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RESUMO: O presente artigo traz uma análise crítica da instituição do júri através do estudo
cruzado entre Direito e Literatura, tendo como pano de fundo a obra Irmãos Karamazovi, do
autor russo Fiodor Dostoiévski. Começa-se pela introdução do marco teórico adotado, que é
especificado como o estudo do “Direito na Liteatura”. Após, apresenta-se uma breve análise
histórica do instituto do júri e, em seguida, introduzir-se-á o romance em um bosquejo de
definição da personalidade de cada um dos principais personagens, estando em destaque
Dimítri Karamazov, o filho acusado de parricídio, levado ao júri ao qual nos reportaremos.
Ao fim, será trabalhada a decisão a que chegou o corpo de sentença, buscando estabelecer
possíveis relações entre a função social exercida pela mesma.
1. INTRODUÇÃO
1
Acadêmico da 10ª Fase de Direito da UFSC e membro do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura na mesma
instituição.
2
Acadêmico da 4ª Fase de Direito da UFSC e bolsista do Grupo de Pesquisa em Direito e Literatura na mesma
instituição.
Para tal, começaremos por expor em linhas gerais a corrente de estudos
chamada “Direito e Literatura”, subdividindo-a conforme seu objeto de análise.
Em seguida, será apresentada uma breve análise histórica da instituição do júri,
com suas origens mais remotas e a sua chegada ao Brasil.
Após, introduziremos o romance delineando os principais personagens, para
então chegarmos à situação do júri a que é levado Dimítri Karamázov, acusado de parricídio.
No júri trabalharemos a exposição de Dostoiévski do ambiente do mesmo, não
deixando de mencionar a posição social de cada um dos membros do conselho de sentença,
bem como a reação que cada uma das estratégias, seja da defesa, seja da acusação, conseguia
produzir nos presentes ao grande espetáculo nacional em que havia se tornado o caso do pai
assassinado pelo filho.
Apresentaremos em nosso trabalho também o posicionamento de defensores e
críticos da instituição do júri, sendo que para tal trazemos, do primeiro lado, Lenio Streck e,
do outro, Nelson Hungria.
Ao fim, tentaremos delinear a natureza da decisão do corpo de jurados no caso
específico do Karamazov, sem, no entanto, que se caia em falsas ilusões quanto à diferença
entre uma sentença técnica ou popular.
2. O “DIREITO NA LITERATURA”
3
SILVA, Joana Aguiar e. Direito e Literatura: potencial pedagógico de um estudo disciplinar. In: Revista do
CEJ, n. 1. Coimbra: Almedina, 2º semestre/2004.
4
TALAVERA, apud. TRINDADE; GUBERT, op. cit. p. 50.
O estudo do Direito na Literatura, sendo capaz de transportar o leitor a uma
situação estranha à sua, faz com que este reflita a perspectiva de uma sociedade – e, por
conseqüência, da sociedade em que está inserido – sobre a atuação e postura dos profissionais
do Direito e também o entendimento social das normas jurídicas.
Segundo François Ost:
Ainda, acordando com Luis Carlos Cancellier de Olivo, temos que “é possível
melhor compreender a questão da interpretação do Direito através do método comparativo
com outros campos do conhecimento, e em especial a literatura”6.
Partiremos, assim, da perspectiva de que a Literatura pode permitir que o
sistema jurídico seja recontado e (re)interpretado por autores e personagens de diferente
épocas e contextos, por vezes o esclarecendo muito mais eficazmente do que a percepção
direta e cotidiana dos acontecimentos.
Considerando o Direito como uma das mais notáveis formas de controle social e o Direito
Penal como o seu braço mais extremo, torna-se importante analisar cuidadosamente seus aparelhos
de aplicação. Para tanto, torna-se de vital importância o estudo sobre a instituição do tribunal do
júri.
5
OST, François. Contar a lei. Trad. de Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 14-15.
6
OLIVO, Luis Carlos Callier de. O Estudo do Direito através da literatura. Tubarão: Editorial Studium,
2005, p. 20.
É importante observar que, em princípio, o tribunal do júri tem um caráter extraordinário 7,
oportunizando um julgamento dito popular, sob uma perspectiva popular, daqueles crimes que
violam o bem jurídico mais precioso, a vida. Observando o ordenamento jurídico brasileiro, a
instituição do Júri Popular, especialmente pelo viés constitucional, pode-se ter a certeza de que sua
utilização vem como uma garantia ao réu, que será julgado por seus. Todavia, analisando a
atribuição de competências do Tribunal do Júri, disposta no parágrafo 1º, artigo 74, do Código de
Processo Penal (Decreto Lei Nº. 3.689/1941), temos um abarcamento de crimes e condições
específicas, mas com grande intensidade, que nos leva a altercar a ajustamento de tais
competências ao disposto na Constituição.
Ao mesmo tempo, é necessária uma análise dos aspectos históricos, assim como os
fundamentos teóricos, para um melhor exame acerca da legitimidade social e histórica do tribunal
do júri, em concordância com o seu discurso democrático.
Uma análise deve considerar as contradições sociais como ponto fundamental sobre uma
avaliação da imparcialidade real e de um caráter democrático válido deste instituto. É importante
salientar que, em nossos dias, muito maior é o julgamento moral que a sociedade faz sobre o
indivíduo, do que precisamente sobre a conduta praticada, contaminado de uma série de conceitos
pré-concebidos, que são capazes de modificar toda uma visão acerca da reprovabilidade de uma
dada conduta.
Investigando as origens do tribunal do júri, remontamos à Grécia antiga, que, segundo
Lênio Streck8, é possível encontrar os primeiros vestígios no Tribunal dos Heliastas, que re reunia
numa praça pública e era composto por cidadãos, que eram homens livres, traduzindo, desta
maneira, o princípio da justiça popular. Ainda segundo Streck, tal modelo serviu de inspiração para
a instituição do júri inglês. Na sua versão romana, o júri era composto por um pretor, que tomava o
nome de quaesetio, e dos jurados, judices juratio. Estes eram escolhidos entre os senadores,
cavaleiros e tribunos do tesouro.
A Lei Pompéia exigiu que os jurados tivessem condição de renda, aptidão e mais de trinta
anos. O Tribunal funcionava publicamente no Fórum, onde, no dia do julgamento, os
jurados eram sorteados, sendo facultado ao acusador e ao acusado o direito de recusá-los
sem qualquer motivação até esgotar-se a lista.9
7
Reconhece a Constituição Federal, ao Tribunal do Júri, apenas a competência para o julgamento para o
julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em seu artigo 5º, XXXVIII, “d”.
8
STRECK, Lenio L. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993.
9
SCHIMITT, Ricardo Augusto. Princípios Gerais Constitucionais. Salvador: Jus PODIVM, 2007.
É importante lembrar que, na Antiguidade Clássica, a justiça era exclusiva dos cidadãos,
bem como o conceito formal de cidadania daqueles tempos era profundamente ligado à condição
econômica e social do sujeito e mera conseqüência desta. Contudo, tal característica da sociedade
grega e romana antiga não se distância, em essência, do conceito de cidadania que observamos na
prática penal predominante, como já observado criticamente por Juarez Cirino dos Santos:
Seja como for, é no processo de criminalização que a posição social dos sujeitos
criminalizáveis revela sua função determinante do resultado de condenação/absolvição
criminal: a variável decisiva da criminalização secundária é a posição social do autor,
integrada por indivíduos vulneráveis selecionados por estereótipos, preconceitos e outros
mecanismos ideológicos dos agentes de controle social – e não pela gravidade do crime ou
pela extensão social do dano10.
Ao mesmo passo, ressalta Eugenio Raúl Zaffaroni juntamente com José Henrique
Pierangeli:
É indiscutível que em toda sociedade existe uma estrutura de poder e segmentos ou setores
mais próximos – ou hegemônicos – e outros mais alijados – marginalizados – do poder.
Obviamente, esta estrutura tende a sustentar-se através do controle social e de sua parte
punitiva, denominada sistema penal.11
13
Ibidem.
Com o desenrolar da história, sempre baseada entre conflitos latentes entre
Fiodor e seus filhos Karamazovi, o pai é encontrado assinado. Dimítri, o filho boêmio, que de
fato esteve na residência minutos antes. É o principal suspeito.
Este filho, então, é levado a júri popular. Sem maiores suspenses, o Livro que
narra o julgamento tem como título “Um erro Judiciário”.
Neste ponto, principia-se a leitura e crítica, ainda que feita de forma descritiva,
das instituições jurídicas pelo autor. O caso do suposto parricídio logo toma proporções de
notícia nacional: experts em psicologia, criminologia e comportamentos desenvolvem as suas
teses sobre o caso. O acusado é narrado em seu comportamento dito anti-social. Como não
poderia deixar de ser, Dimitri Karamazov é descrito em suas relações interpessoais: sua
atração por “Gruchenka” – a concubina por quem o pai também vertia amores –, seu
alcoolismo infame, a violência de sua relação com o pai e, principalmente, aquilo que é
narrado como uma “suscetibilidade aflorada às paixões”.
Após essa repercussão nacional do caso, um importante advogado de São
Petersburgo manifesta interesse na defesa de Karamazov, ante o pagamento relativamente
baixo de uma senhora apaixonada pelo acusado. O procurador – o acusador público – por sua
vez, que representa a Província onde se deu o relatado assassinato, avoca para si a defesa
daquela sociedade, seus valores e suas famílias, passando a conceber a condenação do
acusado como, não que ele mesmo não estivesse plenamente convencido da culpa, a ocasião
em que haveria de mostrar seu valor, tão desconsiderado, ante à comunidade que o cercava.
Dostoievski se coloca como narrador por entre o numeroso público presente ao
acontecimento. Daí poderá narrar emoções, arroubos e sensações dos que com ele
presenciavam esse espetáculo da justiça.
O júri, principia o autor, compunha-se de quatro funcionários, dois
comerciantes, seis camponeses e pequenos burgueses da cidade. Já no princípio da narração
do procedimento, Dostoiévski destaca o seguinte comentário que podia se ouvir por entre as
mulheres da dita província russa: “Será possível que um caso de psicologia tão complicada
seja submetido à decisão de funcionários e de mujiques? Que é que eles compreenderão
disso?”14.
Com efeito, Dostoiévski assim descreve os integrantes do júri:
Os quatro funcionários que faziam parte do júri eram gente modesta, já grisalha,
exceto um, pouco conhecidos em nossa [como afirmamos, o autor se coloca entre o
povo que ali estava] sociedade, tendo vegetado com mesquinhos ordenados; deviam
14
DOSTOIÉVSKI, Fiodor M. Os Irmãos Karamázovi. São Paulo: Editora Abril, 1971, p. 459.
ser casados com velhas, impossíveis de exibir, e ter uma ninhada de meninos, talvez
descalços; as cartas encantavam-lhes os lazeres e não tinham, bem entendido, jamais
lido coisa alguma. Os dois comerciantes tinham o ar calmo, mas estranhamente
taciturno e imóvel, estando um deles barbeado e trajado à européia, e o outro, de
barba grisalha, trazia no pescoço uma medalha. Nada a dizer dos pequenos
burgueses e camponeses. Os primeiros assemelham-se bastante aos segundos e
trabalham com eles. Dois dentre eles usavam traje europeu, o que os fazia parecerem
mais sujos e mais feios talvez que os outros, tanto que todos perguntavam a si
mesmos, involuntariamente, como o fiz, olhando-os: “Que pode essa gente
compreender mesmo de um tal caso?” Não obstante, seus rostos, rígidos e
carrancudos, mostravam uma expressão imponente15.
15
Ibid. p. 459-460.
16
HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. Volume I. Tomo I. 5ª
edição. RJ: Forense, 1977, p. 57 (nota de rodapé).
17
Ibidem.
que visam a descaracterizar o júri enquanto instituição jurídica, sob argumentos
como a ‘ausência de rigor técnico nos veredictos’.
(...)
Assim, a ciência, valor dominante na sociedade global, funciona como fator
ideológico de legitimação do judiciário togado18.
18
STRECK, Lenio L. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 44.
19
DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 461.
faca de dois gumes”. Em sua sustentação, o consagrado advogado ataca as bases do raciocínio
da acusação, mostrando como a lógica psicológica que se propõe prever determinadas
condutas pode muito bem, caso sejam outros os fatos a serem incluídos no desenvolvimento,
levar a conclusões totalmente opostas, afirma o defensor:
5. A SENTENÇA
Ninguém esperava por isso, todos contavam pelo menos com a indulgência do júri.
O silêncio continuava, como se o auditório estivesse petrificado, tanto os partidários
da condenação como os da absolvição. Mas foram apenas os primeiros minutos, aos
quais sucedeu um terrível tumulto. Entre o público masculino, muitos estavam
encantados. Outros chegavam mesmo a esfregar as mãos, sem dissimular sua alegria
Os descontentes tinham o ar acabrunhado, erguiam os ombros, cochichavam como
se ainda não se dessem conta. Mas as nossas damas, meu Deus! Pensei que elas iam
fazer um motim. A princípio, não quiseram acreditar em seus ouvidos. De repente,
ruidosas exclamações ecoaram: “O que é isso? Por que isso?”. Deixavam seus
lugares. Certamente, imaginavam que se podia, no mesmo instante, mudar aquilo e
recomeçar. 21
20
DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 462.
21
DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 518.
Dostoiévski, como já dissemos, narra o episódio do júri na figura de um dos
espectadores presentes ao público, de modo que não temos conhecimento dos debates
efetuados entre os jurados, entretanto, a penúltima e a última frases deste capítulo parecem
denunciar a natureza da condenação sofrida por Dimitri, são elas:
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7. BIBLIOGRAFIA
22
DOSTOIÉVSKI, op. cit. p. 520.
HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. Volume I.
Tomo I. 5ª edição. RJ: Forense, 1977.
OLIVO, Luis Carlos Callier de. O estudo do direito através da literatura. Tubarão:
Studium, 2005.
SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal parte geral. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2000.
SCHIMITT, Ricardo Augusto. Princípios gerais constitucionais. Salvador: Jus PODIVM,
2007.
SILVA, Joana Aguiar e. Direito e literatura: potencial pedagógico de um estudo disciplinar.
In: Revista do CEJ, n. 1. Coimbra: Almedina, 2º semestre/2004.
STRECK, Lenio L. Tribunal do júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1993.
TRINDADE, André K.; GUBERT, Roberta M., NETO, Alfredo C. Direito e literatura:
Reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.