é possível atribuir um interesse, isto é, um p r i n c í p i o que-
uma e x p e r i ê n c i a transcendental. r ó i s , nosso interesse em obe¬ contém a condição sob a qual, e exclusivamente, o exercício do-
decer à lei moral é produzido pela r a z ã o e, ao mesmo tempo,
224 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 225

8
mesmo pode ser incentivado". A r e d u ç ã o do interesse a um prin» pratica, em vista da qual a r a z ã o teórica é reivindicada Visto
cípio ev.'dencia, sem dúvida, que o status do conceito, alheio ao desta maneira, o conhecimento conduz, como sabemos à imor¬
sistema, tem sido abandonado, e que se abstraiu o momento da talidade da alma e à e x i s t ê n c i a de Deus como postulados da ra¬
íaticidade inerente à razão. Também não fica claro o que a zão pratica pura. K a n t e s f o r ç a - s e em justificar este uso interes¬
r a z ã o teórica adquire ao lhe adicionarmos um interesse racional sara da r a z ã o especulativa, sem distender, ao mesmo tempo o
puro, caso este consista "no conhecimento do objeto elevado emprego experimental da r a z ã o p r á t i c a . O conhecimento racio¬
até os princípios a priori"? sem que aqui, como ocorre com o nal em termos p r á t i c o s m a n t é m seu status p r ó p r i o , subalterno
interesse da r a z ã o p r á t i c a , possa ser identificado uma e x p e r i ê n c i a frente aos conhecimentos que a r a z ã o t e ó r i c a , g r a ç a s à sua pe¬
de bem-estar. De fato, não é fácil compreender como uma sa¬ culiar c o m p e t ê n c i a e sem ser impulsionada por um interesse prá¬
tisfação teórica pura possa ser pensada em analogia com a ra¬ tico puro, pode representar:
z ã o prática pura: pois, todo interesse, seja puro ou e m p í r i c o ,
determina-se a si p r ó p r i o em r e l a ç ã o com a faculdade por exce¬ "Se aquilo qi. e chamamos r a z ã o pura pode ser p r á t i c o para si mesmo e
lência do desejar e se reporta, assim, à práxis possível; também realmente o e, como a consciência da lei moral o atesta, a verdade
um interesse especulativo da r a z ã o estaria, como interesse, de e que ela permanece sempre a única e mesma razão que, seja sob o
todo justificado pelo fato de a r a z ã o teórica ser reivindicada pela ponto de vista t e ó r i c o , seja sob o visor p r á t i c o , julga segundo p r i n c í p i o s

prática sem, com isso, ficar alienada de sua intenção genuína: a priori; e assim n ã o há d ú v i d a de que ela, quando sua capacidade de
formular peremptoriamente certas asserções é insuficiente c nem por
•conhecer pelo prazer de se conhecer. Para que haja um interesse
isso essas a contradigam, deva precisamente admitir tais enunciados
cognitivo é n e c e s s á r i o não apenas promover o uso especulativo
desde que façam parte indissolúvel do interesse orálico da razão pura-
da r a z ã o enquanto tal, mas t a m b é m conectar a r a z ã o especula¬ verdade é que a r a z ã o deve aceitar tais proposições como uma proposta
tiva pura com a razão prática pura, e isso a partir das exigências estranha, nao medraria em seu solo, mas (por certo) suficientemente
•desta razão prática: comprovada e deve, com todo poder que lhe está à d i s p o s i ç ã o como razão
especulativa, procurar compará-las c entrelaçá-las; ao precisar admitir
isto, a r a z ã o c ao mesmo tempo obrigada a aceitar (o fato) d. que aqui
"Mas, de maneira alguma pode ser exigido da r a z ã o p r á t i c a subordinar-se
nao sc trata, prccipuamcnlc, de suas próprias pcrecpeõo* mas <)p uma
á razão especulativa, invertendo assim a ordem, já que todo interesse é,
e x t e n s ã o cie seu (próprio) emprego para um outro fim, j s k , é, para uma
depois de tudo, prático, c mesmo aquele da razão especulativa 6 (ape¬
1 0
imalidacle pratica, c de que isto n ã o contradiz., de modo algum seu cui¬
nas) condicional e t ã o - s o m e n t e perfeito no emprego p r á t i c o (da r a z ã o ) " .
dado cm restringir a temeridade especulativa (que a caracteriza)".12

Finalmente Kant admite que, em termos estritos, n ã o pode


haver sentido falar de um interesse especulativo da r a z ã o senão Kant n ã o consegue d e s e m b a r a ç a r de todo o uso especulativo
-quando a razão teórica se alia com a prática "para um conheci¬ da r a z ã o , inspirado pelo interesse, da a m b i g ü i d a d e . Por um lado
mento". ele recorre à unidade da r a z ã o , com o objetivo de evitar que a uti¬
lização prática da r a z ã o teórica venha a se apresentar como uma
Há um exercício legítimo da razão teórica em vista de uma
reestruturação ou mera i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o posterior de uma facul¬
finalidade prática. O interesse puro p r á t i c o parece, assim, assu¬
dade racional por meio de outra. Por outro lado, p o r é m , r a z ã o
mir a função de um interesse que orienta o conhecimento. Das
teór.ca e r a z ã o p r á t i c a perfazem uma unidade tão pouco homo-'
t r ê s questões para as quais convergem todos os interesses de nossa
gênca que os postulados da r a z ã o p r á t i c a pura permanecem
r a z ã o , a terceira exige um tal emprego da r a z ã o especulativa em
"ofertas estranhas" para a r a z ã o t e ó r i c a . É por isso que o em¬
vista de um fim p r á t i c o . A primeira pergunta — o que posso
prego da r a z ã o que só atende ao seu interesse n ã o conduz a um
saber? — é apenas especulativa; a segunda — que devo fazer?
conhecimento em sentido estrito; quem confundisse o alargamento
— é apenas p r á t i c a ; a terceira — o que me é permitido esperar?
da r a z ã o para fins p r á t i c o s com a d i l a t a ç ã o da esfera do conhe¬
—• é prática e simultaneamente teórica, de sorte que "a ordem
cimento t e ó r i c o p o s s í v e l tornar-se-ia c ú m p l i c e da "temeridade
prática leva, apenas como fio condutor, à solução da questão teó¬ especulativa", contra a qual a c r í t i c a da r a z ã o pura, em especial
rica e, no momento em que esta desabrocha, à resposta da r a z ã o todo esforço da d i a l é t i c a transcendental, assestou sua argumenta-
11
'especulativa". O princípio da esperança determina a intenção
2 2 6 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 227

ç ã o . O interesse p r á t i c o da r a z ã o t ã o - s ó poderia assumir a fun¬


ção de um interesse capaz de orientar o conhecimento em sen¬ próprio Eu no processo da averiguação, mas conservá-lo e afir¬
tido estrito, caso K a n t tivesse realmente tentado executar a uni¬ m á - l o , eis o ú n i c o interesse que, invisivelmente, guia o pensa-
18
mento".
dade da r a z ã o t e ó r i c a e da r a z ã o p r á t i c a . Apenas se o interesse
especulativo da r a z ã o — que em K a n t ainda tem por objetivo T a m b é m K a n t , ao expor as antinomias da r a z ã o pura, cita
exercer, de forma t a u t o l ó g i c a , a faculdade teórica em vista do interesses que orientam d o g m á t i c o s e e m p í r i c o s , ambos d o g m á -
conhecimento — tivesse sido tomado a sério como interesse ticosA a sua maneira. M a s o "interesse da r a z ã o nesse seu con-
1 7
p r á t i c o puro, a r a z ã o t e ó r i c a seria obrigada a ceder sua compe¬ f l i t o " — o qual se volta contra ambos os contraentes e dos
tência, cujo cerne consiste no fato de ela ser independente do quais um defende a tese e o outro a a n t í t e s e — K a n t n ã o o
interesse da r a z ã o . v ê , depois de tudo, senão no abandono do interesse como tal:
a r a z ã o que se reflete a si mesma deve "despojar-se de toda par-
Fichte dá esse passo. E l e concebe o ato da r a z ã o , a intuição 18
cialidade". O interesse p r á t i c o , bem como seu interesse puro,
intelectual, como uma atividade refletida retornando a si mesmo,
permanecem assim, apesar de tudo, exteriores à r a z ã o especula¬
e converte o primado da razão prática em um princípio: a coa-
tiva. Fichte reduz, pelo c o n t r á r i o , os interesses que se introme¬
lescência acidental da razão pura especulativa e da razão prática
tem na defesa dos sistemas filosóficos, à ú n i c a o p o s i ç ã o existente
pura "em vista de um conhecimento" dá lugar à d e p e n d ê n c i a ra¬
entre aqueles que se deixam cativar pelo interesse da r a z ã o na
dical da razão especulativa com relação à razão prática. A orga¬
e m a n c i p a ç ã o e na autonomia do Eu e aqueles que permanecem
nização da razão é submetida à intenção prática de um sujeito
presos a sua i n c l i n a ç ã o e m p í r i c a e, com isso, dependentes da
que se engendra a si p r ó p r i o . Sob a forma originária da auto-
natureza.
reflexão, a razão é imediatamente prática, como a doutrina da
ciência o mostra. Ao se tornar transparente a si mesmo em seu
gesto autoprodutor, o Eu liberta-se do dogmatismo. Este Eu ne¬ "Aconlece que há duas categorias de humanidade; e no desenvolvimento
dc nossa espécie, antes mesmo dc a última haver assomado à superfície,
cessita da qualidade moral de uma vontade emancipadora para
dois tipos básicos de homens. Alguns, os quais ainda n ã o se alçaram
elcvar-sc até os confins da i n t u i ç ã o intelectual. O idealista "só
a o pleno sentimento de s u a l i b e r d a d e e de s u a autonomia absoluta, n ã o
pode contemplar nele mesmo o ato d i s p o n í v e l do E u , c para po¬ sc encontram senão na representação das coisas; eles t ã o - s o m e n t e possuem
der p e r c e b ê - l o , ele p r ó p r i o o precisa realizar. E l e o produz, nele esta auloconsciência dispersa, presa aos objetos, composta da multiplici¬
13
mesmo, arbitrariamente e com liberdade". Em c o n t r a p o s i ç ã o a dade das coisas. Sua imagem lhes é conferida apenas pelas coisas, como
tal atitude, a c o n s c i ê n c i a que se concebe como produto das coi¬ se tratasse dc um espelho; uma vez subtraídas estas coisas, eles perdem

sas em seu derredor está presa ao dogmatismo: "O p r i n c í p i o dos ao mesmo tempo seu E u ; eles n ã o s ã o capazes de dispensar, por amor
a si mesmos, a fé na autonomia das coisas: pois, eles t ã o - s o m e n t e subsis-
d o g m á t i c o s é a c r e n ç a nas coisas em função delas mesmas: por¬
tem com estas coisas. T u d o o que s ã o , eles na realidade o conseguiram
tanto, uma fé indireta em seu p r ó p r i o E u , disperso e, como tal, ser a t r a v é s do mundo exterior. Quem, dc fato, não passa de um pro-
14
apenas sustentado pelos objetos". Para poder desvencilhar-se duto das coisas, este jamais pode conccber-sc de forma diferente; e ele
dos limites de tal dogmatismo é preciso apropriar-se antes do in¬ terá razão enquanto falar apenas de si e daqueles que lhe são seme¬
teresse próprio à r a z ã o : "A razão última da divergência entre o lhantes . .. Mas quem adquire consciência de sua autonomia e de sua
idealista c o d o g m á t i c o é, assim, a d i v e r g ê n c i a dc seu interes- independência frente a tudo o que lhe é exterior — e isso s ó se fica
15
se". Toda lógica p r e s s u p õ e a necessidade da e m a n c i p a ç ã o e um pelo fato dc fazer-se a si mesmo, por força própria, independente de
tudo — não necessita dos coisas em termos dc apoio para seu próprio
ato o r i g m á r i o de liberdade para que o homem se eleve até o pon¬
Eu; as coisas lhe são inaproveitáveis, eis que elas eliminam esta sua
to de vista idealista da maioridade e m a n c i p a t ó r i a , a partir do qual autonomia e a transformam em mera a p a r ê n c i a . O Eu que lhe é p r ó p r i o
é possível sondar de forma crítica o dogmatismo da consciência e o qual lhe interessa suprime toda e qualquer crença nas coisas; ele
natural e, em c o n s e q ü ê n c i a , os mecanismos ocultos da autocons- acredita em sua autonomia por instinto, ele se apodera dela por afeição.
ciência do Eu e do mundo: "O supremo interesse, a r a z ã o de A fé em si mesmo lhe é imediata". 19

todo e qualquer interesse, é o interesse para conosco mesmos.


Ê isso que se passa com o filósofo. N ã o ficar privado de seu
A fixação afetiva na autonomia do Eu e o interesse pela l i ¬
berdade revelam ainda a afinidade com o sentimento p r á t i c o pu-
2 2 8 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 229

ro do bem-estar em Kant: este adquirira, de fato, o conceito do


interesse da r a z ã o p r ó x i m o ao afeto interessado na realização do sujeito que se afirma a si mesmo, adquire autonomia. O dog-,
ideal de um reino de seres racionais livres. Ora, Fichte não con- mático, pelo c o n t r á r i o , ao n ã o encontrar a força que o pode levar
cebe este impulso p r á t i c o puro, a "consciência do imperativo ca¬ à auto-reflexão, vive na d i s p e r s ã o e, à moda de um sujeito de¬
tegórico", como uma emanação da razão prática, mas como um pendente, está determinado pelos objetos e, ele p r ó p r i o , coisi-
ato da r a z ã o enquanto tal, como a auto-refléxão, na qual o Eu ficado como sujeito: ele leva uma existência n ã o livre, 'eis que
se torna transparente a si p r ó p r i o como ação que retorna a si não chega a ter consciência de sua p r ó p r i a espontaneidade re¬
mesma. Nas r e a l i z a ç õ e s da r a z ã o teórica Fichte identifica o tra¬ fletida. O que denominamos.de dogmatismo n ã o é menos uma
balho da r a z ã o p r á t i c a e denomina de intuição intelectual o pon¬ imperfeição moral do que uma incapacidade t e ó r i c a ; é por isso
to de i n t e r s e ç ã o de ambas: que o idealista corre o risco de se elevar por sobre o d o g m á t i c o ,
escarnecendo dele em vez de o esclarecer. É neste contexto que
"A intuição intelectual, da qual a' doutrina da ciência fala, não possuí
se põe a famosa frase de Fichte, n ã o poucas vezes mal-entendida
o ser por objetivo mas o agir; ela n ã o se encontra mencionada em Kant como psicologista:
(exceção feita àquelas passagens, caso se queira, onde se fala de aper-
cepção pura). Mesmo assim é possível demonstrar, com bastante exa- "O tipo de filosofia que se escolhe depende, portanto, do tipo de homem
tidão, a passagem no sistema kantiano onde se deveria ter falado desta que se e: pois, um sistema f i l o s ó f i c o n ã o é um u t e n s í l i o inerte o qual
questão. Não está Kant consciente do imperativo categórico? Dc que se possa aceitar ou rejeitar a bel-prazer, mas cie e s t á animado pela alma
C o n s c i ê n c i a e n t ã o se trata? Kant esqueceu de pôr tal q u e s t ã o em debate, do homem que o possui. Um caráter fiácido por natureza ou debilitado
já que em parte alguma ele tematizou o fundamento dc toda filosofia; e entorpecido pela servidão do e s p í r i t o , escravizado pelo luxo da e r u d i ç ã o
na Crítica da razão pura está em discussão apenas a (filosofia) teórica c da vaidade, n ã o se e r g u e r á jamais até os p í n c a r o s do idealismo".2i
e nessa o imperativo c a t e g ó r i c o não podia aparecer; na Crítica da razão
prática Kant tão-somente visualizou a (filosofia) prática e nela se tratava A
Nessa formulação enfática Fichte expressa, uma vez mais,
exclusivamente dc expor o c o n t e ú d o ; aí a pergunta acerca da espécie da
consciência não podia chegar a se impor". 'o ; a identidade da razão teórica com a prática. O padrão que si¬
naliza até que ponto estamos impregnados pelo interesse cia ra¬
Pelo fato de Kant haver concebido secretamente a razão prᬠz ã o , cativos do afeto que busca a autonomia do Eu e amadure¬
tica dc acordo com o modelo da r a z ã o teórica, a experiência cidos no exercício da auto-reflexão, determina ao mesmo tempo
transcendental do sentimento moral, isto é, do interesse que nos o grau de autonomia adquirida e o ponto de vista de nossa con¬
leva a seguir a lei moral, devia necessariamente confrontá-lo com cepção filosófica acerca do ser e da consciência.
o seguinte problema: como é possível que um mero pensamento, _ Á trajetória que, de Kant a Fichte, faz desabrochar o conceito
o qual n ã o c o n t é m em si mesmo nada de sensível, como pode do interesse racional conduz, a partir do conceito de um interesse
ele engendrar uma s e n s a ç ã o de prazer ou de desprazer? Esta di¬ ditado pela razão prática por ações do livre arbítrio, um conceito
ficuldade, bem como os recursos acessórios dc uma causalidade de interesse que visa a autonomia do E u , e cuja eficácia se lo¬
especial da r a z ã o , torna-se supérflua desde que, inversamente, a caliza na razão enquanto tal. O ato-de-se-identificar razão teórica
razão prática libera o modelo para a razão teórica. Eis que então com sua prática, que Fichte realiza, fica esclarecido neste inte¬
o interesse p r á t i c o da r a z ã o faz parte da r a z ã o enquanto tal: no resse. Como um ato da liberdade, ele precede o da auto-reflexão,
interesse pela autonomia do E u , a r a z ã o se impõe na mesma me¬ bem assim como ele se afirma na d i n â m i c a emancipatória, pe¬
dida em que o ato da r a z ã o produz, como tal, aquilo que cha¬ culiar à auto-reflexão. T a l unidade de razão e emprego interes¬
mamos liberdade. A auto-reflexão é percepção sensível e eman- sado da mesma colide com o conceito contemplativo de conhe¬
cipação, compreensão imperativa e libertação da dependência dog¬ cimento. Enquanto o sentido tradicional de teoria pura seccio-
:

mática numa mesma experiência. O dogmatismo, esse que dis¬ na bas camente o processo cognitivo das conexões vitais, aquilo
solve a r a z ã o tanto em termos analíticos quanto p r á t i c o s , é uma que chamamos de interesse deve ser apreendido como um mo¬
falsa c o n s c i ê n c i a : erro e, por isso mesmo, existência aprisionada. mento antagônico da teoria, algo que se acrescenta do exterior e
Somente o E u , o qual na intuição intelectual se flagra como um obscurece, assim, a objetividade do conhecimento. A inter-rela-;
ção toda particular de conhecimento e interesse, com a qual nos
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 231

2 3 0 CONHECIMENTO E INTERESSE
demos conceber a vida de um sujeito que se constitui em termos
deparamos em nosso percurso a t r a v é s da metodologia das ciên¬ de espécie como o movimento absoluto da r e f l e x ã o , eis que as
cias, corre constantemente o risco' de ser mal-entendida por uma c o n d i ç õ e s nas quais a espécie humana se constitui n ã o são ape¬
versão psicologizante no momento em que for considerada so¬ nas aquelas que a reflexão p õ e em cena. O processo formativo
bre o pano de fundo de uma teoria do conhecimento puro, con¬ n ã o é- incondicionado como p é o instaurar-se do Eu fichteniano
cebida como c ó p i a ; e isso independentemente das v a r i a ç õ e s que ou como o é a d i n â m i c a absoluta do e s p í r i t o . E l e depende das
esta teoria possa apresentar. Somos tentados a compreender os eventuais c o n d i ç õ e s da natureza subjetiva, bem como da natu¬
dois interesses, capazes de orientar o conhecimento e anal sados reza objetiva; por um lado, portanto, depende de c o n d i ç õ e s duma
até aqui, como realidades superpostas a um aparelho cognitivo s o c i e t a r i z a ç ã o individualizadora de particulares interagindo e é,
já c o n s t i t u í d o , como se tratasse de interceptar um processo cog¬ por outro, devedora às c o n d i ç õ e s da "troca m e t a b ó l i c a " entre
nitivo, alterando-o antecipadamente com base em um direito que os agentes comunicativos e um meio que tecnicamente precisa
fosse p r ó p r i o a esses dois interesses. O emprego da r a z ã o espe¬ fazer-se d i s p o n í v e l . Na medida em que o interesse da r a z ã o pe-'
culativa em vista de fins práticos guarda, ainda em Kant, resquí¬ la e m a n c i p a ç ã o , o qual é investido no processo formativo da
espécie e transpassa o movimento da r e f l e x ã o , volta-se para a
cios deste tipo de interesse, muito embora nele o interesse que
efetivação daquelas c o n d i ç õ e s peculiares à i n t e r a ç ã o mediatizada
pretende ser ativado seja já entendido como um interesse puro
por s í m b o l o s e p r ó p r i a s ao agir instrumental, ele assume a for¬
de uma r a z ã o p r á t i c a , n ã o importa o que sc deva entender com
ma restrita do interesse inerente ao conhecimento p r á t i c o e téc¬
o designativo r a z ã o p r á t i c a . £ apenas no conceito fichtemano
nico. De certa forma torna-se, inclusive, n e c e s s á r i o reinterpretar
da auto-reflexão interessada que o interesse, incorporado à ra¬
materialisticamente o interesse da r a z ã o , tal como o idealismo
z ã o , perde seu c a r á t e r de mero a p ê n d i c e e sc torna constitutivo
o introduzira: o interesse e m a n c i p a t ó r i o depende, por seu lado,
tanto para o ato-do-conhecer quanto para o ato-do-agir. O con¬
dos interesses que orientam ações i n í e r s u b j e t i v a s possíveis c con-
ceito da auto-reflexão, desenvolvido por Fichte como atividade
trolam uma possível disponibilidade técnica.
que retroage sobre si mesmo, possui uma significação sistemática
para a categoria do interesse que orienta o conhecimento, lam¬ Os intereses que, a t?se nível, orientam processos cognitivos
bem a esse nível o interesse antecede o conhecimento, bem assim n ã o vigem para a existência de objetos mas, sim, para ações
(aliás) como ele sc efetua exclusivamente por meio deste conhe¬ instrumentais e i n t e r a ç õ e s bem-sucedidas — no mesmo sentido Kant
cimento. ,. distinguira o interesse puro, o qual adotamos nas ações morais,
N ã o seguimos as pegadas da i n t e n ç ã o sistemática _ da Dou¬ daquele das i n c l i n a ç õ e s e m p í r i c a s , o qual é despertado pela mera
trina da ciência; ela fora pensada com o objetivo de situar seus existência dos objetos das ações. M a s , bem assim como a razão,
leitores, em virtude dc um ato solitário, no ponto nevrálgico da ditando ambos os interesses, n ã o é doravante mera r a z ã o práti¬
ca pura, mas uma r a z ã o que une conhecimento e interesse na
a u t o c o n t e m p l a ç ã o de um Eu que produz absolutamente o mundo
a u t o - r e f l e x ã o , do mesmo modo os interesses voltados para a ati¬
e a si mesmo. Hegel escolhe, com . r a z ã o , o caminho comple¬
vidade da c o m u n i c a ç ã o e da i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o incluem necessa¬
mentar da experiência f e n o m e n o l ó g i c a ; esta nao deixa o dogma-
riamente as categorias do saber que lhes são p r ó p r i a s : eles ad¬
tismo instantaneamente a t r á s de si, mas percorre os estágios da
quirem ipso jacto o peso valorativo de interesses capazes de
consciência que se mostra como os estágios da reflexão. A auto-
orientar o conhecimento. Tais formas de a ç õ e s n ã o podem, a ri¬
reflexão originária de Fichte é distendida na experiência da re-
gor, ser estabelecidas a longo prazo sem que estejam igualmente
flexão. Tampouco podemos seguir a i n t e n ç ã o da Fenomenolo-
asseguradas as categorias do saber que acompanham estes inte¬
gia do espírito, a qual é para conduzir seus leitores ao saber
resses, os processos cumulativos de aprendizagem e as interpre¬
absoluto e ao conceito da ciência especulativa. O movimento
t a ç õ e s permanentes, mediatizadas pela t r a d i ç ã o .
da reflexão que toma a c o n s c i ê n c i a e m p í r i c a por ponto de par¬
tida une, por certo, r a z ã o e interesse; pelo fato de este movi¬ Temos mostrado que, no c í r c u l o funcional onde se exerce
mento reencontrar, em cada estágio, a d o g m á t i c a de uma mundi- a atividade instrumental, se i m p õ e uma outra c o n s t e l a ç ã o do* agir,
vidência e de uma determinada forma de vida, o processo ao da linguagem e da experiência do que no quadro das i n t e r a ç õ e s
conhecimento coincide com o processo formativo. Mas nao po-
232 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 233

mediatizadas simbolicamente. As condições do agir instrumental com a experiência da reflexão, qual c: dissolução crítica do obie-
e da atividade p r ó p r i a à c o m u n i c a ç ã o são, simultaneamente, as tivismo, a saber, da a u t o c o m p r e e n s ã o objetivista das ciências a
c o n d i ç õ e s da objetividade inerente a um conhecimento p o s s í v e l ; qual omite a p a r t i c i p a ç ã o da atividade subjetiva nos objetos p r é -
elas í i x a m o sentido da validade de p r o p o s i ç õ e s n o m o l ó g i c a s ou moldados de um conhecimento possível. Nesse sentido nem Pier
h e r m e n ê u t i c a s . A inserção de processos cognitivos em complexos ce, nem Dilthey conceberam suas investigações m e t o d o l ó g i c a s
vitais chama nossa atenção para a função de interesses capazes como uma auto-reflexão. Pierce compreende sua lógica da "pes¬
de orientar o conhecimento: um complexo vital é um conjunto quisa em intimo contato com o progresso científico, cujas con¬
de interesses. M a s , assim como o nível, ao qual a vida social dições essa lógica analisa: ela é uma disciplina acessória que~
se reproduz, tal feixe de interesses n ã o pode ser definido inde¬ contribuí para a i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o e a c e l e r a ç ã o do processo i n -
pendentemente destas formas de ações e das categorias corres¬ veshgatono em seu conjunto e, como tal, promove a progressiva
pondentes do saber. O interesse pela m a n u t e n ç ã o da vida está, r a c i o n a l i z a ç ã o da realidade. Dilthey entende, sua lógica das ciên¬
no plano a n t r o p o l ó g i c o , comprometido com uma vida organiza¬ cias do_ espirito em r e l a ç ã o com o avanço da h e r m e n ê u t i c a , cujas
da por meio da ação e do conhecimento. Os interesses que orien¬ condições sua lógica analisa: ela é uma disciplina acessória que
tam o conhecimento estão, portanto, determinados por dois fa¬ contribui para a p r o p a g a ç ã o da consciência histórica e para a
tores: por um lado, eles atestam que os processos cognitivos t ê m atualização estética de uma vida histórica onipresente. Nenhum
sua origem em conjuntos vitais e neles exercem sua eficácia; dos dois leva em consideração se a metodologia não reconstrói,
mas, por outro lado, através destes interesses se expressa igual¬ como teoria do conhecimento, e x p e r i ê n c i a s mais radicais da his¬
mente o fato de que a forma da vida, reproduzida socialmente, tória da espécie e n ã o conduz, assim, a um novo estágio da auto-
n ã o poder ser caracterizada adequadamente senão pelo liame es¬ reflexão no processo formativo da espécie humana.
pecífico entre conhecimento e interesse.
O interesse está ligado a ações que, se bem que em uma
c o n s t e l a ç ã o diferente, fixam as condições dc todo conhecimento 10. Auto-reflexão como ciência:
possível, assim como estas, por sua vez, dependem dc processos
• a crítica psicanalítica cio sentido em Freud
cognitivos. Esclarecemos tal i n t e r d e p e n d ê n c i a entre conhecimen¬
to e interesse ao examinarmos aquela categoria dc " a ç õ e s " que
No fim do século X I X nasceu uma disciplina que, no início como
coincidem com a "atividade" da reflexão, a saber: as ações eman-
obra de um único homem, se movia, já em seus p r i m ó r d i o s no
cipatórias. Um ato da auto-reflexão que "altera a vida" é um
elemento da auto-reflexão e, assim mesmo, reivindicou de ma¬
movimento da e m a n c i p a ç ã o . De modo igual como aqui o inte¬
neira convincente estar legitimada por um m é t o d o estritamente
resse da r a z ã o n ã o pode corromper a força cognitiva da r a z ã o
científico. De modo diferente do que ocorre em Pierce e Dilthey,
— eis que, como Fichte não cansa de explicitar, conhecimento
Freud n ã o é um lógico da c i ê n c i a . q u e se pode orientar em uma
e interesse estão fundidos em um único ato — o interesse n ã o
disciplina já estabelecida, refletindo a partir dela sobre suas pró¬
permanece exterior ao conhecimento lá, onde ambos os momen¬
prias experiências. Pelo c o n t r á r i o , ao desenvolver uma nova dis¬
tos da atividade e do conhecimento já se dissociaram: ao nível
ciplina Freud refletiu sobre suas premissas. Freud n ã o foi um
do agir instrumental e do agir p r ó p r i o à c o m u n i c a ç ã o .
filósofo. Sua tentativa de m é d i c o em elaborar um arcabouço
M a s , mesmo assim, não há dúvida de que não podemos cer¬
teór.co das neuroses levam-no a uma teoria sui generis. E l e só
tificar-nos metodologicamente dos interesses que orientam o co¬
se depara com p o n d e r a ç õ e s m e t o d o l ó g i c a s na medida em que o
nhecimento nas ciências da natureza ou nas ciências do espírito
fundamento de uma nova ciência obriga, exatamente, a refle¬
senão depois de havermos penetrado na d i m e n s ã o da auto-re-
tir acerca do novo ponto de partida: nesse sentido G a -
flexão. A q u i l o que chamamos de razão se apreende no momento
hleo não apenas criou a nova física, mas t a m b é m a co¬
em que ela, enquanto tal, se executa como auto-reflexão. É por
mentou em termos m e t o d o l ó g i c o s . A psicanálise é, para nós,
isso que nos deparamos com a relação fundamental entre conhe¬
relevante como o único exemplo disponível de uma ciência que
cimento e interesse quando praticamos metodologia de acordo
reivindica metodicamente o exercício auto-reflexivo. C o m o sur-
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 235

2 3 4 CONHECIMENTO E INTERESSE
na história através de expressões vitais, estas que abarcam o espírito
objetivo por i n t e r m é d i o do c o n g r a ç a m e n t o estabelecido por tal sucessão
gimento da p s i c a n á l i s e abre-se, a t r a v é s do caminho peculiar à 5
e seus efeitos".-
lógica da pesquisa, a perspectiva de um acesso m e t o d o l ó g i c o a
esta d i m e n s ã o disfarçada do positivismo. T a l possibilidade n ã o
DUthey está obviamente ciente de que, para a l é m do hori¬
se concretizou, pois o auto-equívoco cientificista da psicanálise,
zonte da biografia atualizada, n ã o podemos contar com a garantia
inaugurado pelo p r ó p r i o Freud, o fisiólogo por origem, obstruiu
subjetiva de uma m e m ó r i a imediata. O compreender volta-se,
em gérmen esta possibilidade. O a u t o - e q u í v o c o n ã o deixa, por
por isso, t a m b é m para as formas s i m b ó l i c a s e aos textos nos
certo, de ter suas r a z õ e s . A f i n a l , a p s i c a n á l i s e combina a her¬
quais a estrutura do sentido se objetivou, com o objetivo de v i r
m e n ê u t i c a com r e a l i z a ç õ e s que, a rigor, estavam reservadas ao em auxílio da m e m ó r i a adulterada da espécie humana, por meio
22
domínio das ciências da natureza. da r e c o m p o s i ç ã o crítica destes textos:
A psicanálise c o m e ç a afirmando-se como uma forma espe¬
cial de interpretação; ela libera pontos de vista teóricos c regras "A primeira c o n d i ç ã o para a c o n s t r u ç ã o do mundo h i s t ó r i c o é, assim,
técnicas para interpretação de conjuntos simbólicos. Freud orien¬ a purificação das confusas c, sob muitos aspectos, corrompidas recorda¬
tou permanentemente a i n t e r p r e t a ç ã o dos sonhos no modelo her¬ ções da espécie humana, nela mesma, através da crítica que constitui

m e n ê u t i c o do trabalho filológico. E l e a compara, ocasionalmen¬ o correlato da interpretação. É por isso que a ciência fundamental da
história é a filologia em sentido formal, como estudo científico das lín¬
te, com a t r a d u ç ã o de um autor estrangeiro, assim por exemplo,
guas nas quais a tradição está sedimentada, coleção da herança da
com um texto de Tito L í v i o . A M a s o obrar interpretativo do humanidade passada, eliminação dos erros que ela contém, ordenação
analista n ã o apenas se distingue da atividade do filólogo pela cronológica e combinação, as quais põem tais documentos em íntima
seleção de um domínio particular do objeto; um tal obrar exige relação uns com os outros. Filologia n ã o é, nesse sentido, um recurso
uma hermenêutica específica e ampliada, que leva em conside- acessório para o historiador, mas assinala o primeiro raio de ação de
2A

ração, frente à interpretação habitual das ciências do espírito, seu modo de proceder".

uma 'nova dimensão. N ã o foi por acaso que Dilthey tomou a


biografia como ponto de partida dc sua a n á l i s e do ato-do-com- Dilthey conta, igual a Freud, com a pouca fidelidade c a
preender; a reconstrução de uin complexo autobiográfico, passí¬ a c c n í u a d a confusão da m e m ó r i a subjetiva; ambos v ê e m a neces¬
vel de ser trazido à m e m ó r i a , é o modelo por e x c e l ê n c i a da inter¬ sidade dc uma crítica que r e s t a b e l e ç a o texto mutilado da tra¬
pretação de conjuntos simbólicos. Dilthey escolhe a biografia dição. Mas a crítica filológica distingue-se da psicanalítica pelo
como modelo porque esta lhe parece ter a vantagem da transpa¬ fato de reconduzir, pelo caminho da a p r o p r i a ç ã o do e s p í r i t o ob¬
r ê n c i a : ela n ã o apresenta àquilo que está por ser recordado a jetivo, ao conjunto intencional da o p i n i ã o subjetiva como base
resistência do opaco. A q u i , no foco da memória autobiográfica, última da experiência. Dilthey superou, sem dúvida, a intelecção
concentra-se a vida h i s t ó r i c a como "aquilo que é conhecido a psicológica da expressão em favor da compreensão hermenêutica
partir do interior; trata-se daquilo a q u é m do qual n ã o é possível p r ó p r i a à intelecção do sentido; "o requinte p s i c o l ó g i c o cedeu
27
2 1
recuar". - Para Freud, em contrapartida, a biografia só é objeto lugar à compreensão de configurações intelectuais". Mas a fi¬
da análise na medida em que ela é, ao mesmo tempo, o conhe¬ l o l o g i a , voltada para a c o n e x ã o simbólica, permanece limitada a
cido e o desconhecido do interior; de maneira que sc torna ne¬ uma linguagem na qual se expressa conscientemente aquilo que
cessário ir além daquilo que constitui o recordado. Dilthey com¬ sc pretende dizer. Ao tornar' c o m p r e e n s í v e i s as o b j e t i v a ç õ e s , a
filologia atualiza seu conteúdo intencional no médium da expres-
promete a h e r m e n ê u t i c a com a o p i n i ã o subjetiva, cujo sentido
são biográfica cotidiana. Nesta medida a filologia t ã o - s o m e n t e
pode ser garantido pela l e m b r a n ç a direta e imediata:
assume funções adicionais a serviço de uma força da m e m ó r i a
a u t o b i o g r á f i c a que funciona em c o n d i ç õ e s normais. O que, atra¬
"A vida é h i s t ó r i c a na medida em que é apreendida em sua progressão
temporal e no conjunto d i n â m i c o no qual ela possui sua gênese. A pos-
v é s do obrar crítico, ela elimina pela e l u c i d a ç ã o de textos são
sibilidade de tal perspectiva está no fato de se reconstruir este curso deficiências acidentais. As omissões e alterações, retificadas pela
na m e m ó r i a , o qual n ã o (apenas) reproduz o elemento singular mas o crítica filológica, n ã o possuem peso valorativo s i s t e m á t i c o , pois
próprio conjunto e seus estágios mais diversos. O que a recordação rea-
liza na a p r e e n s ã o da s e q ü ê n c i a da vida enquanto tal, isto é executado
236 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 237

a estrutura do sentido dos textos, com os quais a h e r m e n ê u t i c a e, por outro, ambas se "adequam" novamente a e x p r e s s õ e s e
se ocupa, está sempre apenas a m e a ç a d a por influências externas. ISSO independentemente da questão acerca do espaço necessário
O sentido pode ser aniquilado pelos canais da t r a n s f e r ê n c i a , l i ¬ que um grau incompleto de i n t e g r a ç ã o reserva para i n f o r m a ç õ e s
mitada de acordo com a capacidade e a eficiência; sejam esses indiretas. M a s , no caso l i m í t r o f e , o jogo da linguagem pode de¬
canais próprios à memória ou à tradição cultural. I sintegrar-se de tal forma que as três categorias da e x p r e s s ã o n ã o
A interpretação psicanalítica, pelo contrário, não se volta para mais concordam entre si: ações e e x p r e s s õ e s extraverbais des¬
complexos de sentido, peculiares à d i m e n s ã o daquilo que se i n - mentem agora o que é expressis verbis asseverado. M a s o sujeito
tensiona conscientemente; seu trabalho crítico n ã o elimina defi¬ que age desmascara-se t ã o - s o m e n t e frente aos outros, os quais
ciências acidentais. As omissões e as alterações que ela suprime com.ele interagem e observam o seu desvio das regras da gra¬
possuem um peso valorativo, pois os conjuntos s i m b ó l i c o s que a m á t i c a , p r ó p r i a s ao jogo da linguagem. O agente, como tal, n ã o
psicanálise procura compreender e s t ã o adulterados por influências pode observar a d i s c r e p â n c i a ou, quando o consegue, n ã o e s t á em
internas. As m u t i l a ç õ e s possuem, como tais, um sentido. Um c o n d i ç õ e s de a entender, eis que ele mesmo se expressa nessa
texto adulterado dessa espécie só p o d e r á ser satisfatoriamente d i s c r e p â n c i a e, ao mesmo tempo, se desentende nela. Sua auto-
apreendido em seu sentido depois que for possível esclarecer o c o m p r e e n s ã o precisa agarrar-se à q u i l o que é entendido conscien¬
sentido da c o r r u p ç ã o enquanto tal: é isto que caracteriza a tarefa temente, à e x p r e s s ã o verbal, ao dado que se verbaliza. M e s m o
particular de uma h e r m e n ê u t i c a que n ã o se pode limitar aos mo¬ assim o c o n t e ú d o intencional, que chega à superfície na forma de
dos de proceder da filologia, mas unifica a análise da linguagem um agir e de um expressar c o n t r a d i t ó r i o , é introduzido no con¬
com a pesquisa psicológica de complexos causais. A manifesta¬ junto biográfico do sujeito da mesma maneira como o são os
ção parcial e deformada do sentido n ã o resulta, nesse caso, de significados subjetivos, apenas supostos pelo sujeito. Este é for¬
uma t r a d i ç ã o defeituosa; afinal, trata-se sempre já de um sentido ç a d o a se iludir acerca de tais e x p r e s s õ e s extraverbais, descoorde-
inerente ao conjunto biográfico ao qual o sujeito n ã o tem mais nadas que estão com a e x p r e s s ã o verbal; mas como ele p r ó p r i o
acesso. No interior do horizonte de uma biografia atualizada a nelas sc objetiva, cie a c a b a r á se iludindo acerca de si mesmo.
r e c o r d a ç ã o falece a tal ponto (pie os abalos funcionais da m e m ó ¬
ria postulam, enquanto tais, o recurso à h e r m e n ê u t i c a e exigem, A i n t e r p r e t a ç ã o p s i c a n a l í t i c a ocupa-se com tais complexos
por conseguinte, serem entendidos a partir de uma c o n e x ã o obje¬ s i m b ó l i c o s nos quais uin sujeito sc ilude acerca de si mesmo. A
tiva de sentido. hermenêutica das profundezas, a qual Freud contrapõe à versão
filológica de Dilthey, reporta-se a textos que indiciam auto-enga-
Dilthey concebera a recordação autobiográfica como condi¬ nos do autor. A l é m do c o n t e ú d o manifesto (e de c o m u n i c a ç õ e s
ção de uma intelecção hermenêutica possível e comprometeu, indiretas mas comprometidas em termos intencionais com este
assim, o ato-do-compreender com aquilo que é conscientemente c o n t e ú d o ) revela-se nesses textos o c o n t e ú d o latente de uma par¬
intencionado. Freud depara-se com ofuscamentos da m e m ó r i a " te das o r i e n t a ç õ e s p r ó p r i a s ao autor, mas que se lhe tornou ina¬
que, por sua vez, expressam i n t e n ç õ e s ; estas necessitam, e n t ã o , cessível e estranho, muito embora lhe p e r t e n ç a : Freud cunhou a
transcender o d o m í n i o daquilo que perfaz a o p i n i ã o subjetiva. 28
f ó r m u l a do "território estrangeiro interior" para caracterizar a
Com sua análise da linguagem ordinária Dilthey não fez mais do e x t e r i o r i z a ç ã o de algo que, apesar disto, é parte constituinte do
que tangenciar o caso-limite da d i s c r e p â n c i a entre p r o p o s i ç õ e s , sujeito. N ã o há dúvida de que exteriorizações simbólicas, perten¬
ações e expressões vivenciais; este caso-limite constitui, p o r é m , o centes a essa classe de textos, d ã o - s e a conhecer por meio de
caso normal para a p s i c a n á l i s e . particularidades que t ã o - s o m e n t e emergem num amplo contexto
A g r a m á t i c a da linguagem cotidiana n ã o apenas regula o de a r t i c u l a ç õ e s , envolvendo e x p r e s s õ e s verbais e outras formas de
conjunto simbólico mas, igualmente, a i m b r i c a ç ã o de elementos c objetivações.
da linguagem, modelos de ação e expressões. Numa situação nor¬
mal estas três categorias de e x p r e s s ã o comportam-se de maneira "Estou, A
por certo, infringindo o significado l i n g ü í s t i c o comum ao postu-
complementar, de modo que aquilo que denominamos de expres¬ lar o interesse do pesquisador da linguagem para a p s i c a n á l i s e . Sob o
são verbal encontra-se, por um lado, "enquadrado" em i n t e r a ç õ e s termo linguagem deve ser entendida aqui não apenas a expressão de
pensamentos em palavras mas, igualmente, a linguagem da mímica e
238 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 239

toda sorte de expressões da atividade psíquica, como por exemplo a


escrita. Assim sendo, pode-se salientar que as i n t e r p r e t a ç õ e s da p s i c a n á -
se podem mostrar nas d i s c r e p â n c i a s entre m a n i f e s t a ç õ e s verbais
lise s ã o , antes de mais nada, traduções de um método estranho de expres¬
e não-verbais. Mas tal isolamento da p r o d u ç ã o onírica frente ao
s ã o para outro modo de e x p r e s s ã o , o qual nos é familiar". 29 comportamento é, ao mesmo tempo, c o n d i ç ã o de possibilidade
para o extremado espaço de jogo das forças que implodem o
É possível que o texto corrido de nossos jogos de linguagem texto repercutente da c o n s c i ê n c i a diurna (os "restos diurnos"),
cotidianos (discurso e a ç õ e s ) seja perturbado por erros, apenas transformando-os em um texto de sonho.
na aparência acidentais: através de omissões ou deformações que, Freud concebeu assim o sonho como o "modelo normal" das
quando se m a n t ê m no interior dos limites da tolerância habitual, afeições p a t o l ó g i c a s ; a i n t e r p r e t a ç ã o dos sonhos permaneceu sem¬
podem ser depreciadas como fortuitas e, como tais, esquecidas. pre como modelo de e x p l i c a ç ã o em vista do esclarecimento de
Estes atos falhos, aos quais Freud soma casos de esquecimento, c o m p l e x õ e s de sentido p a t o l ó g i c a s e deformadas. E l a ocupa, ade¬
lapsos de linguagem, de escrita, de leitura, os equívocos no apa¬ mais, uma posição neural no desenvolvimento de p s i c a n á l i s e , por¬
nhar um objeto e os chamados atos descuidados, são indicadores que foi através da decifração h e r m e n ê u t i c a de textos oníricos que
do fato de o texto defeituoso revelar e, simultaneamente, enco¬ Freud deparou-se com o mecanismo da defesa e da f o r m a ç ã o de
30
brir as a u t o - i l u s õ e s do autor. Falamos de sintomas quando as sintomas:
i n e x a t i d õ e s do texto são mais flagrantes e se situam na esfera do
p a t o l ó g i c o . Sintomas n ã o podem ser ignorados nem compreendi¬ "A t r a n s f o r m a ç ã o dos pensamentos o n í r i c o s latentes em c o n t e ú d o o n í r i c o
manifesto merece toda a nossa atenção; trata-se do primeiro exemplo
dos. Mesmo assim eles são parte de complexos intencionais: a
que nos é conhecido de material psíquico que c transformado de um
continuidade do texto dos jogos de linguagem cotidianos n ã o é
modo de expressão para outro, de um modo de expressão que nos é
interceptada por influências externas mas interrompida por aba¬ imediatamente i n t e l i g í v e l para outro que só podemos vir a entender com
los internos. O que chamamos de neurose distorce complexos a ajuda de o r i e n t a ç ã o e e s f o r ç o , muito embora t a m b é m deva ser reco¬
simbólicos nas três dimensões acima mencionadas: a expressão nhecido como uma f u n ç ã o de nossa atividade psíquica". 3 2

verbal (representação obsessiva), ações (compulsão à repetição)


c e x p r e s s ã o vivencial amalgamada com o corpo (sintomas hislc- Em face dos sonhos, Freud obriga o analista a assumir uma
rico-somáticos). No caso das perturbações psicossomáticas o sin¬ rigorosa atitude dc i n t é r p r e t e . No importante c a p í t u l o V I I de "À
toma está, na verdade, de tal modo distante do texto original que i n t e r p r e t a ç ã o dos sonhos" ele declara, n ã o sem satisfação, a pro¬
seu c a r á t e r s i m b ó l i c o necessita, antes de mais nada, de ser de¬ pósito de suas próprias interpretações:
monstrado pelo trabalho interpretativo como tal. Os sintomas
n e u r ó t i c o s em sentido estrito localizam-se, por assim dizer, entre "Em suma, o que na opinião dos autores (precedentes) não deve ser
os atos falhos e as d o e n ç a s p s i c o s s o m á t i c a s : eles n ã o . podem ser mais do que uma i m p r o v i s a ç ã o a r b i t r á r i a , apressadamente cozida na per¬

bagatelizados como f e n ô m e n o s ocasionais, mas t a m b é m não é pos-. plexidade (do momento), isto n ó s tratamos como se fosse um texto sa-
33
grado".
sível denegá-los a longo prazo em seu c a r á t e r s i m b ó l i c o ; esse os
identifica como p o r ç õ e s isoladas de um conjunto simbólico maior:
os sintomas n e u r ó t i c o s são cicatrizes de um texto adulterado; o Vista sob outro aspecto, p o r é m , a concepção hermenêutica
autor se depara com ele como se tratasse de um texto incom¬ n ã o satisfaz; pois, sonhos pertencem à q u e l e s textos com os quais
preensível. o autor se vê confrontado como se fosse algo estranho e incom¬
preensível. O analista é f o r ç a d o a recuar, a t r a v é s de perguntas,
31
O modelo n ã o p a t o l ó g i c o de um tal texto é o sonho. O para aquém do c o n t e ú d o manifesto do texto onírico para poder
sonhador produz, ele p r ó p r i o , o texto do sonho; provavelmente apreender o pensamento onírico latente que aí se manifesta. A
como um complexo intencional; mas, uma vez desperto, o su¬ técnica da interpretação de sonhos v a i , nesse sentido, mais além
jeito n ã o mais compreende sua p r o d u ç ã o , embora ele se identi¬ do que a arte da h e r m e n ê u t i c a , uma vez que ela deve n ã o apenas
fique de certa forma com o autor do sonho. O sonho é cauda- atingir o sentido de um possível texto deformado, mas o próprio
t á r i o de ações e e x p r e s s õ e s , o jogo de linguagem completo é ape¬ sentido da deformação textual, a c o n v e r s ã o de um pensamento
nas imaginado. E por isso que os atos falhos e os sintomas n ã o o n í r i c o latente em um sonho manifesto; portanto, na medida em
240 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 241

que ela é obrigada a reconstruir aquilo que Freud denominou evocar um de seus sonhos. M a s , depois de termos sido capazes de eliminar,
no decurso de uma parte do trabalho a n a l í t i c o , uma dificuldade que vinha,
"trabalho do sonho". A interpretação do sonho leva a uma re-
perturbando sua relação com a análise, o sonho esquecido assoma, do
flexão que transita pelo mesmo caminho que o texto onírico, ao
repente, à s u p e r f í c i e . Aqui cabem t a m b é m duas outras observações. Fre-
surgir, teve que percorrer: frente ao trabalho do sonho ela se q ü e n t e m e n t e sucede que, no i n í c i o , uma parte do sonho é omitida e, logo-
comporta de forma complementar. No curso de tal operação o mais, acrescentada na forma de um apêndice. Isto deve ser considerado
analista pode apoiar-se no processo da livre associação de ele- como uma tentativa de esquecer esta parte do sonho. A e x p e r i ê n c i a mostra
mentos isolados do sonho e sobre as p a r t i c i p a ç õ e s complemen- que esta parte é, precisamente, a mais representativa; supomos que no
caminho dc sua c o m u n i c a ç ã o tenha ocorrido uma r e s i s t ê n c i a maior do que
tares e s p o n t â n e a s que o paciente acrescenta posteriormente ao
nas demais porções do sonho. A l é m disso vemos a m i ú d e que o sonhador
texto onírico original. procura reagir contra o esquecimento de seus sonhos, formulando-os por
A camada superior do sonho, a qual desta maneira pode ser escrito logo a p ó s estar desperto . . .
identificada e desobstruída, é a fachada onírica, o resultado de
De tudo isso c o n c l u í m o s que a resistência, essa que flagramos no trabalho-
uma elaboração secundária; esta, apenas c o m e ç o u a operar depois
da interpretação dos sonhos, deve também ter participado na g ê n e s e destes
que a recordação onírica assomou, como objeto, à superfície da sonhos. Dc fato, podemos fazer uma d i s t i n ç ã o entre sonhos que surgiram
consciência do sonhador desperto. Esta atividade racionalizadora sob tênue pressão c aqueles que têm sua origem sob o efeito de uma
procura sistematizar conteúdos obscuros, interpolando lacunas e pressão muito forte. Tal pressão varia, porém, também dentro de um.
aplainando contradições. A camada seguinte deixa-se reduzir aos mesmo sonho, dependendo do lugar em que se impõe; essa pressão é res¬

restos diurnos incompletos; portanto, aos fragmentos dos jogos p o n s á v e l pelas lacunas, obscuridades e c o n f u s õ e s que podem romper a con-
34
tinuidade dos mais belos sonhos".
de linguagem do dia anterior, os quais depararam-se com obstá-
culos e não foram levados a termo. O que resta c uma camada
mais profunda, com seus conteúdos s i m b ó l i c o s ; esses resistem ao M a i s tarde Freud concebeu os sonhos punitivos igualmente
trabalho da interpretação. Freud chama-os de símbolos oníricos como uma r e a ç ã o da censura onírica frente aos desejos que os.
35
propriamente ditos, isto é, representações que exprimem um con- precederam. A resistência, cuja experiência o analista faz ao
teúdo latente cm termos metafóricos ou alegóricos ou cm alguma tentar separar o pensamento latente do sonho dc seu disfarce, é
outra forma de disfarce sistemático. A próxima informação que í) chave para o mecanismo do trabalho o n í r i c o . A r e s i s t ê n c i a
obtemos acerca de tais símbolos oníricos provem da peculiar ex- c o sinal mais seguro de um conflito:
periência da resistência, essa que se opõe ao trabalho interpreta-
tivo. Esta resistência, a qual Freud associa a uma censura oníri- " A q u i deve haver uma força que quer expressar algo e uma outra f o r ç a
ca, manifesta-se não menos na carência associativa, no processo que se e s f o r ç a por evitar sua e x p r e s s ã o . O que e n t ã o se i m p õ e , em conse¬

hesitante de associações e em associações que n ã o passam de q ü ê n c i a , como sonho manifesto, pode combinar todas as d e c i s õ e s nas quais
se condensou essa luta entre as duas tendências. É possível que num ponto
subterfúgios, do que no esquecimento de fragmentos textuais, os
uma dessas forças tenha tido sucesso em afirmar o que queria expressar,
quais posteriormente são acrescentados ao texto o n í r i c o original: ao passo que num outro ponto é a instância oposta que teve a sorte de
eclipsar por completo a c o m u n i c a ç ã o que se pretendia expressar, ou subs¬
tituí-la por algo que n ã o revele qualquer traço comum com essa força. O s
"Durante o trabalho ( a n a l í t i c o ) c i m p o s s í v e l n ã o atentar para as mani-
casos mais comuns c mais característicos da formação onírica s ã o aqueles
festações desta resistência. Em determinados pontos as associações são
nos quais o conflito acabou cm c o n c i l i a ç ã o , de maneira tal que a i n s t â n ¬
fornecidas sem h e s i t a ç ã o , c já a primeira ou segunda i d é i a que advem
cia que participa (efetivamente) foi, por certo, capaz de expressar o
espontaneamente à mente do paciente proporciona a e x p l i c a ç ã o . Em outros
que quis, mas n ã o na forma como quis;.na verdade, apenas numa forma
momentos h á uma interrupção, e o paciente titubeia antes de formular
atenuada, distorcida e i r r e c o n h e c í v e l . Quando, portanto, os sonhos n ã o
uma a s s o c i a ç ã o e, com isso, há que escutar uma longa cadeia de i d é i a s
formam um quadro fiel dos pensamentos o n í r i c o s , quando o trabalho in-
antes dc poder contar com algo que ajude a compreender o sonho. Temos
terpretativo se faz n e c e s s á r i o para transpor o hiato entre ambos, então
certamente r a z ã o ao supor que, quanto mais demorada e repleta de subter-
trata-se do sucesso da instância renitente, inibidora e limitadora, a qual
f ú g i o s a cadeia associativa for, tanto maior a r e s i s t ê n c i a . I d ê n t i c a influ¬
inferimos dc nossa p e r c e p ç ã o da r e s i s t ê n c i a enr nosso trabalho da inter-
ência podemos detectar no esquecimento dos sonhos. Não poucas vezes s
pretação dos sonhos". 6
acontece que um paciente, apesar de todos os seus esforços, n ã o consegue
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 243-
242 CONHECIMENTO E INTERESSE

Podemos admitir que a instância limitante, que durante o dia s i n t á t i c a s , eis que os meios de diferenciação, dos quais a lingua¬
controla o falar e o agir, relaxa seu d o m í n i o durante o sono, ao gem d i s p õ e para articular r e l a ç õ e s lógicas, estão suspensos; mes¬
confiar na s u s p e n s ã o da motilidade, mas reprimindo os motivos mo as regras elementares da lógica encontram-se abolidas. Na
•da ação. E l a impede assim a efetivação de motivações indesejᬠlinguagem do sonho, carente de g r a m á t i c a , as c o n e x õ e s são es¬
veis, na medida em que retira do t r â n s i t o as i n t e r p r e t a ç õ e s cor¬ tabelecidas por intermédio da superposição luminosa e através da
respondentes, a saber: r e p r e s e n t a ç õ e s e s í m b o l o s . , Este t r â n s i t o c o m p r e e n s ã o do material sonhado; Freud fala de " c o n d e n s a ç ã o " .
consiste em i n t e r a ç õ e s bem ajustadas, comprometidas que estão Tais imagens comprimidas da linguagem primitiva do sonho pres¬
com a opinião pública da comunicação própria à linguagem or¬ tam-se à transferência de acentos significativos e deslocam signi¬
dinária. As instituições da permuta social não autorizam senão ficações originais. O mecanismo do "deslocamento" está a ser¬
certos motivos de a ç ã o ; a outras necessidades fundamentais, igual¬ viço da instância responsável pela censura, em vista do desarran-
mente presas às i n t e r p r e t a ç õ e s da linguagem cotidiana, é vedado jo do sentido originário. O outro mecanismo é o da supressão de
o caminho da ação manifesta, seja pelo confronto direto com passagens inaceitáveis do texto. C o m suas c o m p r e s s õ e s , interliga¬
uma força alheia, seja por meio da s a n ç ã o de normas socialmen¬ das apenas superficialmente entre si, a estrutura da linguagem
te i n q u e s t i o n á v e i s . Tais conflitos, no início apenas exteriores, onírica favorece igualmente as o m i s s õ e s .
prolongam-se, enquanto n ã o forem encaminhadas conscientemen¬ A análise do sonho vê na omissão e no deslocamento duas
te, no interior do psiquismo, na forma de um conflito permanente diferentes estratégias de defesa: o recalque em sentido estrito, di¬
entre uma i n s t â n c i a defensiva, representando a r e p r e s s ã o social, rigido de forma repressiva contra o p r ó p r i o E u , e o disfarce, a
e (uma i n s t â n c i a de) motivos acionais i n e x e q ü í v e i s . O recurso qual pode igualmente vir a ser a base para uma p r o j e ç ã o do Eu
p s í q u i c o mais eficaz para neutralizar as d i s p o s i ç õ e s indesejáveis em d i r e ç ã o ao exterior. Em nosso contexto é interessante obser¬
daquilo que chamamos de necessidade consiste em excluir da var que Freud fez a descoberta de tais estratégias defensivas pela
comunicação pública — isto é, em recalcar — as interpretações primeira vez nas mutilações e deformações do texto. onírico. O
às quais essas necessidades estão acopladas. Frcucl denomina de mecanismo cie defesa está, de fato, voltado diretamente contra as
desejos inconscientes os símbolos banidos c os motivos assim i n t e r p r e t a ç õ e s de motivos acionais. Esses são neutralizados pelo
reprimidos. M o t i v a ç õ e s conscientes, presentes no emprego públi¬ fato de os símbolos, com os quais disposições inerentes àquilo
co da linguagem, são transformadas, pelo mecanismo da repres¬ que chamamos necessidade estão comprometidas, desaparecem do
são, em motivos inconscientes, em motivos por assim dizer ca¬ horizonte da comunicação pública. Com isso a tematização da
rentes de linguagem. Durante o sono, quando a censura pode "censura" adquire um sentido bem preciso: a censura psicológica,
ser relaxada devido à suspensão da motilidade, os motivos recal¬ como a oficial, reprime o estofo s e m â n t i c o e as significações nele
cados encontram uma linguagem através da a s s o c i a ç ã o simbólica articuladas. Ambas as formas da censura servem-se dos mesmos
de fragmentos diurnos; seus símbolos são publicamente sancio¬ mecanismos de defesa: aos processos de interdição e recomposi¬
nados, mas trata-se de uma linguagem privatizada, "pois o sonho ção do texto correspondem os mecanismos psíquicos da o m i s s ã o
38

n ã o é em si nenhuma expressão social, ele n ã o perfaz um meio (recalque) e do deslocamento.


da c o m p r e e n s ã o (intersubjetiva)". 37 Por fim, o c o n t e ú d o latente, o qual a análise do sonho nor¬
O texto do sonho pode ser visto como um compromisso. malmente libera, lança uma luz sobre a função da p r o d u ç ã o oní¬
E l e resulta, por um lado, da censura social metamorfoseada no rica enquanto tal. Trata-se da repetição de cenas prcnh.es de con-
Eu e, por outro, dos motivos inconscientes excluídos da comu¬ flitos, com raízes na infância: "O ato-de-sonhar é um fragmento
3 9

n i c a ç ã o . O fato dos motivos inconscientes penetrarem, sob as da vida p s í q u i c a infantil que (já) ficou para t r á s " . As cenas
c o n d i ç õ e s excepcionais do sono, no estofo p r é - c o n s c i e n t e — sus¬ infantis permitem que se chegue à c o n c l u s ã o de que os desejos
cetível à comunicação pública — faz com que a linguagem do inconscientes mais produtivos p r o v ê m de repressões relativamen¬
texto onírico se caracterize, enquanto compromisso, como um te precoces, portanto, resultantes de conflitos nos quais a pessoa
aglomerado sui generis de linguagem p ú b l i c a e privativa. A se¬ inacabada e dependente da criança, esteve submetida, de maneira
q ü ê n c i a de cenas visuais n ã o está mais ordenada segundo regras constante, à autoridade de suas pessoas de referência e às e x i -
244 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 245

gências sociais, por elas representadas. Freud p ô d e assim, já em 1


texto de nossos jogos cotidianos de linguagem é interrompido por
1900, resumir o resultado de uma psicologia dos processos oní¬ símbolos incompreensíveis. Tais símbolos são incompreensíveis
ricos na tese segundo a qual "a e l a b o r a ç ã o de um fluxo de pen¬ porque n ã o obedecem às regras gramaticais da linguagem ordi¬
samento normal só então ocorre, quando este se tornou apto à n á r i a , às normas da a ç ã o c aos modelos da e x p r e s s ã o , cultural¬
transferência de um desejo inconsciente, o qual se origina da in¬ mente sancionados. Eles são ou ignorados ou camuflados, racio¬
4 0
fância e se encontra em um estado de r e p r e s s ã o " . Esta elabo¬ nalizados pelo trabalho s e c u n d á r i o (caso n ã o forem, eles pró¬
r a ç ã o é um f e n ô m e n o típico ao sonho. Ã análise dos sonhos cabe prios, resultados de r a c i o n a l i z a ç õ e s ) ou reduzidos a p e r t u r b a ç õ e s
a peculiar tarefa de "levantar o véu da a m n é s i a que oculta os s o m á t i c a s externas. Freud comprova tais f o r m a ç õ e s simbólicas
anos iniciais da infância e trazer à m e m ó r i a consciente as mani¬ derivadas, as quais ele investigou exemplarmente no sonho, com
511
festações do início da vida sexual infantil, neles contidas". o t é r m i n o m é d i c o sintoma. Sintomas são renitentes, normalmen¬
A r e g r e s s ã o noturna da vida p s í q u i c a ao estágio infantil per¬ te só desaparecem quando s u b s t i t u í d o s por equivalentes funcio¬
mite compreender o caráter singularmente atemporal, p r ó p r i o aos nais. A persistência dos sintomas é e x p r e s s ã o de uma fixação de
motivos inconscientes. No momento em que s í m b o l o s isolados e r e p r e s e n t a ç õ e s e modos comportamentais em um modelo cons¬
motivos recalcados de ações podem ter acesso — contra a censura tante e constringente. Eles restringem a margem de flexibilidade
instalada, como este é o caso do sonho — ao material apto a do discurso e da ação comunicativa; eles podem fazer decrescer
chegar à consciência ou, como este é o caso nos sintomas das o c o n t e ú d o de realidade de certas p e r c e p ç õ e s e processos men¬
diversas neuroses, ter acesso ao d o m í n i o da c o m u n i c a ç ã o p ú b l i c a tais, bem como desequilibrar a economia dos afetos, submeter o
e da i n t e r a ç ã o habitual, eles vinculam o presente a c o n s t e l a ç õ e s comportamento a r i t u a l i z a ç õ e s ou limitar, de forma direta, as
do passado. f u n ç õ e s s o m á t i c a s . Os sintomas podem ser concebidos como re¬
Freud transfere as d e t e r m i n a ç õ e s obtidas junto ao modelo sultados de um compromisso entre desejos recalcados, de prove-
normal do texto onírico para aqueles f e n ô m e n o s da vida despena, n i ê n c i a infantil, e i n t e r d i ç õ e s de gratificações do desejo, impostas
cuja simbólica está, dc maneira parecida como a linguagem ca¬ pela sociedade. H por isso que, na maioria das vezes, eles reve¬
rente dc g r a m á t i c a do sonho, mutilada c deformada. C o m isso lam ambos os momentos, ainda que cm quantidades v a r i á v e i s :
as síndromes da histeria da c o n v e r s ã o , cia psiconcurosc e das eles t ê m o c a r á t e r dc f o r m a ç õ e s substitutas em vista de uma sa¬
diversas fobias aparecem somente como os casos p a t o l ó g i c o s l i ¬ tisfação recusada e s ã o , igualmente, e x p r e s s ã o da sanção com a
mítrofes de uma escala de comportamentos falhos que, em parte, qual a instância responsável pela defesa psíquica ameaça o de¬
se localizam no -interior da esfera normal e, em parte, e x p õ e m sejo inconsciente. E n f i m , os sintomas são signos de uma auto-
eles p r ó p r i o s os critérios para aquilo que vige como normal. a l i c n a ç ã o específica do sujeito em q u e s t ã o . Nas lacunas do texto
"Falho", em sentido m e t ó d i c o estrito, é cada desvio do modelo prevalece a violência de uma i n t e r p r e t a ç ã o estranha ao E u , ainda
a caracterizar o jogo de linguagem da atividade comunicativa na que produzida por este E u . Pelo fato de os s í m b o l o s que inter¬
qual coincidem motivos acionais e i n t e n ç õ e s , expressas por meio pretam as necessidades reprimidas serem e x c l u í d o s da comunica¬
da linguagem. Nesse modelo n ã o há lugar para s í m b o l o s isola¬ ç ã o p ú b l i c a , a comunicação do sujeito que fala e age está inter¬
dos e para posições p s í q u i c a s , correspondentes àquilo que cha¬ rompida com ele mesmo. A linguagem privatizada dos motivos
mamos de necessidade, interligadas com tais s í m b o l o s ; admite-se inconscientes está s u b t r a í d a ao E u , muito embora ela retroaja
que elas n ã o existam ou, caso existam, p e r m a n e ç a m sem efeito internamente, com eficiência, sobre o emprego lingüístico do Eu
ao nível da comunicação pública, da interação habitual e da ex¬ e sobre a m o t i v a ç ã o de sua atividade — com o resultado de que
p r e s s ã o observável. Um tal modelo só poderia, por certo, encon¬ o Eu se ilude f o r ç o s a m e n t e acerca de sua identidade nas conexões
trar aplicação genérica sob as c o n d i ç õ e s de uma sociedade n ã o s i m b ó l i c a s que ele, conscientemente, produz.
repressiva. D e v i a ç õ e s do modelo são, por isso, o caso normal sob
Habitualmente o i n t é r p r e t e tem a tarefa de mediar a comu¬
todas as c o n d i ç õ e s sociais conhecidas.
n i c a ç ã o entre dois interlocutores que falam l í n g u a s diferentes: ele
Ao d o m í n i o do objeto da h e r m e n ê u t i c a profunda pertencem traduz de uma l í n g u a para outra e estatui a intersubjetividade
todas aquelas passagens onde, devido a p e r t u r b a ç õ e s internas, o inerente à validade de s í m b o l o s e regras; ele supera dificuldades
246 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 247

de c o m p r e e n s ã o entre interlocutores separados por fatores histó¬


43
ricos, sociais e culturais. Este modelo da h e r m e n ê u t i c a das ciên¬ te". Somente em virtude da r e f l e x ã o as r e p r e s s õ e s podem ser
cias do e s p í r i t o n ã o coaduna com o trabalho p s i c a n a l í t i c o da in¬ •suprimidas:
t e r p r e t a ç ã o . Pois, mesmo no caso patológico limítrofe da neuro¬
se, a c o m p r e e n s ã o entre o paciente e sen interlocutor, seja este "A tarefa Que o m é t o d o p s i c a n a l í t i c o procura resolver pode ser formulada
o da conversação (privada) ou da função social, não está dire¬ de diversos modos; em sua essência, p o r é m , eles s ã o equivalentes. Assim,
pode-se dizer: a tarefa do tratamento é remover as amnésias, dissolvendo-
tamente perturbada, mas apenas limitada, de forma indireta, pelo
as. Quando todas as lacunas da memória forem preenchidas, elucidados
efeito retroativo dos sintomas. Na verdade as coisas se passam
todos os produtos e n i g m á t i c o s da vida p s í q u i c a , a continuidade e mesmo
do seguinte modo: t a m b é m sob as condições da r e p r e s s ã o , o neu¬ .a r e i n c i d ê n c i a do estado m ó r b i d o tornam-se i m p o s s í v e i s . Ou a c o n d i ç ã o
r ó t i c o zela pela m a n u t e n ç ã o da intersubjetividade da compreen¬ pode ser (ainda) formulada de maneira diferente: todas as repressões
são cotidiana, e se comporta de acordo com as expectativas san¬ devem ser desfeitas; o estado psíquico eqüivale, então, àquele em que
cionadas socialmente. M a s , para manter a c o m u n i c a ç ã o desem¬ todas as a m n é s i a s foram preenchidas, Mais ousada é (ainda) uma outra
baraçada em tais circunstâncias da frustração, ele paga o preço formulação; trata-se de tornar o inconsciente consciente, o que acontece
do desnorteio da comunicação nele mesmo. Caso, porém, a limi¬ pela superação das r e s i s t ê n c i a s " . 4 4

tação da comunicação pública, necessária nas relações de domi¬


n a ç ã o , n ã o deva afetar a ilusão da intersubjetividade de uma ati¬ Ponto de partida da teoria é a e x p e r i ê n c i a da r e s i s t ê n c i a , pre¬
vidade comunicativa isenta de coação, os limites da c o m u n i c a ç ã o cisamente esta força que bloqueia e se c o n t r a p õ e à livre e p ú b l i c a
devem ser erigidos no interior do próprio sujeito. Assim a porção c o m u n i c a ç ã o dos c o n t e ú d o s recalcados. O tornar-consciente ana¬
privatizada da linguagem excomungada^ junto com os motivos lítico demonstra-se como reflexão pelo fato de tratar-se n ã o ape¬
indesejados da a ç ã o , é condenada ao silêncio na pessoa do neu¬ nas de um processo que ocorre ao nível cognitivo, mas de um
r ó t i c o e se torna inacessível para ele. Tal transtorno de comuni¬ processo que dissipa, simultaneamente, r e s i s t ê n c i a s no plano afe¬
cação requer um i n t é r p r e t e que não medeia entre conlraentcs de tivo. A limitação dogmática de uma falsa consciência mede-sc
línguas diferentes, mas um interprete que ensina a um só c mesmo n ã o apenas pela ausência mas pela inacesssibiíidade específica da
sujeito a compreender sua p r ó p r i a língua. I n s t r u í d o pelo analista, i n f o r m a ç ã o ; ela n ã o apenas perfaz uma falha cognitiva, mas esta
o paciente aprende a ler seus p r ó p r i o s lexíos, por ele mesmo mu¬ carência encontra-se fixada em base de atitudes afetivas por meio
tilados e deformados, e a traduzir, no discurso da c o m u n i c a ç ã o de critérios apropriados por costume. É por isso que a simples
pública, os símbolos de um discurso disforme na linguagem pri¬ comunicação de informações e a designação de resistências não
vada. T a l t r a d u ç ã o descerra para a memória, até aí bloqueada, possuem, por si, um efeito t e r a p ê u t i c o :
as fases geneticamente importantes da história da vida, e torna
o sujeito consciente de seu processo formativo: nesse sentido a uma c o n c e p ç ã o há muito superada, fundada em a p a r ê n c i a s superficiais,
hermenêutica psicanalítica não objetiva, como a hermenêutica das a de o doente sofrer dc uma e s p é c i e de i g n o r â n c i a , e se a l g u é m conseguir
ciências do espírito, a compreensão de complexos simbólicos en¬ remover esta i g n o r â n c i a a t r a v é s da i n f o r m a ç ã o (acerca das c o n e x õ e s causais
quanto tais; o ato do compreender, ao qual ela conduz, é auto- de sua doença com sua vida, acerca de suas vivências de infância, e assim

reflexão. por diante), ele dcya recuperar a saúde. O momento p a t o l ó g i c o não 6


esse ignorar em si, mas a fundamentação do não-saber em resistências
A tese, segundo a qual o conhecimento p s i c a n a l í t i c o faz par¬ internas; foram estas que provocaram, pela primeira vez, a ignorância e

te da a u t o - r e f l e x ã o , pode ser facilmente demonstrada nas investi¬ ainda a fomentam. A tarefa da terapia está no combate a essas resistências
44 A participação daquilo que o doente n ã o sabe, eis que o reprimiu, é
gações de Freud acerca da técnica analítica. Com efeito, o tra¬
tão-somente uma das medidas preliminares para a terapia, Fosse o co¬
tamento a n a l í t i c o n ã o pode ser determinado sem a referência à
nhecimento do inconsciente importante assim para o doente como a pessoa
experiência da-reflexão. O que chamamos de hermenêutica rece¬ inexperiente em p s i c a n á l i s e imagina, então deveria ser suficiente para a
be seu peso valorativo no processo da gênese da a u t o c o n s c i ê n c i a . cura, que o doente ouvisse prelcções ou lesse livros. Tais medidas possuem,
N ã o é suficiente falar de t r a d u ç ã o de um texto, t r a d u ç ã o como tal porém, tanta i n f l u ê n c i a sobre os sintomas nervosos do padecimento (psí¬
c* reflexão: " T r a d u ç ã o do inconsciente naquilo que é conscien- quico) como a distribuição de cardápios, numa época de escassez de v í v e -
res, tem sobre a fome. A c o m p a r a ç ã o ' é , mesmo a l é m de sua a p l i c a ç ã o
248 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 249

imediata," aproveitável; pois, a participação do inconsciente ao doente


do recalque de maneira tal que essa não mais f a v o r e ç a a estabili¬
(pelo m é d i c o ) tem, em regra, por conseqüência que o conflito nele é
intensificado e seus distúrbios se tornam (ainda) mais agudos".4s zação da resistência, mas opere a favor de sua r e m o ç ã o crítica:

•"Os impulsos inconscientes n ã o desejam ser recordados da maneira como


O trabalho do analista parece, à primeira vista, e q ü i v a l e r ao
o tratamento quer que o sejam, mas e s f o r ç a m - s e por reproduzir-se de
do historiador; mais exatamente ao do a r q u e ó l o g o . Pois, sua acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de aluci-
tarefa consiste na reconstrução dos primórdios históricos do pa¬ nação. Tal como acontece nos sonhos, o paciente encara os produtos do
ciente. No fim da análise deve ser possível expor, nos moldes de despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e reais;
um relato, eventos relevantes do passado esquecido do paciente procura colocar suas p a i x õ e s em a ç ã o sem levar em conta a s i t u a ç ã o real.

significativos para a história da d o e n ç a ; eventos n ã o conhecidos O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo
do tratamento e da h i s t ó r i a de sua vida, a submetê-lo à consideração
nem pelo m é d i c o nem pelo paciente no início da análise. O tra¬
intelectual e a c o m p r e e n d ê - l o s à luz de seu valor p s í q u i c o . Esta luta entre
balho intelectual é dividido de tal maneira entre m é d i c o e pa¬
o m é d i c o e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a com¬
ciente que aquele reconstrói a partir dos textos defeituosos do preensão e a procura da a ç ã o , é travada, quase exclusivamente, nos f e n ô -
paciente, a partir de seus sonhos, de suas idéias fortuitas e repe¬ menos da t r a n s f e r ê n c i a " . 4 8

t i ç õ e s daquilo que está esquecido, enquanto este se recorda, esti¬


mulado pelas construções que o médico lhe p r o p õ e a título de O paciente encontra-se coagido a repetir o conflito original
hipótese. Quanto ao método, o trabalho da construção, próprio sob as c o n d i ç õ e s da censura; ele age seguindo os rastros das ati¬
ao analista, apresenta uma grande c o n c o r d â n c i a com reconstru¬ tudes p a t o l ó g i c a s e das c o n s t e l a ç õ e s substitutas, as quais foram
ções que um a r q u e ó l o g o , por exemplo, empreende cm lugares de fixadas na infância como compromissos entre as r e a l i z a ç õ e s do
investigação arqueológica. Contudo, enquanto a exposição his¬ desejo e aquilo que denominamos de defesa. O processo que o
t ó r i c a dc um processo esquecido ou cie uma " h i s t ó r i a " é o obje¬ m é d i c o deve reconstruir não sc lhe apresenta como um aconteci¬
A
tivo do a r q u e ó l o g o , o "caminho que parte da c o n s t r u ç ã o do ana- mento h i s t ó r i c o mas como um poder ativo e presente. Ora, o
0
l i s t a . . . " se encerra "na r e m e m o r a ç ã o do analisado"." Apenas imperativo da situação analítica, sempre concebido cm termos de
a r e c o r d a ç ã o do paciente decide a p e r t i n ê n c i a da c o n s t r u ç ã o ; caso uma tentativa, consiste no seguinte: por um lado, trata-se dc re¬
confira, ela deve poder "recuperar" no paciente um fragmento da duzir os controles conscientes (pelo relaxamento, pela livre asso¬
biografia perdida, isto é, deve poder ocasionar a i g n i ç ã o para a ciação, pela comunicação isenta de condições p r é v i a s ) , debilitar
auto-reflexão. os mecanismos de defesa e fortalecer primeiro a necessidade do
No início dc cada etapa do obrar analítico o saber do m é d i c o agir mas, por outro lado, deixar sem c o n s e q ü ê n c i a s tais r e a ç õ e s
que constrói é diferente daquele do paciente que lhe resiste. V i s t a •compulsivas frente a um interlocutor reservado, o qual se apre¬
sob a perspectiva do analista, a c o n s t r u ç ã o h i p o t é t i c a , a qual senta como um opositor virtual, e permitir, com isso, que tais
completa os elementos dispersos de um texto mutilado e defor¬ r e a ç õ e s retroajam sobre o p r ó p r i o paciente. Deste modo a neu¬
mado em vistaA de um modelo c o m p r e e n s í v e l , permanece tão-so¬ rose comum é transformada em uma neurose de transferência. A
mente "para n ó s " , até que a c o m u n i c a ç ã o da c o n s t r u ç ã o ao pa¬ compulsão patológica à repetição pode, sob as condições con¬
ciente se transforme cm esclarecimento, a saber, cm um "para troladas de uma d o e n ç a artificial, ser transformada em "uma mo¬
isto", para a consciência do paciente: "Nesse momento nosso tivação para o ato-do-recordar". O médico aproveita a oportu¬
4
saber tornou-se, e n t ã o , t a m b é m seu saber". ' Freud denomina nidade para dar aos sintomas uma nova significação transferen¬
de " e l a b o r a ç ã o " o esforço comum que supera a t e n s ã o entre a ciai e, "pelo trabalho da r e m e m o r a ç ã o , resolver o que o paciente
c o m u n i c a ç ã o e o esclarecimento. Elaboração designa a parte d i - gostaria de executar através da a ç ã o " . 4 0
O controle, por ass m :

n â m i c a de um empreendimento intelectual; ela só leva à identifi- dizer experimental, da "repetição" oferece ao m é d ' c o , nas condi-
cação cognitiva do passado através da superação das resistências. ções da situação analítica, uma possibilidade tanto de conheci¬
O analista está em condições de encaminhar o processo do mento quanto de tratamento. O atuar na s i t u a ç ã o transferenciai
esclarecimento desde que lhe seja p o s s í v e l reorientar a d i n â m i c a (e nas s i t u a ç õ e s cotidianas paralelas durante o tempo do trata¬
mento) conduz a c e n á r i o s que liberam indícios para a reconstru-
250 CONHECIMENTO E INTERESSE

CRÍTICA COMO UNIDADE-DE CONHECIMENTO E INTERESSE 251


ção das cenas o r i g i n á r i a s , inerentes ao conflito infantil do pa¬
ciente. Mas as c o n s t r u ç õ e s do m é d i c o n ã o podem ser convertidas. A análise possui conseqüências terapêuticas imediatas, eis
em r e c o r d a ç õ e s atualizadas do paciente, senão na medida em que que a s u p e r a ç ã o critica dos entraves da c o n s c i ê n c i a e a repassa-
este, confrontado com as c o n s e q ü ê n c i a s de seu atuar em uma gem das falsas objetivações dão início a apropriações de um
situação cuja gravidade encontra-se suspensa na transferencia fragmento perdido da biografia, revertendo o processo da d i v i s ã o
aprende a se ver com o olhar de um outro e a Yeconhecer nos psíquica. É por isso que o conhecimento analítico é auto-reflexão.
sintomas os derivativos de seu p r ó p r i o comportamento. F o i por isso que Freud rejeitou a c o m p a r a ç ã o entre p s i c a n á l i s e
A Partimos da tese segundo a qual o processo cognitivo do e análise química. A análise e a decomposição dos complexos
paciente, iniciado pelo m é d i c o , deve ser compreendido como uma em suas partes mais simples n ã o levam a uma multiplicidade de
auto-reflexao. A lógica da situação transferenciai e a divisão de elementos, a qual pudesse e n t ã o ser recomposta por v i a sintética.
trabalho na c o m u n i c a ç ã o , entre o m é d i c o que c o n s t r ó i e o pacien¬ O termo " p s i c o s s í n t e s e " Freud o qualifica de oco, já que n ã o atina
te que converte o atuar em um prpeesso de r e c o r d a ç ã o , sustentam com a realização específica da auto-reflexão; nela a dissolução
esta tese. A i n t e l e c ç ã o analítica é complementar ao processo a n a l í t i c a é enquanto tal, a síntese, o restabelecimento de uma
formativo que se desencaminhou. E l a devo seu sucesso a um unidade corrompida:
processo de aprendizagem compensatório, o qual reverte os pro¬
cessos de desintegração. Em tal processo de fissão p s í q u i c a tra¬ "O paciente n e u r ó t i c o se nos apresenta com a psique dilacerada, atassa-
ta-se da seleção de s í m b o l o s em uso no linguajar p ú b l i c o - em lhada por r e s i s t ê n c i a s , e quando a analisamos e eliminamos as r e s i s t ê n c i a s ,
conseqüência, de uma deformação das regras da comunicação re¬ essa vida psíquica sc unifica; a grande unidade, a qual chamamos dc ego,

lativas a linguagem privativa, por um lado e, por outro, da neu¬ ajusta-se a todos os impulsos instintuais que haviam estado separados desta
unidade c encontravam-se aglutinados fora delato
tralização dos motivos acionais, vinculados a s í m b o l o s isolados
A totalidade virtual, tendida pelo processo da s e p a r a ç ã o 6 re¬
T r ê s particularidades suplementares demonstram que o co¬
presentada pelo modelo da atividade p r ó p r i a ã c o m u n i c a ç ã o pura
nhecimento analítico 6 ama auto-reflexão. Nele estão, de saída
acordo c o m esse modelo., todas as i n t e r a ç õ e s sedimentadas
e de modo igual, incluídos dois momentos: o momento cognitivo
por habito e todas as i n t e r p r e t a ç õ e s relevantes para a p r á x i s v i t a l
e o afetivo-motivador. O saber analítico, enquanto a u t o - r e f l e x ã o ,
sao, a cada momento c com base no aparelho interiorizado da
é crítica no sentido de que a intelecção do paciente possui, nela
linguagem cotidiana irrestrita, acessíveis para uma c o m u n i c a ç ã o
mesma, o poder analítico de remover atitudes d o g m á t i c a s . A cri¬
publica isenta de coação, de modo que também a transparência
tica culmina em uma t r a n s f o r m a ç ã o da base afetivo-motivadora,
da biografia que rememora fica garantida. Processos formativos
bem assim como ela tem seu ponto de partida na necessidade
que se afastam de tal modelo (e Freud n ã o deixa qualquer dú¬
por uma t r a n s f o r m a ç ã o . A crítica n ã o teria o poder de se impor
vida de que, nas c o n d i ç õ e s de um desenvolvimento sexual caracteri¬
sobre a falsa c o n s c i ê n c i a , caso n ã o fosse impulsionada por uma
zado por um duplo apogeu com l a t ê n c i a forcada, todos os pro¬
paixão da crítica. No início se localiza a experiência da dor e
cessos de socialização devem nesse sentido ter uma s e q ü ê n c i a
da c a r ê n c i a , e o interesse pela r e m o ç ã o do estado pesaroso. O
anormal) sao o resultado de uma r e p r e s s ã o exercida por instân¬
paciente procura o m é d i c o porque sc sente torturado por seus
cias sociais. Esta influência externa é s u b s t i t u í d a por um me¬
sintomas e gostaria de se ver liberto deles — com isso t a m b é m
canismo de defesa intrapsíquico, p r ó p r i o a uma instância erigida
a p s i c a n á l i s e pode contar. M a s diferentemente do que ocorre com
no interior do i n d i v í d u o , de modo tal que se torne permanente
o tratamento t e r a p ê u t i c o habitual, o impacto do sofrimento e o
ü j a conduz, a longo prazo, a acordos com as exigências da por¬
interesse na r e c u p e r a ç ã o da saúde n ã o perfazem apenas a ocasião
ção apartada, acordos que se realizam à custa da c o m p u l s ã o
a determinar o início do tratamento, mas constituem, em si, a
patológica e da auto-ilusão. Tal é o fundamento da formação dos
pressuposição para o sucesso da terapia.
sintomas; através dela o texto dos jogos da linguagem cotidiana
e deteriorado de forma t í p i c a e chega, assim, a ser objeto de uma
""Durante o tratamento os senhores podem observar que cada melhora em
possível elaboração analítica.
sua c o n d i ç ã o * reduz a rapidez da r e c u p e r a ç ã o e diminui a f o r ç a instin-

* do paciente (N. do T . )
252 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 253-

tual que o impele para a cura. N ã o podemos, porém, renunciar a essa d i s t ú r b i o s de minhas a ç õ e s e a t r a v é s da c o n f u s ã o de meus sentimentos.
f o r ç a instinlual; sua r e d u ç ã o coloca em risco a nossa finalidade ' a res- Posso fazer a e x p e r i ê n c i a de que aquilo que estou repudiando n ã o apenas
t a u r a ç ã o da saúde do paciente. Qual é, e n t ã o , a c o n c l u s ã o que inevitavel- ' e s t á ' em mim mas, vez por outra, também 'age' de mim para fora (de
5 2

mente se impõe? Cruel como possa parecer, devemos cuidar para que o mim)". '

sofrimento do paciente, em um grau de um modo ou de outro efetivo •


n ã o acabe prematuramente. Se, devido ao fato de que os sintomas foram Pelo fato da análise exigir do paciente a e x p e r i ê n c i a da auto-
afastados e perderam o seu valor, seu sofrimento se atenua, devemos
reflexão, ela postula uma "responsabilidade ética para com o
r e s t a b e l e c ê - l o alhures, sob a forma de alguma p r i v a ç ã o a p r e c i á v e l - caso'
conteúdo" da doença. Pois, a intelecção afetiva, à qual a análise
contrario corremos o risco dc jamais conseguir s e n ã o melhoras insignifi¬
cantes e t r a n s i t ó r i a s " . 6 1 deve conduzir, consiste, depois de tudo, apenas no seguinte: que
o Eu do paciente se r e c o n h e ç a em seu outro, representado pela
doença, como em seu Eu-próprio alienado, e se identifique com
Freud postula que a cura a n a l í t i c a se processe sob as con¬
ele. Como na dialética da moralidade em Hegel, o criminoso
dições da a b s t i n ê n c i a . E l e gostaria de evitar que, no decurso do
reconhece em sua vítima sua própria essência arruinada, uma
tratamento, o paciente substituísse prematuramente os sintomas a u t o - r e f l e x ã o , pela qual as partes abstratamente em conflito re¬
por uma satisfação compensatória, a qual exclua o caráter pou¬ conhecem a totalidade moral esfacelada como sua base comum"
co gratificante da cura. Na prática terapêutica habitual uma tal e, por i n t e r m é d i o de tal processo auto-reflexivo, retornam a tal
e x i g ê n c i a deveria parecer absurda; na terapia p s i c a n a l í t i c a , po¬ fundamento. O conhecimento a n a l í t i c o é, simultaneamente, inte-
r é m , ela não é desprovida de sentido, eis que sen sucesso' n ã o lecção ético-afetiva, eis que na dinâmica da auto-reflexão a uni¬
depende de uma i n t e r v e n ç ã o tecnicamente bem-sucedida do mé¬ dade da razão teórica e da razão prática ainda não está supressa..
dico no organismo doente, mas do avanço de uma auto-reflexão
Uma última particularidade da análise confirma tal caráter.
do paciente. Contudo, a auto-reflexão só se m a n t é m em pro¬
A exigência de que ninguém deva exercer a prática analítica, caso-
cesso enquanto o saber a n a l í t i c o é instigado a superar as resis¬
não se tenha antes submetido a uma análise didática, parece cor¬
t ê n c i a s motivadoras a t r a v é s do interesse pelo auto conhecimento.
responder aos p a d r õ e s correntes da qualificação profissional em
Uma outra peculiaridade da análise está intimamente ligada
medicina. Há que aprender primeiro a profissão que se pre¬
a este aspecto do tratamento p s i c a n a l í t i c o . Freud n ã o se cansa dc tenda exercer. Mas a exigência que acautela contra os riscos de
acentuar que o paciente, 0 qual sc submete à terapia p s i c a n a l í t i c a , uma a n á l i s e "selvagem'-' postula mais do que a necessidade de
não se deve posicionar frente à sua d o e n ç a como se essa eqüi¬ uma f o r m a ç ã o adequada. Do analista é exigido bem mais, a sa¬
valesse a um sofrimento f í s i c o - c o r p ó r e o . E l e precisa ser levado, ber: que ele se submeta à a n á l i s e na p o s i ç ã o do paciente, a f i m .
a considerar o evento da d o e n ç a como uma parte de si mesmo. de se libertar precisamente das d o e n ç a s que ele, mais tarde, t e r á
Em vez de encarar os sintomas e suas causas como algo exterior, que tratar. Esta particularidade é digna de registro:
o paciente deve estar disposto a assumir, de certa forma, uma
responsabilidade para com a d o e n ç a . F r e u d discutiu este proble¬ "Afinal de contas, n i n g u é m sustenta que um m é d i c o s e r á incapaz de tratar'
ma a p r o p ó s i t o do caso a n á l o g o da responsabilidade perante o. doenças internas, se seus próprios órgãos internos n ã o forem sadios; ao-
conteúdo dos sonhos: contrario, pode-se argumentar que há certas vantagens no fato de um
homem que foi ele p r ó p r i o a m e a ç a d o pela tuberculose sc especializar no
63
tratamento dc pessoas que sofram dessa d o e n ç a " .
"Obviamente temos que nos considerar responsáveis pelos impulsos maus
dos próprios sonhos (...). A n ã o ser que o conteúdo do sonho — . . .
seja inspirado por e s p í r i t o s estranhos, ele faz parte de meu p r ó p r i o ser. Mas não há dúvida de que a situação analítica encobre pe-,
Quando procuro classificar os impulsos presentes, cm mim, segundo p a d r õ e s - rigos que não são típicos à práxis terapêutica convencional .—
sociais, em bons e maus, tenho de assumir responsabilidade por ambos os. "fontes de engano a partir do paralelograma pessoal de f o r ç a s " . .
tipos e se, desconversando, digo que o desconhecido, inconsciente e repri-
O médico é inibido em seu trabalho de interpretação e erra na
mido em mim n ã o é meu 'ego', n ã o estou com os p é s no terreno da
elaboração das construções corretas quando ele p r ó p r i o , sob o-
psicanálise, n ã o aceito suas chaves interpretativas e posso ser corrigido
pela c r í t i c a de meus semelhantes, ser obrigado a aprender por meio dos.
impacto de motivos inconscientes, projeta suas a n g ú s t i a s pessoais-
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 255
254 CONHECIMENTO E INTERESSE

r e s i s t ê n c i a que o paciente nos oferece ao tentarmos que seu in¬


sobre seu interlocutor ou n ã o percebe certos modos comporta- 58
consciente se lhe torne consciente". Na r e s i s t ê n c i a m a n i f e s t a - s é
mentais do paciente: um obrar defensivo sui generis; ele deve ser entendido tanto em.
r e l a ç ã o à i n s t â n c i a da defesa propriamente dita quanto em rela¬
"Enquanto for capaz dc clinicar, um médico que sofre de uma doença
ção ao material que é, enquanto tal, defendido e recalcado.
dos p u l m õ e s ou do c o r a ç ã o n ã o se acha em desvantagem para diagnosticar
òu tratar queixas internas, ao passo que as c o n d i ç õ e s especiais do trabalho
O que chamamos de r e s i s t ê n c i a significa: obstaculizar o aces¬
a n a l í t i c o fazem realmente com que os p r ó p r i o s defeitos do analista inter¬ so à c o n s c i ê n c i a . A s s i m , n ó s contamos com uma esfera do cons¬
firam em sua efetivação de uma avaliação correta do estado de coisas ciente e do p r é - c o n s c i e n t e ; este está d i s p o n í v e l no horizonte da.
em seu paciente e em sua reação a elas de maneira útil". 04
consciência e é, a cada momento, capaz de ser evocado; além
disso, ele está acoplado com a comunicação verbal e com ações,
Numa outra passagem Freud atribui tal estado de coisas a comportamentais. Esta esfera satisfaz, em seu todo, os c r i t é r i o s
"um momento especial, imanente ao assunto, já que em psico¬ da chamada o p i n i ã o p ú b l i c a ; isso quer dizer: ela satisfaz a ime-
logia, diferentemente do que ocorre na física, n ã o temos a ver diatez da c o m u n i c a ç ã o , seja em palavras ou a ç õ e s . O que de¬
com coisas que t ã o - s o m e n t e podem suscitar um glacial interesse nominamos de inconsciente está, pelo c o n t r á r i o , subtraído à co-
55
científico". Na situação transferenciai, o médico não se com¬ municação pública. Contudo, na medida em que se exterioriza.
porta de forma contemplativa; antes pelo c o n t r á r i o , ele o b t é m em s í m b o l o s ou ações comportamentais, ele se mostra na forma-
muito mais suas i n t e r p r e t a ç õ e s na medida em que assume meto- de um sintoma, a saber, como m u t i l a ç ã o e d e f o r m a ç ã o dó texto
dicamente a função de quem participa do fogo: transformando dos jogos de linguagem, p r ó p r i o s à vida do dia-a-dia. A expe¬
a compulsão neurótica à repetição em identificação transferen¬ riência da resistência e a obliteração específica de complexos sim¬
c i a i , promovendo e, ao mesmo tempo, mantendo em estado vir¬ bólicos remetem, de maneira complementar, ao mesmo: ao in¬
tual as transferências ambivalentes e, no momento oportuno, consciente; por um lado ele é "recalcado", isto é, reprimido em
desfazendo sua ligação com o paciente. No decurso destas ope¬ sua t e n d ê n c i a de se comunicar livremente e, por outro, ele sc
r a ç õ e s o medico faz-sc, a si mesmo, um instrumento de conheci¬ intromete no discurso p ú b l i c o c em comportamentos o b s e r v á v e i s
mento; mas não pelo fato de eliminar sua subjetividade s e n ã o , através de artifícios e "força", assim, sua passagem até a cons¬
•e precisamente por isso, pelo fato de engajá-ki de maneira con- ciência; em suma, r e p r e s s ã o (para um lado) e impulso (para o-
60
trolada. outro) são ambos momentos do "recalque".
Numa fase tardia de seu desenvolvimento Freud enquadrou ' Partindo das e x p e r i ê n c i a s de c o m u n i c a ç ã o entre m é d i c o e
suas suposições b á s i c a s em um modelo estrutural/'" A co-perten- paciente, Freud apossou-se do conceito de inconsciente ao se
•ça. das três instâncias — ego, id, superego — expõe a conexão apoiar sobre uma forma peculiar de d i s t ú r b i o que afeta a comu¬
funcional do aparelho psíquico. O nome das três instâncias não n i c a ç ã o da linguagem cotidiana. Para tanto teria sido n e c e s s á r i a , ,
se adequa satisfatoriamente à c o n c e p ç ã o mecanicista fundamental a rigor, uma teoria da linguagem, a qual n ã o existia na é p o c a e
•da estrutura da vida p s í q u i c a , muito embora esses nomes devam cujos contornos atualmente apenas c o m e ç a m a ser e s b o ç a d o s .
servir de explicação para o modo como o aparelho p s í q u i c o ope¬ Seja como for, há assim mesmo certas o b s e r v a ç õ e s instrutivas..
ra, N ã o é por acaso que as c o n s t r u ç õ e s conceituais ego, id, su- A espécie humana se distingue do animal por uma
.perego m e r e ç a m , a partir da e x p e r i ê n c i a da reflexão, os desig-
nativos que as nomeiam. Apenas posteriormente esses t é r m i n o s "complicação a t r a v é s da qual processos internos no ego podem adqui¬

foram alocados para um quadro de referência objetivista e rein- rir, igualmente, a qualidade de ser-consciente. T a l c o trabalho da f u n ç ã o
da linguagem; ela conecta, de forma compacta, conteúdos do ego com
terpretados.
resíduos mnêmicos, p r ó p r i o s a p e r c e p ç õ e s visuais mas, mais particular¬
Freud descobriu as funções do ego em c o n e x ã o com as duas
mente (ainda), a p e r c e p ç õ e s a c ú s t i c a s . D a í por diante, a periferia percep-
•outras instâncias, id e superego, ao interpretar os sonhos e no diᬠtiva da camada cortical pode ser excitada em grau bem maior a partir
logo analítico; portanto, ao interpretar textos especificamente mu¬ de seu cerne mais íntimo, acontecimentos internos como seqüências e-
tilados e deformados. E l e acentua que "toda a teoria da psica¬ processos de pensamentos podem tornar-se conscientes; c já se requer um
nálise está, em última análise, construída sobre a percepção da
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 25'
256 CONHECIMENTO E INTERESSE

ç ã o normal n ã o oferece oportunidade alguma de fuga, a técnica


.artifício todo especial para distinguir entre ambas as possibilidades — o
chamado teste da realidade. A equação percepção-realidade (mundo exte¬
da defesa de a n g ú s t i a abandona o plano da realidade, enquanto
rior) n ã o faz mais sentido. Erros, que doravante resultam com facilidade fonte imediata de risco, e volta-se contra as e x i g ê n c i a s pulsionais,
e nos sonhos com regularidade, são denominados de alucinações".* identificadas como origens indiretas de perigo.

"Parece, então, claro que o processo (intrapsíquico) de defesa é a n á l o g o


A função da linguagem, visualizada por Freud no texto c i -
à fuga por meio da qual o ego se protege de um perigo que o a m e a ç a de
lado, eqüivale a uma estabilização dos processos'de consciência
fora. (Este) processo defensivo é uma tentativa de fuga de um perigo
pelo fato de o "interior" ser preso a símbolos e adquirir, deste 01
instintual."
modo, existência "exterior". Em base de tal função, os limites
impostos às r e a l i z a ç õ e s da inteligência animal puderam ser rom¬ Esta tentativa de entender o processo interior da defesa
pidos, e comportamentos meramente adaptativos foram transfor¬ segundo o modelo da r e a ç ã o pela fuga leva a f o r m u l a ç õ e s que,
mados em atividade instrumental. Freud apropria-se do conceito surpreendentemente, concordam com os posicionamentos herme¬
pragmatista de conhecimento conto uma atividade que ensaia, n ê u t i c o s da p s i c a n á l i s e : o Eu que foge, incapaz que é de se sub¬
como "uma apalpação motora com pouco dispêndio energético trair à realidade, é obrigado a se esconder frente a si mesmo. O
00
•de descarga". C o m ajuda de símbolos semânticos podem-se ex¬ texto no qual o Eu se compreende a si p r ó p r i o em sua s i t u a ç ã o
perimentar cadeias acionais, na verdade, calculá-las. É por isso é, por conseguinte, purificado dos representantes das e x i g ê n c i a s
•que a linguagem perfaz o fulcro das realizações do E u ; delas de¬ pulsionais i n d e s e j á v e i s , isto é, o texto é censurado. A identidade
pende a capacidade de se efetuar testes-de-realidade. Vistos uma desta p o r ç ã o censurada da psique com o E u - p r ó p n o é denegada;
vez sob outro aspecto, tais testes só se tornam indispensáveis,
ela se torna, para o E u , um dado neutro, é reificada ao nível de
•em sentido estrito, depois que necessidades, com antecipações ver¬
um isto-aquilo. O mesmo vale para os representantes deste neutro
bais gralificantes, forem amalgamadas em lermos alucinatórios e,
ao nível do complexo s i m b ó l i c o purificado, a saber: para os
assim, canalizadas como necessidades culturalmente determina-
sintomas:
•das. É t ã o - s o m e n t e no médium da linguagem que sc articula, sob
a forma dc necessidades intcrprelalivas, a h e r a n ç a da natureza c -O processo que, pelo recalque, sc t r a n s f o r m o u em um sintoma, afirma
•cia história, própria ao potencial plástico do impulso, cuja orien¬ agora sua existência fora da organização do ego c independente dela. E
t a ç ã o libidinosa c agressiva está, por certo, antecipada mas, no n ã o apenas este processo, mas todos os seus derivados usufruem desse
mais, permanece indefinida, uma vez que se encontra separada m-smo privilégio; poder-se-ia dizer, da extraterritorialidade; e onde esses

desta motilidade hereditária. Em nível antropológico as exigên¬ derivativos entram em contato associativo com uma parte da organização
do ego n ã o é de modo algum certo que n ã o atraiam essa porção para si
cias pulsionais são representadas por i n t e r p r e t a ç õ e s , a saber, por
p r ó p r i o s c assim se ampliem à custa do ego. Uma analogia, com a qual
satisfações alucinatórias de desejo. Pelo fato das exigências l i b i -
de há muito estamos familiarizados, comparou um sintoma com um corpo
•dinosas e agressivas serem disfuncionais tanto para a autoconser- estranho que vinha mantendo uma s u c e s s ã o constante de e s t í m u l o s e r e a ç õ e s
v a ç ã o dos indivíduos quanto para a da espécie, estas exigências no tecido no qual estava encravado. De fato, ocorreu algumas vezes que
•estatelam-se contra a realidade. A instância do E u , responsável a luta defensiva contra um impulso instintual desagradável é eliminada
pelo teste-da-realidade, faz com que esses conflitos sejam previ¬ com a formação d; um sintoma. A t é onde sc pode verificar, isto e fre¬
síveis; ela reconhece aquelas m o ç õ e s pulsionais que, ao motiva¬ q ü e n t e m e n t e p o s s í v e l na c o n v e r s ã o histérica. M a s em geral o resultado e
rem ações, provocariam situações perigosas, tornando inevitáveis diferente. O ato inicial da repressão é acompanhado p o r uma seqüência
tediosa ou i n t e r m i n á v e l ; nela a luta contra o impulso instintual se pro¬
•conflitos externos. Estes impulsos instintuais o Eu os reconhece 2
longa até (ser) uma luta contra o sintoma".**
indiretamente, enquanto tais, como perigos. E l e reage com an¬
gústia e com técnicas próprias à angústia de defesa. Nos casos
•onde o conflito entre desejo e realidade não pode ser solucionado A luta s e c u n d á r i a da defesa contra os sintomas mostra que
.através de intervenções na realidade, só resta a fuga como alter- o processo interno da fuga, com o qual o Eu se esconde perante
jiativa. Se, p o r é m , por ocasião de um excesso constante de fan¬ si p r ó p r i o , substitui um a d v e r s á r i o externo pelos derivativos do
tasia do desejo frente às possibilidades reais de satisfação, a situa- i d , neutralizados em corpos estranhos.
258
CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 259

A fuga de si mesmo do Eu é uma operação executada na e


com.a linguagem; nao fosse assim, seria imposível inverter her- ""resistência" do paciente. Freud entendeu o processo de defesa
memuncamente o processo de defesa por intermédio de uma como a i n v e r s ã o da reflexão, isto é, como o processo a n á l o g o à
U
fuga pela qual o Eu se encobre frente a si mesmo. "Id" é, e n t ã o ,
7Cf n o n , / ? — p A d e r o ato d a epr, s - F r e U d t 6 n t 0 U c o m

sao no quadro í m g u r s ü c o como sendo o apartamento das idéias o nome para a parte do psiquismo exteriorizado pela defesa,
e n q U a n t
enquanto " E g o " é a instância que executa a tarefa do teste-de-
3 O ! o
elfSpoe
p U l S ã H n g U a g e m t a L p a r a
A
realidade e da censura pulsional. A d i s t i n ç ã o t o p o l ó g i c a entre
inconsciente e consciente (e/ou p r é - c o n s c i e n t e ) parece coincidir
"que a d i s t i n ç ã o real entre uma r e p r e s e n t a ç ã o (de um pensamento) Ics com esta diferenciação estrutural. Se for permitido denominar
s t e S V T P C S
- ««"ciente) consiste no f a K a pleí a de reflexão a dinâmica do fazer-consciente, então o processo in¬
verso ao da reflexão deverá transformar aquilo que é consciente
no que é inconsciente. Acontece que esta mesma e x p e r i ê n c i a
«« s " n A d r - r A s t A —~ ™sz clínica, da qual as construções do ego e do id tomaram seu pon¬
algo se torna p r é - c o n s c i e n t e ? ' E a resposta serh- < V n / i . , t s o s l
m a n l to de partida, mostra que a atividade da i n s t â n c i a ocupada com
s e n t a ç õ - s verl-nk ™ , u - P a sena. Vinculando-se às repre-
t i u d ç o w s verbais que lhe sao c o r r e s p o n d e n t e s ' " . « 3
f
a defesa ( p s í q u i c a ) de forma alguma se processa sempre cons¬
cientemente mas, antes pelo c o n t r á r i o , revela na maioria das vezes
_ Ora, a distinção entre representação verbal e representar™ uma d i n â m i c a inconsciente. T a l fato torna n e c e s s á r i o segundo
Freud a i n t r o d u ç ã o da categoria do "superego":
u s
Hipófèfe de um substrato nao-v<erbal, junto ao qual estas réíníre
S d
s
iso
taç s,
^n j^ ^ s ^sm^ e oid ' iMqiie "e a s da g u s e r e a l i z a m
" .
*s "O sinal objetivo d a resistência é o fato de seus recursos associativos des-
falecercm
tilado. Ele
ou se separarem
(o paciente) pode
demasiadamente do
também reconhecer
tema que
subjetivamente
e s t á sendo ven¬
a resis¬
t ê n c i a pelo fato dc ter sentimentos d e s a g r a d á v e i s quando se aproxima do
lema. liste ultimo sinal pode, contudo, estar t a m b é m ausente. Dizemos
a
are r ™— e n t ã o ao paciente que inferimos de sua conduta que
e s t a d o - d e - r e s i s t é n c i a , c ele responde que nada sabe disso e só se apercebe
d a dificuldade q u e t e m e m formular livremente suas associações. (Assim)
mostra-se que tínhamos razão; mas, nesse caso, sua resistência era também
ele e s t á , agora, em

tó A a
XrSeria v
cateTorh > . jp
d

5 intrapsíquica dc uma determinada


eferêi

r
d
r o d u
cia

ao
- ~i rs inconsciente, t ã o inconsciente quanto o reprimido
mos trabalhando. Há muito d e v e r í a m o s ter feito a pergunta: dc que parte
em cuja r e m o ç ã o

da vida p s í q u i c a se origina uma tal r e s i s t ê n c i a inconsciente? O principiante


esta¬

6r a em p s i c a n á l i s e terá de imediato uma resposta: é precisamente a resistên¬


en t e r l T Particularmente eviden e
c i a do inconsciente. Resposta ambígua c inaprovcitável! Se c o m isso se
cm termos arcaicos: o banimento e o ostracismo, 0 isolamento entende que a r e s i s t ê n c i a surge do reprimido, devemos acrescentar: certa¬
mente n ã o ! Devemos, antes, atribuir ao recalcado uma t e n d ê n c i a ascenden¬
te, um impulso de irromper na consciência. A resistência só pode ser
manifestação d o ego, esse q u e originariamente forçou a repressão c deseja,
«« « semântico." Mesmo a agora, mantê-la. Ademais, esta é a opinião q u e sempre tivemos. Desde
~ i n f a g e m - f o r m a d a " T L ™ que chegamos a admitir uma i n s t â n c i a especial no ego, o superego, o qual
representa as r e i v i n d i c a ç õ e s de c a r á t e r restritivo e o b j e t á v e i s , . podemos
P O n t 0 Cm Um d i a l e t 0 l i m i t
Í Í d a i n ? ' A o à esfera dizer q u e a repressão é obra desse superego, e q u e é executada o u p o r
cons st A ? U A G E
* traduzido - nisto U S C e t í v d de se r a i n d
ele mesmo, ou pelo ego, posto que e s t á às ordens dele (do superego)". 06

consiste, afinal, a atividade s e m â n t i c o - a n a l í t i c a do terapeuta


uma t t e S l T - , 0° O
e do i d resultaram de
I S C O n c e i t u a i s

uma i n t e r p r e t a ç ã o das e x p e r i ê n c i a s que o analista fez junto à À adaptação inteligente à realidade exterior, a qual p õ e o
Eu em c o n d i ç õ e s de efetuar o teste-de-realidade, corresponde a
260 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 261

apropriação dos papéis sociais através do processo da identifica¬


origem em r e p r e s e n t a ç õ e s verbais (conceitos, a b s t r a ç õ e s ) , a c e s s í v e l à cons-
ção com outros sujeitos, que, frente à criança, representam as ciência; contudo, a energia da catexia n ã o chega a esses conteúdos dc
expectativas sociais sancionadas. Por meio da i n t e r i o r i z a ç ã o de superego a partir da percepção auditiva, do ensino, da leitura, mas a
tais expectativas, em base da introjeção, da i n s t a u r a ç ã o de obje- partir das fontes localizadas no id". G 7

tos-de-amor abandonados, erige-se a instância do superego.. Os


r e s í d u o s , p r ó p r i o s à escolha de objetos já desamparados, d ã o ori¬ Há indícios de que uma espécie de sacralização, afetando
gem à instância da consciência moral, que lança na estrutura da certas p r o p o s i ç õ e s , i m p õ e - s e pela i n t e r l i g a ç ã o com motivos acio¬
personalidade as raízes das exigências repressivas da sociedade, nais libidinosos e recalcados. Deste modo os s í m b o l o s , os quais
opostas às r e i v i n d i c a ç õ e s pulsionais "excedentes" (do i n d i v í d u o ) exprimem as p r e c e i t u a ç õ e s do superego, n ã o se tornam, como
e as quais são, por sua vez, identificadas como "perigosas", de¬ tais, inacessíveis à c o m u n i c a ç ã o p ú b l i c a mas, enquanto enuncia¬
vido aos conflitos que podem engendrar. O superego é o pro¬ dos fundamentais prenhes de l i b i d o , são imunizados contra quais¬
longamento i n t r a p s í q u i c o da autoridade social, O Eu exerce en¬ quer o b j e ç õ e s críticas. Este fato explica, igualmente, a fraqueza
tão sua função de censurar os imperativos pulsionais, por assim do E u , r e s p o n s á v e l pelo teste-de-realidade, frente à autoridade
dizer, a serviço do superego. Ate onde o Eu age como ó r g ã o impositiva do superego ao qual, mesmo assim, ele continua preso
executivo do superego, lá a defesa permanece inconsciente. Nisto na base de uma linguagem comum n ã o mutilada.
a r e p r e s s ã o se distingue do domínio consciente da p u l s ã o . O Eu A dedução do modelo estrutural a partir das experiências
dependente da c r i a n ç a é, possivelmente, frágil demais para exe¬ da situação analítica compromete as três categorias ego, id e su-
cutar, com base em seus próprios meios, a defesa em cada caso perego com o sentido específico de uma c o m u n i c a ç ã o na qual
particular de tal maneira que seja t a m b é m eficiente. A s s i m se m é d i c o e paciente se engajam com o objetivo de pôr em movi¬
mento um processo de esclarecimento, conduzindo o doente ao
instaura no E u - p r ó p r i o esta i n s t â u c a que força o Eu a fugir com
exercício auto-reflexivo. Em c o n s e q ü ê n c i a , n ã o faz sentido des¬
a mesma violência objetiva como, por outro lado, os derivativos
crever, por sua vez, a reciprocidade p s í q u i c a , à qual devemos
do icl t a m b é m lhe oferecem objetivamente resistência como resul¬
recorrer para explicar o ego, o id c o superego, com ajuda do
tados da r e p r e s s ã o .
modelo estrutural introduzido com esta finalidade. É isso, p o r é m ,
Na verdade, o que ocorre é o seguinte: a internalização de que Freud faz. E l e interpreta o labor de i n t é r p r e t e do médico,-
normas proibitivas parece ser um processo da mesma ordem, que recorrendo às e x p r e s s õ e s do modelo estrutural. C o m isso a co¬

a dejesa de motivos indesejáveis. Isto fundamenta o parentesco m u n i c a ç ã o , descrita no início sob o ponto de vista da técnica"
do superego com o i d : ambos permanecem inconscientes. N ã o analítica, parece ser entendida em termos t e ó r i c o s . De fato, po¬
há dúvida de que os processos da i n t e r n a l i z a ç ã o e da defesa com¬ r é m , a e x p o s i ç ã o t e ó r i c a n ã o c o n t é m elemento algum que vá
portam-se de forma complementar: enquanto, no segundo caso, além da d e s c r i ç ã o que a precedeu. Pois, a linguagem da teoria
motivações próprias a ações socialmente indesejáveis são repri¬ c o n t é m predicados b á s i c o s i m p o s s í v e i s de serem introduzidos, a
midas como fantasias de desejo que, originariamente, fazem parte mão ser em relação com a apresentação pré-teórica da técnica.
do E u , ações socialmente desejáveis são, no primeiro caso, im¬ A língua cem da teoria é mais pobre do que a linguagem na qual
postas de fora ao Eu que, por sua vez, lhes resiste. A interna- a técnica foi descrita. Isto vale, sobretudo, para as expressões
lização pode ser comparada com o processo dc defesa da seguinte que se reportam ao sentido específico da análise. De acordo com
esta linguagem, diz-se que aquilo que se tornou inconsciente é
maneira: igual a este, ela subtrai à discussão os preceitos que,
transformado em consciente e, assim, a t r i b u í d o novamente ao E u ,
no início, estão articulados em nível semântico. Este isolamento
que m o ç õ e s pulsionais recalcadas são detectadas e criticadas, que
n ã o está, p o r é m , ligado a uma deformação inerente ao linguajar
o E u - p r ó p r i o dividido n ã o mais consegue operar qualquer síntese
privativo. Em tal contexto Freud acentua • 08
etc. No modelo estrutural, p o r é m , a instância do Eu carece
precisamente desta capacidade, à qual se apela com tais expres¬
"que o superego (...) n ã o pode denegar sua origem a partir daquilo que s õ e s : o Eu exerce as funções da a d a p t a ç ã o inteligente e da cen¬
M
ouviu; cie 6,-na verdade, uma parte do Eu e permanece, por essa sua
sura das pulsões, mas a realização específica, da qual o exercício
CRÍTICA COMO U N I D A D E , DE CONHECIMENTO E INTERESSE 263
262 CONHECIMENTO E INTERESSE

de defesa nao é senão o lado negativo, está ausente — a á u t o - cidade, mas t ã o - s o m e n t e emprega "eletricidade" como o psicó:-,
'

rcflexão. logo utiliza "pulsão" como.um conceito.teórico. - Não há dúvida-,


Freud distingue, por certo, entre deslocamento, como pro¬ de que foi a psicanálise que, pela primeira vez, fez da psicologia,
cesso p r i m á r i o , e sublimação; esta é um deslocamento sob controle uma ciência: . . _,:
do E u . De forma análoga ele distingue entre defesa, enquanto
"Nossa s u p o s i ç ã o de que haja um aparelho p s í q u i c o a se estender no,
uma reação inconsciente, e domínio racional da vida pulsional;
espaço, convenientemente amalgamado, desenvolvido pelas e x i g ê n c i a s .da
este 6 uma defesa n ã o apenas através do E u , mas t a m b é m sob o vida, dando origem aos f e n ô m e n o s da c o n s c i ê n c i a apenas cm um deter¬
controle do E u . M a s a dinâmica da reflexão, que transforma um minado ponto e sob certas condições, possibilitou-nos erigir a psicologia'
estado em aqueloutro, o esforço e m a n c i p a t ó r i o c a r a c t e r í s t i c o da em bases semelhantes àquelas de qualquer outra ciência da natureza, p o r
c r í t i c a , o qual transforma o estado patológico da c o m p u l s ã o e da exemplo, à f í s i c a " . "
a u t o - i l u s ã o em um estado onde o conflito está supresso e a lin¬
guagem excomungada reconciliada — esta dinâmica da reflexão Freud não recua frente às c o n s e q ü ê n c i a s de tal e q u i v a l ê n c i a '
n ã o assoma ao nível metapsicológico como uma das funções do da psicanálise com as ciências da natureza. Ele não exclui, em"
E u . N ã o pode deixar de cair em vista: o modelo estrutural de- princípio, a possibilidade da aplicação terapêutica da psicanálise :

nega a origem de suas próprias categorias, as quais se impuseram vir algum dia a ser substituída pelo emprego f a r m a c o l ó g i c o da" 1

a partir de um processo de esclarecimento. bioquímica. A autocompreensão da psicanálise como uma ciên-:;


;
cia natural sugere o modelo da e x p l o r a ç ã o técnica de i n f o r m a ç õ e s
científicas. Se a análise apenas aparentemente se apresenta como"'
11. O auto-equívoco cientificista da metapsicologia. uma interpretação de textos e, na realidade, conduz a uma pos¬
A lógica áa interpretação genérico-universal sibilidade de tornar o aparelho psíquico disponível para o con-;
trole técnico, então n ã o há nada de surpreendente na idéia de
F i c i i d confessa cm sua Autobiografia que, já nos anos de juven¬ que a intervenção psicológica venha algum dia a ser substituída
tude, seu interesse pela ciência se reportara antes "às r e l a ç õ e s cie forma mais eficaz por técnicas somáticas de tratamento:
dos homens entre si do que aos objetos naturais"; que nem nesta
"O futuro pode ensinar-nos a exercer i n f l u ê n c i a direta, por meio dc subs-
é p o c a , nem mais tarde tivera qualquer preferência emocional t â n c i a s q u í m i c a s especiais, sobre as quantidades dc energia e sua distri-
para a p o s i ç ã o e a atividade de médico. Mesmo assim, o estu¬ buição no aparelho psíquico (...). D e momento, porém, nada temos de
dante n ã o encontrou "sossego e plena satisfação" senão jra fisio- melhor à nossa disposição do que a técnica da psicanálise (...)". 4 7

logia. Durante seis anos ele se ocupou, no l a b o r a t ó r i o de Ernst


B r i i c k e , com problemas de histologia que envolviam o sistema Tal enunciado já revela, por certo, que uma c o n c e p ç ã o tec¬
08
nervoso. Essa dualidade de interesses tenha possivelmente con¬ nológica de análise t ã o - s ó se adequa a uma teoria que se libertou,
t r i b u í d o para o fato de Freud haver, de fato, fundado uma nova da moldura categoria], p r ó p r i a à auto-reflexão, e substituiu um
ciência do homem, mas ter visto nela sempre uma ciência da modelo estrutural, adaptado aos processos formativos, por um
natureza. A i n d a mais: da neurofisiologia, na qual ele aprendera modelo de repartição energética. Enquanto a teoria permanecer,
a manusear questões relevantes em termos a n t r o p o l ó g ' c o s c o m . m é - de acordo com seu sentido, relacionada com a r e c o n s t r u ç ã o de
todos p r ó p r i o s às ciências naturais e à medicina, Freud empresta uma parte perdida da biografia e, assim, presa à a u t o - r e f l e x ã o ,
os modelos determinantes para a formação teórica. Freud jamais sua aplicação será necessariamente prática. E l a tem por efeito a
0
duvidou que a psicologia fosse uma ciência da natureza.' Da reorganização da autocompreensão de indivíduos socializados,
mesma forma como os eventos naturais observáveis, processos compreensão estruturada na linguagem do cotidiano e capaz de
' 1
p s í q u i c o s podem ser encarados como objetos de i n v e s t i g a ç ã o . orientar a atividade destes i n d i v í d u o s . M a s , nesta função, a psi¬
As c o n s t r u ç õ e s conceituais em psicologia n ã o possuem peso va- canálise não pode jamais ser s u b s t i t u í d a por tecnologias adquiri¬
lorativo diferente do que em uma ciência da natureza; pois, tam¬ das a partir de outras — em sentido estrito — teorias científicas da
bém o físico não libera informações acerca da essência da eletri- experiência. Pois, a psicofarmacologia apenas consegue operar
264 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 265

alterações da consciência na medida em que dispõe sobre funções j de uma imagem. No microscópio c no telescópio, como sabemos, isto ocorre
do organismo humano como se dispusesse sobre processos natu¬ em parte em pontos ideais, em r e g i õ e s nas quais não se acha situado
nenhum componente tangível do aparelho. Não vejo necessidade para
rais objetivados. Pelo contrário, a experiência da reflexão, indu¬
desculpar-me pelas i m p r e c i s õ e s desta ou de qualquer outra imagem seme¬
zida pelo esclarecimento, é o ato pelo qual o sujeito precisamente
lhante. Analogias desta espécie destinam-se apenas a auxiliar nossos esfor-
se liberta de uma s i t u a ç ã o em que chegou a ser um objeto para I
ços em tornar inteligíveis as complicações do funcionamento psíquico,
si mesmo. Esta r e a l i z a ç ã o específica deve ser exigida do sujeito através da dissecação da função e da atribuição de seus diferentes consti-
enquanto tal. Nada a pode substituir; n ã o pode haver, portanto, tuintes a partes componentes diferentes do aparelho (...).
tecnologia que a substitua, mesmo que, num outro plano, a téc¬ Por conseguinte, representamos o aparelho psíquico como um instrumento
nica sirva para dispensar o sujeito de suas p r ó p r i a s r e a l i z a ç õ e s . composto, a cujas partes queremos dar o nome de instâncias ou (por amor
Tomando como ponto de partida os conhecidos modelos da a maior clareza) sistemas. A seguir, deve-sc prever que estes sistemas
neurofisiologia da é p o c a acerca do movimento t r a ç a d o pelos neu¬ podem talvez ficar numa r e l a ç ã o espacial regular uns com os outros, da
A
r ô n i o s , Freud e s b o ç o u , em seus primeiros anos, uma psi- mesma forma pela qual os diversos sistemas de lentes de um telescópio
5 i e s t ã o dispostos um atrás do outro. Falando de modo estrito, n ã o há neces¬
cologia da qual, logo mais, viria a se distanciar.' Na ocasião
J sidade de supor que os sistemas p s í q u i c o s estejam realmente dispostos numa
Freud esperava poder fundamentar a psicologia direta e imedia-
ordem espacial. Seria suficiente que fosse estabelecida uma ordem fixa
tamente como uma ciência da natureza, a saber, como parte es- j
pelo fato de, num determinado processo p s í q u i c o , a e x c i t a ç ã o passar a t r a v é s
pecial de uma fisiologia cerebral que, por sua vez, era pré-mol- i dos sistemas numa s e q ü ê n c i a temporal especial". 78

dada de acordo os p a r â m e t r o s da m e c â n i c a . E l a tinha a função


de expor "processos p s í q u i c o s como estados, quantitativamente Freud estabelece algumas c o r r e l a ç õ e s elementares entre ex¬
determinados, de partículas materiais passíveis de uma especifi- periências subjetivas e os dinamismos energéticos concebidos de
0
c a ç ã o " . ' Categorias como t e n s ã o , descarga, excitação e inibição forma objetiva. Assim, desprazer resulta de uma a c u m u l a ç ã o de
referiam-se à repartição energética no sistema nervoso e à cadên¬ excitação; de acordo com a idéia de que a intensidade da exci-
cia cinética dos neurônios, concebidos segundo a mecânica de tação deva ser proporcional a uma quantidade e n e r g é t i c a ; inver¬
corpos s ó l i d o s . T a l programa fisicalista Freud o abandonou em samente, o prazer se i m p õ e por o c a s i ã o da descarga dc energia
favor de um ponto dc partida p s i c o l ó g i c o cm sentido mais estrito. acumulada, portanto, através de uma diminuição da excitação.
Este conserva, por sua vez, o linguajar ncurofisiolog'sta, mas tor¬ Os movimentos do aparelho são regulados pela t e n d ê n c i a de evi¬
na, sub-repticiamente, seus predicados b á s i c o s acessíveis a uma | tar uma progressiva acumulação de excitação. Tal coordenação '9

reinterpretação mentalista. A energia transforma-se em energia í de expressões mentalistas ( p u l s ã o , excitação, desprazer, prazer,
;
pulsional, sobre cujo substrato s o m á t i c o n ã o é possível proferir desejo) com processos físicos {quantum e n e r g é t i c o , t e n s ã o e des¬
j u í z o s mais exatos. I n i b i ç ã o e descarga das reservas e n e r g é t i c a s , carga de energia e, enquanto propriedade do sistema, a t e n d ê n c i a
bem como os mecanismos de sua r e p a r f ç ã o trabalhariam confor- , deste à perda de energia) é suficiente para separar as categorias
me o modelo de um sistema distendido espacialmente; doravante do consciente e do inconsciente do sistema referencial da auto-
renuncia-se, p o r é m , à l o c a l i z a ç ã o destes processos: 1
r e f l e x ã o ; estas categorias, adquiridas a partir da c o m u n i c a ç ã o en¬
tre m é d i c o e paciente, são agora alocadas para o modelo da dis¬
"A idéia, que nos é posta à disposição, ó a de uma localização psíquica. tribuição de energia:
Queremos deixar sem maior c o m e n t á r i o o fato de o aparelho psíquico
do qual aqui se trata, nos ser igualmente conhecido na forma dc uma
"O primeiro desejo parece ter sido uma catexia a l u c i n a t ó r i a da l e m b r a n ç a
preparação anatômica e queremos evitar cuidadosamente o esforço de
de satisfação. Tais a l u c i n a ç õ c s , contudo, se n ã o devessem ser mantidas
determinar a l o c a l i z a ç ã o em termos anatômicos. Nós nos mantemos no C
até o ponto de e x a u s t ã o , mostraram ser inapropriadas para ocasionar a
campo p s i c o l ó g i c o e só nos propomos a seguir as e x i g ê n c i a s de que deva¬
c e s s a ç ã o da necessidade ou, por conseguinte, do prazer que se liga à sa¬
mos representar o instrumento que executa nossas realizações psíquicas
tisfação.
como algo semelhante a um m i c r o s c ó p i o composto, como uma c â m e r a foto¬
gráfica ou algo deste tipo. Nesta base, a localização psíquica correspon- ! U m a segunda atividade — ou, como dissemos, a atividade de um segundo
d e r á a um ponto do aparelho em que surge uma das etapas preliminares sistema — tornou-se necessária, atividade que não permitiria à catexia
CRÍTICA COMO UNIDADE, DE CONHECIMENTO E INTERESSE 26'
2 6 6 CONHECIMENTO E INTERESSE

m n ê m i c a a v a n ç a r t ã o longe quanto a p e r c e p ç ã o e, d a í , sujeitar as f o r ç a s j processos da c o n s c i ê n c i a e n ã o responsabiliza o sujeito como tcã


psíquicas; em vez disso ela desviaria a e x c i t a ç ã o surgida da necessidade j por esses processos. Freud rejeitou a técnica de Breuer pelo fato
ao longo de um caminho indireto que, cm ú l t i m a análise, através do j de a a n á l i s e n ã o ser um processo natural dirigido mas, ao n í v e l
movimento v o l u n t á r i o , alteraria o mundo externo de urna maneira tal que i da intersubjetividade entre m é d i c o e paciente, estruturada em ter¬
se torna p o s s í v e l chegar a uma p e r c e p ç ã o real do objeto da s a t i s f a ç ã o . :

mos de linguagem o r d i n á r i a , um movimento da auto-reflexão.


. J á delineamos nosso quadro esquemático do aparelho psíquico a t é este < Este elemento foi destacado por Freud, sobretudo no ensaio já
ponto; os dois sistemas s ã o o g é r m e n daquilo que, no aparelho integral¬
citado "Recordar, repetir, elaborar"; e contudo: no final deste
mente desenvolvido, estatuímos como o Inc. e o Pese.".*"
mesmo texto ele compreende a d i n â m i c a auto-reflcxiva, induzida
sob as condições da regra básica da análise, segundo os critérios
Em c o l a b o r a ç ã o com Breuer, Freud havia publicado em 1895
do antigo modelo de Breuer, a saber, recordar como a b - r e a ç ã o :
os Estudos sobre a histeria. Certos f e n ô m e n o s p a t o l ó g i c o s já eram
explicados neste texto de acordo com o modelo desenvolvido pos¬ "Esta e l a b o r a ç ã o das r e s i s t ê n c i a s pode, na p r á x i s , reve;ar-sc uma tarefa
teriormente. A paciente de Breuer deixara perceber, em estado ) á r d u a para o sujeito da a n á l i s e e uma prova de p a c i ê n c i a para o analista.
de hipnose, que seus sintomas tinham algo a ver com cenas pas- j Todavia, trata-sc daquela parte do trabalho que opera as maiores m u d a n ç a s
sadas de sua vida, nas quais ela fora obrigada a reprimir exci- [ no paciente e que distingue o tratamento a n a l í t i c o de qualquer tipo de
t a ç õ e s particularmente intensas. Estes afetos podiam ser conce- j tratamento por s u g e s t ã o . De um ponto de vista t e ó r i c o pode-se correlacio¬
bidos como quantidades transferíveis de energia, cujas vias nor- I ná-la com a 'ab-reação' das cotas de afeto estranguladas pela r e p i e s s ã o ,
82
uma a b - r e a ç ã o sem a qual o tratamento h i p n ó t i c o permanecia ineficaz".
mais de descarga estavam bloqueadas e que, em c o n s e q ü ê n c i a , j
deviam ser utilizadas de maneira anormal. V i s t o sob um ponto j
de vista p s i c o l ó g i c o , o sintoma surge, pela a c u m u l a ç ã o de um Preso desde o início ao mal-entendido cientificista, F r e u d
afeto; tal dado é t a m b é m passível de ser apresentado, no modelo ; sucumbe a um objetivismo que retorna, sem qualquer m e d i a ç ã o ,
em q u e s t ã o , como resultado da c o n v e r s ã o de um quantum ener¬ do estágio da auto-reflexão ao positivismo da época, à moda de
gético inibido cm sua tendência dc se esvair totalmente. O mé¬ M a r c h , c assume, por isso mesmo, uma forma particularmente
todo t e r a p ê u t i c o , utilizado por Breuer, fora pensado com o obje¬ áspera. Independente cia biografia da obra, o descaminho meto¬
tivo dc conseguir "que o quantum dc afeto, empregado para a dológico dc Freud pode ser r e c o n s t r u í d o mais ou menos da se¬
m a n u t e n ç ã o do sintoma, quantum que se havia desencaminhado guinte maneira: as categorias fundamentais da nova disciplina, as
e, por assim dizer, estrangulado, fosse dirigido para a v i a normal, c o n s t r u ç õ e s conceituais, as h i p ó t e s e s acerca dos complexos fun¬
onde pudesse chegar, à descarga ( a b - r e a ç ã o ) " . Freud n ã o tar- S l
, cionais do aparelho p s í q u i c o e sobre os mecanismos que afetam
dou a reconhecer os inconvenientes da hipnose e introduziu, em j o surgimento dos sintomas, bem como os da r e m o ç ã o de compul¬
seu lugar, a técnica da livre a s s o c i a ç ã o . A "regra fundamental \ sões patológicas — esta moldura metapsicológica foi, primeira¬
.da a n á l i s e " formula as c o n d i ç õ e s de um reservado isento de re¬ mente, desenvolvida a partir de experiências da s i t u a ç ã o analítica
pressão; nele a "situação de perigo", isto é, a pressão de sanções e da i n t e r p r e t a ç ã o de sonhos. O sentido de tal c o n s t a t a ç ã o é de
sociais está, de forma n ã o menos convincente do que exeqüível, ordem m e t o d o l ó g i c a e não se limita apenas à pesquisa psicológi¬
suspensa durante o tempo em que m é d i c o e paciente estão em ca. C o m efeito, tais categorias e conjuntos n ã o foram apenas
comunicação. descobertos sob determinadas condições de uma c o m u n i c a ç ã o
especificamente protegida; na verdade, independentemente delas-
A passagem da antiga à nova t é c n i c a é essencial. E l a n ã o não há como explicitá-los de modo algum. As c o n d i ç õ e s desta
provém de considerações que afetam a utilidade terapêutica mas comunicação são, assim, as condições de possibilidade do co¬
resulta da intelecção básica de que a r e m e m o r a ç ã o do paciente, nhecimento analítico para ambos os contraentes, para o m é d i c a
a qual foi identificada como relevante para a terapia, deva levar não menos do que para o paciente. Talvez Freud tenha visto este
à a p r o p r i a ç ã o consciente de um fragmento recalcado da biogra¬ tipo de i m p l i c a ç ã o ao qualificar como uma q u e s t ã o de honra dp
fia do paciente — eis que a l i b e r a ç ã o h i p n ó t i c a do inconsciente \ trabalho a n a l í t i c o o fato de "nele coincidirem pesquisa e tratamen-
n ã o pode romper definitivamente a barreira que se o p õ e ao es- j 83
to". Sc, p o r é m , como mostramos pelo. exame de seu modelo
forço da recordação, uma vez que tal liberação apenas manipula '
268 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 269

estrutural, a moldura categorial da p s i c a n á l i s e está presa, em ter¬ tos em nível semântico mas, no plano dos fatos, esta verificabi-
mos lógico-científicos, às pressuposições de uma interpretação de lidade n ã o se reaüza jamais e t a m b é m n ã o o pode ser.
textos deformados e mutilados, com os quais os autores enganam- É p o s s í v e l que Freud n ã o se tenha dado conta do alcance
se a si mesmos, então a f o r m a ç ã o da teoria permanece embutida desta l i m i t a ç ã o pelo fato de haver considerado a s i t u a ç ã o analí¬
no contexto da auto-reflexão. tica do diálogo como uma o p e r a ç ã o de c a r á t e r quase-experimen-
Üniea alternativa oferece a tentativa de reformular as hipó¬ tal e ter, por isso, concebido a base clínica da e x p e r i ê n c i a como
teses psicanalíticas no cadinho categorial de uma ciência experi¬ um substituto capaz de satisfazer a verificação experimental. À
mental estrita. A s s i m , certos teoremas receberam nova formu¬ objeção de que a psicanálise n ã o tolera nenhuma d e m o n s t r a ç ã o
lação nos quadros de uma psicologia da aprendizagem de cunho experimental Freud contrapõe o argumento da astronomia: essa
behaviorista e, em c o n s e q ü ê n c i a , foram submetidos aos habituais ciência também não experimenta mas está limitada àquilo que
procedimentos vcrificatórios. M a i s pretensiosa é a tentativa de S5
observa. Mas a diferença específica entre a o b s e r v a ç ã o dos as¬
reconstruir, com os recursos do funcionalismo moderno, o mo¬ tros e o diálogo analítico está no fato de, no primeiro caso, a
delo da personalidade, desenvolvido pela psicologia do E u , mas seleção quase-experimental das c o n d i ç õ e s iniciais permitir uma
fundamentado numa d i n â m i c a pulsional, como um sistema que o b s e r v a ç ã o controlada de eventos possíveis de serem prognosti¬
se regula a si p r ó p r i o . Em ambos os casos a nova armação teó¬ cados, enquanto, no segundo caso, o plano do controle dos su¬
rica possibilita uma o p e r a c i o n a l i z a ç ã o dos conceitos, em ambos 8
cessos, p r ó p r i o s à ação instrumental, " estar totalmente ausente e
os casos ela exige, em base de c o n d i ç õ e s experimentais, uma ser representado através do plano da intersubjetividade, inerente à
verificação das hipóteses deduzidas. Freud por certo supôs, sem c o m p r e e n s ã o m ú t u a acerca do sentido de s í m b o l o s i n i n t e l i g í v e i s .
fazer maior c o m e n t á r i o , que sua Metapsicologia, a qual liberta Que Freud, mesmo assim, teime obstinadamente em ver no diá¬
o modelo estrutural dos pressupostos da c o m u n i c a ç ã o entre mé¬ logo analítico a única base experimental n ã o apenas para o de¬
dico e paciente e, em vez disso, o entrelaça com o modelo da senvolvimento da metapsicologia mas t a m b é m para a validade da
distribuição energética através de meras definições, representa, teoria trai, por outro lado, uma consciência do verdadeiro status
nos moldes das ciências experimentais, uma f o r m u l a ç ã o estrita desta ciência. Freud por certo pressentia que a r e a l i z a ç ã o con¬
desta espécie. s e q ü e n t e cio programa de uma psicologia " c i c n t í f i c o - n a U i r a l i s í a "
Seu posicionamento frente à metapsicologia, da qual vez por ou, no m í n i m o , sua exata execução cm termos behavioristas teria
outra fala como se fosse uma "feiticeira" para se defender con¬ que ter sacrificado a intenção à qual a p s i c a n á l i s e deve, exclusi¬
tra seu inquietante caráter especulativo, n ã o foi isento de ambi- vamente, sua existência: a intenção do esclarecimento — de acoi-
valências.81
Bem possível que em tal ambivalência sc escondia do com o qual o id deve vir a ser E u . Verdade é que Freud
t a m b é m uma leve dúvida quanto ao status desta ciência, a qual n ã o abandonou tal programa, ele não entendeu a metapsicologia
ele, no mais, sustentou de forma tão enfática. Freud iludiu-se como aquilo que ela tão-somente no sistema referencial da auto-
ao achar que a psicologia, na medida em que se entende como reflexão pode ser: como uma interpretação genérico-universal de
uma ciência experimental propriamente dita, n ã o se pode satis¬ processos que afetam a formação da espécie.
fazer com um modelo que m a n t é m uma terminologia fisicalista Faria sentido reservar o designativo metapsicologia à q u e l a s
sem conduzir seriamente a h i p ó t e s e s que possam ser operaciona- h i p ó t e s e s fundamentais que se referem ao complexo p a t o l ó g i c o
lizadas. O modelo da distribuição energética n ã o engendra mais da linguagem cotidiana c da i n t e r a ç ã o , e os quais podem ser
do que aparência, isto é, como se os enunciados psicanalíticos expostos em um moaeio estruiurai a mz cia teoria a a l i n g u a g e m .
se relacionassem com alterações energéticas mensuráveis. Mas, Nesse caso n ã o se trata de uma teoria e m p í r i c a , mas de uma
nenhuma p r o p o s i ç ã o sequer acerca das grandezas quantitativas, metateoria ou, melhor, de uma meta-hermenêutica que elucida as
deduzidas segundo o ponto de vista da economia pulsional, foi c o n d i ç õ e s de possibilidade do conhecimento p s i c a n a l í t i c o . A me-
algum dia verificado de acordo com critérios experimentais. O tapsicologia desdobra a lógica da interpretação na situação ana¬
modelo do aparelho psíquico está concebido de tal maneira que lítica do diálogo. Nesse sentido ela se localiza ao mesmo nível
i
algo assim como verificabilidade é associado pelos acontecimen- da metodologia das ciências da natureza è do e s p í r i t o . C o m o
2'0 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'1

estas, ela reflete o quadro transcendental do conhecimento analí¬ mesma forma a linguagem e a p r á x i s da vida, os motivos acionais
tico como um conjunto objetivo de defesa organizada; e isso sig¬ são concebidos t a m b é m como necessidades interpretadas pela lin¬
nifica aqui, simultaneamente, como um conjunto objetivo de pro¬ guagem, de sorte que as m o t i v a ç õ e s n ã o representam impulsos
cessos a u t o - i n v e s t i g a t ó r i o s . N ã o há d ú v i d a de que no plano da que agem retroativamente mas, sim, i n t e n ç õ e s que orientam sub¬
auto-reflexão n ã o pode haver, diferentemente do que ocorre na jetivamente são mediatizadas simbolicamente e e s t ã o , ao mesmo
lógica das c i ê n c i a s da natureza e do espírito, algo assim como tempo, ligadas umas às outras.
uma metodologia separada de c o n t e ú d o s materiais, eis que a es¬ A tarefa da metapsicologia é, portanto, demonstrar que este
trutura da c o n e x ã o cognitiva se confunde com o objeto a ser co¬ caso normal é o caso-limite de uma estrutura de m o t i v a ç ã o que
nhecido. Entender a s i t u a ç ã o da t r a n s f e r ê n c i a como c o n d i ç ã o de depende, concomitantemente, de i n t e r p r e t a ç õ e s que afetam tanto
um conhecimento p o s s í v e l significa, ao mesmo tempo, compreen-. necessidades comunicadas publicamente quanto necessidades re¬
der um complexo patológico. Devido a tal conteúdo material, primidas e privatizadas. Os símbolos isolados e os motivos re¬
os enunciados t e ó r i c o s , os quais, g o s t a r í a m o s de reservar para a calcados por meio dos mecanismos de defesa desenvolvem seu
metodologia, n ã o foram conhecidos como p r o p o s i ç õ e s m e t a t e ó - poder por sobre a cabeça dos sujeitos, e f o r ç a m a i m p o s i ç ã o de
ricas e, a rigor, t a m b é m n ã o foram distinguidos das interpreta¬ satisfações e símbolos substitutos. Desta maneira eles obscure-
ções empíricas significativas dos processos de formação que, co¬
cem o texto dos jogos da linguagem cotidiana e se destacam
mo tais, se desencaminharam. Mesmo assim há que registrar uma
como perturbação das interações habituais: através da compul¬
diferença no plano metodológico: as interpretações genérico-uni-
:
são, da mentira, e pela incapacidade de corresponder às expecta¬
versais são, como teorias c i e n t í f i c o - e x p e r i m e n t a s , diretamente
tivas sociais obrigatórias. As m o t i v a ç õ e s inconscientes adquirem
acessíveis ao controle e m p í r i c o — n ã o importando a diferença
assim, em face das conscientes, o c a r á t e r de uma p u l s ã o , agindo
de sua base experimental — enquanto as hipóteses meta-herme-
às costas destas motivações conscientes, o c a r á t e r daquilo que é
nêuticas fundamentais sobre a atividade p r ó p r i a à c o m u n i c a ç ã o ,
pulsional por excelência. E como os potenciais motivadores, tan¬
sobre a d e f o r m a ç ã o da linguagem e a patologia do comporta¬
to aqueles que se acham i n c l u í d o s no sistema social da auto-
mento p r o v ê m de urna reflexão posterior acerca das c o n d i ç õ e s
c o n s e r v a ç ã o coletiva quanto aqueles que n ã o se encontram inte¬
cio conhecimento p s i c a n a l í t i c o p o s s í v e l , o apenas indiretamente,
grados nesse sistema mas são reprimidos, revelam claramente
por assim dizer, podem ser confirmadas à luz de uma categori-
r
z a ç ã o global de processos i n v e s t i g a t ó r i o s ou, então, sf finalmente t e n d ê n c i a s agressivas e libidinosas, uma teoria da p u l s ã o se torna
rejeitadas. i n d i s p e n s á v e l . Importa, p o r é m , m a n t ê - l a isenta de um falso obje-
Ao nível da auto-reflexão, a metodologia das ciências da na¬ tivismo. Já o conceito de instinto, o qual é relacionado ao com¬
tureza pode fazer assomar à superfície uma c o n e x ã o específica portamento animal, é adquirido privativamente da p r é - c o m p r e e n -
entre linguagem e atividade instrumental, ao passo que a metodo¬ são de um mundo humano, restrito por certo, mas sempre já in¬
logia das ciências do e s p í r i t o pode trazer à luz uma r e l a ç ã o entre terpretado no horizonte da linguagem o r d i n á r i a — em termos
linguagem e i n t e r a ç ã o ; ambas podem r e c o n h e c ê - l a como um com¬ mais simples, adquirido a partir das s i t u a ç õ e s da fome, do amor
plexo objetivo e d e t e r m i n á - l a em sua função transcendental. A e do ó d i o . Tal vinculação com as estruturas de sentido do mun¬
mctapsicologia trata igualmente de uma relação fundamental, a do da vida, por mais elementares que sejam, n ã o perde sua vi¬
saber: daquela entre deformação da linguagem c patologia do gência para o conceito da p u l s ã o , transposto para o homem a
comportamento. Ao f a z ê - l o , ela p r e s s u p õ e , uma teoria da lingua¬ partir do eme chamamos de animal. Trata-se de i n t e n ç õ e s enco¬
gem ordinária, cuja tarefa consiste n ã o menos em clarear, sob o bertas e erráticas que, de motivos conscientes, se inverteram em
fundamento de um reconhecimento m ú t u o , a validade intersub- causas, submetendo assim o agir da c o m u n i c a ç ã o à causalidade
jetiva de símbolos e a mediação verbal das interações, do que de circunstâncias asselvajadas. Esta causalidade é a do destino
tornar compreensível a aquisição societária da gramática dos jo¬ e n ã o a da natureza, eis que ela exerce poder por meio dos recursos
gos de linguagem como processos de i n d i v i d u a ç ã o . C o m o , de simbólicos do espírito, razão por que ela também só pode ser
acordo com esta teoria, a estrutura da linguagem determina da dominada pela força da reflexão.
2'2 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'3-

A t r a v é s da obra de A l f r e d Lorenzcr, o qual entende a anᬠteração são, de início, i n c o m p r e e n s í v e i s tanto para o sujeito quan¬
lise de processos d i n â m i c o - p u l s i o n a i s como análise da linguagem to para seus semelhantes. Essa alteração torna-se c o m p r e e n s í v e l
8'
no sentido de uma h e r m e n ê u t i c a profunda, estamos em c o n d i ç õ e s no plano da intersubjetividade, a qual precisa ser, antes de mais
de focalizar mais acuradamente os mecanismos decisivos da pa¬ nada, estabelecida entre o sujeito, como E u , e o sujeito, coma
tologia da linguagem, da d e f o r m a ç ã o das estruturas internas da Id; e isso na medida em que m é d i c o e paciente rompem con¬
ação e da linguagem, bem como os de sua dissolução analítica. juntamente a barreira da c o m u n i c a ç ã o . T a l tarefa é facilitada
A a n á l i s e s e m â n t i c a , a qual decifra nos sintomas os motivos in¬ pela situação transferenciai, uma vez que o agir inconsciente fren¬
conscientes da mesma forma como ela, em base de passagens te ao m é d i c o permanece sem resultado, de maneira que o conflito
deformadas, de lacunas de um texto, decifra o sentido recalcado renovado ricocheteia contra o p r ó p r i o doente e, uma vez reco¬
pela censura, ultrapassa a d i m e n s ã o do sentido supostamente sub¬ nhecido seu c a r á t e r compulsivo com o concurso interpretativo do
jetivo da atividade intencional. T a l análise vai além da lingua¬ analista, pode vir a ser conectado com as cenas indefinidamente
gem e, na medida em que está a, serviço da c o m u n i c a ç ã o , penetra reiteradas fora da análise e, finalmente, ser reconduzido ao cená¬
naquela camada s i m b ó l i c a , onde os sujeitos iludem-se a si mes¬ rio infantil de origem. Esta r e c o n s t r u ç ã o dissolve as falsas iden¬
mos com a linguagem e, ao mesmo tempo, nela se traem. É por tificações existentes entre e x p r e s s õ e s p r ó p r i a s à linguagem públi¬
isso que a análise pactua com c o n e x õ e s causais; estas se i m p õ e m ca e expressões p r ó p r i a s ao linguajar privado, e permite que se
no momento em que a linguagem, uma vez e x c l u í d a da comuni¬ compreenda o elo gramatical encoberto entre um s í m b o l o isolado
c a ç ã o p ú b l i c a por meio da r e p r e s s ã o , reage com uma c o m p u l s ã o e um texto p ú b l i c o distorcido por um ou mais sintomas. O en¬
complementar e obriga a c o n s c i ê n c i a e a a ç ã o comunicativa a t r e l a ç a m e n t o entre símbolos lingüísticos, gramatical em sua es¬
se dobrarem frente aos imperativos de uma segunda natureza. sência, i m p õ e - s e em seu modo de aparição como um encadea-
N u m lado das extremidades de tais encadeamentos encontram-se, mento causai entre eventos e m p í r i c o s e caracteres sedimentados
normalmente, e x p e r i ê n c i a s t r a u m á t i c a s de uma cena infantil c, 88
da personalidade. A auto-reflexão remove-o; com isso a de-
no outro, as a l t e r a ç õ e s da realidade, perpetuadas sob o impacto í o n n a ç ã o que caracteriza a linguagem privada desaparece da mes¬
da c o m p u l s ã o à r e p e t i ç ã o , c atitudes comportarnentais anormais. ma nianeíra corno a s i n t o m á t i c a satisfação substituta de motivos
N u m a s i t u a ç ã o infantil o processo original dc defesa acontece acionais recalcados mas, agora, acessíveis ao controle consciente.
como fuga diante de um contraente superior. T a l processo sub¬
O modelo das três i n s t â n c i a s — E u , Id, Superego — possi¬
trai à comunicação pública a interpretação lingüística do motivo
bilita uma a p r e s e n t a ç ã o sistemática da estrutura da linguagem e
que levou ao comportamento defensivo. C o m isso, a c o e r ê n c i a
da patologia do comportamento. Os enunciados m e t a - h e r m e n ê u -
gramatical da linguagem p ú b l i c a permanece intacta, enquanto
ticos podem ser organizados neste modelo. Eles elucidam o qua¬
partes deste c o n t e ú d o s e m â n t i c o são privatizadas. A f o r m a ç ã o
dro m e t o d o l ó g i c o no qual as i n t e r p r e t a ç õ e s , empiricamente ricas
de um sintoma e q ü i v a l e à c r i a ç ã o de um substituto para um sím¬
em c o n t e ú d o , dos processos formativos podem ser desenvolvidos.
bolo, o qual possui agora um peso valorativo alterado. O símbo¬
Estas i n t e r p r e t a ç õ e s genérico-universais precisam, p o r é m , ser dis-
lo eliminado n ã o é totalmente banido dos conjuntos p r ó p r i o s à
tinguidas da moldura metapsicológica. Trata-se de i n t e r p r e t a ç õ e s
linguagem p ú b l i c a ; mas esta p e r t e n ç a gramatical fica sendo, por
referentes ao desenvolvimento da primeira infância (relativa à
assim dizer, uma c o n e x ã o s u b t e r r â n e a . Sua força persuasiva lhe
gênese da base motivadora e da formação paralela das funções
advém pelo fato de embaralhar a lógica do uso público da lin¬
do Eu) c que servem de matrizes narrativas que, em cada caso
guagem através de identificações semânticas errôneas. O símbolo
particular da biografia, devem ser encaradas como esquemas de
recalcado continua, por certo, inteligível ao nível do texto públi¬
i n t e r p r e t a ç ã o , a fim de que possa ser encontrada a cena primeva
co quando visto à luz de critérios objetivos que, como regras
do conflito n ã o resolvido. Os mecanismos de aprendizagem, com
formais, são o resultado'"'de c i r c u n s t â n c i a s contingentes da bio¬
os quais Freud conta (escolha de objeto, identificação com o
grafia; mas este s í m b o l o n ã o é mais posto em r e l a ç ã o com regras
modelo, introjeção de objetos-de-amor abandonados), tornam
intersubjetivamente reconhecidas. É por isso que o s i n t o m á t i c o
compreensíveis a d i n â m i c a do surgimento de estruturas do Eu ao
encobrimento do sentido e a correspondente p e r t u r b a ç ã o da i n -
nível de i n t e r a ç õ e s mediadas simbolicamente. Os mecanismos de
2'4 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'5

defesa intervém no processo na medida em que as normas sociais, elas foram adquiridas de acordo com o m é t o d o e l á s t i c o das ante¬
encarnadas pelas expectativas frente às primeiras pessoas de re¬ c i p a ç õ e s h e r m e n ê u t i c a s circularmente comprovadas. M a s , mes¬
ferência, confrontam o Eu da criança com um poder insupor¬ mo tais e x p e r i ê n c i a s já estavam sob a influência genérica do es¬
tável e forçam-no a fugir de si mesmo rumo à objetivação de si quema antecipado de processos de formação perturbados. Ade¬
p r ó p r i o . O processo de f o r m a ç ã o da criança é determinado por mais, qualquer i n t e r p r e t a ç ã o que reivindique o status da "univer¬
problemas de cuja solução depende se e em que grau o processo salidade" subtrai-se ao método hermenêutico, próprio à contínua
ulterior de socialização será entravado pela h e r a n ç a de conflitos c o r r e ç ã o da p r é - c o m p r e e n s ã o junto ao texto. Diferentemente do
n ã o resolvidos e onerado por limitações de funções do Eu e, que ocorre com a a n t e c i p a ç ã o h e r m e n ê u t i c a do f i l ó l o g o , a inter¬
assim, por meio de um ponto de partida predeterminado, ser p r e t a ç ã o genérico-tiniversal é "constatada" e, enquanto teoria uni¬
levado a uma a c u m u l a ç ã o de erros, de coações e de fracassos — versal, precisa ser confirmada a t r a v é s de prognoses dedutivas. Se
ou, se o processo formativo possibilita um desenvolvimento rela¬ a p s i c a n á l i s e p r o p õ e uma matriz narrativa, sobre a qual processos
tivamente estável da identidade do E u . de f o r m a ç ã o interrompidos podem ser completados, tornando-se
As interpretações genérico-universais de Freud contêm hi¬ assim uma h i s t ó r i a sem lacunas, os p r o g n ó s t i c o s que são adqui¬
p ó t e s e s acerca de diversos modelos de interação entre a criança ridos com sua ajuda, servem para reconstruir o passado; mas,,
€ suas primeiras pessoas de referência, sobre os conflitos corres¬ t a m b é m eles são hipóteses que podem gorar.
pondentes e sobre formas apropriadas para resolvê-los, alem de U m a i n t e r p r e t a ç ã o g e n é r i c o - u n i v e r s a l determina processos de
modelos acerca das estruturas da personalidade, resultantes de tais f o r m a ç ã o como uma s u c e s s ã o regular de estados s i s t ê m i c o s , al¬
•soluções ao final do processo de socialização da primeira infância. ternados de acordo com os respectivos pontos de partida. É por
Tais interpretações apresentam, por seu lado, fatores potenciais isso que as variáveis g e n é t i c a s , historicamente relevantes, podem
para a biografia posterior, permitindo que se façam prognoses ser analisadas em seu todo, sempre em vista da d e p e n d ê n c i a do
parciais. Como os processos de aprendizagem se realizam pelas sistema. A coerência objetivorintcncional da biografia, a qual
vias da ação conmnicativa, a teoria pode assumir a forma de uma não sc torna acessível senão através da auto-reflexão, não é por
narração, a qual expõe narrativamenie o desenvolvimento psico- certo funcionalista no sentido usual do termo. Os eventos ele¬
dinâmico da criança como uma seqüência continuada de ação: mentares s ã o , muito mais, c e n á r i o s dc um drama; eles n ã o se
com uma divisão típica de papéis, conflitos básicos que se impõem mostram sob o ponto de vista instrumentalista da o r g a n i z a ç ã o
sucessivamente, modelos de i n t e r a ç ã o que tornam a voltar, enfim, de meios em relação a sua utilização ou, então, em vista do com¬
com perigos, crises, soluções, com triunfos e derrotas. C o m o , portamento adaptativo. A r e l a ç ã o dc conjunto funcional é inter¬
por outro lado, no plano da metapsicologia os conflitos são com¬ pretada de acordo com o modelo cênico: as cenas elementares
preendidos sob o ponto de vista da defesa, e as estruturas da aparecem como partes de um conjunto de i n t e r a ç õ e s , através,
personalidade entendidas de acordo com a relação recíproca de das quais se realiza o que denominamos de "sentido". Este sen¬
E u , Id e Superego, esta história é apresentada esqnematieamente tido n ã o o podemos equiparar aos fins p r ó p r i o s do modelo-de-
como um processo formativo que segue seu curso através das di¬ artesão, os quais são executados através de meios especiais. N ã o
versas etapas da auto-objetivação c que possui seu telos na auto- sc trata t a m b é m de uma categoria dc sentido emprestada do âmbi¬
consciência de uma biografia, cuja apropriação se efetua pela to funcional da atividade instrumental, como este é o caso, por
exemplo, da m a n u t e n ç ã o de um estado sistêmico que se encontra
auto-reflexão. '! -%\
sob c o n d i ç õ e s externas v a r i á v e i s . Trata-se de um sentido que,
Somente a p r e s s u p o s i ç ã o da metapsicologia permite uma ge¬
muito embora n ã o seja visualizado como tal, forma-se por meio
neralização sistemática daquilo que, de resto, permaneceria mera
da atividade da c o m u n i c a ç ã o e se articula, reflexivamente, como
história. A metapsicologia fornece uma série de categorias e de
e x p e r i ê n c i a biográfica. A s s i m o "sentido" vai-se descobrindo à
hipóteses fundamentais que, a rigor, englobam complexos de de¬
medida que o drama de densenrola. No processo de nossa pró¬
f o r m a ç ã o da linguagem e de patologia do comportamento. As
pria f o r m a ç ã o somos, por certo, atores e críticos numa e na mes¬
interpretações genérico-universais, desenvolvidas neste quadro,
ma e x p e r i ê n c i a . No fim o sentido do p r ó p r i o processo deve
são o resultado de múltiplas e repetidas experiências clínicas:
2'6 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 27'

poder chegar criticamente à c o n s c i ê n c i a , a nós que estamos en¬ a u t o - r e f l e x ã o executada, seguida por uma c o m u n i c a ç ã o entre o
volvidos no drama da nossa p r ó p r i a h i s t ó r i a - d a - v i d a ; o sujeito investigador e seu "objeto".
deve poder narrar sua p r ó p r i a h i s t ó r i a c ter compreendido as i n i - Poder-se-ia objetar que a validade e m p í r i c a das interpreta¬
b i ç õ e s que lhe estavam postas no caminho da auto-reflexão. O ções genéricas, igual àquela das teorias universais, é determinada
estado definitivo de um processo formativo só está, assim, alcan¬ por uma reiterada aplicação às reais condições iniciais, e que ela,
ç a d o quando o sujeito se recorda de suas identificações e aliena¬ na medida em que tem sido demonstrada, é o b r i g a t ó r i a para to¬
ç õ e s , de suas o b j e t i v a ç õ e s impostas e de suas reflexões conquis¬ dos os sujeitos que, de uma ou outra forma, estão abertos àquilo
tadas, como caminhos a t r a v é s dos quais ele se tem constituído. que chamamos de conhecimento. Esta f o r m u l a ç ã o correta en¬
Somente a história sistematicamente universalizada e meta- cobre, contudo, a diferença específica: aplicação de hipóteses à
psicologicamente fundada do desenvolvimento da primeira infân¬ realidade permanece, no caso da v e r i f i c a ç ã o de teorias através
cia, com suas variantes t í p i c a s , dá ao m é d i c o condições de compor da o b s e r v a ç ã o (portanto, no círculo funcional do agir instrumen¬
as informações fragmentárias, obtidas no curso do diálogo analí¬ tal), assunto do respectivo sujeito que investiga; mas, no caso
tico, de tal maneira que possa reconstruir as lacunas da recorda¬ do exame de interpretações g e n é r i c o - u n i v e r s a i s a t r a v é s da auto-
ção e antecipar, em termos de hipóteses, a experiência da reflexão, reflexão (portanto, no quadro de uma c o m u n i c a ç ã o entre mé¬
a qual o paciente é incapaz de formular no início da análise. Ele dico e paciente) a aplicação transmuta-se em a u t o - a p l i c a ç ã o do
p r o p õ e i n t e r p r e t a ç õ e s para uma h i s t ó r i a que o paciente não pode objeto da pesquisa que participa do processo cognitivo. Ó pro¬
contar; mesmo assim, tais i n t e r p r e t a ç õ e s só podem ser corrobo¬ cesso de pesquisa não pode conduzir a i n f o r m a ç õ e s v á l i d a s senão
radas pelo fato de o paciente as aceitar e, apoiando-se nelas, ao se transformar em uma a u t o - i n v e s t i g a ç ã o do paciente. Teorias
narrar sua p r ó p r i a h i s t ó r i a . A i n t e r p r e t a ç ã o de um caso não se são válidas, caso o sejam, para todos aqueles que podem assu¬
revela concludente s e n ã o ao permitir a c o n t i n u a ç ã o bem-sucedida mir a posição do sujeito que examina. As interpretações genérico-
de um. processo de f o r m a ç ã o que se acha interrompido. universais valem, caso valham, para o sujeito investigador, e para
todos os que podem assumir seu lugar, apenas na medida em
Interpretações genérico-universais possuem uma posição toda
que. aqueles que são feitos objetos de i n t e r p r e t a ç õ e s particulares
especial entre o sujeito que investiga c o d o m í n i o do objeto inves¬
se reconheçam a si próprios em tais interpretações. O sujeito
tigado. Enquanto que, cm casos normais, ó que denominamos clc
n ã o pode adquirir um conhecimento do objeto sem que este se
teoria c o n t é m p r o p o s i ç õ e s acerca de um d o m í n i o dc objeto ao
houvesse tornado um conhecimento para o objeto e este, através
qual estas, como enunciados, permanecem exteriores, a validade
daquele, se tivesse libertado e tornado um sujeito.
de i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - u n i v e r s a i s depende, precisamente, do
fato dos enunciados sobre o d o m í n i o do objeto serem aplicados Esta constelação não é, a rigor, t ã o surpreendente. Cada
a eles mesmos pelos "objetos", a saber, pelas próprias pessoas em interpretação pertinente, também aquela das ciências do espírito,
questão. As informações científico-experimentais comuns só fa¬ só é — pelo fato de restabelecer uma intersubjetividade pertur¬
zem sentido para os que participam do processo de pesquisa e, bada da compreensão mútua — possível em uma linguagem co¬
a seguir, para aqueles que utilizam tais i n f o r m a ç õ e s ; em ambos mum ao intérprete e a seu objeto. E l a deve, por conseguinte,
os casos a validade das i n f o r m a ç õ e s mede-se unicamente pelos valer para o sujeito e o objeto da mesma maneira. Por certo
critérios da coerência e da pertinência empírica. Elas apresentam que uma tal posição do pensamento possui, para as i n t e r p r e t a ç õ e s
conhecimentos que, pela a p l i c a ç ã o à realidade, têm sido experi¬ genérico-universais do processo de formação, conseqüências que
mentados junto aos objetos; mas elas t ã o - s o m e n t e possuem vi¬ não se impõem para interpretações na área das ciências do espí¬
gência para os sujeitos. Intelecções analíticas, pelo contrário, só rito. C o m efeito, interpretações g e n é r i c a s e teorias universais têm
podem ter validade para o analista depois de haverem sido, en¬ em comum a p r e t e n s ã o mais ampla de permitirem explicações
quanto conhecimentos, aceitas pelo analisado como tal. Pois, a causais e previsões condicionais. M a s , diferentemente do que
pertinência empírica de interpretações genérico-universais não ocorre nas ciências experimentais estritas, a p s i c a n á l i s e n ã o pode
depende de uma o b s e r v a ç ã o controlada e da posterior comuni¬ satisfazer tal p r e t e n s ã o sobre a base de uma s e p a r a ç ã o m e t o d o l ó ¬
c a ç ã o dos pesquisadores entre si mas, ú n i c a e exclusivamente, da gica exata entre o domínio do objeto e o plano dos enunciados
2'8 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'9

t e ó r i c o s . Isto n ã o fica sem c o n s e q ü ê n c i a s ; primeiro, para a cons¬


t r u ç ã o da linguagem interpretativa; segundo, para as c o n d i ç õ e s h i s t ó r i a s a sc desenrolar de acordo com alternativas previsíveis
do exame e m p í r i c o e, terceiro, para a lógica da e x p l a n a ç ã o en¬ muito embora cada uma destas h i s t ó r i a s deva, e n t ã o , poder apre¬
quanto tal. sentar-se novamente com a p r e t e n s ã o de ser a e n c e n a ç ã o autobio¬
Como toda i n t e r p r e t a ç ã o , assim t a m b é m as chamadas inter¬ gráfica dc um indivíduo particular. Como é possível uma tal ge¬
p r e t a ç õ e s genérico-universais (I) permanecem presas à d i m e n s ã o n e r a l i z a ç ã o ? Em cada h i s t ó r i a , por mais contingente que seja,
da linguagem cotidiana. Elas constituem, por certo, n a r r a ç õ e s sis¬ esconde-se um elemento universal, pois de cada h i s t ó r i a um outro
tematicamente generalizadas; mas, mesmo assim, elas permane¬ pode destilar algo de exemplar. H i s t ó r i a s são tanto mais compre¬
:

cem h i s t ó r i c a s . A exposição histórica serve-se de enunciados nar¬ e n s í v e i s , como um exemplo, quanto maior for o c a r á t e r t í p c o de
rativos. Tais enunciados chamam-se narrativos porque apresentam sua n a r r a ç ã o . O conceito do tipo designa aqui uma qualidade
80
acontecimentos como elementos de uma h i s t ó r i a . E x p l i c a m o s daquilo que pode ser traduzido: uma história é típica em uma
um evento narrativamente quando mostramos como um sujeito dada s i t u a ç ã o e em r e l a ç ã o a um p ú b l i c o determinado quando
é envolvido em uma história. Em cada h i s t ó r i a surgem nomes a " a ç ã o " pode facilmente ser destacada de seu contexto original
de i n d i v í d u o s , pois sempre se trata de m u d a n ç a s - d e - c s t a d o de e transferida para uma outra s i t u a ç ã o , igualmente individualizada.
um sujeito ou de um grupo de sujeitos, os quais se entendem Podemos aplicar o "caso t í p i c o " a nosso p r ó p r i o caso: somos
como s o l i d á r i o s . A unidade da história é fundada pela identidade nós próprios quem empreendemos a aplicação, abstraímos o com¬
de um horizonte de expectativas, possível de ser a t r i b u í d o a estes p a r á v e l do distinto e, respeitadas as c i r c u n s t â n c i a s especiais do
sujeitos. A narrativa relata, com efeito, a influência modifica- nosso caso, concretizamos o modelo derivado pela via desta
dora de acontecimentos experimentados subjetivamente, esses que abstração.
irrompem em um mundo-da-vida c adquirem significação para Tal é também o procedimento do médico que reconstrói a
sujeitos que agem. Em tais h i s t ó r i a s os sujeitos devem poder biografia do doente com a ajuda dc um material d i s p o n í v e l ; o
compreender a si p r ó p r i o s , da mesma forma como devem poder paciente, como tal, n ã o procede de outra maneira quando, com
entender seu mundo. A significação h i s t ó r i c a de qualquer acon¬ ajuda do esquema proposto, narra sua h i s i ó r i a - d e - v i d a , t a m b é m
tecimento está sempre relacionada, de .forma i m p l í c i t a , com a em seus detalhes até e n t ã o esquecidos. A m b o s n ã o se orientam,
c o n e x ã o de sentido de uma biografia, cuja coesão é mantida pela por certo, em um exemplo, mas — exatamente — em um esque¬
identidade do E u , ou de uma história coletiva, determinada ma. Na interpretação genérico-universal faltam os traços indivi¬
pela identidade do grupo. É por isso que a e x p o s i ç ã o narrativa duais do exemplo, o passo em d i r e ç ã o à a b s t r a ç ã o já está feito;
está comprometida com a linguagem o r d i n á r i a ; pois, somente a m é d i c o e paciente n ã o t ê m mais o que fazer senão ativar o es¬
reflexividade sui generis do linguajar cotidiano permite comunicar quema. A g e n e r a l i z a ç ã o s i s t e m á t i c a consiste, portanto, no se¬
aquilo que é individual cm expressões que, inevitavelmente, são guinte: em e x p e r i ê n c i a s h e r m e n ê u t i c a s precedentes já se abstraiu
universais. 90
de muitas h i s t ó r i a s t í p i c a s , tendo em vista a multiplicidade dos
casos individuais. A interpretação genérico-universal não contém
Cada h i s t ó r i a é, pelo fato de representar um conjunto indi¬ nome dc indivíduos, apenas papéis anônimos; ela não contém cir¬
vidualizado, uma história particular. Cada exposição histórica i m - c u n s t â n c i a s contingentes, mas c o n s t e l a ç õ e s que retornam sempre
plica a exigência por unicidade. Ainda que não abandone o pla¬ de novo, e modelos de a ç ã o ; ela não contém um emprego idiomá-
no da exposição narrativa, uma interpretação genérico-universal tico da linguagem, mas um v o c a b u l á r i o estandardizado. E l a n ã o
precisa, pelo c o n t r á r i o , romper esta l i m i t a ç ã o do que é h i s t ó r i c o . apresenta um processo t í p i c o s e n ã o que descreve, em conceitos-
E l a possui a forma de uma n a r r a ç ã o , porque deve servir a su¬ de-tipo, o esquema para uma atividade com variantes condicio¬
jeitos que reconstroem sua p r ó p r i a biografia na forma de uma nais, É desta maneira que Freud e x p õ e o complexo de É d i p o
narrativa; mas ela só pode ser matriz para muitas destas narra¬ e suas s o l u ç õ e s : com a ajuda de conceitos estruturais com eu,
ç õ e s , porque n ã o deve ter vigência exclusiva para um caso indi¬ id e superego (os quais foram obtidos a partir de e x p e r i ê n c i a s do
vidual determinado. E l a é uma história generalizada em termos d i á l o g o a n a l í t i c o ) ; recorrendo a p a p é i s , pessoas e modelos dâ in¬
sistemáticos porque fornece o esquema de um s e m - n ú m e r o de t e r a ç ã o (resultantes da estrutura familiar) e, finalmente, pelo
280 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 281

recurso a mecanismos da ação e da c o m u n i c a ç ã o (como escolha cia, basta constatar se o acontecimento singular corresponde à
de objeto, identificação e i n t e r i o r i z a ç ã o ) . O emprego de uma definição operacional pela qual a e x p r e s s ã o t e ó r i c a é determina¬
linguagem ordinária nos moldes de uma terminologia n ã o carac¬ da. Esta aplicação operacional move-se, necessariamente, no
teriza um estágio fortuito de desenvolvimento da p s i c a n á l i s e . A n ¬ quadro do agir instrumental. E l a n ã o satisfaz, portanto, a aplica¬
tes pelo c o n t r á r i o , todas as tentativas dc dar à metapsicologia uma ção de expressões teóricas que afetam interpretações genérico-
forma mais precisa fracassaram porque as c o n d i ç õ e s da a p l i c a ç ã o universais. O material, ao qual estas i n t e r p r e t a ç õ e s são aplicadas,
de interpretações genérico-universais excluem uma formalização n ã o consiste em eventos singulares, mas se c o m p õ e de e x p r e s s õ e s
da linguagem do dia-a-dia. C o m efeito, os t é r m i n o s que aí são simbólicas, próprias a uma biografia fragmentária; portanto, de
empregados estão a serviço da e s t r u t u r a ç ã o de narrativas; a eles partes constituintes de um complexo individualizado em termos
se recorre, procurando contato com a linguagem usual do pacien¬ específicos. Neste caso, depende da c o m p r e e n s ã o h e r m e n ê u t i c a
te, quando ambos, m é d i c o e paciente, completam o esquema ana¬ daquele que libera o material, se um elemento de sua biografia
lítico da n a r r a ç ã o nos termos de > uma h i s t ó r i a . Ao introduzir for ou n ã o adequadamente interpretado por uma e x p r e s s ã o teóri¬
nomes de indivíduos em lugar de p a p é i s a n ô n i m o s , e preenchen¬ ca proposta. Esta aplicação hermenêutica movimenta-se, neces¬
do modelos de i n t e r a ç ã o para deles fazer cenas vividas, eles de¬
sariamente, na moldura de uma c o m u n i c a ç ã o inerente à lingua¬
senvolvem ad hoc uma nova linguagem; nesta, a linguagem da
gem cotidiana. Sua r e a l i z a ç ã o n ã o é, p o r é m , a mesma da aplica¬
interpretação universal é posta de acordo com a do paciente.
ç ã o operacional. Enquanto nesta se decide se, para a teoria, con¬
Esta etapa faz com que a aplicação se revele como uma dições empíricas disponíveis podem servir de aplicação — o me¬
tradução. Isto permanece encoberto, enquanto a linguagem ordi¬ canismo da d e d u ç ã o teórica permanece aqui, enquanto tal, in¬
nária da teoria, formulada segundo uma terminologia específica, tacto — a aplicação h e r m e n ê u t i c a p r o p õ e - s e a tarefa de trans¬
vem em auxílio da linguagem do paciente sobre o pano de fundo formar a matriz narrativa das i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - u n i v e r s a i s
societário comum, próprio à proveniência burguesa c à formação em urna n a r r a ç ã o ; portanto, sc ocupa cm plenijicar uma história
escolar de ura giuasiano. O' problema cia t i a d u ç â o torna-se ex¬ individual, fazendo dela urna e x p o s i ç ã o narrativa: as c o n d i ç õ e s
plícito, como tal, quando a d i s t â n c i a social da linguagem se relativas à aplicação definem uma execução da interpretação que,
acentua. Ereud tem consciência deste falo. Isto se mostra por no plano da i n t e r p r e t a ç ã o g e n é r i c o - u n i v e r s a l , deve, como tal, ser
ocasião do debate acerca da possibilidade de a p s i c a n á l i s e , no evitada. As deduções t e ó r i c a s e s t ã o , por certo, mediatizadas por
futuro, encontrar uma difusão ao nível das massas: uma c o m u n i c a ç ã o com o m é d i c o ; na verdade elas precisam, po¬
r é m , ser empreendidas pelo paciente enquanto tal.
"Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às
novas condições. N ã o tenho dúvidas de que a pertinência de nossas novas
Isto tem a ver com a particularidade m e t o d o l ó g i c a (II), a
hipóteses psicológicas fará boa impressão também sobre as pessoas pouco saber: interpretações g e n é r i c o - u n i v e r s a i s n ã o obedecem aos mes¬
instruídas; mas precisaremos buscar as formas mais simples e mais facil- mos critérios de refutação que são p r ó p r i o s às teorias universais.
mente inteligíveis de expressar as nossas doutrinas teóricas". 81
Se uma prognose condicional, deduzida de uma h i p ó t e s e nomo-
lógica c dc certas condições iniciais da operação, for falsificada,
Os problemas da a p l i c a ç ã o , com os quais as teorias científi- a h i p ó t e s e p o d e r á ser vista como refutada. U m a i n t e r p r e t a ç ã o
co-experimentais sc confrontam, são apenas aparentemente anᬠgenérico-universal nós a podemos verificar de forma a n á l o g a , de¬
logos. Na aplicação de hipóteses nomológicas às condições ini¬ duzindo uma c o n s t r u ç ã o a partir dc suas ( p r ó p r i a s ) d e d u ç õ e s e
ciais de uma o p e r a ç ã o , os eventos singulares, expressos em pro¬ das c o m u n i c a ç õ e s do doente. A tal c o n s t r u ç ã o podemos dar a
p o s i ç õ e s de existência ("esta pedra"), são igualmente postos em forma de um prognóstico condicional. Caso ele confira, o pa¬
relação com as expressões universais das proposições teóricas. ciente será levado a produzir determinadas r e c o r d a ç õ e s , a refletir
M a s este tipo de s u b s u n ç ã o n ã o apresenta maiores problemas, eis um certo fragmento dc sua biografia esquecida e a superar as
que os acontecimentos singulares só entram em c o n s i d e r a ç ã o na perturbações da comunicação e do seu comportamento. Mas,
medida em que preenchem os critérios dos predicados universais nesse caso, o caminho da falsificação n ã o é o mesmo das teorias
("esta pedra" está, por exemplo, para "massa"). Em c o n s e q ü ê n - universais. Pois, se o paciente rejeitar uma c o n s t r u ç ã o , a inter-
282. CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 283

p r e t a ç ã o , da qual esta c o n s t r u ç ã o foi deduzida, n ã o poderá, já um campo muito grande. Desta maneira, a ú n i c a i n t e r p r e t a ç ã o segura de
por isso, ser vista como refutada. H i p ó t e s e s psicanalíticas repor¬ seu 'não' é que ele aponta para a qualidade de n ã o ser completo; não
tam-se, depois de tudo, a c o n d i ç õ e s onde a e x p e r i ê n c i a está sus¬ pode haver dúvida de que a construção não lhe disse tudo.

pensa, muito embora elas devam-se corroborar exatamente junto Parece, portanto, que as elocuções diretas do paciente, depois que lhe foi
oferecida uma c o n s t r u ç ã o , fornecem muito poucas provas sobre a questão
a essa experiência: a experiência da reflexão 6 a única instância
de saber sc estivemos certos ou errados. É do maior interesse que existam
na qual aquilo que chamamos de h i p ó t e s e s pode vir a ser confir¬ formas indiretas de c o n f i r m a ç ã o , que s ã o , sob todos os aspectos, fide-
mado ou falsificado. Quando esta i n s t â n c i a n ã o se i m p õ e , fica dignas". - 9

sempre ainda uma alternativa: ou a i n t e r p r e t a ç ã o é falsa (isto é,


a teoria ou sua aplicação a.este caso particular) ou, pelo con¬ Freud pensa nas a s s o c i a ç õ e s c o r r ò b o r a n t e s do sonhador, o
t r á r i o , as r e s i s t ê n c i a s , corretamente diagnosticadas no mais, são qual libera fragmentos de textos até e n t ã o esquecidos ou sonha
demasiadamente fortes. A 'nstância, na qual c o n s t r u ç õ e s errôneas novos sonhos. Por outra parte, surgem d ú v i d a s se os sonhos n ã o
podem fracassar, n ã o coincide nem com uma o b s e r v a ç ã o contro¬ podem estar influenciados pela sugestão do m é d i c o :
lada, nem com uma experiência comunicativa. A interpretação
de um caso n ã o se corrobora s e n ã o , ú n i c a e exclusivamente, pela "Se um sonho traz à tona situações que podem ser interpretadas como

continuação de um processo de formação, isto é, junto à auto-re- referentes a cenas do passado do sonhador, parece em especial importante
indagar se a i n f l u ê n c i a do m é d i c o t a m b é m pode desempenhar algum pape!
flexão que se executa e não j á , com certeza, naquilo que o pa¬
em conteúdos de sonhos deste tipo. E essa questão é a mais urgente de
ciente profere ou na maneira como ele se comporta. Sucesso e todas, no caso dos sonhos chamados corroborativos, que, por assim dizer,
insucesso n ã o são aqui, como no horizonte do agir instrumental 'seguem atrás' da análise. Com alguns pacientes, esses s ã o os únicos sonhos
no quadro da atividade comunicativa, cada vez constatáveis em que se consegue. Tais pacientes reproduzem apenas as e x i g ê n c i a s passadas
termos intersubjetivos. Mesmo o desaparecimento dos sintomas de sua infância depois dc havê-las construído a partir de seus sintomas,
n ã o permite que se chegue a uma c o n c l u s ã o i r r e v o g á v e l : eles po¬ associações e outros sinais, e proposto a eles essas construções. Seguem-se,
então, os sonhos c o r r ò b o r a n t e s acerca dos q u a i s s u r g e , contudo, a dúvida
deriam muito bem ter sido subslituídos por outros sintomas, ini¬
de saber se n ã o podem ser i n t e i r a m e n t e d e s p i d o s de v a l o r p r o b a t ó r i o , e m
cialmente inacessíveis tanto à o b s e r v a ç ã o quanto à experiência
vista da possibilidade dc terem sido imaginados em s u b m i s s ã o às palavras
da i n t e r a ç ã o . T a m b é m o sintoma está basicamente comprome¬ d o analista, cm lugar de trazidos à luz desde o i n c o n s c i e n t e do sonhador.
tido com a significação que ele possui para o sujeito engajado na l\'ão se pode fugir a essa situação ambígua na análise, de vez que, com
defesa contra ele; ele está incorporado ao complexo da auto-obje- esses pacientes, e a menos que se interprete, construa e proponha, jamais
tivação e da auto-refJexão e não possui, além deste, nenhum po¬ obtemos acesso ao que neles está reprimido". 03

der falsifieatório ou verificatório. Freud está consciente desta di¬


ficuldade m e t o d o l ó g i c a . E l e sabe que o n ã o do analisado, deste Freud está convencido de que a sugestão do médico encon¬
que rejeita uma c o n s t r u ç ã o proposta, é a m b í g u o : tra seu limite no fato de o mecanismo da f o r m a ç ã o do sonho n ã o
poder, como tal, ser influenciado. M a s , mesmo assim, a s i t u a ç ã o
"Em alguns raros casos ele mostra ser a expressão de uma recusa legí-
analítica concede um peso valorativo especial n ã o apenas ao " n ã o "
tima. Muito mais f r e q ü e n t e m e n t e , expressa uma r e s i s t ê n c i a que pode ter' mas também ao "sim" do paciente. Também as confirmações
sido evocada pelo tema geral da c o n s t r u ç ã o que lhe foi apresentada, mas do pacente, o médico n ã o as pode encarar como se fossem moeda
que, dc modo igualmente fácil, pode ter surgido de algum outro fator desprovida de valor. Certos críticos acham que o analista n ã o
da complexa s i t u a ç ã o a n a l í t i c a . Um ' n ã o ' de um paciente, portanto, n ã o faz outra coisa do que induzir uma r e i n t e r p r e t a ç ã o da interpre¬
consiitui prova de c o r r e ç ã o de uma c o n s t r u ç ã o , ainda que seja perfeita- t a ç ã o — até aí válida — da biografia, ao sugerir ao paciente
mente compatível com ela. Uma vez que toda construção desse tipo é 94
uma nova terminologia. A isso Freud objeta que, para a veri¬
incompleta, pois abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos esque-
ficação da construção, a c o r r o b o r a ç ã o do paciente n ã o possui
cidos, estamos livres para supor que o paciente n ã o esteja de fato, dis-
cutindo o que lhe foi dito, mas baseando sua contradição na parte (do
outro significado afora o de sua d e n e g a ç ã o :
psiquismo) que ainda n ã o foi revelada. V i a de regra, n ã o dará seu assen-
timento nté que tenha sabido de toda a verdade, e esta abrange amiúde "É verdade que n ã o aceitamos plenamente um 'não' do analisado, mas
menos ainda concedemos a seu 'sim' a validade de seu valor nominal
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 285
284 CONHECIMENTO E INTERESSE

diferença para com os procedimentos analítico-causais c, de qual¬


N ã o há j u s t i f i c a ç ã o para que nos acusem de que reinterpretemos inva-
quer forma, certa afinidade com o m é t o d o explicativo-hermenêu-¬
riavelmente sua e x p r e s s ã o em uma c o n f i r m a ç ã o . Na realidade as coisas
n ã o s ã o t ã o simples assim, n ã o simplificamos de tal maneira que uma
tico. Freud retoma esta q u e s t ã o sob um aspecto m é d i c o , ao se.
d e c i s ã o nos seja f á c i l . indagar se a p s i c a n á l i s e pode ser seriamente chamada de (uma)
terapia causai. Sua resposta é a m b í g u a ; a pergunta em si, parece
O 'sim' direto c imediato do analisado é a m b í g u o . Na verdade, pode ser
sinal de que ele reconhece como correta a construção que lhe foi feita,
ter sido mal posta:
mas esse 'sim' pode t a m b é m n ã o ter sentido ou ainda — o que podemos
ehamar de ' h i p ó c r i t a ' , porquanto é mais c ô m o d o para sua r e s i s t ê n c i a — "Na medida em que a terapia a n a l í t i c a n ã o ' se p r o p õ e , como sua tarefa
que, por meio de uma tal anuência, a verdade (ainda) não descoberta primeira, remover os sintomas, ela sc comporta como uma terapia causai.-
deva continuar encoberta. Um valor este sim apenas possui quando a ele Em outro sentido, os senhores podem dizer, ela n ã o o é. Ocorre que, h á .
seguirem confirmações indiretas, quando o paciente produz, como adendo muito tempo atrás, rastreamos a origem da seqüência das causas da
imediato a seu sim, novas l e m b r a n ç a s , as quais completam e ampliam a doença, das repressões às disposições instintuais, suas intensidades relati¬
construção. Somente em tal caso reconhecemos o 'sim' como arremate
vas, até na c o n s t i t u i ç ã o c nos desvios de curso de seu desenvolvimento.
i > È
do ponto em q u e s t ã o " . '
Supondo, agora, que fosse possível, talvez, por algum meio q u í m i c o in-
terferir IKN' e mecanismo, aumentar ou diminuir a' quantidade de libido

Mesmo a confirmação indireta através da associação não presente cm determinada época, ou reforçar um instinto à custa .de.
outro, tal coisa seria, então, uma terapia causa] no verdadeiro sentido da.,
tem senão um valor relativo, caso for considerada isoladamente.
palavra, para a qual nossa a n á l i s e teria efetuado o i n d i s p e n s á v e l trabalho
Com razão Freud insiste que apenas a c o n t i n u a ç ã o da análise preliminar de reconhecimento. No momento atual, como sabem, não.
pode decidir algo sobre a utilidade ou inutilidade de uma cons¬ existe semelhante método de influenciar os processos libidinais; com ;

t r u ç ã o : tão-somente o contexto do processo da formação em seu nossa terapia psíquica atacamos, em conjunto, diferentes pontos — - não
90
todo possui o poder de corroborar òu de falsificar. exatamente os pontos que sabemos serem as raízes dos fenômenos, mas.'
ainda assim, bem distantes dos sintomas; os .pontos que sc nos tornaram
Mesmo no caso em que sc trate de i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - 37
acessíveis devido a algumas circunstâncias assaz peculiares". , •;.
universais, a verificação dc hipóteses só pode obedecer àquelas
regras que são adequadas à s i t u a ç ã o cio exame; somente estas
garantem rigorosa objetividade da validade ( c i e n t í f i c a ) . Quem, A comparação cia psicanálise com a análise bioquímica revê-:
pelo contrário, reclama que interpretações genéricas sejam trata¬ la que suas h i p ó t e s e s não abarcam c o n e x õ e s causais entre eventos;
das como as i n t e r p r e t a ç õ e s filológicas dc textos ou como teorias empíricos observáveis; não fosse assim, as informações científicas
universais e sejam, em c o n s e q ü ê n c i a , submetidas a critérios que, nos dariam c o n d i ç õ e s de alterar uma determinada s i t u a ç ã o pela
do exterior, determmam o curso da i n v e s t i g a ç ã o — quer se trate mera m a n i p u l a ç ã o de seus dados. A p s i c a n á l i s e n ã o nos concede
dos critérios do jogo da linguagem em vigência, quer dos critérios uma disponibilidade t é c n i c a sobre o psiquismo doente, o qual seja
da observação controlada — coloca-se de saída fora da dimensão semelhante à q u e l a que a b i o q u í m i c a exerce sobre o organismo-
da auto-reflexão, o único domínio no qual os enunciados psica- enfermo. E, mesmo assim, ela realiza mais do que um mero
n a l í f c o s podem fazer sentido. tratamento de sintomas porque, ainda que n ã o seja ao nível de
eventos físicos, ela n ã o deixa de abranger c o n e x õ e s causais — e
Uma última particularidade da lógica, própria às interpreta¬
isso cm um ponto "que se nos tornou a c e s s í v e l por meio dc cir¬
ções genérico-universais, resulta (III) do vínculo da compreensão
c u n s t â n c i a s assaz peculiares". Este é, precisamente, o ponto em.
hermenêutica com a explicação causai: o ato-do-compreender ad-
que linguagem e comportamento são patologicamente deformados
quire, ele próprio, poder explanatório. A circunstância de as cons¬
pela causalidade de s í m b o l o s isolados e motivos reprimidos. C o m
t r u ç õ e s poderem assumir, em vista dos sintomas, a forma de hi¬
Hegel podemos distingui-la da causalidade da natureza e c h a m á -
p ó t e s e s e x p l i c a t ó r i a s revela o parentesco com os procedimentos
la de uma causalidade do destino; pois, a r e l a ç ã o causai entre
a n a l í t i c o - c a u s a i s . O fato de uma c o n s t r u ç ã o ser, enquanto tal,
cena primeva, defesa e sintoma n ã o e s t á ancorada, segundo leis-'
uma interpretação, e a instância da verificação um ato da reme-
naturais, em uma invariância da natureza mas, de forma asselva-
m o r a ç ã o e da a n u ê n c i a do paciente, mostra, ao mesmo tempo, a
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 28'
CONHECIMENTO E INTERESSE
286
mais nada, uma c o n s t r u ç ã o proposta pelo m é d i c o ao paciente
iada em uma invariância da biografia, representada pela com-
como uma hipótese explicativa, deduzida de uma interpretação'
pulsão à repetição, mas suscetível de ser removida pelo poder da genérico-universal e de condições suplementares; pois, a c o n e x ã o
r e í l C
causai em debate vige entre uma s i t u a ç ã o conflitante do passado
As 'hipóteses que deduzimos, a partir de interpretações gené¬
e as reações c o m p u l s i v a m e n t é reiteradas no presente (sintoma).
ricas n ã o se reportam à natureza, como é o caso das teorias uni¬
M a s , quanto ao c o n t e ú d o , as h i p ó t e s e s referem-se ao conjunto-
versais, mas à esfera que, pela a u t o - o b j e t i v a ç ã o , , tornou-se uma
de-sentido, o qual está determinado pelo conflito, pela defesa,
•secunda natureza, a saber: ao "inconsciente". Este termo foi pen¬
frente a desejos capazes de gerar conflito, pela s e g r e g a ç ã o do.
sado para designar a classe de todas as c o a ç õ e s motivadoras, m-
símbolo de desejo, pela satisfação substituta do desejo censurado,,
•dependizadas de seu contexto, que emanam daquelas disposições
pela f o r m a ç ã o do sintoma e pela defesa s e c u n d á r i a . Em termos
.da necessidade, desautorizadas pela sociedade e cuja existência
h i p o t é t i c o s , um complexo causai é formulado como um conjunto-
pode ser evidenciada na conexão causai entre, por um lado a
de-sentido hermeneuticamente compreensível. T a l f o r m u l a ç ã o pre¬
s i t u a ç ã o da frustração originária e, por outro, certas atitudes
enche as condições de uma h i p ó t e s e causai e, ao mesmo tempo,.,
anormais da linguagem e do comportamento. O peso de motiva¬
as de uma i n t e r p r e t a ç ã o , (em vista de um texto deformado por
ções desta espécie constitui uma medida para avaliar perturba-
meio do sintoma). A c o m p r e e n s ã o inerente à h e r m e n ê u t i c a pro¬
•ções e desvios do processo formativo. Enquanto, pela disponibi¬
funda assume a função da e x p l i c a ç ã o . E l a corrobora sua força
lidade técnica sobre a natureza, fazemos com que esta, em vir¬
explanatória na auto-reflexão, suprimindo uma objetivação que'
tude de nosso conhecimento acerca das c o n e x õ e s causais, trabalhe
entende e, concomitantemente, explica: esta é a e f e t u a ç ã o crítica,
para n ó s a i n t e l e c ç ã o analítica envolve a causalidade do incons¬
daquilo que Hegel subsumiu sob o título do compreender ("agar¬
ciente como tal: diferentemente do que ocorre na medicina so¬
rar pelo pensamento").
m á t i c a , "causai" que é em sentido estrito, a terapia nao repousa
sobre um ato-do-reivindicar a pertinência dos conhecidos elos De acordo com sua forma lógica, a c o m p r e e n s ã o explana-
•causais; pelo c o n t r á r i o , a terapa deve muito mais sua eficácia a t ó r i a distingue-se, por certo, em um ponto decisivo da e x p l i c a ç ã o . ,
wvressão das c o n e x õ e s causais em si. A metapsicologia contem, formulada em termos rigorosamente c i c n t í t i c o - c x p e r i m c n t a i s . A m ¬
de qualquer maneira, hipóteses referentes ao mecanismo da de¬ bas a p ó i a m - s e sobre enunciados causais, adquiridos com ajuda de
fesa da disjunção de s í m b o l o s , do recalque de motivos, alem de c o n d i ç õ e s suplementares a partir de p r o p o s i ç õ e s universais, isto
h i p ó t e s e s sobre o modo complementar do trabalho da auto-re- é, de i n t e r p r e t a ç õ e s deduzidas (variantes condicionais) ou de
flexão, isto é, hipóteses que "explicam" a gênese e a remoção de hipóteses nomológicas. Ocorre que o conteúdo das proposições
uma causalidade do destino. Um complemento para as hipóteses t e ó r i c a s permanece inalterado frente à a p l i c a ç ã o operacional à
n o m o l ó g i c a s das teorias universais seriam, cm c o n s e q ü ê n c i a as realidade; nesse caso podemos apoiar as e x p l i c a ç õ e s sobre leis,.
hipóteses básicas da metapsicologia acerca da estrutura da lin¬ sem contexto. No caso de uma e x p l i c a ç ã o h e r m e n ê u t i c a , pelo
guagem e do agir; mas exatamente estas são desenvolvidas em contrário, asserções teóricas são traduzidas de tal forma na ex-
n í v e l m e t a t e ó r i c o e não possuem, assim, o status de hipóteses posição narrativa de uma história individual que o enunciado
n o m o l ó g i c a s ("comuns"). . causai não cria corpo sem este contexto. I n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c a s
só podem, abstratamente, manter sua p r e t e n s ã o por uma validade
O conceito de uma causalidade do inconsciente permite, ou- universal porque suas d e d u ç õ e s são, além disso, determinadas pelo
trossim, compreender o efeito terapêutico da "analise' ; uma pala¬ contexto. As explicações narrativas distinguem-se das o p e r a ç õ e s -
vra na qual, n ã o por acaso, somaram-se crítica como conheci¬ estritamente dedutivas pelo fato de os eventos ou as circunstân¬
mento e crítica como m u d a n ç a . U m a análise causai so atinge as cias, para as quais reivindicam uma r e l a ç ã o causai, receberem
•conseqüências imediatamente práticas da crítica pelo tato de o uma d e t e r m i n a ç ã o suplementar no curso de sua a p l i c a ç ã o . O que
•complexo empírico, o qual ela abarca, ser simultaneamente um chamamos de i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - u n i v e r s a i s n ã o autorizam, em.
•complexo intencional, passível de uma c o m p r e e n s ã o e recons- c o n s e q ü ê n c i a , explicações isentas de um contexto. 88

' í r u ç ã o segundo regras gramaticais: podemos conceber, antes ae


2 8 8 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 289

12. Psicanálise e teoria societária. lado, da a u t o c o n s e r v a ç ã o — que, sob os imperativos da natureza


exterior, precisa ser garantida a t r a v é s do esforço coletivo de in¬
A redução dos interesses do divíduos socializados — e, por outro, do potencial exuberante da
conhecimento em Nietzsche natureza interior, das necessidades libidinosas e agressivas. A l é m
disso, a i n s t â n c i a do superego, edificada sobre i d e n t i f i c a ç õ e s pos¬
00
Preud entendeu a sociologia como uma psicologia aplicada. teriormente abandonadas com as expectativas das primeiras pes¬
Em seus escritos teóricos sobre civilização e cultura ele p r ó p r i o soas de referência, atesta que um E u , comandado por seus dese¬
tentou afirmar-se como sociólogo. Foram q u e s t õ e s de p s i c a n á l i s e jos, n ã o é imediatamente confrontado com a realidade do mundo
•que o conduziram ao campo de uma teoria da sociedade. exterior; a realidade com a qual ele se defronta, e frente à qual
Ao conceber determinados distúrbios da c o m u n i c a ç ã o , do as m o ç õ e s pulsionais prenhes de conflito aparecem, elas p r ó p r i a s ,
•comportamento e dos órgãos como sintomas, o analista recorre como fontes de perigo, é o sistema da a u t o c o n s e r v a ç ã o , é a socie¬
a um conceito preliminar de normalidade e desvio. M a s este p r é - dade cujas e x i g ê n c i a s institucionais são representadas pelos pais
-conceito está, possivelmente, determinado em termos culturais, e para o i n d i v í d u o em f o r m a ç ã o . A autoridade externa, prolongada
n ã o pode ser definido pela mera referência a um estado-de-coisas intrapsiquicamente pelo surgimento do superego, possui assim uma
já fixado (conceitualmente): base econômica:

"Vimos que n ã o é cientificamente v i á v e l traçar uma linha demarcafória "O m ó v e l da sociedade humana é, em ú l t i m a a n á l i s e , de ordem e c o n ô m i ¬
•entre o que é psiquicamente normal e anormal, dc maneira que esta ca; como não dispõe de meios de vida suficientes para manter vivos
d i s t i n ç ã o , apesar de sua i m p o r t â n c i a p r á t i c a , possui apenas um valor con¬ todos os seus membros, a menos que trabalhem, ela é obrigada a limitar
10
vencional". o o número de seus membros c desviar suas energias da atividade sexual,
reorientando-as para o trabalho. Em suma, defronta-se com as eternas e'
Caso, p o r é m , aquilo que a cacla vez deve ser considerado primevas e x i g ê n c i a s da vida, as quais nos assediam a t é o dia de hoje". 1A

•como processo formativo normal ou desviado determina-se uni¬


camente, segundo os critérios cio quadro institucional de uma M a s , se o conflito fundamental está definido pelas c o n d i ç õ e s
•sociedade, esta poderia, comparada com outras, encontrar-se ela do trabalho material, pela penúria econômica e pela carência de
mesma, possivelmente em seu todo, em um estado p a t o l ó g i c o , bens (de p r o d u ç ã o e de consumo), as frustrações impostas por
muito embora cia fixe para cada caso particular, a ela subordi¬ esse conflito perfazem uma grandeza historicamente v a r i á v e l . A
nado, os p a r â m e t r o s daquilo que chamamos de normalidade: p r e s s ã o da realidade e a correspondente dose de r e p r e s s ã o social
dependem, e n t ã o , do grau de disponibilidade t é c n i c a sobre as
"Numa neurose individual tomamos como nosso ponto de partida o con- forças da natureza, bem como da organização dos bens explo¬
traste que distingue o paciente de seu meio ambiente, o qual sc presume rados e da d i s t r i b u i ç ã o dos bens produzidos. Quanto mais au¬
ser 'normal'. Para um grupo, no qual todos os membros estejam afetados
menta o poder de dispor tecnicamente sobre a natureza e en¬
pelo mesmo distúrbio, n ã o pode haver esse pano de fundo; ele teria de
101
fraquece o imperativo da realidade, tanto mais se debilita a
ser buscado em um outro lugar qualquer".
censura pulsional, imposta pelo sistema da a u t o c o n s e r v a ç ã o , tan¬
to mais se avoluma a o r g a n i z a ç ã o do Eu e, com ela, a faculdade
O que Freud denomina de diagnose das neuroses coletivas
de exercer um controle racional sobre as frustrações. Sendo assim,
postula uma investigação que vai além dos critérios da moldura
não há por que n ã o comparar o processo h i s t ó r i c o - u n i v e r s a l da
institucional dada e visualiza a história do desenvolvimento cul-
societarização com o processo de socialização do indivíduo. En¬
tural da espécie humana, o "processo c i v i l i z a t ó r i o " . T a l perspec-
quanto a c o a ç ã o da realidade é toda-poderosa e a o r g a n i z a ç ã o do
tiva filogenética é, ademais, sugerida por uma reflexão adicional,
Eu frágil, de modo que a r e n ú n c i a pulsional n ã o pode ser im¬
lambem ela advinda da psicanálise.
posta senão através de forças efetivas de repressão, a espécie en¬
O fato central da defesa frente a m o ç õ e s impulsoras indese¬
contra, para o problema da defesa, soluções coletivas que se
j á v e i s remete a um conflito fundamental entre f u n ç õ e s , por um
assemelham às soluções neuróticas em nível individual. As rp.es-
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 291
290 CONHECIMENTO E INTERESSE

re da vida dos animais — e desprezo ter que distinguir entre cultura e


mas constelações, as quais levam o indivíduo à neurose, motivam c i v i l i z a ç ã o — apresenta, como sabemos, dois aspectos para o observador.
a sociedade a erigir suas i n s t i t u i ç õ e s . A q u i l o que caracteriza as Por um lado, inclui todo o conhecimento e toda a capacidade que os
instituições constitui, ao mesmo tempo, sua similaridade c o m homens adquiriram com o fim de controlar as forças da natureza e

formas patológicas. Assim como a compulsão à repetição do in¬ extrair a riqueza desta para a s a t i s f a ç ã o das necessidades humanas; por
outro, engloba todas as i n s t i t u c i o n a l i z a ç õ e s n e c e s s á r i a s para ajustar as
terior, a violência institucional provoca, do exterior, uma repro¬
relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição
dução imune à crítica e relativamente rígida, própria a um com¬ da riqueza d i s p o n í v e l . As duas t e n d ê n c i a s da c i v i l i z a ç ã o n ã o s ã o inde¬
portamento constante e inalterado: pendentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as r e l a ç õ e s m ú t u a s
dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satis-
"Nosso conhecimento das d o e n ç a s n e u r ó t i c a s ' dos i n d i v í d u o s foi dc gran- fação puisional, a qual a riqueza existente torna possível; em segundo
de a u x í l i o para a c o m p r e e n s ã o das grandes i n s t i t u i ç õ e s sociais; pois, as lugar, porque, individualmente, um homem pode, ele p r ó p r i o , vir a fun¬
neuroses mostraram ser tentativas de encontrar s o l u ç õ e s individuais para cionar como riqueza em relação a outro homem, na medida em que a
o problema de compensar os desejos insatisfeitos, que por intermédio das outra pessoa faz uso de sua capacidade de trabalho ou o escolhe como
i n s t i t u i ç õ e s devem receber uma s o l u ç ã o social". 103
objeto sexual; em terceiro lugar, ademais, porque todo i n d i v í d u o é vir¬
tualmente um inimigo da civilização, embora se suponha que essa deva
1 0 ( i
constituir um interesse humano universal".
Disto resulta t a m b é m o ponto de vista para decifrar o patri-
mônio cultural da tradição. Nele se sedimentaram os conteúdos
da p r o j e ç ã o das fantasias de desejo, as quais exprimem i n t e n ç õ e s A última formulação, a saber, que cada um é um inimigo
reprimidas. Tais c o n t e ú d o s podem ser concebidos como sublima- virtual da civilização, remete já para uma d i f e r e n ç a entre Freud
ções que apresentam satisfações virtuais e garantem uma indeni- e M a r x . Este concebe o quadro institucional como uma regula¬
zação publicamente autorizada para a r e n ú n c i a imposta pela cul- m e n t a ç ã o dos interesses que, no p r ó p r i o seio do sistema do tra¬
tura (e civilização). balho social, são fixados com base, nas r e l a ç õ e s existentes entre
indenizações sociais c obrigações socialmente impostas. Em con-
"Toda a h i s t ó r i a da cultura (e/ou c i v i l i z a ç ã o ) nada mais c do que um seqüência, o poder das instituições provém, para M a r x , do fato
relato acerca dos diversos caminhos que os homens tentaram trilhar a
ele estatuírem uma distribuição de compensações e encargos; esta
fim de sujeitar seus desejos insatisfeitos sob as condições canibiantes —
d i s t r i b u i ç ã o assenta sobre a violência e está deformada em ter¬
e alteradas pelo a v a n ç o t é c n i c o — da garantia e da f r u s t r a ç ã o por parte
da realidade".NH
mos específicos de classe. Freud entende, pelo c o n t r á r i o , a mol¬
dura institucional na conexão existente entre ela e a r e p r e s s ã o das
Esta é a chave psicanalítica para uma teoria societária que, m o ç õ e s pulsionais; esta repressão precisa, segundo Freud, ser i m -
por um lado, converge de maneira surpreendente com a recons- posta ao sistema da a u t o c o n s e r v a ç ã o de maneira geral, indepen¬
trução marxista da história da espécie e, sob outro aspecto, traz dente do fato dc haver uma d i s t r i b u i ç ã o de bens e encargos, de
à tona pontos de vista especificamente novos. Da mesma forma acordo com critérios específicos de classe (pelo menos enquanto
como M a r x com o termo sociedade, F r e u d compreende com uma economia de escassez pôr sobre cada s a t i s f a ç ã o o sinete
"cultura" aquilo pelo qual a espécie humana se eleva para além coercivo da compensação):
das condições da existência animal. E l a é um sistema dc auto-
c o n s e r v a ç ã o que, antes de mais nada, preenche duas f u n ç õ e s : a "É digno dc registro que, por pouco que os homens sejam capazes de
da afirmação do homem contra a natureza e a da organização das existir isoladamente, sintam, n ã o obstante, como um pesado fardo os sa¬
1 0 3
relações dos homens entre s i . Igual a M a r x , Freud distingue — crifícios que a civilização deles espera, a fim dc tornar possível a vida
ainda que sob outros t é r m i n o s — as forças produtivas, as quais c o m u n i t á r i a . A c i v i l i z a ç ã o precisa, portanto, ser defendida contra o indi¬

indiciam o estágio da disponibilidade técnica sobre os processos víduo; c seus regulamentos, instituições e imperativos põem-se a serviço de
tal tarefa. N ã o apenas objetivam efetuar uma certa d i s t r i b u i ç ã o da rique¬
naturais, das relações de p r o d u ç ã o :
za, mas também manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger
contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a con¬
"A c i v i l i z a ç ã o humana, e x p r e s s ã o pela qual quero significar tudo aquilo quista da riqueza e a sua p r o d u ç ã o . As c r i a ç õ e s humanas s ã o facilmente
em que a vida humana se elevou acima de sua c o n d i ç ã o animal, e dife-
292 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 293

destruídas, e a ciência e a técnica, que as construíram, também podem


ser utilizadas para sua aniquilação".i°7 mo tempo, uma parte destas satisfações c o m p e n s a t ó r i a s pode ser
reelaborada em l e g i t i m a ç ã o de normas vigentes. As fantasias co¬
Freud demarca os limites daquilo que chamamos de institui¬ letivas de desejo, as quais compensam a r e n ú n c i a imposta pela,
ções em um contexto diferente daquele que caracteriza o agir cultura, pelo fato de n ã o serem privadas mas p o s s u í r e m , como
instrumental. N ã o é propriamente o trabalho mas, sim, a coer- tais, uma existência isolada ao nível da comunicação pública, na
ç ã o para o trabalho socialmente dividido que necessita de ser verdade, uma existência s u b t r a í d a à crítica, essas fantasias s ã o .
regulamentada: ampliadas, adquirindo a d i m e n s ã o de i n t e r p r e t a ç õ e s de mundo
e, como racionalizações do d o m í n i o , são postas a serviço das
"Com o reconhecimento de que toda c i v i l i z a ç ã o repousa numa compul¬
normas sociais vigentes. É o que Freud denomina "o p a t r i m ô n i o ;
s ã o ao trabalho e numa r e n ú n c i a à p u l s ã o , provocando, portanto, inevita¬ psíquico da civilização (e/ou cultura): mundividências religiosas
velmente, a oposição dos atingidos por essas exigências, tornou-se claro e ritos, ideais e sistemas de valores, estilizações e produtos artís-,
que a c i v i l i z a ç ã o n ã o pode consistir, principal ou unicamente, na p r ó p r i a ticos, o mundo da formação-em-projeção e da aparência objeti¬
riqueza, nos meios de adquiri-la e' nas d i s p o s i ç õ e s para sua distribuição, va; em suma, o mundo das " i l u s õ e s " .
de vez que essas coisas s ã o ameaçadas pela rebeldia e pela mania des-
Freud por certo n ã o é t e m e r á r i o a ponto de reduzir a supe-
trutiva dos participantes da c i v i l i z a ç ã o . Junto com a riqueza deparamo-
nos agora com os meios pelos quais a civilização pode ser defendida:
restrutura cultural a fenômenos patológicos. Uma ilusão que, sob
medidas de coerção e outras, que se destinam a reconciliar os homens o plano da tradição cultural, assumiu uma forma objetiva, como
com ela e a r e c o m p e n s á - l o s por seus sacrifícios. Estas últimas podem ser por exemplo a religião judaico-cristã, não é uma idéia delirante-
descritas como o p a t r i m ô n i o p s í q u i c o da c i v i l i z a ç ã o " . i ° 8
(alucinação):

A a r m a ç ã o institucional do sistema do trabalho social serve " P a r a as i l u s õ e s permanece c a r a c t e r í s t i c o o f a t o d e d e r i v a r e m d e desejos


à o r g a n i z a ç ã o do trabalho, na medida em que. sc trata da coope¬ h u m a n o s ; nesse s e n t i d o elas s e a p r o x i m a m dos d e l í r i o s p s i q u i á t r i c o s , m a s
r a ç ã o c da d i v i s ã o do trabalho, bem como da d i s t r i b u i ç ã o dc bens, deles t a m b é m d i f e r e m , à parte da estrutura mais c o m p l i c a d a dos d e l í r i o s .
N o caso destes e n f a t i z a m o s c o m o essencial a c o n t r a d i ç ã o c o m a realidade;
isfo c, desde que se trate de inserir o agir racional-jinalista em
a ilusão não precisa ser necessariamente falsa, ou seja, irrealizávcl ou
utn complexo dc interações. Esta rede do agir, p r ó p r i o à comu¬ 9
estar e m c o n t r a d i ç ã o com a realidade", i*
n i c a ç ã o , serve, sem d ú v i d a , t a m b é m às necessidades funcionais
do sistema do trabalho social; mas, ao mesmo tempo, cie precisa
Para o i n d i v í d u o , o quadro institucional da sociedade estabe¬
ser consolidado ao nível das instituições, eis que, sob a pressão da
lecido é uma realidade i n a m o v í v e l . Desejos i n c o m p a t í v e i s com
realidade, nem todas as necessidades interpretadas encontram sua
essa realidade m a n t ê m o c a r á t e r de fantasias de desejo, transfor¬
s a t i s f a ç ã o , e nem todos os motivos acionais, a transbordar os l i ¬
mados que são em sintomas c f o r ç a d o s a encetar o caminho da
mites sociais impostos, podem ser recalcados conscientemente,
satisfação compensatória. Para a espécie em seu conjunto, porém,
mas apenas com a ajuda de forças afetivas se deixam reprimir.
os limites da realidade podem ser deslocados sem maiores pro¬
É por isso que o quadro institucional consiste num feixe de nor¬
blemas. O grau dc r e p r e s s ã o , socialmente necessária, mede-se pelo
mas o b r i g a t ó r i a s ; elas n ã o apenas legalizam necessidades inter¬
alcance variável do d o m í n i o t é c n i c o que uma sociedade determi¬
pretadas por meio da linguagem, mas t a m b é m as rcorientam,
nada dispõe sobre os processos da natureza. A s s i m , o quadro
metamorfosciam e reprimem.
institucional que regula a d i s t r i b u i ç ã o de encargos e compensa¬
A d o m i n a ç ã o das normas sociais repousa sobre uma defesa
ções, estabilizando uma ordem social assentada sobre a domina¬
que, enquanto é devedora a mecanismos inconscientes e n ã o está
ção e a renúncia imposta pela c i v i l i z a ç ã o , pode, à medida que
submetida a um controle consciente, postula, por sua vez, satis¬
o progresso técnico a v a n ç a , distender-se, transformando em rea¬
fações c o m p e n s a t ó r i a s e engendra sintomas. Estes adquirem seu
lidade porções sempre maiores da t r a d i ç ã o cultural, antes de tudo
caráter institucional estável e imperscrutável precisamente por
essas que possuem um c o n t e ú d o - d e - p r o j e ç ã o , isto é, traduzindo
meio da c o m p u l s ã o n e u r ó t i c a coletiva, a c o e r ç ã o encoberta, essa
satisfações virtuais em satisfações sancionadas pelas instituições.
que substitui a v i o l ê n c i a manifesta das sanções abertas. Ao mes-
As "ilusões" não são apenas falsa c o n s c i ê n c i a . Como naquilo que
294 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 295

M a r x chama de ideologia, há nelas t a m b é m o que chamamos de nas experiências da reflexão. Por outro lado, M a r x não pôde pres¬
utopia. Desde que o progresso técnico abra a possibilidade obje¬ tar contas ao status da c i ê n c i a cuja f u n ç ã o , enquanto crítica, seria,
tiva de reduzir as repressões socialmente inevitáveis a um nível a de reconstruir o ato-da-autoconstituição da espécie: sua con¬
inferior àquele postulado pelas instituições, o conteúdo utópico cepção materialista de s í n t e s e entre homem e natureza continuava
111
pode ser liberado de sua j u n ç ã o com os elementos a l u c i n a t ó r i o s , limitada à a r m a ç ã o categorial da atividade instrumental. Em
ideológicos, próprios à legitimação • do poder, e passar à crítica tal armação conceituai um saber de p r o d u ç ã o podia ser justifi¬
dos complexos de d o m i n a ç ã o historicamente obsoletos. cado, mas n ã o o saber inerente à reflexão. Tampouco o modelo
Em tal contexto, t a m b é m a luta de classes encontra seu lugar. da atividade produtiva era adequado para reconstruir as r e l a ç õ e s ,
:
Enquanto o sistema de d o m i n a ç ã o que assegura as r e p r e s s õ e s entre d o m i n a ç ã o s o c i e t á r i a e ideologia. Na metaps cologia Freud
gerais, impostas a todos os membros da sociedade de forma igual, adquiriu', em contrapartida, um quadro de atividade comunicativa
for administrado por uma classe social, privações e frustrações deformada; este permite que se apreenda a gênese das institu*ções,
gerais virão acopladas com carências e decepções específicas de se avalie o peso valorativo das i l u s õ e s ; portanto, que se entenda
classe. T r a d i ç õ e s que legitimam a d o m i n a ç ã o de uma classe são d o m i n a ç ã o e ideologia num e no mesmo complexo. Freud pode,
obrigadas a indenizar a massa da p o p u l a ç ã o t a m b é m por tais frus¬ expor uma c o n e x ã o conceituai, a qual M a r x n ã o chegou a flagrar
trações específicas, as quais vão além das privações gerais. É por em sua intimidade.
isso que são sempre primeiro as massas exploradas que n ã o tole¬ Freud concebe as i n s t i t u i ç õ e s como um poder que substitui:
ram ser oprimidas por legitimações que se tornaram precárias, uma aguda v i o l ê n c i a exterior pela constante c o m p u l s ã o interna
invertendo contra a cultura estabelecida os c o n t e ú d o s u t ó p i c o s da de u m á c o m u n i c a ç ã o deformada e autolimitadora. De maneira-
tradição: correspondente, ele entende a t r a d i ç ã o cultural como um incons¬
ciente coletivo, de uma ou outra forma sempre censurado e v i - ,
"Sc nos voltarmos para as restrições que só sc aplicam a certas classes rado ao avesso; nele os s í m b o l o s isolados orientam para as vias
<la sociedade, encontraremos uni estado de coisas que é flagrante e q u e
da satisfação virtual os motivos que, embora exilados cia esfera
jamais deixou dc ser r e c o n h e c i d o . K dc esperar q u e essas classes siibpri-
vilegiadas invejem os privilégios das favorecidas c façam tudo o que
da c o m u n i c a ç ã o , são constantemente reativados. Estes motivos
podem para se libertarem de seu próprio excesso dc privação. Onde isso constituem as forças que, cm lugar da ameaça cie fora e do pe-
n ã o for p o s s í v e l , uma permanente parcela de descontentamento p e r s i s t i r á rigo da sanção imediata, forçam a consciência a ficar presa ao
no seio desta cultura, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, po¬ inevitável, ao legitimarem a d o m i n a ç ã o enquanto tal. M a s eles
rém, uma cultura n ã o foi a l é m do ponto em que a s a t i s f a ç ã o de uma são, simultaneamente, as f o r ç a s das quais a c o n s c i ê n c i a cativa,
parte cie seus participantes depende da opressão da outra parte, parte
das ideologias pode vir a ser libertada pela a u t o - r e f l e x ã o , no
esta talvez maior — c este é o caso em todas as culturas atuais — é
momento em que um novo a c r é s c i m o no potencial de d o m i n a ç ã o
compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam' uma intensa
hostilidade para com uma cultura cuja existência cias tornam possível
da natureza desacredite as antigas formas de l e g i t i m a ç ã o .
pelo seu trabalho, mas dc cuja riqueza n ã o possuem mais do que uma Marx não pôde flagrar dominação e ideologia como uma co¬
mínima parceia. (... ) Não é preciso acentuar que uma civilização que m u n i c a ç ã o distorcida porque p r e s s u p ô s que os homens se distin¬
deixa insatisfeito um número t ã o grande dc seus participantes c os im¬ guiram dos animais no dia em que c o m e ç a r a m a produzir seus
pulsiona à revolta, n ã o tem nem merece a perspectiva dc uma e x i s t ê n c i a meios de s u b s i s t ê n c i a . M a r x estava convencido de que a e s p é c i e
duradoura", no
humana se elevara outrora sobre as c o n d i ç õ e s animais da existên¬
cia pela fato de haver ultrapassado os limites da i n t e l i g ê n c i a ani¬
M a r x havia elaborado a idéia do ato-da-autoconstituição da mal, podendo, em c o n s e q ü ê n c i a , transformar um comportamento
espécie humana em duas d i m e n s õ e s , a saber: como um processo adaptativo em um agir instrumental. Como base natural da his¬
de autoprodução, impulsionado pela atividade daqueles que par¬ tória lhe interessa, por isso, a organização corpóreo-especificada
ticipam do trabalho social, o qual é acumulado nas forças pro¬ da espécie sob a categoria do trabalho possível: o animal que fa¬
dutivas; e como um processo de formação, levado em frente pela brica instrumentos. O olhar de Freud, pelo c o n t r á r i o , n ã o estava
atividade c r í t i c o - r e v o l u c i o n á r i a das classes, o qual é conservado voltado para o sistema do trabalho social mas para a família. E l e

i
295 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 297

s u p ô s que os homens se distinguiram dos animais no momento em possibilidade objetiva de libertar totalmente o quadro institucional
que tiveram sucesso em inventar uma agência que socializasse a do c a r á t e r repressivo que lhe é peculiar — mas t a m b é m n ã o pode,
prole biologcamente a m e a ç a d a e dependente por um p e r í o d o re¬ em princípio, desencorajar uma tal esperança. Freud indicou cla¬
lativamente longo. Freud estava convencido de que a espécie hu¬ ramente qual a d i r e ç ã o de uma h i s t ó r i a da e s p é c i e determinada,
mana se elevara outrora sobre as c o n d i ç õ e s animais da existência ao mesmo tempo, por um processo de a u t o p r o d u ç ã o sob a cate¬
pelo fato de haver ultrapassado os limites da s o c i e t a r i z a ç ã o ani¬ goria do trabalho e por um processo de f o r m a ç ã o sob as c o n d i ç õ e s
mal, podendo em c o n s e q ü ê n c i a transformar um comportamento de uma c o m u n i c a ç ã o deformada: o desenvolvimento das forças
regulado pelo instinto em um agir p r ó p r i o à c o m u i v c a ç ã o ("huma¬ produtivas engendra, em cada etapa, a possibilidade objetiva de
na). Como base natural da h i s t ó r i a lhe interessa, por isso, a orga¬ atenuar a v i o l ê n c i a do quadro institucional e "substituir a base
113
nização corpóreo-especificada da espécie sob a categoria do exce¬ afetiva de sua o b e d i ê n c i a c i v i l i z a t ó r i a por uma (base) r a c i o n a l " .
dente impulsionai e sua respectiva c a n a l i z a ç ã o : o animal inibido Cada passo no caminho da r e a l i z a ç ã o de uma idéia, posta em cena
em suas pulsões e que, ao mesmo tempo, fantasia. O desenvolvi-' t com a contradição de uma c o m u n i c a ç ã o deformada pela força, é
mento da sexualidade humana com seus dois zênites, interrompido marcado pela t r a n s f o r m a ç ã o da moldura institucional e pela des¬
pelo período da latência em base da repressão edipal, e a função truição de uma ideologia. O objetivo é "a fundamentação racional
da agressividade no estabelecimento da instância do Superego, fa¬ das prescrições culturais", portanto, uma organização das relações
zem com que o problema antropológico bás'co não lhe pareça ser sociais de acordo com o p r i n c í p i o de que a validade de toda e
a organização do trabalho, mas o desenvolvimento de instituições qualquer norma, com c o n s e q ü ê n c i a s de ordem política, venha a
capazes de resolver, de forma estável e duradoura, o conflito entre depender de um consenso, obtido por meio de uma c o m u n i c a ç ã o
1 1 3
o excedente pulsional e a c o e r ç ã o da realidade. É por isso que isenta de d o n r n a ç ã o . M a s Freud insiste em que todo esforço no
Freud n ã o c o m e ç a rastreando aquelas funções do Ego que sc de¬ sentido de incorporar tal idéia no plano da ação e de promover,
senvolvem, em nível cognitivo, no quadro da atividade instrumen¬ em termos r e v o l u c i o n á r i o - c r í t i c o s , o progresso do esclarecimento
tal. E l e concentra sua a t e n ç ã o sobre a gênese do fulcro motivador, está rigorosamente comprometido com a n e g a ç ã o determinada,
p r ó p r i o à atividade da c o m u n i c a ç ã o . Jnlcressa-Jhe compreender o própria ao sofrimento facilmente identificável — c chama atenção
desfno dos potenciais p r i m á r i o s da p u l s ã o nos meandros dc uma para a c o n s c i ê n c i a h i p o t é t i c o - p r á t i c a , a saber: executar um expe¬
i n t e r a ç ã o entre o ser que sc desenvolve e seu tiico ambiente, inte¬ rimento que t a m b é m pode n ã o dar em nada.
r a ç ã o determinada pela estrutura familiar da qual este i n d v í d u o -
As idéias do iluminismo p r o v ê m da reserva das ilusões trans r
que-cresce fica dependente durante uma longa fase de adestra¬
mitidas historicamente; r a z ã o por que devemos entender as ações
mento.
do iluminismo como a tentativa de testar, em c i r c u n s t â n c i a s dadas,
M a s caso a base natural da espécie humana estiver essencial¬ os limites de exeqüibilidade do conteúdo utópico, próprio ao par
:
mente determinada pelo excedente puls onal e pela prolongada de¬ trimônio cultural. Não há dúvida de que a lógica da tentativa e
pendência infantil, e se o surgimento das instituições puder ser, do erro exige que se façam r e s t r i ç õ e s no plano da r a z ã o , algo que
com base nessa i n t e l e c ç ã o , compreendido a partir das c o n e x õ e s de ' a lógica do controle c i e n t í f i c o - e x p e r i m e n t a l pode dispensar: em um
uma c o m u n i c a ç ã o deformada, então, aquilo que chamamos de do¬ teste que se proponha experimentar as c o n d i ç õ e s de uma possível
m i n a ç ã o c ideologia adquirirá uma outra função, um peso valora- " r e s t r i ç ã o do sofrimento", o risco de um aumento do sofrimento
tivo mais substancial do que aquele .que M a r x lhe predicara. C o m n ã o deve fazer parte do programa em q u e s t ã o . Dessas pondera¬
isso a lógica da dinâmica reflexiva,-dirigida contra dominação e ções resulta a prudente p r e c a u ç ã o de Freud frente ao "grande exr
ideologia, recebendo seus impulsos pelo progresso que ocorre no perimento cultural que se encontra atualmente em fase de aplicar
sistema do trabalho social (ciência e t é c n i c a ) , torna-se intelec¬ ção no imenso p a í s que se estende entre a Europa e a Á s i a " . 1 1 4
Q
tualmente acessível: trata-se da lógica da tentativa e do erro, mas progresso do conhecimento na d i m e n s ã o das c i ê n c i a s , bem como
transposto para o plano da história universal. Sob os pressupostos o da crítica, funda a e s p e r a n ç a "de que seja possível adquirir, pelo
da teoria de Freud, a chamada base natural não faz uma promessa trabalho científico, um saber sobre a realidade do mundo através
— a saber: pelo desenvolvimento dás forças produtivas haveria a do qual possamos aumentar nosso poder e em vista do qual posr
298 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 299

samos organizai: nossa vida". Esta e s p e r a n ç a , e somente essa, se¬ necessidades que não estejam já interpretadas em termos de lin¬
para basicamente a i n t e n ç ã o de uma filosofia com raízes iiuminis- guagem e nao estejam simbolicamente fixadas em ações virtuais A
tas das tradições dogmáticas: "minhas ilusões não são incorrigíveis h e r a n ç a da história natural, a qual consiste em um potencial de
como as ilusões religiosas, elas n ã o possuem o caráter alucinatório. impulsos desprovidos de qualquer e s p e c i a l i z a ç ã o , determina as con¬
Caso a e x p e r i ê n c i a mostrar que nos enganamos, renunciaremos a dições iniciais de reprodução da espécie humana, mas os meios de
nossas expectativas. Considerem, pois, minha tentativa a partir da¬ tal reprodução societária emprestam, de saída, à conservação da
quilo que ela é. . . " ; na verdade, como algo que pode ser prati¬ espécie a qualidade da autoconservação. Verdade é que devemos
camente revidado. T a l p r e c a u ç ã o n ã o emperra a atividade crí- acrescentar imediatamente que a experiência da a u t o c o n s e r v a ç ã o
t i c o - r e v o l u c i o n á r i a , mas interdita a certeza totalitária, a saber: a coletiva fixa já o conceito da p r é - c o m p r e e n s ã o , a partir do qual
idéia, pela qual essa certeza se deixa orientar, é realizável sob inferimos privativamente algo assim como c o n s e r v a ç ã o da espécie
qualquer c i r c u n s t â n c i a . Para Freud d o m i n a ç ã o e ideologia pos¬ em vista da pré-história animal da espécie humana. Seja como for,
suem r a í z e s demasiadamente profundas para que, em lugar de uma í uma r e c o n s t r u ç ã o da história da espécie, a qual n ã o abandone o
lógica da e s p e r a n ç a fundada e da tentativa controlada, ele possa terreno da crítica, precisa recordar-sc da base de sua experiência
proclamar uma confiança (irrestrita no futuro da humanidade). 115
e conceber a espécie a partir do "instante" em que esta n ã o pode
Esta é a vantagem de uma teoria que incorpora, na base na¬ reproduzir sua vida senão em c o n d i ç õ e s culturais, como um sujeito
tural da história, a herança flexível de uma história natural, patri¬ que necessita, antes de mais nada e de qualquer forma, de se re¬
m ô n i o de um potencial instintual que engloba tanto tendências produzir como sujeito.
libidinosas e agressivas quanto a possibilidade de romper o meca¬ A
M a r x , nesse sentido herdeiro da t r a d i ç ã o idealista, manteve
nismo da satisfação imediata. M a s , paradoxalmente, este mesmo tacitamente a síntese como ponto de referência: a síntese de uma
ponto de vista pode, igualmente, levar a uma construção objetivis- p o r ç ã o de natureza subjetiva com uma natureza objetiva para esta
ta da história, a qual conduz Freud a um estágio dc reflexão an¬ síntese; isso supõe que as c o n d i ç õ e s contingentes da síntese reme¬
terior à q u e l e que M a r x atingira, e o impede de elaborar a inte- tam a uma natureza já explorada cm' si. "Natureza em si" é, po¬
l e c ç ã o básica da psicanálise cm termos de uma teoria da socie- rém, uma c o n s t r u ç ã o ; ela designa uma natnra naturanx que engen¬
111
dade. '' Pelo fato de M a r x haver comprometido o ato-da-auto- drou do mesmo modo a natureza subjetiva como aquela que se lhe
c o n s t i t u i ç ã o da espécie com o mecanismo do trabalho social, ele opõe como natureza objetiva, mas sempre de tal maneira que nós,
nunca se v i u seduzido a dissociar a d i n â m i c a do desenvolvimento enquanto sujeitos cognoscentes, n ã o possamos, em princípio, to¬
h i s t ó r i c o da atividade da espécie, enquanto um sujeito, e a conce¬ mar posição fora ou até "por baixo" da divisão da chamada "na¬
ber assim tal a u t o c o n s t i t u i ç ã o nas categorias da r e v o l u ç ã o natural. tureza em si" em uma natureza subjetiva e uma natureza objetiva.
Freud, pelo contrário, introduziu, já em nível metapsicológico, um Os potenciais reconstruídos do impulso natural fazem, como tais,
modelo energético dc dinâmica pulsional que visualiza naquilo que parte da natureza incognoscível; mesmo assim tais potenciais são
chamamos de objetivo sua objetividade preferida. A s s i m Freud vê acessíveis ao conhecimento na medida em que determinam a cons¬
t a m b é m o processo cultural da espécie como uma realidade presa telação inicial do conflito, em cuja solução a espécie humana está
à d i n â m i c a das p u l s õ e s : as forças libidinais e agressivas, potestades engajada ao ponto dc esmorecer. As formas pelas quais o conflito
p r é - h i s t ó r i c a s da e v o l u ç ã o , perpassam por assim dizer o sujeito da é decidido são, pelo contrário, dependentes das condições culturais
espécie e determinam sua história. Ocorre que o modelo biológico de nossa existência: trabalho, linguagem e poder. Certificamo-nos
da filosofia da h i s t ó r i a não é outra coisa do que a sombra refletida das estruturas do trabalho, da linguagem e do poder não de uma
do modelo t e o l ó g i c o , ambos igualmente pré-críticos. As pulsões forma ingênua, mas graças a uma auto-reflexão do conhecimento;
como primum movens da história, cultura como resultado de sua essa toma como seu ponto de partida uma teoria da ciência, assume
luta — uma tal c o n c e p ç ã o teria esquecido que acabamos de ad¬ posteriormente uma versão transcendental e, por fim, certifica-se dá
quirir privativamente o conceito do impulso pulsional, única e ex¬ conexão objetiva dessas estruturas.
clusivamente, a partir da d e f o r m a ç ã o da linguagem e da patologia O processo de investigação das ciências da natureza está or¬
do comportamento. No plano a n t r o p o l ó g i c o n ã o deparamos com ganizado no quadro transcendental da atividade instrumental, de
"300 ('<)Nlli:ClMENTO E INTERESSE CRÍTICA C O M O UNIDADE DH CONHECIMENTO E INTERESSE 301

sorte que 6 n<N«IMl iamentc do ponto de vista da disponibilidade c a r á t e r plenificante, isto é, apenas no momento em que estamos
técnica possível que a natureza se torna um objeto de conhecimen- convencidos de que a razão pode vir a ser transparente a si mesma
to. O processo de pesquisa das ciências do espírito articula-se no através do exercício da autofundamentação. Mas, caso conceba-
plano transcendental da atividade própria à comunicação, de ma- mos a capacidade cognitiva e a força crítica da razão a partir de
neira que a explicação de complexos significativos está necessaria- uma autoconstituição da espécie humana em condições naturais
mente subordinada ao ponto de vista que preserva o maior grau contingentes, então resulta disso que a razão é, enquanto tal,
possível de intersubjetividade em vista da compreensão mútua. inerente ao interesse. C o m esta unidade de r a z ã o e interesse Freud
Devido ao fato de refletirem as estruturas de trabalho e interação, depara-se na situação onde a maiêutica do m é d i c o n ã o pode in-
portanto, serem reflexo das conexões-de-vida, havíamos entendido centivar a auto-reflexão do doente senão sob o impacto da coerção
estes dois pontos de vista transcendentais como a expressão cogni- patológica sob o interesse correspondente de a remover.
t'va de interesses que orientam o conhecimento como tal. Contudo, As ponderações sobre a relatividade histórica dos crité-
este vínculo entre conhecimento e, interesse não resulta de maneira rios, que prescrevem o que é ou n ã o é patológico levaram
concludente senão em base da auto-reflexão de ciências que satis- Freud a trilhar, o caminho que vai da c o m p u l s ã o doentia na
façam os critérios típicos à crítica racional. Como exemplo esco- esfera individual até a patologia da sociedade em seu conjunto.
lhemos a psicanálise. O processo de pesquisa, o qual deve ser ao Freud compreende as instituições de domínio e as tradições
mesmo tempo um processo de auto-investigação, está comprometi- culturais como soluções temporárias de um conflito básico en-
do aqui com as condições do diálogo analítico. Estas condições são tre os potenciais dos impulsos pulsiona's excedentes e as con-
transcendentais na medida em que fixam o sentido da validade de dições indispensáveis da autoconservação coletiva. Tais so-
interpretações psicanalíticas; mas elas são, simultaneamente, obje- luções s ã o temporárias porque geram, sobre o fulcro afetivo da
tivas na medida em que permitem atualizar um tratamento fático repressão, a coibição de soluções patológicas substitutas. Mas,
de fenômenos patológicos. É supérfluo reduzir um ponto de vista assim como na situação clínica, também na sociedade a coerção
transcendental a um conjunto objetivo e a um interesse cognitivo patológica e o interesse por sua remoção são inseparáveis. Pelo
correspondente, uma vez que a dissolução analítica de uma co- fato de a patologia das instituições, igual à patologia da cons-
municação deformada, a qual determina a compulsão do compor- ciência individual, estar instalada no seio da linguagem e da ati-
tamento e a falsa consciência, é ambas as coisas num e mesmo vidade comunicativa, assumindo assim a forma de uma defor-
processo: teoria e terapia. m a ç ã o estrutural do entendimento entre os homens, o interesse
No ato da auto-reflexão o conhecimento de uma objetivação, resultante da compressão dolorida é, direta e imediatamente, no
cujo poder repousa unicamente sobre o fato de o sujeito não se sistema social, t a m b é m um interesse pela clarificação desta si-
reconhecer nela como em seu outro, coincide direta e imediata- t u a ç ã o — e a reflexão constitui a única dinâmica possível pela
mente com o interesse pelo conhecimento, isto é, com o interesse qual esse interesse pode chegar a se afirmar. O interesse da razão
de se libertar desta coerção. Na situação analítica a unidade da tende à progressiva execução revolucionário-crítica, mas sempre
intuição sensível e da emancipação, da intelecção sensível e da l i - a título de ensaio, a saber: para a realização das grandes ilusões
bertação frente à dependência dogmática, tal unidade entre razão da humanidade; nelas os motivos recalcados t ê m sido burilados
e o uso interesseiro da mesma — o que Fichte elaborou no conceito em fantasias da esperança.
da auto-reflexão — é efetivamente real. Ocorre, porém, que a
Nas pegadas do interesse da razão o interesse pela autocon-
auto-reflexão não mais se realiza como atividade de um Eu abso-
s e r v a ç ã o segue o seu curso; vista sob este aspecto, t a m b é m a ra-
luto mas, sim, sob condições que afetam a comunicação entre m é -
z ã o possui seu fundamento na história natural. M a s o interesse
dico e paciente, motivadas, por sua vez, por imperativos de ordem
pela autoconservação é indireto: cie n ã o perfaz nem uma neces-
patológica. Sob os pressupostos materialistas, o interesse da razão
sidade empírica, nem representa a propriedade sistêmica do or-
n ã o pode mais, por conseguinte, ser concebido como uma auto-
ganismo. De fato, não é possível definir o interesse pela auto-
' explicação autárquica da razão. A fórmula segundo a qual o in-
c o n s e r v a ç ã o independentemente das condições culturais — tra-
teresse é inerente à razão assume tão-somente no idealismo um
balho, linguagem e poder. O interessp pela autoconservação n ã o
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 303
302 CONHECIMENTO E INTERESSE

age através da própria razão. Mas, se conhecimento e interesse


pode ter por objeto direto e imediato a r e p r o d u ç ã o da vida da constituem uma única realidade na dinâmica da auto-reflexão,
e s p é c i e , eis que esta espécie precisa primeiro, ela p r ó p r i a , inter¬ então também a dependência de interesses técnicos e práticos do
pretar o que merece ser vivido sob as condições de existência da conhecimento, a qual caracteriza tanto as c o n d i ç õ e s transcenden¬
cultura. Estas i n t e r p r e t a ç õ e s orientam-se, por sua vez, nas i d é i a s tais das ciências da natureza quanto as do espírito, n ã o pode im¬
da vida que é boa em e para si mesma. O "bem" n ã o é aqui nem plicar uma heteronomia do conhecimento. O que uma tal depen¬
uma c o n v e n ç ã o nem uma essência, ele é, muito mais, fantasiado; dência visualiza é o fato de os interesses orientadores do conheci¬
na verdade, ele o deve ser com tal precisão que reencontre e mento, os quais determinam as c o n d i ç õ e s de objetividade da vali¬
articule o interesse que subjaz a essa fantasia. Isto significa aqui: dade de enunciados, serem eles mesmos racionais, de sorte que o
reencontrar e articular o interesse pela porção e m a n c i p a t ó r i a que sentido do conhecimento, e com isso t a m b é m o critério de sua
historicamente for p o s s í v e l tanto sob as condições d i s p o n í v e i s autonomia, não pode, de forma alguma, ser elucidado sem um
quanto sob as c o n d i ç õ e s m a n i p u l á v e i s do momento. Enquanto retorno àquela i n t e r - r e l a ç ã o que une conhecimento e interesse.
houver homens que necessitem conservar sua vida por meio de Freud reconheceu esta c o n e x ã o de conhecimento e interesse, cons¬
trabalho e de i n t e r a ç ã o sujeita à renúncia pulsional — portanto, titutiva do conhecimento enquanto tal; mais ainda, ele a susten¬
sob a coerção patológica de uma comunicação distorcida — o tou contra o mal-entendido psicologizante, de forma tão incisiva
interesse pela a u t o c o n s e r v a ç ã o assumirá necessariamente a forma como se a d e m o n s t r a ç ã o da validade de tal mal-entendido fosse
do interesse da razão, o qual tão-somente se desenvolve na crí- equivalente a uma d e p r e c i a ç ã o subjetivista do conhecimento:
tica e se confirma pelas conseqüências práticas de tal exercício
crítico.
"Tentou-se desvalorizar o e s f o r ç o c i e n t í f i c o de uma maneira radical, pela
Apenas no momento em que esta unidade dc conhecimento e consideração dc que, achando-se ele ligado às c o n d i ç õ e s de sua p r ó p r i a
interesse for percebida em sua p e r t e n ç a recíproca, junto aquele organização, n ã o poderia produzir nada mais s e n ã o resultados subjetivos,
tipo de saber que caracteriza a ciência crítica, a predicação de enquanto a natureza real das coisas, exterior a n ó s , lhe permanece ina-
cessível. Mas isso significa desprezar diversos fatores decisivos para a
pontos de vista investigatório-transcendentais aos interesses orien¬
c o m p r e e n s ã o do trabalho c i e n t í f i c o . E m primeiro lugar, nossa organiza¬
tadores do conhecimento pode ser entendida como uma r e l a ç ã o
ção, isío c, nosso aparelho psíquico, dcscnvolvcu-se exatamente através
necessária. Como a reprodução da vida social está vinculada às do esforço de explorar o mundo exterior c, portanto, deve ter realizado
c o n d i ç õ e s culturais do trabalho e da interação, o interesse pela cm sua estrutura um certo grau de senso utilitarista; segundo, nosso
a u t o c o n s e r v a ç ã o não tem por objetivo imediato a satisfação de aparelho psíquico é parte constituinte do mundo que nos dispusemos a
necessidades " e m p í r i c a s mas, sim, as condições de funcionamento investigar e que ele admite, sem maiores problemas, uma tal investiga¬

de trabalho e i n t e r a ç ã o : este interesse abarca de modo igual as ção; terceiro, a tarefa da c i ê n c i a e s t a r á bem descrita se a limitarmos a
demonstrar como o mundo nos deve aparecer em c o n s e q ü ê n c i a do c a r á t e r
categorias i m p r e s c i n d í v e i s a esse saber, os processos acumulativos
e s p e c í f i c o de nossa o r g a n i z a ç ã o ; em quarto lugar, os derradeiros resul¬
de aprendizagem e as i n t e r p r e t a ç õ e s permanentes, mediatizadas tados da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual foram alcan¬
a t r a v é s da t r a d i ç ã o . Desde o momento em que esse saber coti¬ ç a d o s , n ã o apenas estão determinados por nossa organização, mas por
diano estiver assegurado cm uma forma m e t ó d i c a adequada, e aquilo que exerceu influência sobre esta (nossa) organização; e, final¬
desta maneira estiver t a m b é m clistendido, os processos corres¬ mente, o problema do m o d o - d c - s e r - c o n s t i t u í d o do mundo n ã o passa de
pondentes dc pesquisa se irão inserir nas coordenadas de tal uma abstração vazia, despida dc (qualquer) interesse prático, caso n ã o
levarmos em conta nosso aparelho psíquico perceptivo.
interesse. 1 1 7
N ã o , nossa ciência n ã o é uma ilusão (...)".
Enquanto o interesse da a u t o c o n s e r v a ç ã o continuar um m a l -
entendido naturalista, será difícil compreender como ele possa
assumir a forma de um interesse que oriente o conhecimento e F o i precisamente isto que Nietzsche, em oposição a Freud,
que, mesmo assim, n ã o p e r m a n e ç a exterior à função deste co¬ tentou demonstrar. Nietzsche v i u a í n t i m a relação entre conhe¬
nhecimento. Acontece que mostramos, a partir de um exemplo cimento e interesse mas, ao mesmo tempo, a psicologizou, esta-
de c i ê n c i a crítica, que o interesse da a u t o c o n s e r v a ç ã o n ã o pode tuindo-a como elemento b á s i c o de uma d i s s o l u ç ã o metacrítica do
ser pensado de forma c o n s e q ü e n t e senão como um interesse que p r ó p r i o conhecimento. Nietzsche levou a cabo aquilo que,Hegel
304 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 305

empreendera e M a r x continuou (a seu modo), a saber: a auto- mundo, sempre também uma porção respeito perante a autoridade dos
supressão da teoria do conhecimento como auto-recusa da re- (bons) costumes: a moralidade foi sacrificada em seu todo. Quem em
flexão. contrapartida, a quiser reafirmar, deve saber evitar que os sucessos' (de
1
uma tal reafirmação) não se tornem controláveis".* ™

"Desconfiado em extremo dos dogmas da teoria do conhecimento, eu


apreciava espiar ora desta, ora daquela janela, evitava comprometer-me Igual a Comte, anteriormente, Nietzsche compreende as con¬
com um deles, os considerava nocivos todos eles; e, finalmente: é ve- seqüências críticas do progresso técnico-científico como superação
rossímil que um instrumento possa criticar sua própria utilidade? Eu
da metafísica; como M a x Weber, posteriormente, ele entende as
atentava muito mais para o fato de que jamais surgira um ceticismo
conseqüências práticas de tal processo como uma racionalização
t e ó r i c o - c o g n i t i v o ou uma d o g m á t i c a que n ã o contivesse segundas inten¬
ções — que tal ceticismo ou dogmática possui, na verdade, um valor
da atividade e uma s u b j e t i v a ç ã o daquelas autoridades de c r e n ç a
s e c u n d á r i o desde que se considere o que, no fundo, os obrigou a tomar capazes de orientar a a ç ã o . Teorias científicas podem anular a
essa posição. Ponto de vista fundamental: tanto Kant quanto Hegel e pretensão de validade das interpretações transmitidas por tradi¬
Schopenhaucr, tanto a postura cétjca da época quanto a atitude histo- ção que, mais ou menos encobertas, são sempre t a m b é m interpre¬
rista ou pessimista possui uma origem moral. "ns t a ç õ e s que afetam a p r á x i s ; nesse sentido tais teorias são críticas.
M a s elas devem deixar livres o e s p a ç o aberto das i n t e r p r e t a ç õ e s -
Nietzsche recorre ao argumento que Hegel utilizou contra revidadas, eis que estas teorias n ã o são aptas a estabelecer uma
Kant para justificar sua recusa de entrar na área da teoria do r e l a ç ã o com a p r á x i s : nesse sentido elas são apenas destrutivas.
conhecimento; de fato, p o r é m , sem disso tirar a c o n s e q ü ê n c i a de As teorias científicas possuem, como c o n s e q ü ê n c i a , um saber que
que não é possível limitar-se à metodologia; pelo contrário, ele é tecnicamente aplicável, mas nenhum saber normativo, o qual
n ã o deixa de entrar em contato com uma a u t o - r e f l e x ã o das poderia orientar a atividade p r á t i c a :
ciências, mas sempre apenas com um ú n i c o objetivo: subtrair-se
a ambas, à crítica não menos do que à c i ê n c i a . " A c i ê n c i a sonda o curso da natureza, mas jamais pode dar ordens ao
Por outro lado, Nietzsche compartilha com o positivismo o h o m e m . O que d e n o m i n a m o s d c i n c l i n a ç ã o , amor, p r a z e r , d e s p r a z e r , exal-
tação e esmorecimento, isso tudo a ciência desconhece. Aquilo que o
conceito dc ciência. Tão-somente as informações que correspon-
homem vive e vivência, isto e l e p r e c i s a interpretar a p a r t i r dc algo dis¬
dem aos critérios dos resultados das ciências experimentais po¬
ponível c (assim) aprender a e s c o l h e r " . 120
dem, em sentido estrito, ter a validade que c o n v é m ao conheci¬
mento. C o m isto se estatui um p a r â m e t r o frente ao qual a tra¬
O processo do esclarecimento, possibilitado pelas c i ê n c i a s , é
dição em seu todo decai ao nível da mitologia. C o m cada etapa
crítico; mas a remoção crítica dos dogmas não liberta, mas deixa
do progresso científico as c o n c e p ç õ e s arcaicas de mundo, as per¬
indiferente: ela não é emancipatória, mas niilista. Fora do raio
cepções religiosas e as interpretações filosóficas perdem terreno.
que abarca a pertença de teoria c práxis, o qual as ciências rom¬
As cosmologias, bem como o conjunto das m u n d i v i d ê n c i a s p r é -
pem sem poder substituí-lo satisfatoriamente por uma c o n e x ã o de
científicas, as quais possibilitam orientações e justificam normas
teoria e técnica, as informações não têm "sentido". Nietzsche
no plano da a ç ã o , perdem sua credibilidade à medida que uma
segue, primeiro, as pegadas da c o m p u l s ã o imanente do i l u m i n i s -
natureza objetivada é reconhecida cm suas c o n e x õ e s causais e
mo positivista; deste o separa, p o r é m , a c o n s c i ê n c i a da i n t e n ç ã o
submetida ao poderio da disponibilidade t é c n i c a :
abandonada, a qual algum dia já estivera comprometida com o
conhecimento. Nietzsche, o filósofo que n ã o ,* -is .0 pode ser,
"Na medida em que o sentido da causalidade aumenta, o raio dc influ¬
não está cm condições de subtrair à m e m ó r i a "que sempre foi
ência do reino moral se reduz: pois sempre que se entendeu os efeitos
pressuposto que da i n t e l e c ç ã o da origem das coisas devesse de¬
necessários e se é capaz de p e n s á - l o s separados de todos os possíveis
acasos isentos dos ocasionais fatos posteriores Cpost hoc), aniquilou-se
pender a salvação do homem"; ao mesmo tempo ele vê
com um sem número de causalidades fantásticas; nelas se acreditou a t ê
hoje como se fossem o fundamento dos (bons) costumes — o mundo- "que agora, pelo c o n t r á r i o , quanto mais perseguimos a origem tanto me¬
real é, p o r é m , bem menor do que o fantasiado — e cada vez um pouco nos participamos (desta pesquisa) com os nossos interesses; de fato, que
de angústia,' uma fração ainda que ínfima de coerção foi varrida ào todas as nossas apreciações valorativas e nossas 'veleidades', as quais pro-
306 CONHECIMENTO E INTERESSE

CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 307


jctamos nas coisas, c o m e ç a m a perder seu sentido; e isso na medida em
que retrocedemos sempre mais com nosso conhecimento e nos aproxima-
de de compreenderem melhor o presente, considerando o processo an-
12
mos das coisas como tais". i
terior e poderem (assim) aprender a desejar o futuro de forma rn' s
-ntensa; eles nao chegam nem a saber, apesar de todo o seu aber hi
O conceito positivista de ciência torna-se particularmente am¬ tonco, o quanto pensam e agem de maneira n ã o - h i s t ó r i c a e a t é que ponto
bivalente pela maneira como Nietzsche o avalia. Por um lado S
orna ? n e c s i d a d í 5
de' conhecimento puro". 1-3'A comandado'"o r
concede-se à ciência moderna um m o n o p ó l i o de' conhecimento;
este é corroborado pela d e s v a l o r i z a ç ã o e d e s c r é d i t o da metafísica.
Por outro lado, o conhecimento monopolizado é, por sua vez, Nietzsche acredita poder identificar um momento do n ã o -
desacreditado pelo fato de dispensar necessariamente o elo com histonco na reflexão utilizada pela p r á x i s da vida, nesta que pro¬
a. p r á x i s , algo específico à metafísica, e perder com isso nosso cedera vida, e que retorna a sua p r á x i s , pelo fato de tal "cons¬
interesse. De acordo com o positiyismo, n ã o pode haver um saber telação da vida e da h i s t ó r i a " se transformar logo que esta se
que transcenda o conhecimento m e t ó d i c o das ciências experimen¬ torne aencia.A Para o sujeito cognoscente ficam sem conse¬
tais; mas Nietzsche, ao a c e i t á - l o , n ã o consegue convcncer-se de qüência os objetos de uma h i s t ó r i a universal que, quais raridades
enclausuradas cm um museu, se objetivam numa fictícia simul-
que um tal saber m e r e ç a o designativo do conhecimento. Pois,
ancidade para a consciência que apenas frui a c o n t e m p l a ç ã o .
a t r a v é s da mesma metodologia que garante certeza a seus co¬
U m a vez reibcada metodicamente, a t r a d i ç ã o é precisamente neu-
nhecimentos, a ciência é alienada daqueles interesses que, ú n i c a
tralizadacomo t r a d i ç ã o , e n ã o pode mais fazer parte do processo
e exclusivamente, seriam capazes de darem sentido a estes seus
de t r a n s f o r m a ç ã o : "O saber. .. cessa de agir como um fator de
conhecimentos. Frente aos objetos que suscitam um interesse
transformação, como um impulso que leva o motivo a se exte-
que vai além da disponibilidade técnica, a "ciência cultiva uma
rionzar, e permanece (assim) escondido em um determinado
soberana ignorância, um sentimento de que o 'saber' n ã o ocorre 125
munoo caótico do interior".
jamais, de que foi uma espécie de orgulho sonhar em algo assim
como o conhecimento; mais ainda, de que n ã o conseguimos pre¬ A polêmica de Nietzsche contra o ócio mimado dos virtuo¬
servar nem o mais ínfimo conceito o qual nos pudesse lcgiiimar sos do hislorisrao dc sen tempo está fundada cm uma crítica da
que o 'saber' nos vale algo, nem que fosse a mera possibilidade cicntijuriaçao da história. O objetivismo ainda não é flagrado
de saber". 122 por Nietzsche como uma errônea autocompreensão cientificista,
-mas aceito como a incscusável implicação da ciência do espírito'
Já em sua "Segunda c o n s i d e r a ç ã o intempestiva" Nietzsche Nietzsche acredita, por conseguinte, que uma história "a serviço
havia exposto, quanto à história, uma reserva a n á l o g a à q u e l a da vida" necessita dos elos pré-científicos com o não-histórico e
frente à "insignificância" das ciências naturais. T a m b é m as ciên¬ o supra-lustónco. ™ Tivesse ele, por ocasião de sua crítica às
cias do espírito ficarão, no momento em que obedecerem aos ciências do espírito, retomado o conceito da " i n t e r p r e t a ç ã o " , de¬
critérios do m é t o d o científico, alienadas do complexo da vida. A senvolvido dois anos antes em seu ensaio "Sobre a verdade e a
c o n s c i ê n c i a h i s t ó r i c a só é útil para a práxis da vida enquanto se mentira em sentido extramoral", não teria sido possível manter
apropria de uma t r a d i ç ã o e a continua elaborando sob a pers¬ tal confrontação por mais tempo. A categoria da interpretação
pectiva do presente. A história viva faz com que o passado e o sc teria então, muito mais, imposto como fundamento encoberto
estranho sejam elementos constitutivos de um processo atualizado do m é t o d o histórico-füológico, e o objetivismo se teria revelado
de formação. A formação histórica constitui o parâmetro da como a falsa consciência de um m é t o d o inevitavelmente ligado
"força p l á s t i c a " , pela qual um homem ou uma cultura se torna ao processo de f o r m a ç ã o do sujeito cognoscente.
transparente a si mesmo no momento em que presentifica o pas¬ O e m b a r a ç o de Nietzsche frente às ciências do espírito é
sado e o estranho. Aqueles que pensam historicamente idêntico àquele frente às ciências naturais: ele não pode prescin¬
dir das reivindicações do conceito positivista de ciência e, ao
"acreditam _ que o sentido da e x i s t ê n c i a c h e g a r á sempre melhor à luz à mesmo tempo, não é capaz de dispensar o conceito mais exigente
medida que o processo avança; eles olham para trás com a única finalida-
de uma teoria que possui significação para a vida. No que con¬
cerne à história, Nietzsche recorre à evasiva, sugerindo que ela
308 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 309

se despoje da c a m i s a - d e - f o r ç a da metodologia, nem que seja à como necessulade imposta, a saber, nos retocar um mundo de tal ma
custa de sua p o s s í v e l objetividade. E ele gostaria de se apazi¬ neira que nossa estenda se torne (nele) possível - com isso nós cria"
guar, considerando que "o que caracteriza nosso século X I X não mos um mundo que nos é previsível, simplificado, inteligível, etc "i30
é o triunfo da ciência mas o triunfo do método científico sobre
127
a ciência". N ã o era, p o r é m , possível aplicar esta fórmula às Esta frase poderia ser entendida nos termos de um pragma¬
c i ê n c i a s da natureza. Frente a ela, a exigência a n á l o g a de rom¬ tismo logico-transcendental. O interesse a orientar o conhecimen¬
per as cadeias do pensar m e t ó d i c o se teria condenado a si pró¬ to para a dominação da natureza fixaria, ele próprio, as condiçõe*
pria. Caso quisesse ter unificado as h e r a n ç a s i n c o m p a t í v e i s do de uma objetividade possível do conhecimento da natureza Em
positivismo e da filosofia clássica, Nietzsche teria sido obrigado vez de suprimir a diferença entre ilusão e conhecimento este
a criticar aqui, de forma imanente, o objetivismo das ciências interesse iria, pelo c o n t r á r i o , primeiro determinar o quadro no
como uma falsa a u t o c o m p r e e n s ã o , a fim de trazer à tona o liame
qual aquilo que denominamos realidade é, para n ó s , objetiva¬
secreto com a p r á x i s da vida. ,
mente conhecivel. C o m isto a p r e t e n s ã o crítica de um conhe¬
A teoria do conhecimento de cunho nietzscheniano, por mais cimento cientifico permaneceria, por um lado, de pé frente à
aforísticas que suas f o r m u l a ç õ e s sejam, consiste na tentativa de metafísica mas, por outro, a reivindicação monopolista da ciência
compreender a moldura categorial das ciências da natureza (es¬ moderna seria, igualmente, posta em q u e s t ã o : ao lado do inte¬
p a ç o , tempo, evento), o conceito de lei (causalidade) e a base
resse técnico poderia haver outros interesses que orientassem e
operacional da e x p e r i ê n c i a (medida), bem como as regras da
legit.massem o conhecimento. Esta n ã o é, muito provavelmente,
l ó g i c a e do c á l c u l o , como apriori relativo de um mundo de apa¬
a concepção de Nietzsche. A redução metodológica da ciência
r ê n c i a objetiva, o qual foi engendrado com o fim de dominar a
a um interesse pela a u t o c o n s e r v a ç ã o n ã o está a serviço de uma
natureza e assegurar, assim, a c o n s e r v a ç ã o da existência humana:
determinação lógico-transcendental de um conhecimento possível
mas, sim, a serviço da negação da própria possibilidade dc se
"Todo o apnrelho-do-eonhcchnento c um aparelho de abstração e dc sim¬
plificação, voltado níio para o conhecimento, mas para a dominação das
conhecer: "Nosso aparelho cognitivo n ã o está organizado para
1 1
coisas: 'fim' e 'meio' estão tão distantes da essência (das coisas) como o saber'". -' A reflexão acerca do novo critério, desenvolvido
os 'conceitos'. Com 'fim' e 'meio' apossamo-nos do processo (inventa-se pela ciência moderna, continua apresentando razões para uma crí¬
um processo que seja perceptível), com 'conceitos' apoderamo-nos, po- tica das interpretações tradicionais de mundo, mas a mesma
1 2 8
rém, das coisas que constituem o processo".
critica abarca t a m b é m a ciência enquanto tal. Metafísica e ciên¬
cia produziram ambas, do mesmo modo, a ficção de um mundo
Nietzsche entende ciência como a atividade pela qual trans¬ previsível de casos idênticos; a ficção do apriori científico reve¬
formamos a "natureza" em conceitos, com o objetivo de dominar lou-se, de qualquer forma, mais digno de crédito. O descaminho
a natureza. Sob o rigor coercivo da e x a t i d ã o lógica e da perti¬ objeüvista, este que Nietzsche, motivado pela a n t o c o m p r e e n s ã o
nência empírica, a imposição do interesse pela manipulação téc¬
positivista da ciência, prova ser uma propriedade filosófica, é o
nica dos processos objetivados da natureza se torna cogente, e a
mesmo ao qual t a m b é m a ciência sucumbe:
pura força se impõe como uma lei de conservação da vida através
de tal coerção:
"O descaminho da filosofia deve-se ao fato dc que, em vez de ver na lógi¬
" N ã o importa o quanto nosso intelecto seja uma conseqüência das condi¬ ca e nas categorias da r a z ã o meios de organizar o mundo em vista de
ções de existência, n ó s n ã o o teríamos se n ã o tivéssemos necessidade dele, fins utilizáveis (portanto, 'basicamente' em vista de uma falsificação
e n ã o o t e r í a m o s assim, caso n ã o fosse assim que dele necessitássemos, ut.1), acreditava possuir na lógica e nas categorias da razão o critério
29
mesmo se pudéssemos viver de forma diferente".' da verdade ou a (própria) realidade. O 'critério da verdade' era, de fato
nada mais do que a utilidade biológica, própria a um tal sistema de fal¬
"Não convém compreender esta imposição que temos ein formar concei-
sificação fundamental; e como uma e s p é c i e animal n ã o conhece nada de
tos, gêneros, formas, fins, leis {'um mundo de casos idênticos')..corno
mais importante do que se manter em vida, l e g í t i m o seria aqui, de fato,
se com isso estivéssemos em condições de fixar o mundo verdadeiro, mas
falar de verdade. Mas a ingenuidade consistia apenas nisso: tomar a
3 1 0 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 311

idiossincrasia antropocêntrica como medida das coisas, como critério in-


Sempre de novo ele e x p õ e o mesmo argumento contra a possi¬
dicativo do 'real' e do 'irreal' — em suma, a de haver absolutizado uma
1 3 2
bilidade de uma teoria do conhecimento:
norma condicional".

«Dever-sc-ia saber, (...) o que é certeza (moral), o que é conhecimento


O interesse que se encontra na raiz do conhecimento afeta a e assim por diante. Mas, como n ó s não o sabemos, uma c r í t i c a da facul¬
possibilidade do conhecimento enquanto tal. Como a satisfação dade do conhecimento n ã o faz sentido: de que maneira o instrumento
de todas as necessidades é abarcada pelo interesse da autoconser- deveria ser capaz de se criticar a si p r ó p r i o , se apenas d i s p õ e de si mesmo
v a ç ã o , qualquer ilusão, por mais arbitrária que seja, pode pre¬ para esta c r í t i c a ? Ele n ã o está nem em condições de se definir a si
13 3
próprio!"
tender possuir a mesma validade, basta que nela se manifeste,
por m í n i m a que seja, uma certa necessidade de i n t e r p r e t a ç ã o de
mundo. A c o n e x ã o de conhecimento e interesse, entendida sob Hegel havia recorrido a este argumento contra K a n t , com o
o visor naturalista, remove por certo a a p a r ê n c i a objetivista em objetivo de f o r ç a r a crítica do conhecimento a fazer, por sua vez,
todas as suas formas mas não sem, novamente, justificá-la sob uma crítica de seus p r ó p r i o s pressupostos, e levar assim adiante
um ponto de vista subjetivista: " N a medida em que o termo uma a u t o - r e f l e x ã o interrompida. Nietzsche, pelo c o n t r á r i o , adota
'conhecimento' possua como tal um sentido, o mundo é conhe- este argumento para se assegurar da impossibilidade de toda e
cível: na verdade, porém, ele é passível de várias interpretações, qualquer a u t o - r e f l e x ã o .
ele n ã o guarda por detrás de si um sentido, mas um sem n ú m e r o
Nietzsche partilha a cegueira de uma era positivista face à
de sentidos (diferentes) — 'perspectivismo'. São as nossas ne¬
cessidades, as que interpretam o mundo; nossas p u l s õ e s , o ser- auto-reflexão; ele nega que a memória crítica de uma aparência
contra c o ser-a-favor destes impulsos". 133
Nietzsche conclui dis- autoproduzida mas independizada frente ao sujeito, que a auto-
1
to A que a teoria do conhecimento deva, no futuro, ser substi¬ reflexão cie uma falsa c o n s c i ê n c i a seja conhecimento: "Sabemos
tuída por uma doutrina que realce a perspectiva dos afetos. Na cpte a d e s t r u i ç ã o cie uma i l u s ã o n ã o perfaz ainda uma verdade
verdade, n ã o é difícil constatar que Nietzsche n ã o teria chegado- mas representa tão-somente uma porção a mais de ignorância, r.m
ao perspectivismo, caso não houvesse, desde o início, desacredi¬ alargamento de nosso ' e s p a ç o v a z i o ' , um aumento de nossa ' s o l i -
1 3 0
tado a teoria do conhecimento como uma alternativa i m p o s s í v e l . dão'. N ã o há dúvida de que esta recusa da reflexão cm Nie-
tzsche n ã o resulta, como cm seus c o n t e m p o r â n e o s positivistas, de
Pelo fato de Nietzsche encontrar-se aprisionado de tal ma¬ •um encantamento do investigador a t r a v é s da a p a r ê n c i a objetivis-
neira no positivismo, a ponto de n ã o lhe ser mais possível reco¬ ta da c i ê n c i a , essa que precisa ser p r á t i c a intentione recta. N i e -
nhecer que sua crítica da autocompreensão objetivista da ciência tzsche, c isso o distingue de qualquer outro, denega a força crítica
chegava a constituir uma crítica do conhecimento, ele foi neces¬ da r e f l e x ã o , ú n i c a e exclusivamente, com meios inerentes à própria
sariamente obrigado a entender mal, isto é, entender segundo
rejlexão. Sua crítica da filosofia ocidental, sua crítica da ciência,
critérios naturalistas, o interesse orientador do conhecimento, com
sua c r í t i c a da moral dominante s ã o um atestado i n c o n f u n d í v e l de
o qual se havia deparado.
uma pesquisa do conhecimento a t r a v é s da a u t o - r e f l e x ã o e somen¬
T ã o - s o m e n t e quando interesse e p u l s ã o forem, direta e ime¬ te com base na a u t o - r e f l e x ã o . Nietzsche sabe disso: " N ó s somos,
diatamente, uma e mesma realidade, as condições subjetivas da desde sempre, seres ilógicos e, em c o n s e q ü ê n c i a , injustos e somos
objetividade do conhecimento possível, postas pelo interesse, po¬ capazes de o reconhecer: esta é uma das maiores d i s c r e p â n c i a s da
dem afetar a diferença como tal entre ilusão e conhecimento. existência, impossível de ser removida". 137
Mesmo assim Nie-
M a s , nada há que force uma i n t e r p r e t a ç ã o empirista do interesse tzsche está a tal ponto preso às c o n v i c ç õ e s positivistas b á s i c a s
orientador do conhecimento enquanto a auto-reflexão da ciência, que n ã o pode reconhecer, de maneira s i s t e m á t i c a , a função cog¬
a qual se apossa da base do interesse, n ã o for, por sua vez, mal nitiva da a u t o - r e f l e x ã o , da qual paradoxalmente vive como autor
entendida em termos positivistas, a saber, enquanto for negada de textos filosóficos. A i r ô n i c a c o n t r a d i ç ã o de uma auto-recusa
como crítica, É exatamente a isso que Nietzsche se vê obrigado. da r e f l e x ã o é, na verdade, t ã o tenaz que n ã o pode ser desfeita por
312 CONHECIMENTO E INTERESSE

argumentos mas apenas atenuada por meio de esconjuros. A re¬


flexão que se auto-aniquila n ã o pode contar com o recurso de uma
r e g r e s s ã o complacente; ela necessita da a u t o - s u g e s t ã o para ocultar
a si mesma aquilo que, ininterruptamente, n ã o pode deixar de
exercer, a saber: a crítica:
N O T A S :
"Nós, psicólogos do futuro, n ã o temos boa vontade suficiente para nos
observar a n ó s mesmos: n ó s achamos inclusive que é um sinal de dege-
neração quando um instrumento procura 'conhecer-se a si próprio'", n ó s
somos ferramentas do saber e g o s t a r í a m o s de possuir toda a ingenuida¬ 1) K A N T , I. — Kritik der Urteilskrajt (Crítica do j u í z o ) . Werke, ed
de e toda a p r e c i s ã o de um instrumento; por conseguinte, n ó s n ã o deve¬ Weischedel, v. 5, p. 280 et seqs.
mos analisar a n ó s mesmos, nos 'conhecer'". 138 2) KANT, I. — Grundlegung der Metaphysik der Sitten (Fundamen-
t a ç ã o da m e t a f í s i c a dos costumes). Op. cit., v. 4, p. 42 (nota). Em
o u t r
_ a passagem Kant precisa a distinção entre um interesse
A história da dissolução da teoria do conhecimento em me¬
; empírico e um interesse puro; ibidem., p. 97, (nota).
todologia constitui a p r é - h i s t ó r i a do positivismo mais recente. F o i 3) KANT, I. — Metaphysik der Sitten (Metafísica dos costumes)
Nietzsche quem redigiu o seu ú l t i m o c a p í t u l o . C o m o virtuose de Op, cit., v. 4, p. 317.
uma reflexão que se denega a si mesma, ele ao mesmo tempo 4) IV, p. 101.
elaborou a p e r t e n ç a r e c í p r o c a de conhecimento e interesse e a 5) Ibidem, p. 98.

interpretou mal ao nível e m p í r i c o . Para a mais recente v e r s ã o do 6) Ibidem.


7) Ibidem, p. 99.
positivismo, Nietzsche pareceu haver provado que a a u t o - r e f l e x ã o
8) K A N T , I. — Kritik der Praktischen Vernunjt (Crítica da razão prá-
das ciências não leva senão à psicologização de relações que, en¬ tica). Op. cit., v. 4, p. 249.
quanto lógicas e m e t o d o l ó g i c a s , n ã o devem ser colocadas no 9) Ibidem, p. 250.
mesmo plano com as relações e m p í r i c a s . A " a u t o - r e f l e x ã o " das 10) ibidem, p. 252.
ciências podia, assim, aparecer como um renovado exemplo para 91) K A N T , I. - - Kritik der Reine» Vennmfi (Crítica da razão pura),
o paralogismo naturalista, tão freqüente e tão rico em conseqüên¬ v. 2, p. 677.

cias na h i s t ó r i a da filosofia moderna mais recente. Acreditou-se, 12) K A N T , I. — Kritik der Praktischen Vernunjt (Crítica da razão prá¬
tica), v. 4, p. 251.
assim, que bastava renovar o hiato b á s i c o entre os problemas da
13) FICHTE, J . G . — Ausgew. Werke (Textos Seletos). E d . Medicus,
validade e aqueles da gênese de enunciados c i e n t í f i c o s ; e com isso
v. 3. Zweite Einleilung in die Wissenschaft der Logik (Segunda
se achava estar em condições de poder confiar a teoria do conhe¬
introdução à ciência da lógica), p. 43 et seqs.
cimento à psicologia da pesquisa, inclusive esta que se desenvol¬ 14) FICHTE, J. G . — Erste Einleitung in die Wissenschaft der Logik
vera dc forma imanente a partir da lógica das ciências da natu¬ (Primeira introdução à ciência da lógica) Op cit v 3 n 17
reza e das ciências do espírito. F o i sobre este fundamento, e n t ã o , 15) Ibidem. • , y

que o positivismo mais recente construiu uma metodologia pura, 16) Ibidem.

purificada sem d ú v i d a daqueles problemas que, a rigor, consti¬ 17) K A N T , I. — Kritik der Reinen Vernunjt (Crítica da razão pura),
v. 2, p. 440 ct seqs.
tuem as questões-de-interesse por excelência de uma metodologia
18} Ibidem, p. 450.
científica.
19) FICHTEA J . G . — Erste Einleitung in die Wissenschaft der Logik
(Primeira introdução à ciência da lógica). Op. cit., v. 3, p. n
et seqs.

20) F I C H T E , J . G . — Zweite Einleitung in die Wissenschaft der Logik


(Segunda i n t r o d u ç ã o à cièneia da l ó g i c a ) . Op. cit., v. 3, p. 56.
21) FICHTE, J.G. — Erste Einleitung in die Wissenschaft der Logik
(Primeira introdução à ciência da lógica). Op. cit., v. 3, p. 18.
22) APEL, K. O — "Die Entfaltung der sprachanalytischen Philosophie
und das Problem der Geisteswissenschaften" (O desenvolvimento da
314 CONHECIMENTO E INTERESSE NOTAS 315

filosofia analítica e o problema das c i ê n c i a s do e s p í r i t o ) . In: Pliilos. 36) X V , p. 14f — E S B , v. 22, p. 26.
Jahrbücher (Anais Filosóficos), v. 72, 1965, p. 239 et seqs. 37) X V , p. 8 — ESB, v 22, p. 19.
A P E L , K . O. — "Szientifik, Hermcneutik, Ideologiekritik (Cientismo, 38) Enquanto a censura interdita hoje livros indesejáveis, confisca e
hermenêutica e crítica ideológica). In: Man and World I, 196S, arquiva edições, prevaleceram antigamente outros métodos para
p. 37 et seqs. fazer com que um texto permanecesse inócuo: "Um dos métodos
23) FKEUD, S. — Gesammelte Werke (Obras Completas). V . XIII. era riscar acintosamente as passagens ofensivas, de modo a ficarem
p. 304 (ESB, v. 19, p, 142). Cito de acordo com a edição de ilegíveis; nesse caso elas n ã o podiam ser transcritas, e o copista
1940, surgida em Londres; atualmente em quarta edição, Frank- seguinte do livro produzia um texto inatacável mas com lacunas
furt a. Main 1963. Editada por A. Freud, E. Bilbring, W. Hoffer, em certas passagens e, talvez, ininteligível. Ou isso não era o
E. K r i s e O. Isakower (18 volumes). [Nota do tradutor: ào lado bastante e (em c o n s e q ü ê n c i a ) queria-se t a m b é m ocultar qualquer
da referência ao texto em língua alemã .indicamos também as indicação de que o texto fora mutilado; partia-se, portanto, para
passagens no vernáculo de acordo com Edição STANDARD bra- a d e f o r m a ç ã o do texto. Palavras isoladas eram omitidas ou subs¬
sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (ESB), t i t u í d a s por outras, c novas frases eram interpoladas. Melhor ainda:
Rio de Janeiro, Editora Imago, 1977 (24 volumes)] riscava-se passagens inteiras e se colocava em seu lugar outras
24) D I L T H E Y , \ V . — Ges. Schrijten (Obras Completas), v. 7, p. -261. novas, as quais diziam expressamente o contrário. O transcrilor
25) Ibidem seguinte podia, então, produzir um texto que não despertava sus¬
26) Ibidem peita, mas que estava falsificado; ele não continha mais o que o

27) III, p. 260. autor quisera comunicar e, com toda probabilidade, o texto n ã o

28) FREUD, S. — G. W., v. XV, p. 62 — ESB, v. 22, p. 75. .


fora corrigido em vista da verdade.

29) FREUD, S. — G. W., v. VIII, p. 403 — ESB, v. 13, p. 211.


Caso não se exercite a comparação em termos demasiadamente

30) Cf. F K E U D , S. — Zur Psychopathologie des Alltagslebcns, v. IV (A cauhestros, pode-se dizer que a r e p r e s s ã o e s t á para os outros m é ¬

psicopatologia da vida cotidiana, E S B , v. 6). todos dc defesa como a o m i s s ã o e s t á para a d e f o r m a ç ã o do texto,

31) Para tanto cf. Die Traiimdeutung, G. W ., v. (A interpreta- e nas diferentes maneiras de tal falsificação podemos identificar

ç ã o d o s sonhos, E S B , v. 4 c 5 ) ; Über den Traum, v. II/III, p. 643ff paralelos com a multiplicidade de formas pelas quais o ego é alte¬

(Sobre os sonhos, E S B , v. 5, p. 6 7 1 et seqs.); "Dic Handhaubuiuj rado" ( G . \ V . , v . X V I , p . 8 1 - 2 - - E S B , v . 2 3 , p . 2 6 9 ) .

der 'Iraiimdeutung in der Psychoanalysc", G. \ Y . , v. VIII, p. 349ff 39) II/III, p . 5 7 2 - 3 — E S B , v. 5, p . 6 0 4 .

(O Manejo da i n t e r p r e t a ç ã o dc sonhos na p s i c a n á l i s e , E S B , v. 12, 40) U/ff), p. 603 -- E S B , v. 5, p. 636.


p. 121 ct seqs.); "Metapsychologische Ergànzung zur Traumlehre", 41) X V , p. 29 — E S B , v. 22, p. 42.

G . \ V . v. X , p. 412ff (Suplemento m e t a p s i c o l ó g i c o à teoria dos 42) Cf. sobretudo: FKEUD, S. — "Über die Vilde' Psychoanalyse",

sonhos, E S B , v. 14, p. 253 et seqs). G . W . , v. VIII, p. 118ff ( P s i c a n á l i s e 'silvestre', E S B , v. 1, p. 2 0 7 ) ;


" E r i n n e r n , Wiederholcn und Durcharbeiten", v. X, p. 126ff (Re¬
32) G. W., II/III, p. 655 (ESB, v. 5, p. 6S1). No p r e f á c i o à primeira
cordar, repetir e elaborar, E S B , v. 12, p. 193); "Bemerkuflgcn zur
edição de sua obra revolucionária A interpretação dos sonhos já
Überíragungsliebe", v. X, p. 306ff (Observações sobre o amor
lemos: "Pois a pesquisa p s i c o l ó g i c a mostra que o sonho é o pri¬
transferenciai, E S B , v. 12, p. 208); "Wege der psychoanalytischen
meiro membro de uma classe de f e n ô m e n o s p s í q u i c o s anormais dos
Therapie", v. XII, p. 183ff (Linhas dc processo na terapia psica-
quais outros membros, tais como fobias h i s t é r i c a s , obsessões e
n a l í t i c a , E S B , v. 17, p. 201); "Bemerkungen zu Thcorie und Praxis
delírios, estão fadados, por motivos práticos, a constituir assunto
der Traumdcutung", v. XIII, p. 301 Tf ( O b s e r v a ç õ e s sobre a teoria
de p r e o c u p a ç ã o para os m é d i c o s . Como se verá a seguir, os sonhos
c a p r á t i c a da i n t e r p r e t a ç ã o dc sonhos, E S B , v. 19, p. 1 3 9 ) ; "Kons-
não podem reivindicar importância prática, mas seu valor teórico
truktionen in der Analyse" e "Dic endlichc und die unendliche
como paradigma é, por outro lado, proporcionalmente maior. Quem
Analyse", v. X V I , p. 43ff e 59ff ( C o n s t r u ç õ e s na a n á l i s e e a n á l i s e
quer que tenha falhado em explicar a origem das imagens o n í r i c a i
terminável e interminável, ESB, v. 18, p. 291 e p. 247), respecti¬
quase que n ã o pode esperar compreender as fobias, o b s e s s õ e s ou
vamente.
delírios, ou fazer com que uma influência t e r a p ê u t i c a se faça sentir
sobre elas" ( G . W . , II/III, p. V I I — E S B , v. 4, p. X X X I ) . 43) X I , p. 451 - - - E S B , v. 16, p. 607.
44) V , p. 8 — E S B , v. 7, p. 260.
33) II/III, p. 518 — E S B , v. 5, p. 54S.
45) VIII, p. 123 — E S B , v. 11, p. 211.
34) X V , p. 13ff — E S B , v. 22, p. 25-26.
46) X V I , p. 52ff — E S B , v. 23, p. 300.
35) X V , p. 28ff — E S B , v. 22, p. 40 et seqs. Quanto à primeira con¬
47) XVIII, p. 104 — ESB, v. 23, p. 205.
cepção cf. A interpretação dos sonhos, II/III, p. 479f e 563f —
48) .VIII, p. 374 — E S B , v. 12, p. 143.
E S B , v. 5, p. 508 et seqs. e p. 593 et seqs.
NOTAS 317
CONHECIMENTO E INTERESSE
316
O modelo por e x c e l ê n c i a da internalização é o ato de erigir in¬
49) X , p. 133 — E S B , v. 12, p. 200.
teriormente os objetos paternos já abandonados; este ato de-se-
50) X I I , p. 186 — E S B , v. 17, p. 204.
erigir está ligado à dissolução normal do complexo de Édipo c
51) X I I , p. 188 — E S B , v. 17, p. 190.
"instaura" o superego.
52) I, p. 567 — E S B , v. 19, p. 165.
67) XIII, p. 282 — E S B , v. 19, p. 69.
53) X V I , p. 93-4 — E S B , v. 23, p. 281-2.
68) X V I I I , p. 106ff — E S B , v. 23, p. 207 et seqs.
54) Ibidem, p. 94 — E S B , v. 23, p. 282.
69) X I V , p. 34f — E S B , v. 20, p. 18 et seqs.
55) XVII, p. 127, ESB, v. 23, p. 226.
70) "O que ela deveria ser mais?", X V I I , p. 143 — E S B , v. 23, p. 317
55) Um autocontrole adquirido através de uma análise didática não
71) X V , p. 171 — E S B , v. 22, p. 195.
apenas é necessário para salvaguardar, no decurso da análise, a
72) XVII, p. 142 — ESB, v. 23, p. 316.
superioridade de quem faz parte de i n t e r a ç õ e s , nelas conserva uma
73) XVII, p. 126 — ESB, v. 23, p. 225.
certa d i s t â n c i a e modifica o modelo interacional segundo um plano
74) XVII, p. 108 — ESB, v. 23, p. 210.
• estabelecido. Mais importante ainda é o fato de que o paciente só
75) As t r ê s partes que F r e u d remeteu a W. Fliess em outubro de 1895
se pode elevar, de qualquer modo, até o e s t á g i o da a u t o - r e f l e x ã o
foram publicadas apenas no a p ê n d i c e do volume das Cartas. Aus
onde b médico se confronta com ele. Auto-reflexão não é uma
den Anfàngen der Psychoanalyse (Dos primórdios da psicanálise);
dinâmica solitária mas um movimento comprometido com a in-
cf. JONES, E. — Sigmund Freud; Life and Work. V. 1, London
tersubjetividade de uma comunicação semântica com o outro; a
and N. York 1953, p. 347.
a u t o c o n s c i ê n c i a s ó se constitui, depois de tudo, em base de um
76) C f . Ibidem, p. 416.
reconhecimento mútuo. Quando o médico "permite" que o paci¬
77) U/IU, p. 541 — E S B , v. 5, p. 572.
ente se desprenda da situação transferenciai e o libera como um
78) II/III, p. 542 — E S B , v. 5, p. 573.
E u a u t ô n o m o , os sujeitos devem encarar-se reciprocamente de um
79) 1I/I11, p. 604 — E S B , v. 5, p. 636.
modo tal que o convalescente saiba que a identidade do Eu n ã o
80) Ibidem.
é possível senão pela identidade do outro que o rcconhece-aceita,
81) X I V , p. 4 6 f E S B , v. 20, p. 34.
identidade que, por sua vez, depende de seu p r ó p r i o reconheci-
82) X , p. 136 E S B , v. 1 2 , p . 2 0 2 .
mento.
83) VIII, p. 3S0 — ESB, v. 32, p. 153.
57) Das /c/i und das lis, Cr. \ V . , v. X l l l , p. 235ff (O ego e o id, E S B ,
84) X V I , p . 69 E S B , v. 23, p . 301.
v. 19, p. 23 eí seqs); Ilenimung, Symptom und Angsl, v. X I V ,
85) X V , p. 2 3 E S B , v. 22, p. 35. . ,
p. l l l f f (InibiçOcs, sintomas e ansiedade, E S B , v. 20, p. 107 et seqs);
86) Ou quase-atividacle: a escolha é um substituto para a afetiva ma¬
Neue Folge der Vorlesungen zur Einjührung in die Psychoanalyse,
nipulação das condições essenciais.
v. X V (Novas c o n f e r ê n c i a s introdutórias sobre a psicanálise, ESB,
87) LORENZEIÍ, A. — Der Prozess des Versiehens in der psychoanaly-
v. 22, p. 15 et seqs); Abriss der Psychoanalyse, v. X V I I , p. 63ff
tischen Operation (O processo do compreender na operação psica-
(Esboço dc psicanálise. E S B , v. 23, p. 168 et seqs.).
nalítica — manuscrito).
58) X V , p. 74 -- E S B , v. 22, p. 88 et seqs.
88) A s u p e r a ç ã o entre motivo e causa que A . C . Maolntyre faz em The
59) XVII, p. 84 — ESB, v. 23, p. 187.
inconscious (Londres, 1958) torna essa relação irreconhecível.
60) X I V , p. 14 — E S B , v. 19, p. 299.
89) Cf. DANTO, A. C. — Analytical Phitosophy of History, Cambr .
61) X I V , p. 176 — E S B , v. 20, p. 169.
1961, p. 143.
62) X I V , p. 125 — E S B , v. 20, p. 119-20.
90) Cf. mais acima § 6.
63) XIII, p. 247 — E S B , v. 19, p. 33.
91) X I I , p. 193 — E S B , v. 17, p. 210.
64) Alfred Lorenzer desenvolveu de forma elucidativa este conceito
92) X V I , p. 49f — E S B , v. 23, p. 297-8.
de repressão como d e f o r m a ç ã o da linguagem o r d i n á r i a privativa,
93) XIII, p. 307 — E S B , v. 19, p. 146.
apoiando-se sobre o exemplo da fobia-de-cavalo do pequeno Hans.
94) Cf. A. C. Maclntyre, Op. cit., p. 112.
Cf. L O R E N Z E R , A . — Der Prozess des Versiehens in der psychouna-
95) X V I , p. 49 — E S B , v. 23, p. 296-7.
lytischen Operation, Manuscript (O Processo da compreensão na
96) " E m suma, comportamo-nos segundo o modelo de uma conhecida,
operação psicanalítica, manuscrito).
figura de Nestroy, o criado, que tem nos lábios uma única res-
65) X V , p. 74ff — E S B , v. 22, p. 88-9.
posta para todas as perguntas e objeções: 'Tudo se tornará claro-
66) Partindo do estudo da melancolia, Freud concebe a i n t e r i o r i z a ç ã o uo decorrer dos acontecimentos' ", X V I , p. 52 — E S B v 23 p 300
como o mecanismo pelo qual um objeto-de-amor abandonado é
97) X I , p. 452f — E S B , v. 16, p. 508-9
"novamente erigido no interior"; assim, uma i d e n t i f i c a ç ã o pode afir-
98) Cf. DANTO, A. C : Op. cit., cap.-X, XI, p. 201.
rnar-se t a m b é m l á , onde a catexia do objeto deve ser removida.
318 CONHECIMENTO E INTERESSE
NOTAS 319-

99) X V , p. 194 —— E S B , v. 22, p. 218.


ponde o interesse e m a n c i p a t ó r i o do conhecimento pela r e m o ç ã o
100) XVII, p. 125 — ESB, v. 23, p. 224.
da r e p r e s s ã o e pela d i s s o l u ç ã o da falsa c o n s c i ê n c i a . Ao fazermos
101) X I V , p. 505 —
— E S B , v. 21, p. 169.
uma vinculação dos interesses orientadores do conhecimento às.
102) X I , p. 322 — E S B , v. 16, p. 364-5.
f u n ç õ e s do Ego no quadro do modelo estrutural Ego, Id, Superego,
103) VIII, p. 416 —— E S B , v. 13, p. 222.
precisamos ficar conscientes de que este modelo de Ego, Id, Su-
104) VIII, p. 415 —— E S B , v. 13, p. 221.
perego foi, precisamente, adquirido a partir de experiências pró-
105) X I V , p. 448f — E S B , v. 21, p. 108-9.
prias à r e f l e x ã o e, em c o n s e q ü ê n c i a , se localiza em um plano me-
106) X I V , p. 326f — E S B , v. 21, p. 16.
tateórico. Enquanto isto for claro, uma interpretação em termos,
107) X I V , p. 327 —— Ibidem.
de metapsicologia dos interesses orientadores do conhecimento n ã o
.108) X I V , p. 331 — E S B , v. 21, p. 21.
poderá favorecer uma psicologização apressada do elo existente
109) X I V , p. 353 E S B , v. 21, p. 44.
entre conhecimento e interesse. Por outra parte, com uma tal in¬
110) X I V , p. 333 — E S B , v. 21,'p. 23.
terpretação não se conseguiu avançar muito, eis que uma análise
111) Cf. acima § 3.
mais demorada dos interesses que orientam o pensamento obriga-
112) X I V , p. 369 — E S B , v. 21, p. 57.
nos a abandonar a metapsicologia e, a rigor, o terreno da lógica,
.113) FREUD desenvolveu esta idéia junto ao exemplo da proibição de
da pesquisa, f o r ç a n d o - n o s a voltar à c o n e x ã o objetiva da h i s t ó r i a
n ã o matar; cf. X I V , p. 363f — E S B , v. 21, p. 54 et seqs.
da espécie. Aqui se mostra novamente que a teoria do conheci¬
114) XIV, p. 330 — ESB, v. 21, p. 19; cf. também XV, S. 196Í —
mento s ó pode ser pensada c o n s e q ü e n t e m e n t e como teoria da so¬
E S B , v. 22, p. 218-20.
ciedade.
115) Cf. ADORNO, T. W. — "Weltgeist und Naturgeschichte" (Espírito
118) NIETZSCHE, F. -- Werke in 3 Bànden (Obras em três tomos).
de mundo e história natural). In: Negative Dialeklik (Dialética ne¬
Org. por K. Schlechta, 2.= ed., München, 1960, III, p. 486.
gativa), Frankfurt 1966, p. 293 et seqs.
119) 1. p. 1021.
116) Também a excelente interpretação dc H . Marcuse sobre a teoria
120) III, p. 343.
d a sociedade, i m p l í c i t a n o s escritos dc Freud, n ã o sc evade total-
121) I, p. 1044.
mente d e s t e perigo. ÍVIAKCUSE, 1!. — Bros and Civilhjation: A Vhi-
122) III, p. 862.
losophicil Inquiry inlo Breud, Boston, 1955 (Publicado no Brasil
123) I, p. 217.
por Zahar Editores sob o título Bros c civilização).
124) I, p. 231.
.117) X I V , p. 380 — E S B , v. 21, p. 70-1.
125) I, p. 232.
Freud distinguira entre necessidade e interesse. D i s p o s i ç õ e s da ne-
126) . 1, p. 281.
cessidade são partes constituintes do "Id"; falamos de interesses
127) III, p. 814. (Os fundamentos da hermenêutica filosófica de Gada-
quando m o t i v a ç õ e s estão ligadas a funções do Ego. Formulado de
mer segue ainda, embora n ã o o confesse, esta intenção. Cf. o
forma paradoxal: interesses constituem necessidades do Ego. Par¬
p r e f á c i o à segunda e d i ç ã o de Wahrheit und Methodc (Verdade e-
tindo de tal d i s t i n ç ã o podemos vincular os interesses orientadores
método), Tübingen, 1965.
do conhecimento às funções do Ego. O tesíe-de-realidade repousa
128) NIETZSCUIÍ, F. — Op. cit.. 111, p. 442.
sobre uma operação cognitiva que se desenvolve no círculo fun-
129) III, p. 440.
cional do agir instrumental e da a d a p t a ç ã o inteligente às c o n d i ç õ e s
130) III, p. 526.
externas da vida. A essa aprendizagem operacional das regras de
131) III, p. 440.
conduta, controlada pelo sucesso, corresponde O interesse do co¬
132) III, p. 726.
nhecimento t é c n i c o ; cie visa o aumento daquele poder que d i s p õ e
133) III, p. 903.
sobre processos objetivados. A censura instintual pressupõe, pelo
134) III, p. 560.
contrário, uma realização cognitiva, gerada nos complexos intera-
135) III, p. 499.
cionais por meio da identificação e da interíorização. A esta apren¬
136) III, p. 446.
dizagem moral dos p a p é i s sociais corresponde, por sua vez, o inte¬
137) I, p. 471.
resse do conhecimento prático em vista da consolidação da inter-
subjetividade, própria à compreensão mútua. Por fim, a síntese de 138) III, p. 790f

ld e Superego, portanto, a i n t e g r a ç ã o de p o r ç õ e s inconscientes no


Ego é executada por uma o p e r a ç ã o cognitiva, que surge em co¬
nexões patológicas, inerentes a uma comunicação especificamente
deformada. A tal processo de aprendizagem auto-reflexiva corres-

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