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Descobrindo

o religioso
no cinema
Pequeno Método
para a Análise
Teológica do Filme
Coordenação Editorial
Irmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria Comercial
Irmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção Essência


Luiz Eugênio Véscio
Roberto Francisco Daniel

Descobrindo
o religioso
no cinema
Pequeno Método
para a Análise
Teológica do Filme
Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 17044-160 - Bauru - SP - Brasil
Fone: (014) 235-7111 - Fax: (014) 235-7219
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Copyright© EDUSC - 1999

D1847d Daniel, Roberto Francisco


Descobrindo o religioso no cinema:
pequeno método para a análise teológica
do filme / Roberto Francisco Daniel. --
Bauru, SP: EDUSC, 1999.
68p.; 21cm. -- (Essência)
ISBN 85-86259-89-6
1. Cinema. 2. Cinema - análise
teológica. I. Título. II. Série.

CDD 791
Para:
Fátima e
Daniel
SUMÁRIO

09 Introdução

13 Cinema: uma arte “trans-realista”

21 Cinema: uma obra aberta

25 O Religioso

31 Quatro níveis de recepção

37 Três dimensões comunicativas do filme

41 Passos para uma análise

47 Um exemplo concreto: o filme “Titanic”

59 Conclusão

61 Bibliografia

63 Filmografia
INTRODUÇÃO
Ao desligar o aspirador de pó, a camareira se di-
rige para o próximo quarto do hotel. Ao bater à porta,
imediatamente a câmera nos transporta para dentro do
quarto onde o grande astro do rock, Pink, se encontra
paralisado diante do único objeto mostrando movi-
mento dentro do quarto: o aparelho de tv. Sem notar a
sua presença, a camareira insiste em entrar, procuran-
do abrir o quarto com uma chave mestra. Apesar de
estar em transe, Pink ouve o barulho da porta, asso-
ciando-o ao caos e à histeria de seus fãs durante os
concertos de rock. A cena é envolvida pela forte músi-
ca do grupo Pink Floyd, enquanto a câmara focaliza
em close a fechadura da porta sendo aberta. Desta for-
ma entramos no mundo alucinado de Pink, onde rea-
lidade e fantasia, alucinação e lucidez, passado e pre-
sente, não possuem mais limites e divisões.
Não somente nesta, mas em muitas outras cenas
do filme de Alan Parker “Pink Floyd – The Wall” en-
contraremos Pink paralisado, passivo, apático diante
do aparelho de televisão. A TV funciona para Pink
como um mecanismo de fuga da realidade. Seus olhos
acompanham simplesmente os movimentos das ima-
gens, sem nenhum raciocínio, sem nenhuma reação.
Assim, tenta Pink fugir das imagens do passado e da
insatisfação do presente.
A possibilidade do efeito narcótico do aparelho
de TV, ou seja, a força e a magia da televisão, do rádio,
do cinema, ou até mesmo da Internet, de nos tirar da
nossa realidade, tornando-se desta forma instrumentos
de alienação, é um fato talvez incontestável. Mas tam-
bém nos parece incontestável o fato dos veículos de
mídia serem, para seu público, portas abertas para a
sua realidade e instrumentos de interação com o mun-
do. O próprio filme “Pink Floyd – The Wall”, que

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leva seu público a uma reflexão sobre várias questões
sociais, inclusive sobre o papel da TV na sociedade, é
um ótimo exemplo de como, no caso, o cinema se tor-
na não um instrumento de fuga para o público, mas
sim um veículo de reflexão e auto-crítica. Este peque-
no livro possui como base exatamente esta concepção,
a qual vê os meios de comunicação como espaços de
encontro com a realidade. Ao mesmo tempo, ele pre-
tende ser um convite ao leitor para conhecer melhor o
fascinante mundo do cinema.
O telespectador de qualquer meio de comunica-
ção de massa não é um ser ou um objeto passivo dian-
te das imagens em movimento oferecidas pela tv, ví-
deo ou cinema. Muito pelo contrário, aqui encontra-
mos uma relação produtiva de interação, por meio da
qual o ser humano é capaz de ampliar seus horizontes,
refletir sobre si mesmo e o mundo. Através das ima-
gens de um filme, o ser humano não inicia uma fuga
do mundo, mas pelo contrário, um encontro com as
várias dimensões da vida. Exatamente por isso, a pro-
dução cinematográfica, o filme, pode se tornar um
momento religioso ou místico.
Este livro possui como objetivo, em uma primei-
ra etapa, esclarecer melhor estas técnicas de como o
filme interage com a nossa realidade, tornando-se,
desta forma, um elemento não somente de comunica-
ção, mas também de transformação. (I – Cinema: uma
arte “trans-realista”). Relacionando-se ativamente com
a obra cinematográfica, o público possui um espaço de
liberdade e de criatividade para refletir sobre o seu co-
tidiano e sua vida (II – Cinema: uma obra aberta), e
desta forma, a partir desta relação comunicativa entre
público e obra cinematográfica, surge o espaço que
definimos nesta obra como “religioso” (III – O Reli-
gioso).
Desejando ir além da teoria, este livro se propõe
ser um guia prático para uma descoberta do religioso

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nas produções cinematográficas. Para isso, procuramos
expor, de forma sucinta, como o público vivencia a
experiência do filme, e como o filme apresenta a sua
mensagem ao público, ou seja, em quais níveis e di-
mensões está estruturada a relação comunicativa entre
filme e público (IV – Quatro níveis de recepção; V –
Três dimensões comunicativas do filme), para depois
apresentarmos um método prático e simples de análise
da obra cinematográfica, com o qual se pode desco-
brir a dimensão mística do filme e fazer a teologia a
partir da realidade cinematográfica (VI – Passos de
uma análise).
Finalmente, aplicamos em um exemplo concreto
o nosso método, apresentando uma teologia, refletida
a partir do filme de James Cameron , “Titanic”, (VII –
Um Exemplo concreto: O filme “Titanic”).
Na verdade, esta obra se propõe ser uma introdu-
ção em duas áreas aparentemente diversas: teologia e
cinema. Mas esperamos que o leitor, ao chegar ao fim
desta pequena empreitada, esteja convencido que elas
estão intimamente ligadas, não sendo, desta forma,
absurdo falar de uma teologia do filme, ou de cinema
como experiência mística.

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CINEMA: UMA ARTE
“TRANS-REALISTA”
Glauber Rocha, um dos maiores cineastas brasi-
leiros, definiu sua última fase como “Trans-Realista”.
Gostaríamos de emprestar de Glauber sua expressão,
para iniciarmos este pequeno trabalho, definindo o ci-
nema, ou seja, a obra cinematográfica, como uma arte
“trans-realista”.1
O cinema, o maior contador de histórias da atua-
lidade, possui como primeira tarefa a exposição, a
apresentação de uma determinada realidade. O públi-
co que vai ao cinema, ou que se propõe a ver um vídeo
em casa, possui o interesse de se entreter, ouvindo e
vendo o desenrolar de uma história. Ao contarmos
uma história, a obra cinematográfica nos oferece a
oportunidade de entrarmos em contato com uma rea-
lidade “nova”, vista através dos olhos da câmera. As-
sim, assistimos, por mais ou menos duas horas, a tra-
gédia do transatlântico Titanic, a violência absurda de
“Pulp Fiction – Tempo de Violência”, a fantástica his-
tória de amor entre uma jovem e um anjo em “Cida-
de dos Anjos”, ou a alegria e o entusiasmo de jovens
descobrindo o sentido da vida, como no caso de “So-
ciedade dos Poetas Mortos”.
Ao expor uma determinada realidade, o cinema
torna-se um instrumento de mediação, um veículo
que leva esta realidade até o público. Assim, ele cum-

1 Cf. Lopes, João, À Passagem das Mitologias –


Entrevista com Glauber Rocha, in: Cinemática Por-
tuguesa (Lisboa – 1.981), 23.

13
pre sua segunda tarefa, ou seja, ser um meio de comu-
nicação entre o seu criador, o cineasta e seu consumi-
dor, o público. Como meio de comunicação, a obra ci-
nematográfica está exatamente como intermediária
entre a intenção de um comunicador e os interesses de
um receptor, os quais entram em comunicação no mo-
mento em que o filme é exibido.
Além de procurar oferecer entretenimento, o ci-
neasta possui e outros objetos ao produzir a sua obra
de arte. Através do filme são veiculadas mensagens,
ideologias, conceitos, visões de mundo, enfim, através
do filme desenvolve-se uma relação comunicativa com
a sociedade.
Mas a comunicação deve ser entendida aqui
como algo que é mais do que simples transmissão de
informações; comunicação, principalmente no caso do
cinema, é relação social, tornando-se mediação de sig-
nificados, emoções, despertando sentimentos e movi-
mentando todo o nosso ser.
Como relação social, a comunicação cinemato-
gráfica é uma relação entre dois pólos ativos. Infeliz-
mente, criou-se a concepção de que o público é uma
simples “massa passiva”, manipulada pelos “tenden-
ciosos” meios de comunicação. A manipulação pode
acontecer, mas a relação entre a obra de um cineasta e
o público é, acima de tudo, uma relação entre dois pó-
los ativos, entre os quais pode haver a aceitação, como
também a rejeição, a identificação ou a total indife-
rença. Através do modelo básico da comunicação cine-
matográfica, apresentado abaixo, podemos visualizar
melhor o processo comunicativo que se desenvolve en-
tre o comunicador e o receptor:
Cineasta/Produção - FILME - Público
(Codificação) (sinal) (Decodificação)
O cineasta é o criador de uma obra de arte. Como
todo artista, o cineasta possui uma determinada in-

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tenção ao fazer sua obra, ou seja, ele deseja transmitir
uma ou várias mensagens a seu público, como tam-
bém lhe propiciar um momento de divertimento. No
momento da criação, o cineasta codifica as mensagens
que deseja transmitir. Na fase de codificação de suas
intenções, o cineasta deve tomar várias decisões, que
influenciarão na transmissão da mensagem através do
filme. Assim, devem ser escolhidos: a história a ser
contada, o estilo e a forma de narração, o gênero do
filme (terror, aventura, comédia, etc.), os diálogos a
serem escritos, as cenas, os cenários, quais cenas serão
feitas com câmeras fixas e quais com câmeras móveis,
etc. Durante esse processo de codificação, tudo, em
certos filmes, é pensado e planejado nos mínimos de-
talhes. A partir do momento em que o filme está
pronto, ele se torna uma forma de sinal, ou seja, uma
espécie de carta a ser lida, um presente a ser desem-
brulhado. Quem deve descobrir seu conteúdo é o pú-
blico. Ao assistir a um filme, o público faz uma deco-
dificação, ou seja, procura entender e decifrar a mensa-
gem contida na obra cinematográfica. Uma decodifi-
cação, o entendimento do filme, possui vários níveis,
dependendo do público, da cultura e do momento his-
tórico no qual este público vive, bem como de quantas
vezes a obra cinematográfica foi vista e apreciada. A
decodificação acontece por vários caminhos, como ve-
remos à frente, e a ela pertencem não somente o racio-
cínio e o senso crítico, mas também a emoção, a sensi-
bilidade, o deixar-se envolver pela obra.
Dentro desta perspectiva, a comunicação cinema-
tográfica ganha três dimensões fundamentais, sem as
quais ela se torna impossível de ser realizada:
1. A experiência de um filme está intimamente
relacionada com o entendimento: a comunica-
ção cinemetográfica é resultado do entendi-
mento, e possui como conseqüência o próprio
entendimento;

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2. Não sendo uma relação pessoal (face-to-face), a
comunicação cinematográfica fundamenta a
relação social, ao se constituir num elemento
medidor desta mesma relação;
3. Finalmente, a comunicação cinematográfica é
um processo de interação: pela experiência do
filme, o ser humano integra-se ao seu meio,
seu mundo e ao universo que o envolve.
Mas, para enterdermos o cinema como uma ex-
periência “trans-realista”, não basta afirmar que o fil-
me é a exposição de uma história e constitui um ver-
dadeiro momento de comunicação. O cinema deve ser
também entendido como uma arte audiovisual. Desta
forma, não queremos afirmar o óbvio, mas deixar claro
que o cinema é muito mais do que uma simples ilus-
tração da literatura ou do teatro. Com o termo audio-
visual, queremos afirmar que o cinema é uma verda-
deira forma de “expressão”. A obra cinematográfica
não é somente uma forma de comunicação, mas tam-
bém uma expressão audiovisual, possuindo um papel
importante que as outras formas de comunicação não
podem cumprir. Sem dúvida alguma, o fundamento
de toda comunicação é a linguagem verbal. Todos os
símbolos e sinais possuem a tendência, no seu interior,
de uma revelação verbal. Quando vemos a imagem de
uma pedra, pensamos imediatamente na palavra “pe-
dra”. A verbalização está no fim de todo processo de
conhecimento. Quando fazemos a decodificação do fil-
me “Titanic”, podemos chegar à conclusão (verbal) de
que o amor é mais forte que a morte. Assim, a lingua-
gem audiovisual se desenvolve para a verbalização.
Mas isso não quer dizer que tudo o que vemos,
ouvimos e sentimos pode ser traduzido para a lingua-
gem verbal. O falar ou o escrever sobre aquilo que ab-
sorvemos da linguagem audiovisual significam exte-
riorizar uma pequena parte do que realmente foi por
nós absorvido. Podemos procurar muitos adjetivos

16
para descrevermos as primeiras seqüências, no campo
de combate, apresentadas no filme “O Resgate do Sol-
dado Ryan”, mas com certeza somente pela experiên-
cia de ver o filme consegue-se compreender o que
realmente estas seqüências transmitem. Muito do que
vemos guardamos de forma latente e inconsciente em
nossa memória e não conseguimos expressar verbal-
mente com a mesma intensidade.2 Aqui está o grande
poder do cinema, o fato dele comunicar através de
imagens vivas e em movimento, as quais são absorvi-
das com prazer e sem esforço pela alma humana.3
Sem dúvida alguma, a imagem do filme é uma
realidade secundária, ou seja, uma representação de
uma primeira realidade. O filme é uma representação
do “real”. Mas, mesmo assim, ele possui a capacidade,
através de suas imagens em movimento, de nos envol-
ver e nos dar a verdadeira impressão do real. Desta
forma, podemos vivenciar um processo de identifica-
ção, ao nos envolvermos com a narração cinematográ-
fica. Steven Spielberg, em seu filme “Amistad”, nos
proporciona um momento com o qual podemos exem-
plificar este processo de identificação entre público e
obra cinematográfica: um escravo negro, o qual foi
violentamente capturado e levado de Sierra Leone para
os Estados Unidos, descobre sua história de sofrimen-
to nas ilustrações de uma Bíblia. Sem ter conhecimen-
to da mensagem bíblica, o escravo começa a entender
a história das ilustrações e a se identificar nas situa-
ções apresentadas pelas imagens. Coisa semelhante

2 Cf. TILLMANS, Frits, “Bild und Interpretation


– Die Theologische Deutung audiovisueller Tex-
te”, in: KUHN, Michel (org.), Hinter dem Augen
ein eigenes Bild – Film und Spiritualität (Zurique
1991, p.64), nas próximas citado como TILL-
MANS, Bild.
3 Cf. PIUS XI, Encíclica “Vigilanti cura”, 1936.

17
pode acontecer com o público de cinema. A obra cine-
matográfica cumpre aqui a função de ser uma espécie
de “espelho” do próprio público. Este pode descobrir,
nas imagens apresentadas, o seu próprio rosto, viven-
ciando um encontro consigo mesmo. Pelo envolvi-
mento com as imagens em movimento e pela identifi-
cação com a história narrada, o público pode descobrir
dimensões de sua própria vida, podendo assim enten-
dê-la melhor e até mesmo transformá-la.
Este mundo da poesia, da representação do real,
da oferta de uma realidade mediada, constitui, para o
público, uma espécie de compensação da realidade vi-
vida, no sentido de oferecer um mundo paralelo, com
o qual o público possa se confrontar sem medo ou re-
ceios. Ao assistir ao filme “Trainspotting”, de Danny
Boyle, o público pode vivenciar uma confrontação
com a situação do viciado em drogas, mantendo o dis-
tanciamento necessário para uma reflexão profunda so-
bre o assunto. Desta forma, a fantasia cria uma nova
realidade; ela oferece um novo mundo, que o público
pode experimentar , utilizando-o como uma espécie
de laboratório, no qual são oferecidas novas alternati-
vas de vida. Estas alternativas são analogias da realida-
de vivida e podem ser finalmente trazidas ao “mundo
real” transformando-o.4
Depois de ter enfrentado uma terrível tormenta e
sobrevivido, Truman navega com seu barco, à deriva,
em alto mar. Exausto e desiludido, ele não encontra
mais forças para comandar seu barco que possui várias
avarias. De repente, o inesperado acontece: Truman é
despertado de seu cansaço por um barulho. A proa de
seu barco colide inacreditavelmente com o céu. Tru-
man levanta-se e dirige-se lentamente para a proa e
toca a parede onde está pintado o céu azul da ilha de
Seahaven. A partir deste momento, todas as suspeitas

4 Cf. TILLMANS, Bild, 84.

18
de Truman são comprovadas. Realmente o seu mundo
era um mundo artificial. Truman caminha lentamente
à beira da imensa parede até achar uma escada que o
leva para uma “Exit”. Ali, o criador e diretor do
“Show de Truman” inicia um diálogo com ele, tentan-
do convencê-lo a ficar em seu mundo, no mundo que
Cristof havia criado para ele desde a sua infância. Mas
Truman não se deixa convencer. Truman passa pela
porta e entra na realidade.
Por intermédio do cinema fazemos um pouco da
experiência de Truman. O cinema é mais ou menos
esta porta de “Exit”, onde vemos, na realidade, aspec-
tos do mundo em que vivemos e, desta forma, pode-
mos “cair no real”. O cinema, portanto, é um veículo
de comunicação que, ao estabelecer uma relação co-
municativa com o seu público, oferece a este a oportu-
nidade de se confrontar, através de uma representação,
com aspectos de sua realidade. Desta forma, pela expe-
riência de um filme, o público pode ser motivado a
transcender sua realidade vivida, criando uma nova.
Assim, a experiência do cinema torna-se “trans-
realista”, indo além da realidade apresentada e vivida,
sendo um elemento que movimenta o ser humano
para a transcendência.
Sem dúvida alguma, o ser “trans-realista” do cine-
ma se realiza quando os aspectos apresentados acima es-
tão presentes. Este processo comunicativo, que se de-
senvolve por intermédio do cinema, é o objetivo de es-
tudo deste pequeno livro. Ao procurarmos fazer a análi-
se de uma obra cinematográfica, estamos procurando
intensificar esta relação “trans-realista” e despertar o
público de cinema para este processo comunicativo. Ao
fazermos a análise de um filme, procuramos participar
de forma consciente deste diálogo com a obra de arte e
acelerar o processo de transcendência de nossa realidade.

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CINEMA:
UMA OBRA ABERTA
As idéias até aqui expostas evidenciam que a
experência de ver um filme instaura, antes de tudo,
uma vivência, uma relação comunicativa, na qual três
pólos participam ativamente: a obra de arte (o filme), o
seu criador (cineastas, produtores, etc.) e o público.
Entre estes três pólos nasce uma forte interação por
meio de uma linguagem específica: a linguagem au-
diovisual. Apesar do filme não possuir nenhuma “gra-
mática” especial, ou de fazermos um curso de semióti-
ca. Crianças, seja no cinema ou em casa, pela TV, vi-
venciam os filmes de forma muito mais intensa do que
os adultos e conseguem absorver mensagens dos mes-
mos. Mas a proposta deste livro é refletir de que forma,
como público, como freqüentadores da arte “cinema”,
podemos nos tornar mais conscientes e ativos nesta re-
lação, de maneira que possamos vivenciar com mais in-
tensidade a experiência do filme e assim compreender
mais profundamente a mensagem ou mensagens conti-
das na obra cinematográfica. Antes de expormos um
método de análise da obra cinematográfica, é necessá-
rio lembrarmos dois princípios básicos que são funda-
mentais para termos, com segurança, a postura correta
durante a análise de um filme:
1) Princípio da freqüência: este princípio nos
lembra a expressão contida no Evangelho de Lucas: “a
quem tem, será dado: mas daquele que não tem, será
tirado...”.5 Somente conseguimos analisar um filme
com segurança se tivermos um contato freqüente com

5 Lc 19,26.

21
esta forma de arte. Somente por meio dela, seja pelo ví-
deo ou no cinema, adquirimos um desenvolvimento da
percepção audiovisual e conseguimos perceber com
mais rapidez nuanças e detalhes que nos ajudam a en-
tender com mais profundidade a realidade que o filme
nos propõe. O princípio da freqüência é valido para to-
das as artes. Quanto maior a freqüência a exposições de
artes plásticas e a pinacotecas, com mais segurança e
rapidez se conseguirá interpretar uma pintura ou com
mais profundidade apreciar uma escultura. Assim, pes-
soas que têm muito contato com filmes conseguem de-
senvolver a capacidade visual, conseguem entender um
filme com mais profundidade e amplitude do que ou-
tras pessoas que não vão assiduamente ao cinema ou
não possuem televisão ou vídeo em casa. Portanto,
quem se interessa em fazer análise da obra cinemato-
gráfica deve ter como hábito assistir a filmes, indepen-
dente do gênero ou da qualidade que eles possam ter.
2) Princípio da liberdade: estamos no início da
história da humanidade. O homo sapiens está por sur-
gir e os primatas são ainda os habitantes do planeta
Terra. Certo dia, um pequeno grupo de primatas, ao
acordar pela manhã, é surpreendido pela presença de
um enorme e maciço bloco retangular de cor negra,
fincado na areia. Ao vê-lo, os primatas entram em al-
voroço; apesar do medo, tentam tocar o estranho obje-
to. Logo após esta aparição, assistimos ao momento no
qual um primata descobre a possibilidade de utilizar
um osso como instrumento de caça, ativando assim,
pela primeira vez, sua razão e sua imaginação. Alguns
milhões de anos depois, exatamente no ano 2001, uma
equipe de astronautas se depara, na lua, com o mesmo
monolito. A descoberta faz com que parte da equipe
continue as investigações e avance em direção a Júpi-
ter. Esta expedição, porém, acaba em catástrofe. O
único sobrevivente da equipe entra em contato com
uma força extraterrestre e vivencia um novo nasci-
mento. Com belíssimas imagens, Stanley Kubrick

22
leva-nos para um passeio fantástico, ultrapassando as
barreiras do tempo, em seu filme “2001: Uma Odis-
séia no Espaço”. Durante esta aventura, o monolito
negro não se torna uma interrogação somente para os
primatas da pré-história e para os astronautas, mas
também para o público do filme de Kubrick. O que
significa este material denso, consistente, de aparência
escura, que está presente tanto nos primórdios da his-
tória da humanidade, como também em seu futuro,
que provoca o surgimento da razão, salto fundamental
para o desenvolvimento da espécie humana, e conduz
o homem que desbrava o universo a um novo nasci-
mento? Com certeza Stanley Kubrick já deu a resposta
em várias entrevistas sobre o que ele idealizou ou pen-
sou ao conceber tal história. Mas, independente da
concepção do cineasta, o filme nos deixa uma relativa
liberdade de interpretação. Esta liberdade nos confere
o direito de racionalizarmos de acordo com as impres-
sões que tivemos durante o filme. Portanto, o monoli-
to negro pode se tornar para nós, por exemplo, a pre-
sença do Absoluto, do ponto fixo na história da hu-
manidade. Este material denso e inalterável pode se
tornar um símbolo do Ser Transcendente, ao qual da-
mos o nome de Deus. O filme mostra, talvez de forma
abstrata, Aquele que sempre esteve, está e sempre es-
tará presente, ou seja, Aquele que é, o Ser que impul-
siona o ser humano para a sua própria transcendência.
Com grande probabilidade, Stanley Kubrick, ao idea-
lizar o seu filme, não havia pensado nesta possibilida-
de. Mas o filme, como toda obra de arte, é uma obra
aberta.6 Desta forma, apesar da obra cinematográfica
ser criação de um cineasta, de um artista e, portanto,
um instrumento de veiculação de idéias no momento
da exibição, ou seja, quando acontece o momento do
contato entre o público e a obra de arte, é estabelecida

6 Cf. ECO, Umberto, Obra Aberta (São Paulo:


Perspectiva, 1991), 89.

23
uma relação comunicativa onde, apesar de relativas, a
abertura e a liberdade prevalecem. Apesar do filme
ter sido criado com objetivos certamente definidos,
apesar de sua objetividade, ao ser exibido, o filme é
introduzido em uma relação livre e aberta com o pú-
blico podendo, desta forma, surgir aspectos nos quais
o cineasta não havia pensado. O público é livre em sua
interpretação, apesar desta liberdade apresentar certas
limitações. Desta forma, tanto o público como a obra
de arte, o filme, tornam-se ativos na relação, modifi-
cando e introduzindo novas perspectivas. Somente
aqueles que seguem estes dois princípios – freqüência
e liberdade –, possuem os requisitos básicos para fazer
a análise mais profunda de um filme.

24
333333333333
O RELIGIOSO
Neste livro, propomo-nos oferecer pistas para a
análise do filme, tendo como objetivo central a des-
coberta do conteúdo religioso ou teológico da obra
cinematográfica. Por estar a produção cinematográ-
fica na situação de abranger, em imagens e movi-
mentos, várias facetas e temas da vida, podemos
afirmar que este meio possui condições de se tornar,
para o público, mais do que entretenimento, passan-
do a ser uma “experiência de vida”. Por ser uma ver-
dadeira relação comunicativa com o mundo, o pro-
cesso que se desenvolve na experiência de assistir a
um filme pode abranger todas as realidades do nosso
cotidiano. Dentre as diversas dimensões da vida ex-
postas na tela, uma que nos parece inevitável, justa-
mente por pertencer à essência do ser humano, é a
dimensão religiosa. Mas esta não só pode ser exposta
na tela, como também pode tornar-se presente na
própria experiência de se emocionar e se envolver
com as imagens em movimento da obra cinemato-
gráfica. Assim, defendemos a tese de que um filme,
independente do seu estilo, realista ou fantástico,
possui sempre um potencial teológico, podendo
tornar-se, para quem o assiste, uma verdadeira expe-
riência mística.7
É necessário esclarecer o termo “religioso”, ou o
que entendemos por “experiência mística”, antes de
expormos um método de análise da obra cinemato-
gráfica.

7 Cf. DANIEL, Roberto F., Cinema: Uma Expe-


riência mística. Bauru, SP: EDUSC, 1998.

25
Todas as manhãs, chega à Central do Brasil (esta-
ção ferroviária do Rio de Janeiro) a professora aposen-
tada Dora. Ali, procura aumentar o seu rendimento
mensal escrevendo cartas para os analfabetos. Diaria-
mente, Dora entra em contato com as saudades, dores,
tragédias e pequenas alegrias de muitos migrantes que
vivem na cidade maravilhosa. No final do dia, a nossa
professora volta para casa com várias cartas escritas e
dinheiro na bolsa. O destino destas cartas acaba sendo
não seus destinatários, mas a lata de lixo. Depois de
retê-las durante algum tempo, Dora, sem escrúpulos,
as joga fora. Sozinha, sem família, Dora é uma mulher
amarga, fria e calculista que, com o passar do tempo,
desaprendeu o que é amizade e amor. A Central do
Brasil não é só lugar de trabalho para Dora, mas tam-
bém “casa” de Josué. Foi ali perto da Central que Jo-
sué viu sua mãe morrer atropelada e, não tendo para
onde ir, acabou se refugiando nos pavilhões da estação.
Deixando o marido e os filhos no Nordeste, sua mãe
veio para o Rio grávida dele. Portanto, desde muito
cedo, o sonho do menino era conhecer o pai. Depois
da morte da mãe, Josué vivencia o drama comum das
crianças de rua das grandes cidades brasileiras. Nesta
vida, Josué perde a confiança nas pessoas e torna-se
agressivo, devido a seu medo diante do mundo.
A Central do Brasil acaba sendo o lugar de en-
contro destes dois destinos, Dora e Josué. Por força
das circunstâncias, Dora acolhe Josué em sua casa.
Pouco depois, enfrentando problemas com a máfia que
controla a estação ferroviária, Dora não tem outra al-
ternativa senão fugir do Rio. Ela resolve levar Josué
para o Nordeste e entregá-lo a seu pai, realizando as-
sim o grande sonho do menino. A partir daí, os dois
iniciam não somente uma viagem pelo interior brasi-
leiro, mas principalmente uma viagem de redescober-
ta de seus sentimentos. Dora reaprende, por meio de
Josué, o que é amar, enquanto Josué recupera a con-
fiança nas pessoas, perdendo assim o medo da vida.

26
Assim nos mostra Walter Salles, em seu filme
“Central do Brasil”, por meio de uma história emocio-
nante, o poder do ser humano transformar-se, desen-
volver-se, enfim, transcender seu estado atual. O ho-
mem não é um ser estático, mas alguém que possui
uma força, quase um instinto, um desejo natural de
realizar-se, de ser feliz. Este desejo leva-o a um desen-
volvimento físico e mental, a tentar superar as barrei-
ras e as dificuldades que a vida lhe impõem, esta força
interior o motiva a transformar a sua realidade quando
esta o escraviza, o reprime, enfim, quando esta o faz
infeliz. Este desejo libertador faz com que o ser huma-
no se aproxime de outros seres humanos e se socialize,
levando-o à comunicação com os outros e com o mun-
do. Este mesmo desejo de viver e ser feliz leva-o a
apaixonar-se e amar. A esta força, a este desejo de vida
que move o homem, denominamos “religioso”. Neste
sentido, o religioso não possui diretamente nenhuma
ligação com uma religião, com um credo oficial. O re-
ligioso é, em primeiro lugar, o impulso natural do ser
humano para a sua realização como pessoa, para seu
autoconhecimento e para a descoberta do sentido da
vida. Ele é a força que nos leva na busca para recupe-
rarmos uma felicidade algum dia perdida (religio – re-
ligere – religare), para irmos ao encontro de nossa ori-
gem, enfim, o religioso nos leva a transcender. Por
isso, o homem é um ser essencialmente religioso, não
no sentido de pertencer a um grupo religioso ou ter
um credo oficial em algo sobrenatural, mas sim no
sentido de que o homem é um ser que vive em cons-
tante transcendência, em desenvolvimento, enfim, em
busca de sua felicidade.
Por meio desta força interior, por meio do religio-
so, o ser humano transcende seu ser biológico, deixa de
ser simplesmente um animal, e somente a partir daí se
torna, na verdade, um ser humano. O religioso é este
movimento que nos humaniza, porque nos faz buscar o
que traz a felicidade a todos. O religioso contempori-

27
za-se na socialização do indivíduo, na objetivação de
experiências subjetivas e na individualização do ser hu-
mano.8 Portanto, o religioso é a base da relação social;
ele nos impulsiona para a socialização, pois sendo o re-
ligioso este anseio de felicidade em nós, ele nos leva de
encontro ao outro, nos leva a buscar e amar o outro.
Assim, a exteriorização do religioso é o que entende-
mos por transcendência, que não significa, em um pri-
meiro momento, passar para um mundo “espiritual”,
mas desenvolver-se nesta realidade em que vivemos, ir
ao encontro dela. Transcendência significa ultrapassar a
barreira do imediato, da evidência, pela experiência de
vida. Dora e Josué vivem um processo de transcendên-
cia, à medida em que ajudam-se mutuamente a irem
ao encontro de seus problemas concretos, seus medos,
ao encontro da realidade de não ser amado e não conse-
guir amar. Assim, os dois vivem uma experiência reli-
giosa à medida que, a partir do encontro com sua reali-
dade, sem fugas, libertam-se de seus medos e buscam
esta transformação. Importante na experiência religio-
sa, e isso podemos perceber bem claro no filme “Cen-
tral do Brasil”, é que o ser humano, sozinho, não pode
concluí-la, totalizá-la, ou seja, o ser humano sozinho
não chega à completa transcendência. Ele sempre pre-
cisa do outro para ser feliz.
O cinema pode contribuir para a transcendência
humana, podendo ser para o homem uma verdadeira
experiência religiosa. Entre outras funções, o cinema
possui uma que é, para a dimensão religiosa no ho-
mem, de importância fundamental. A esta função da-
mos o nome de “espelho”. Isto significa que, ao assis-
tirmos a um filme, fazemos um mergulho no cotidia-
no humano. O filme, seja ele classificado como “profa-
no” ou “religioso”, faz a mediação da dimensão reli-

8 Cf. LUCKMANN, Thomas, Die unsichtbare Reli-


gion (Frankfurt M. 1996), 12.

28
giosa ou mística, não exatamente quando uma figura
bíblica ou da história das religiões é apresentada, mas
sim a partir do momento em que o público possa re-
conhecer no filme o processo de realização, auto co-
nhecimento e auto consciência do ser humano, ou seja,
sua transcendência, como também a relação desta com
o Transcendente, com Deus.
Quando o filme expõe ao público um retrato
franco e verdadeiro do ser humano em seus conflitos,
dúvidas e descobertas, quando ele revela o rosto hu-
mano e oferece ao público a oportunidade deste olhar-
se no espelho, enfim, quando o filme se torna um lu-
gar de encontro com o ser humano, realiza-se o mo-
mento em que o público é integrado na dimensão reli-
giosa, por um processo de identificação, e o fator reli-
gioso passa a interagir com o público. Se um filme
oferece condições para uma experiência religiosa, isso
significa que ali estão presentes elementos de reflexão
teológica, tanto para o filme como para o público.
Esta reflexão pode surgir independentemente da von-
tade dos criadores da obra cinematográfica. Pois,
como foi visto no capítulo anterior, apesar de ter sido
criada com objetivos certamente definidos, a obra ci-
nematográfica, ao ser exibida, é introduzida em uma
relação livre e aberta com o público.

29
4444444444444
QUATRO NÍVEIS
DE RECEPÇÃO
A partir do momento em que se inicia a exibição
de um filme, são ativadas no público quatro atitudes,
pelas quais a mensagem do filme se torna compreensí-
vel. Ao nos referirmos a estes quatro níveis de recepção
do filme, utilizaremos uma expressão típica de Tomás de
Aquino, quando este se refere às paixões humanas: dilec-
tatio.9 Para Tomás de Aquino, dilectatio significa algo
que podemos traduzir como prazer, gozo, satisfação. Es-
tas atitudes não são passivas, mas movimentos ativos
que resultam da ação ou reação do ser humano (dilectatio
est operatio). Assim, podemos identificar quatro dilectatio-
nes durante a experiência de ver um filme: dilectatio sensi-
bilis, dilectatio emotionalis, dilectatio cognitionis e dilectatio
reflexiva. Estas quatro dilectationes representam formas de
viver o momento. No nosso caso, de viver cenas apresen-
tadas em um filme, e constituem a estrutura do fenôme-
no que chamamos de entretenimento. Este é um proces-
so de revitalização do indivíduo, que se inicia com a des-
contração, com o “pôr-se em liberdade”, com o “ficar à
vontade”, enfim, com o relaxamento.
A partir desta postura, o público deixa aparente-
mente os problemas do cotidiano para ser envolvido
nas imagens em movimento do filme, vivenciando as-
sim as quatro fases descritas abaixo:

9 Cf.: HAUSMANNINGER, Thomas, “Grundli-


nien einer Ethik medialer Unterhaltung”, in:
WOLBERT, Werner (Org.), Moral in einer Kultur
der Massenmedien (Wien/Fribourg 1994), 82-86.

31
1. Dilectatio sensibilis: nesta primeira forma de re-
cepção, encontramo-nos no nível sensitivo-
motor. Aqui, através das imagens na tela, são
estimuladas diversas funções do corpo e órgãos
sensoriais. O ser humano possui alegria e pra-
zer com toda a comunicação audiovisual que o
filme oferece, ou seja, com a combinação de
sons e imagens, com a música, com as cores,
com os efeitos especiais. Nesta fase, está acen-
tuado o prazer por intermédio da linguagem e
da técnica cinematográficas. Por meio destas,
são ativados com mais intensidade os olhos e
os ouvidos. A dilectatio sensibilis é praticamente
a “porta de entrada”, o caminho para os outros
níveis de recepção.
2. Dilectatio emotionalis: ao ser ativada a dimensão
sensitivo-motora, ao serem estimulados os ór-
gãos dos sentidos, está praticamente aberto o
caminho para as emoções. Todo filme desperta
no público sentimentos como medo, pavor,
compaixão, mas também alívio, paz ou ale-
gria, e cria por isso o que podemos chamar de
“prazer de sentimentos”. Um dos motivos do
ser humano ir ao cinema é o desejo de viver,
ou reviver, emoções. Mesmo que ele não as en-
contre na experiência de assistir a um filme,
esta segunda fase encontra-se presente, pois
também a indiferença, ou a frustração por ter
assistido a um filme de má qualidade, perten-
cem à dilectatio emotionalis.
3. Dilectatio cognitionis: neste nível de recepção, o
ser humano começa a racionalizar sua expe-
riência. A primeira qualidade do caráter hu-
mano a ser aqui despertada é a curiosidade, o
prazer em descobrir, por exemplo, informações
sobre o enredo do filme. Naturalmente, o pra-
zer torna-se cada vez maior, à medida em que

32
o público vai entendendo a história a ser con-
tada, como também vai se questionando sobre
os vários aspectos ainda não solucionados. Esta
curiosidade não se restringe somente ao enre-
do, mas pode estar relacionada com todas as
dimensões do filme, sua estética, suas seqüên-
cias, as caracterizações dos personagens, como
também a relação dos filmes com outros fil-
mes, ou até mesmo com outras artes. Em um
filme podem-se encontrar o que chamamos de
“citações” de outros filmes, ou seja, estilos (ou
até mesmo cenas) criadas por outros diretores,
no passado, que são refeitas de forma planeja-
da, consciente, e colocadas em um outro con-
texto. No filme “Os Intocáveis”, de Brian De
Palma, encontramos uma homenagem ao dire-
tor russo Sergei Eisenstein, com a refilmagem
da cena da escadaria do filme “Encouraçado
Potemkin”, que tornou-se um marco na histó-
ria do cinema. O filme não é uma obra isolada,
ele está em um contexto de uma história cine-
matográfica. Outras formas de arte também
podem ser reconhecidas no filme, como, por
exemplo, a pintura, no filme de Vicent Ward,
“Amor Além da Vida”, onde o diretor se deixa
inspirar por artistas como Caspar David Frie-
drich, Monet, Van Gogh e Bosch. Nesta fase,
dilectatio cognitionis, o público encontra-se em
um processo realmente dinâmico, onde se tem
o prazer em descobrir os vários mecanismos e
as várias relações existentes na obra cinemato-
gráfica para melhor entendê-la.
4. Dilectatio reflexiva: finalmente, desenvolve-se
aqui uma confrontação consciente entre o pú-
blico, com todo o seu repertório intelectual e
sua história de vida, e a experiência, o conteú-
do oferecido pelo filme. Aqui começa uma re-
lação reflexiva, na qual o público começa a

33
avaliar sua experiência e a obra cinematográfi-
ca. É pela reflexão que o público passa a com-
preender que o filme é uma obra de ficção, to-
mando desta forma a distância necessária para
poder entender o seu conteúdo e sua mensa-
gem, confrontando-os com sua própria vida. É
nesta fase que o público toma consciência de
que ninguém foi realmente morto ou ferido,
que as imagens em movimento, com cores vi-
vas, não são na verdade “vida real”, que a ten-
são é resultado da combinação do enredo com
a técnica cinematográfica (montagem, música,
som, etc.). Mas é também nesta fase que o pú-
blico descobre que muitos aspectos do filme
estão presentes no seu cotidiano ou em sua so-
ciedade. Assim, o público vive conscientemen-
te o que foi exposto nos capítulos anteriores,
ou seja, um encontro com sua realidade por
intermédio do filme. Esta fase exige do públi-
co a postura reflexiva, pela qual surge a abstra-
ção da obra de arte e a confrontação consigo
mesmo e com o seu mundo. A dilectatio reflexi-
va é uma fase independente, mas que possui
relação com todas as outras dilectationes, pois
todas elas podem passar por um processo refle-
xivo, como também a reflexão do público de-
pende de todas as outras fase de recepção. Mas
entre todas elas, a dilectatio reflexiva é a que
possui maior duração, pois é uma fase que está
presente antes, durante, e que continua depois
da experiência de assistir a um filme. Quando
o público decide ver um filme, ele já possui
uma determinada expectativa do que irá en-
contrar, possui alguma informação sobre o
tema a ser tratado, e uma opinião sobre o as-
sunto. Todo este repertório de informações e
impressões é trazido para a experiência do fil-
me, podendo ser reforçado ou transformado

34
durante a sua exibição. A fase reflexiva conti-
nua após a exibição do filme, pois é a partir
deste momento que o público começa a traba-
lhar as diversas impressões, adquiridas pelo
contato com a obra cinematográfica e na troca
de idéias com outros que assistiram ao mesmo
filme. Na dilectatio reflexiva surgem tanto crí-
ticas ao filme, positivas ou negativas, como
também impulsos para a mudança de vida; en-
fim, é nesta fase que o filme começa a intera-
gir na vida do público e cumprir sua função
comunicativa com o mundo.
Tendo em vista estas quatro atitudes ou formas
de recepção diante da obra cinematográfica, pode-se
afirmar que o público, ao vivenciar a experiência de
um filme, não se torna objeto passivo deste último.
Ao contrário: o público é sujeito totalmente ativo da
relação comunicativa, pois desde seus órgãos sensoriais
até seu poder de reflexão, são componentes em plena
atividade antes, durante e depois da exibição do filme.

35
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TRÊS DIMENSÕES
COMUNICATIVAS DO FILME

Auggie promete contar a Paul uma história de


natal com a condição deste pagar-lhe o almoço. Os
dois amigos encontram-se num pequeno restaurante.
Enquanto a refeição é servida, Paul aguarda, ansioso, a
história, que mais tarde irá escrever para ser publicada
no jornal “The New York Times”. Assim, Auggie,
com a alegria de ajudar o amigo sem inspiração, co-
meça a contar a história de como arrumou sua primei-
ra e única máquina fotográfica. Paul ouve com muita
atenção, aparentemente atento a cada palavra do ami-
go. Durante a narração da história de natal, a câmera
focaliza Auggie de forma estática, quase sem movi-
mentos, aproximando-se lentamente de seu rosto, até
fazer um close em seus lábios. Quando a narração che-
ga ao seu final, Paul está emocionado, não somente
com a história, mas também, e principalmente, com a
atitude do amigo. Lentamente, a canção “Innocent
When You Dream” invade a cena e a câmera nos
transporta para uma máquina de escrever, com a qual
é datilografado o título: “Auggie Wren’s Christmas
Story” by Paul Benjamin. Imediatamente a câmera
nos transporta para o verão de 1976, e por meio de
lindas imagens em preto-e-branco, podemos ver a his-
tória que fora contada por Auggie.
Nestas últimas cenas do filme “Cortina de Fuma-
ça” (Smoke), de Wayne Wang e Paul Auster, encon-
tramos duas narrações da “Auggie Wren’s Christmas
Story”, distribuídas em duas seqüências bem diferen-
tes. Na primeira, podemos ver em um pequeno res-
taurante os amigos Paul e Auggie, que resolvem al-

37
moçar juntos. As imagens nos mostram um ambiente
normal de um pequeno restaurante, a refeição à mesa,
a conversa entre os dois amigos, o talento de Auggie
(Harvey Keitel), ao nos prender a atenção e nos emo-
cionar com sua narração, as reações do amigo Paul
(William Hurt), e a profunda estima e amizade que
existe entre os dois. Durante estas imagens, podemos
ouvir o barulho normal de um restaurante ou bar, dos
carros na rua e a história contada na voz de Harvey
Keitel. Na segunda seqüência, não vemos mais os dois
amigos no restaurante, mas podemos ver com nossos
próprios olhos as cenas da história de Auggie; não ou-
vimos mais os sons do pequeno restaurante, mas a co-
movente canção “Innocent When You Dream”. Além
destas diferenças da imagem e do som, as seqüências
se contrastam por intermédio do estilo e do conteúdo
da narração: enquanto a segunda seqüência nos mostra
a história de natal acontecida com Auggie, a primeira
seqüência nos conta mais: apesar da história ocupar
maior parte do tempo, assistimos ao encontro dos dois
amigos e ficamos convencidos da forte amizade que
une Paul e Auggie.
Observando estas duas seqüências, podemos per-
ceber que a linguagem audiovisual possui várias di-
mensões que pertencem à estrutura de sua comunica-
ção. Qualquer um que deseje fazer a análise de um fil-
me, deve tê-las de forma consciente no momento da
exibição, como também saber separá-las depois. Basi-
camente, um filme possui três dimensões, pelas quais
se realiza a comunicação:
1. Dimensão narrativa: um filme constitui-se em
um mundo particular. Neste cosmos estético
do filme desenvolve-se uma determinada his-
tória, vivem determinados personagens, pos-
sui-se uma cultura, vive-se em um certo pla-
neta, etc. A história deste mundo particular
possui um começo, um desenvolvimento e o

38
seu final, mesmo que neste a história continue
com seus problemas não solucionados. O co-
meço e o final do filme são as molduras que
circundam este cosmos estético e que perma-
necem ligadas entre si pela narração. Se o pú-
blico prestar bem atenção, perceberá que o co-
meço de um filme sempre está intimamente
relacionado com seu final: no começo do filme
já podemos perceber a presença de seu final, e
ao chegarmos ao final da história encontrare-
mos citações do seu começo. Isso acontece por-
que um filme sempre possui um tema defini-
do, e com este um problema a ser solucionado.
A partir das primeiras cenas, são expostas al-
gumas linhas do problema e, a partir daí, du-
rante o enredo do filme, seu cosmos estético é
construído. O enredo se desenvolve porque o
problema precisa ser resolvido. Uma estrutura
narrativa típica do cosmos estético de um fil-
me é constituída basicamente dos seguintes
elementos: o tema do filme, o objetivo a ser
alcançado, as interações entre os personagens,
o conflito, o obstáculo e a solução do proble-
ma. O entendimento destes elementos torna-
se fundamental para a análise de um filme,
principalmente na tentativa de encontrar pis-
tas do religioso presentes na história.
2. Dimensão visual: um filme é formado de ima-
gens. Estas surgem a partir da dimensão narra-
tiva e formam a parte física do cosmos estético
do filme. Uma imagem é o que chamamos de
plano ou foco de câmera. Para uma série de fo-
cos damos o nome de seqüência. Quem nos
apresenta este mundo particular do filme é a
câmera, ou seja, é através dela que iremos “es-
pionar” o que acontece neste universo particu-
lar. Por isso, é a câmera que condiciona muitas
de nossas impressões referentes à história e aos

39
seus personagens. Dependendo da posição da
câmera, em relação ao objeto a ser apresenta-
do, dependendo de seu movimento ou aproxi-
mação, obtemos uma determinada impressão
do objeto ou da cena a serem expostos. A ten-
são, em uma seqüência, é criada pela velocida-
de das imagens e pelo som que as acompanha.
Evidentemente, há muitos aspectos a serem
observados na dimensão visual (iluminação,
estilo estético, posição dos personagens em
uma cena, etc.) que fazem com que nossos sen-
timentos despertem e nos proporcionam o
prazer ou o desgosto de olhar.
3. Dimensão auditiva: mesmo na época do “cinema
mudo”, sentia-se necessidade de um determi-
nado som para acompanhar as imagens em mo-
vimento. O som aproxima o universo do filme
de nossa realidade e também ajuda a criar uma
determinada atmosfera. Em um filme, encon-
tramos dois tipos de sons: o som sincronizado
(on – on the screen), ou seja, aquele que acontece
exatamente de acordo com as imagens que es-
tamos vendo, e o som assincronizado (off – off
the screen), aquele que ouvimos independente
das imagens que estamos vendo. Nestes dois
tipos de sons, encontramos três espécies de ma-
nifestações sonoras: ruídos, música e a lingua-
gem. Muitas vezes, esta dimensão auditiva é
marginalizada pelo público, no momento deste
refletir sobre o filme (dilectatio reflexiva), o que
é um grave erro, pois esta dimensão do filme é
fundamental para as duas outras dimensões ex-
postas acima. Por intermédio da dimensão au-
ditiva, nossos sentimentos e emoções (dilectatio
emotionalis) são ativados.

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PASSOS PARA
UMA ANÁLISE
Atentos aos quatro níveis de recepção, às três di-
mensões comunicativas do filme, e conscientes da li-
berdade relativa na análise da obra cinematográfica,
apresentamos os passos de um pequeno método de
análise que qualquer observador poderá colocar em
prática.
Existem vários outros métodos de análise que po-
deríamos adotar, mas os passos expostos neste capítulo
são os mais simples e diretos para uma iniciação na
análise do filme.
Para um observador analisar uma obra cinemato-
gráfica, é necessário que tenha visto o filme pelo me-
nos duas vezes. Quando assistimos ao filme pela pri-
meira vez, envolvemos-nos muito emocionalmente
com o roteiro, com as imagens e com os personagens.
Este relacionamento emocional com a obra cinemato-
gráfica é muito importante para a análise do filme,
mas deve constituir somente a nossa introdução neste
cosmos estético. Ao retornarmos à obra cinematográfi-
ca pela segunda vez, conhecemos já praticamente todo
o roteiro do filme, as nossas emoções já não estão mais
tão suscetíveis e as seqüências não nos oferecem sur-
presas. Desta forma, podemos observar racionalmente
as relações existentes entre as diversas cenas e seqüên-
cias, e também percorrer melhor os passos descritos
abaixo.

41
1º Passo: Uma pequena síntese do roteiro

A primeira fase de nossa análise constitui-se na


procura de elaborar uma pequena síntese do roteiro do
filme, ou seja, em poucas palavras, sem se deter em
detalhes, resumir a história apresentada pelo filme,
procurando, porém, não esquecer os momentos mais
importantes, o que chamamos de “momentos chaves”.
Neste primeiro passo, é interessante saber como a his-
tória começa, em que direção ela se desenvolve e como
ela chega ao seu final. Sem esta visão ampla do roteiro,
é praticamente impossível realizar a análise de um fil-
me. Uma ótima ajuda, nesta fase, é fazer um pequeno
gráfico ou esquema que possibilite visualizar o cami-
nho desenvolvido pelo enredo. Algumas vezes, pode-
remos comprovar, com certa admiração, que o gráfico
será um perfeito círculo, pois a história saiu de um
ponto, desenvolveu-se e voltou ao ponto de origem.
Isso acontece, por exemplo, na análise do filme de
Taylor Hackford, “Advogado do Diabo”. Com esta
síntese do roteiro pronta, podemos realizar com mais
facilidade todos os outros passos de nosso método,
como, por exemplo, o reconhecimento do tema central
do filme.

2º Passo: Caracterização dos personagens

Uma história é composta de personagens. Estes


podem ser seres humanos, seres extraterrestres ou até
mesmo animais, como no caso de “Babe, O Porquinho
Atrapalhado”, de Chris Noonan. Não importando de
que espécie seja, um personagem constitui sempre o
que chamamos de caracterização, ou seja, ele é porta-
dor de caracteres importantes para a história. Um per-
sonagem possui identidade, características físicas, as-
pectos psicológicos, objetivos de vida, projetos a se-
rem realizados e diversas funções dentro do roteiro.

42
Mas, antes de se fazer a caracterização dos perso-
nagens, é importante distinguir quem são os protago-
nistas da história, ou seja, os verdadeiros agentes que
movem o desenvolvimento do roteiro, e quem são os
figurantes, os personagens que simplesmente cum-
prem pequenas funções (a empregada, a vizinha, os
participantes de uma festa, etc.) e que por isso não são
indispensáveis para o roteiro. São os protagonistas que
nos interessam nesta caracterização.
Deles devemos conhecer as características pes-
soais e suas funções no roteiro. Interessante também é
procurar perceber se estes personagens-protagonistas
vivenciam, durante o transcorrer da história, um de-
senvolvimento pessoal. Há personagens que se apre-
sentam com certas características no início do filme, e
em seu final estão totalmente transformados. Além da
caracterização dos personagens e de seu desenvolvi-
mento, é importante saber que tipo de sentimento es-
tes personagens provocam no público (medo, alegria,
segurança, etc.).
Um exercício excelente, nesta fase, é procurar
sintetizar a função de cada personagem principal com
apenas uma palavra: coragem, revolução, eficiência,
ganância, capitalismo, etc..
Por fim, seria também muito interessante rela-
cionar os personagens principais com pessoas ou ele-
mentos presentes em nossa vida.

3º Passo: Tema central do filme

Todo filme possui um tema central. Este está ge-


ralmente relacionado com um problema a ser resolvi-
do. Portanto, a primeira pergunta a ser feita, neste
passo, é qual o problema a ser solucionado na história
apresentada pelo filme. Por que os personagens
atuam, qual a razão do desenvolvimento do roteiro.

43
Com a ajuda da pequena síntese do roteiro, feita
no primeiro passo, e da caracterização dos persona-
gens, pode-se facilmente reconhecer o tema central.
Este tema é exatamente a linha que une os persona-
gens, as seqüências de imagens e as cenas em um úni-
co cosmos estético.

4º Passo: O Gênero

Uma ajuda para a análise do filme é poder classi-


ficá-lo em um determinado gênero. Cada gênero pos-
sui sua iconografia, ou seja, sua estrutura própria. Os
gêneros do cinema mais conhecidos são Aventura, Co-
média, Documentário, Drama, Épico, Erótico, Faroes-
te, Ficção Científica, Guerra, Infantil, Musical, Poli-
cial, Religioso, Romance, Suspense e Terror. Depen-
dendo do gênero que o filme possui, podemos enten-
der melhor seus objetivos e seu cosmos estético.
Mas o gênero é apenas uma pequena ajuda para a
análise, não constituindo algo essencial, podendo até
criar problemas. Há filmes, por exemplo, que podem
ser classificados em mais de um gênero, revelando que
este tipo de classificação é relativo. Outro problema é
quanto ao gênero chamado “religioso”. O gênero, por
exemplo, que mais utiliza símbolos religiosos é o Ter-
ror. Em filmes classificados neste gênero, encontramos
a presença da cruz, da escuridão, da vela, do cemitério,
da igreja, enfim, vários elementos que nos lembram
determinada concepção religiosa, ou que pertencem ao
mundo explicitamente religioso. Mas o religioso, como
definimos neste trabalho, pode ser encontrado em to-
dos os gêneros de filmes, sem nenhuma exceção.
Como já dissemos, não existe o filme religioso
em si, como gênero cinematográfico, mas um filme
pode ser entendido como religioso desde que o públi-
co reconheça nele elementos que pertencem à dimen-

44
são religiosa ou que a ela fazem alusão. Muitos dos
chamados “filmes religiosos” não só não cumprem esta
função, como também acabam, muitas vezes, dificul-
tando o entendimento da dimensão religiosa e seu
processo de desenvolvimento no público, pois a gran-
de maioria deles está nos limites do kitsch. Filmes
como, por exemplo, “O Manto Sagrado”, de Henry
Koster, “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. DeMilles
ou “Jesus de Nazaré”, de Franco Zeffirelli, podem até
tornarem-se obstáculos para a experiência religiosa ou
mística do público.

5º Passo: Cenas mais importantes

Existem cenas que são indispensáveis para o ro-


teiro. Se, por acaso, estas não existissem, o público te-
ria diante de si um filme completamente diferente. A
estas cenas damos o nome de “momentos chaves”, e já
devem aparecer no momento da elaboração da peque-
na síntese do roteiro. É importante saber quando de-
terminado personagem começou a modificar suas ati-
tudes, quando e de que forma foi revelado algo impor-
tante, quando e de que forma um personagem foi
apresentado ao público, a partir de qual cena o roteiro
tomou um novo rumo. Estas cenas importantes geral-
mente conseguem ativar as emoções do público, e são
normalmente elas que contém elementos religiosos,
ou seja, possuem um grande potencial místico.

6º Passo: A Música

A música do filme, a chamada trilha sonora, pode,


como afirmamos, intensificar a mensagem do filme.
Portanto, a música não deve ser marginalizada na análi-
se de uma obra cinematográfica. Interessa saber em
quais momentos podemos perceber a presença e a força

45
da música, que tipos de sentimentos ela provoca no pú-
blico. Geralmente um filme possui também uma “can-
ção tema”. Quando isto ocorre, é importante saber a
mensagem do texto desta canção, pois ela normalmente
sintetiza o conteúdo do filme ou exprime um sentimen-
to básico que está presente nos momentos importantes
do roteiro.

7º Passo: O Religioso

O religioso, como está sendo tratado neste livro,


não possui lugar definido ou limites. Ele pode estar
presente em todos os gêneros cinematográficos, em to-
das as seqüências do filme, na música, na figura de um
personagem, enfim, a presença do religioso depende
muito mais da identificação do público com o filme.
Portanto, este sétimo e último passo de nosso método
constitui um resumo de tudo que fizemos até aqui. A
partir dos dados que temos, queremos enumerar os
elementos presentes no roteiro, nos personagens, na
música, nas cenas e seqüências, enfim, os elementos,
presentes nestes passos percorridos, que podemos defi-
nir como religiosos. Nesta fase podemos refletir que
tipos de motivos encontramos no filme, que fazem
com que o público vivencie um encontro consigo mes-
mo, olhe para seu próprio rosto, seja impulsionado
para um auto-desenvolvimento, para uma transcen-
dência, para uma transformação pessoal e social. Esses
motivos religiosos, que são, na verdade, a base religio-
sa do filme, não significam símbolos explicitamente
religiosos presentes no filme (cruz, igreja, padre, etc.).
Muitas vezes, estes símbolos não nos transmitem ne-
nhum sentimento especial, no contexto em que são
apresentados, e muito menos nos levam a este movi-
mento de transcendência, que é a conseqüência de
toda experiência mística.

46
5555555555555
UM EXEMPLO
CONCRETO:
O FILME “TITANIC”
Depois da exposição dos passos de nosso método,
gostaríamos de aplicá-lo em um caso concreto. Para
isso, escolhemos a superprodução de James Cameron,
“Titanic”, por ser um filme bem conhecido e com
grandes implicações místicas e teológicas. Como ou-
tras possíveis análises de um filme, a que propomos,
embora tenha elementos subjetivos, constitui uma
maneira de exemplificar nosso método analítico. Por-
tanto, não é nossa pretensão esgotar o tema, mas apre-
sentar apenas uma e não a análise do filme de James
Cameron. O leitor poderá, evidentemente, descobrir
outros aspectos do filme que não foram abordados nas
linhas que se seguem.

Titanic: O Conflito entre amor e morte

Filme: Titanic
EUA 1998
Produção: Lightstorm Entertaiment
Produtores: James Cameron, Jon Landau
Direção: James Cameron
Roteiro: James Cameron
Câmera: Rae Sanchini
Música: James Horner
Montagem: Conrad Buff, James Cameron
Elenco: Kate Winslet (Rose DeWitt Bukater),
Leonardo DiCaprio (Jack Dawson), Billy Zane (Cal

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Hockley), Kathy Bates (Molly Brown), Bill Paxton
(Brock Lovett), Bernhard Hill (Captain Smith), Jona-
than Hyde (Bruce Ismay), Vitor Garber (Thomas An-
drews), Gloria Stuart (senhora Rose Dawson), Frances
Fisher (Ruth DeWitt Bukater)
Min: 192

1º Passo: O Navio a caminho da eternidade

O filme tem seu início na atualidade, quando um


grupo tenta resgatar tesouros dos destroços do Titanic,
dentre os quais um lendário diamante azul. Uma se-
nhora, sobrevivente da catástrofe, ajuda a equipe, rela-
tando a história do diamante azul, seu grande amor e
a catástrofe do Titanic. Quando Rose inicia seu relato,
somos transportados para o dia da partida do Titanic,
em Dublin, Irlanda. Durante a viagem, Rose acaba
conhecendo Jack. Deste encontro surge um grande
amor que torna-se praticamente impossível por dois
motivos: os dois jovens pertencem a classes sociais di-
ferentes e Rose está prometida em casamento a Cal
Hockler, herdeiro de uma grande fortuna. Mesmo
com todas as dificuldades e obstáculos, os dois resol-
vem permanecer juntos e começar uma nova vida
quando chegarem aos Estados Unidos. Mas, justamen-
te quando Rose e Jack tomam esta decisão, o transa-
tlântico Titanic, o navio que “nem Deus poderia
afundar”, colide com um iceberg e é condenado à des-
truição. Durante toda a tragédia, Jack esforça-se ao
máximo para manter Rose viva, chegando até a ofere-
cer sua própria vida: Jack morre congelado e Rose é
resgatada viva. Ao chegar nos Estados Unidos, Rose
adota o sobrenome de Jack, passando a chamar-se
Rose Dawson.
Em seguida, retornamos ao presente, ao barco
dos pesquisadores. Rose, que havia guardado durante
toda a sua vida o diamante azul, joga-o ao mar, sem

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que ninguém, da equipe de pesquisadores, saiba. Ao
recolher-se a seus aposentos, Rose adormece (morre?).
De repente, a câmera nos transporta para o fundo do
mar e o Titanic ressurge novamente, com todas as suas
cores, como em sua primeira e única viagem. Na cena
final, Rose encontra novamente Jack no saguão princi-
pal do navio.
“Titanic” utiliza uma forma muito comum de
narração: por meio de uma história privada (o roman-
ce entre Rose e Jack), conta-se a história de um coleti-
vo (a catástrofe do transatlântico Titanic). O filme
possui uma estrutura que não é linear, pois saímos do
presente e fazemos uma viagem ao passado. Revive-
mos toda a história de Jack e Rose, retornamos ao pre-
sente e, alguns minutos mais tarde, deixamos este e
partimos para uma outra dimensão, que chamaremos
“eternidade”.

2º Passo: A Luta por viver

Como foi explicado, para a nossa análise nos inte-


ressa somente os personagens protagonistas da histó-
ria, ou seja, personagens que são fundamentais para o
roteiro, sem os quais não teríamos mais o filme “Tita-
nic” tal como ele foi produzido. Portanto, não entram
aqui personagens como o capitão do navio, o enge-
nheiro construtor ou a camareira de Rose.
Rose: a viagem no Titanic significa, para ela, uma
transformação em sua vida, que se reflete na mudança
de seu nome. No início conhecemos Rose DeWitt Bu-
kater, filha de uma família aristocrata, a caminho dos
Estados Unidos para se casar com um milionário nor-
te-americano. No final, temos Rose Dawson, mulher
jovem, que terá de lutar sozinha por sua sobrevivência
no novo continente. Apesar desta radical transforma-
ção de vida, Rose não vivencia nenhum desenvolvi-

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mento em sua personalidade. Desde o começo, encon-
tramos uma Rose forte, geniosa, inconformada com sua
situação: viver com pessoas fúteis e superficiais e casar-
se com um homem que ela não ama. Jack a ajuda a
criar forças para romper com este mundo, mas a perso-
nalidade de Rose é, durante todo o filme, uma verda-
deira unidade. É exatamente esta personalidade que
torna as duas atrizes, Kate Winslet e Gloria Stuart, tão
semelhantes. Na relação com Jack, Rose é a presença
mais forte e dominadora. Apesar de Jack motivá-la a
realizar seus sonhos e, no momento da tragédia, salvar
sua vida, Rose mostra-se muito mais forte do que Jack.
Enquanto este é apenas um garoto aventureiro, ela é
uma verdadeira mulher.
Jack: é num jogo de cartas que Jack ganha a
oportunidade de viver um grande amor e de morrer
por ele. Jack é um jovem artista plástico, aventureiro,
ama a liberdade, alguém que aparece e desaparece na
história, praticamente sem passado e sem futuro. Na
verdade, Jack incorpora a liberdade que Rose deseja
para si mesma. Também em Jack não encontramos ne-
nhuma transformação em sua personalidade. Jack é
uma espécie de Prometeu que surge para trazer a cria-
tividade, a imaginação e a liberdade para a vida de
Rose e, exatamente por isso, é punido.
Cal Hockley: herdeiro de uma grande fortuna, or-
gulhoso, arrogante, capitalista, Cal é a ambição em
pessoa, alguém que não se permite uma derrota. Ele
representa o mundo que Rose odeia. Mas enquanto
Rose e Jack parecem apenas bons irmãozinhos, Rose e
Cal formam um casal que se aproxima mais da nossa
realidade.
Ruth DeWitt Bukater: fria, amarga, Ruth se asse-
melha a Cal, por entender a vida como um jogo de
aparências e interesses. Ruth simboliza a aristocracia.
Molly Brown: Molly não pertence aos protagonis-

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tas da história, mas possui uma presença tão forte que
é importante citá-la aqui. Livre, descontraída, com
uma personalidade forte e um grande senso de justiça,
torna-se sempre inconveniente por falar o que sente.
Como a personagem mais autêntica da história, Molly
representa, na verdade, a vontade do público em mo-
mentos significativos: diante da hipocrisia do ambien-
te aristocrático ou no momento em que o Titanic
afunda.
O que podemos notar entre os personagens de
“Titanic” é que, de um modo geral, nenhum deles vi-
vencia uma transformação pessoal. Todos possuem
personalidades programadas e estáticas, perdendo des-
ta forma sua naturalidade e seu caráter humano. Os
personagens são, na verdade, caracterizações pobres e
simples que não exigem muito do público.

3º Passo: O Amor é mais forte que a morte

O tema central do filme “Titanic” não é simples-


mente a destruição de um transatlântico que no come-
ço do século colidiu com um iceberg, em sua viagem
inaugural. A viagem do Titanic é o solo onde a histó-
ria se desenvolve, o contexto no qual todos os persona-
gens se movem. Mas o que une os personagens é a his-
tória de amor que se desenvolve no navio – o amor en-
tre Rose e Jack. Este amor está condenado à separação,
devido à tragédia do navio. Portanto, o grande proble-
ma apresentado pelo filme é a chance, a possibilidade
da existência do amor diante da realidade da morte. O
diretor James Cameron nos dá a resposta a este pro-
blema na cena final de “Titanic”, que comentaremos
na última fase desta análise.

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4º Passo: Romance, tragédia e terror

“Titanic” é um ótimo exemplo de um filme que


não é fácil de ser classificado em um determinado gê-
nero. Dirigido por um diretor especialista em Ficção
Científica e Suspense (“Aliens - o Resgate”, “O Exter-
minador do Futuro”, etc.). “Titanic” possui compo-
nentes de diversos gêneros. É uma grande “Love
Story”, podendo por isso ser facilmente classificado no
gênero Romance. Mas Titanic também possui fortes
componentes da tragédia e do Suspense, chegando
quase aos limites do terror. Contudo, o romance entre
Jack e Rose é o elemento presente em todas as seqüên-
cias do filme, base da trilha sonora, construindo a at-
mosfera de “Titanic”.

5º Passo: O Fascinante e o assustador

“Titanic” pode ser exatamente dividido em duas


partes. Uma primeira, formada de cenas maravilhosas,
nas quais podemos ver a grandeza do R.M.S. Titanic,
símbolo da eficiência e inteligência humana, a beleza
da natureza (mar, golfinhos, o por do sol, etc.), cenas
de amor entre Jack e Rose. Na segunda parte são apre-
sentadas cenas da tragédia, nas quais o medo, pânico,
a despedida e a morte dominam. Portanto, “Titanic”
expressa, através de suas cenas, o convívio entre o fas-
cínio e o medo, o amor e a tragédia, enfim, o paralelo
entre vida e morte.
Há várias cenas importantes no filme, que nos
emocionam, nos empolgam, e que deveriam ser des-
critas nesta análise: a partida de Dublin, a tentativa de
suicídio de Rose, a seqüência da noite, na qual Jack
janta com a aristocracia e depois Rose se diverte livre-
mente com a terceira classe do navio, a maravilhosa
cena do encontro entre Rose e Jack na proa do navio,

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ao por do sol, a romântica cena na qual Rose posa de
modelo para o artista Jack, a cena da despedida entre
os dois nas águas geladas do oceano. Também não po-
demos nos esquecer da cena-climax final: a ressurrei-
ção do Titanic e o reencontro entre Rose e Jack.

6º Passo: Every Night in my dreams I see you

A trilha sonora feita, por James Horner, desen-


volve-se como um grande navio em pleno oceano. Ela
possui movimento, em alguns momentos leveza e, em
outros, força total. Podemos sentir sua presença prin-
cipalmente nas seqüências da partida do navio, nas
que mostram o funcionamento do Titanic em alto
mar, como também no momento da tragédia. A músi-
ca de Horner tanto nos leva ao sonho e ao relaxamen-
to, como nos deixa totalmente tensos e assustados, ex-
pressando assim o tema central do filme: o conflito
entre amor e morte.
“Titanic” possui como canção-tema “My Heart
Will Go On”, música de James Horner e letra de Will
Jennings, interpretada por Celine Dion. A canção nos
transmite exatamente a dor da distância, mas, apesar
desta, a persistência do amor em manter a união.

7º Passo: Titanic - Símbolo da vida eterna

Encontramos motivos explicitamente religiosos so-


mente em dois momentos durante todo o filme: quando
um grupo da primeira classe está reunido para uma cele-
bração religiosa, e Jack é barrado e conduzido à força de
volta para a terceira classe, e quando, durante a tragédia,
o navio está afundando. Nesta cena vemos um padre ca-
tólico, ou um pastor evangélico, que recita trechos do
Apocalipse de São João. Mas não são estes motivos reli-

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giosos que estamos procurando. Na verdade, o religioso
não se faz presente nestes dois momentos, e a experiên-
cia mística que “Titanic” nos oferece está presente, de
forma mais profunda, em outras formas.
Ao assistirmos ao filme de James Cameron, po-
demos perceber nele uma base essencialmente teológi-
ca, pois “Titanic” trabalha com elementos como dor,
tragédia, amor, paixão e morte, enfim, elementos que
pertencem a “situações limites”, ou seja, situações que
levam o ser humano a pensar sobre a essência da vida,
relativizando qualquer aspecto que esteja em sua peri-
feria ou superficialidade.
Por ser um navio que navega para a eternidade, Ti-
tanic torna-se um símbolo da própria vida humana, que
surge na existência e nesta navega em direção ao infini-
to. Como o navio, o ser humano nasce e viaja pelo imen-
so oceano da vida, onde vivencia uma diversidade de ex-
periências e situações, até o momento em que colide
com um “iceberg”, deixando aqui seus destroços, para
partir livre em direção à eternidade.
O filme de James Cameron aproxima-se também
da experiência humana, por conter a presença do as-
sustador e do fascinante, elementos que não só fazem
parte de nossa vida, mas que também a põem em mo-
vimento. Em “Titanic” encontram-se, como partes de
um mesmo todo, o impulso de vida, o desejo de felici-
dade, o belo, bem como a realidade da morte, a possi-
bilidade de destruição, o assustador que apavora e
aterroriza. Desta forma, “Titanic” é como nossa pró-
pria existência, uma síntese do facinosum et tremendum,
Eros e Tanatos, vida e morte.
Além de simbolizar a própria vida, Titanic tam-
bém é, no filme de James Cameron, um retrato da so-
ciedade britânica do começo do século XX. No
R.M.S. Titanic encontram-se industriais, desemprega-
dos, pessoas da aristocracia inglesa e irlandesa, assim
como também imigrantes e trabalhadores. E todos

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com o mesmo objetivo: chegar ao continente america-
no. Para a aristocracia, a viagem significava não so-
mente o prazer de navegar no mais moderno, maior e
mais luxuoso transatlântico do mundo, mas também a
possibilidade de novos contatos, investimentos e ne-
gócios no novo continente. Para os trabalhadores e
imigrantes, significava a esperança de recomeçar a
vida, uma chance de sobrevivência. Exatamente como
a sociedade britânica, Titanic apresenta-se rigidamen-
te estratificado em classes sociais. Aqui, upper-class
distingue-se radicalmente de low-class pelo luxo, con-
forto, comportamento, e até mesmo pela língua. Esta
divisão entre primeira e terceira classe marca pratica-
mente quase todas as seqüências do filme: o embarque
dos passageiros no porto de Dublin, a noite em que
Jack janta com os aristocratas apreciando o bom vinho
e o caviar e, na mesma noite, quando Rose dança e di-
verte-se entre os proletários, com muita cerveja, ao
som de música irlandesa.
Esta divisão social permanece presente no momen-
to da tragédia, quando os aristocratas possuem o privilé-
gio de se salvar primeiro, ocupando os primeiros barcos
salva-vidas, como também no momento do resgate,
quando os passageiros chegam a Nova York divididos
exatamente em primeira e terceira classe, como se en-
contravam no Titanic. Apenas Rose vivencia, pelo amor
que sente por Jack, uma queda social: da filha de uma
família aristocrática inglesa, Rose DeWitt Bukater passa
a chamar-se Rose Dawson, passageira da terceira classe.
Sendo um retrato da sociedade inglesa, “Titanic”
torna-se para seu público uma possibilidade de encon-
tro com a realidade social e com o mundo capitalista,
que em sua estrutura básica continua o mesmo, seja na
Inglaterra, Estados Unidos ou em qualquer país do
Terceiro Mundo.
Neste microcosmos do capitalismo, o Titanic, o
improvável acontece: dois jovens, com destinos diver-

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sos e vindos de classes sociais diferentes, se encontram.
Deste encontro surge uma paixão que, durante a via-
gem, mostra-se cada vez mais concreta, até tornar-se
um verdadeiro sentimento de amor que leva Rose e
Jack a irem contra os padrões estabelecidos pela socie-
dade. Sofrendo a oposição social, principalmente por
parte de Cal e da senhora DeWitt Bukater, a viagem
no Titanic torna-se para Rose e Jack uma luta cons-
tante por seu amor, a qual passa a ser, na segunda par-
te do filme, uma verdadeira luta pela sobrevivência.
Rose e Jack demonstram, de forma radical, que o ver-
dadeiro amor é aquele que deseja a vida para a pessoa
amada. Rose perde duas possibilidades de salvar-se,
optando por ficar ao lado de Jack, que procura inten-
samente, durante a tragédia, manter Rose viva, dando
para isso a sua própria vida. Assim, apesar de todo o
esforço de se manterem vivos, Rose e Jack são separa-
dos pela morte. Mas o amor dos dois permanece vivo,
fazendo com que Jack sempre esteja presente no cora-
ção e na memória de Rose, como diz a canção-tema
interpretada por Celine Dion.
É exatamente aqui que “Titanic” faz a sua princi-
pal afirmação: o amor é mais forte do que a morte. O
amor possibilita o impossível e acaba sendo o vitorio-
so, mantendo Rose e Jack unidos. Desta forma, “Tita-
nic” traz uma mensagem que pertence ao núcleo da fé
crista: a verdade da ressurreição. A Boa Nova da Res-
surreição de Jesus Cristo não é outra mensagem a não
ser a de que o amor venceu a morte. “Deus é amor”10 e
este Deus nos oferece um futuro, o seu Reino, apre-
sentado de forma concreta por Jesus Cristo através de
sua ressurreição. Através desta torna-se claro que a
morte não possui a última palavra, mas sim o amor.
“Titanic” expressa esta mensagem não somente
na história de Rose e Jack, como também através da

10 1 Jo 4. 8.

56
imagem, mostrando desta forma, em sua última se-
qüência, um retrato do Reino de Deus: depois de jo-
gar o diamante tão cobiçado ao mar, Rose deita-se em
seu leito. A câmera passeia pelos inúmeros retratos de
Rose, como que nos oferecendo uma curta retrospecti-
va de sua vida e aproxima-se dela que, ao dormir, par-
te silenciosamente para a eternidade. A câmera nos
transporta então para o fundo do mar, onde está o Ti-
tanic. Em seus destroços, vivenciamos uma verdadeira
ressurreição do navio. O Titanic ressurge totalmente
novo. Ao encontrarmo-nos no saguão principal, palco
de encontros importantes entre Rose e Jack, vemos ali
todas as pessoas que morreram no desastre. Assim,
comprovamos que o Titanic não voltou simplesmente
a viver, mas realmente ressuscitou, pois nasceu para
uma nova vida. Todos os passageiros, que pertenciam
à primeira e terceira classes, não estão mais divididos,
mas encontram-se juntos. No novo Titanic não existe
mais divisão de classes.
Todos aplaudem a chegada de Rose, vestida de
noiva, que ao subir as escadas aproxima-se de Jack,
que está a sua espera. Nos Evangelhos, o Reino de
Deus é comparado por Jesus a um grande banquete
nupcial,11 uma grande festa de casamento onde todas
as pessoas são iguais perante Deus, onde não existem
privilégios, discriminações ou diferenças de classe. As-
sim, o navio Titanic não é simplesmente um símbolo
da vida, mas também um símbolo da vida eterna.

11 Cf. Mt 22. 1-14; Lc 14. 16-24

57
CONCLUSÃO
No início das investigações de mortes misterio-
sas em um mosteiro beneditino no norte da Itália, o
jovem Adson pergunta ao Frei William de Baskerville
se aquele mosteiro não seria um lugar abandonado por
Deus. Frei William responde, como de costume, de
forma socrática: “Você pode me dizer um lugar onde
Deus teria se sentido em casa?”
Se fôssemos protagonistas e participássemos desta
cena do filme de Jean Jacques Annaud, “O Nome da
Rosa”, provavelmente não deixaríamos Frei William
sem resposta, como faz o jovem Adson. No transcorrer
da história da humanidade, o Ser Transcendente, a
quem chamamos Deus, manifesta-se como Amor, pos-
suindo assim uma essência puramente comunicativa.
Desta forma, o Deus da Vida sente-se realmente em
casa onde o individualismo, o egoísmo, o isolamento, a
alienação, deixam de existir, para dar lugar à comuni-
cação, ao relacionamento, à integração e à interação.
Como vimos neste pequeno livro, o cinema é es-
paço de experiência de vida, de encontro com o coti-
diano e com a realidade, sendo portanto um instru-
mento de comunicação e interação com o mundo.
Dentro desta perspectiva, o cinema torna-se o lugar de
encontro com o Deus da Vida, passando a constituir
uma verdadeira experiência religiosa e mística e uma
fonte de reflexão teológica. Acreditamos que o leitor
possa aprofundar-se neste mundo religioso do cinema,
pondo em prática o método aqui exposto. A experiên-
cia será mais ou menos profunda, dependendo da fre-
qüência que tivermos com a obra cinematográfica e
com a reflexão teológica que ela pode suscitar. Essa re-
flexão será mais rica se o leitor fizer esta viagem não
sozinho, mas em grupo, formando talvez uma espécie
de “cine-clube”, onde a experiência do filme e a expe-
riência de Deus possam ser partilhadas.

59
Assim, o ato de assistir ao filme, aplicando o mé-
todo apresentado nesta obra, significa estar disposto a
viver uma relação intensa com a existência e transfor-
má-la para melhor, vivendo de forma consciente a nos-
sa transcendência, dando à realidade a possibilidade de
ser dinâmica e nova.

60
BIBLIOGRAFIA
DANIEL, Roberto F. Cinema: Uma Experiência Místi-
ca. Bauru: [s.n.], 1998.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva,
1991.
HAUSMANNINGER, Thomas. Grundlinien einer
Ethik medialer Unterhaltung, In: WOLBERT,
Wener (Org.) Moral in einer Kultur der Massenme-
dien Wien/Fribourg, 1994.
LOPES, João. À Passagem das Mitologias: Entrevista
com Glauber Rocha, In: CINEMÁTICA Portu-
guesa. Lisboa: [s.n.], 1981.
LUCKMANN, Thomas. Die unsichtbare Religion.
Frankfurt: [s.n.], 1996.
PIUS XI, Encíclica, Vigilanti cura. 1936.
TILLMANS, Frits Bild und Interpretation: Die theo-
logische Deutung audiovisueller Texte. KUHN,
Michel (Org.). Hinter dem Augen ein eigenes Bild.
Film und Spiritualitat. Zurüch: [s.n.], 1991.

61
FILMOGRAFIA
Advogado do Diabo (The Devil’s Advocate) EUA;
1997; 140 min; Dir. Taylor Hackford; P.: Keanu Ree-
ves, Al Pacino, Charlize Theron. Por uma oferta mui-
to lucrativa, um jovem advogado acaba trabalhando
em uma firma cujo chefe é o próprio demônio. Uma
interessante e surpreendente forma de narrativa.
Aliens – o Resgate (Aliens) EUA; 1986; 137 min;
Dir. James Cameron; P.: Sigourney Weaver, Carrie
Henn, Michael Biehn. Continuação de “Alien – O
Oitavo passageiro” (1979). A única sobrevivente da
tragédia espacial viaja a um planeta distante, para
combater o monstro que matou seus companheiros na
expedição anterior e continua fazendo vítimas. Vence-
dor de Oscars.
Amistad (Amistad) EUA; 1997; 155 min.; Dir.
Steven Spielberg; P.: Morgan Freeman, Nigel Haw-
thorne, Antony Hopkins. Um grupo de negros, que
foram capturados por comerciantes de escravos, na co-
lônia britânica de Sierra Leone, revolta-se, em 1839,
no navio negreiro e acaba conduzindo-o para as costas
de Connecticut. Ali os escravos rebeldes são conduzi-
dos ao tribunal.
Amor Além da Vida (What Dreams May Come)
EUA; 1998; 106 min.; Dir. Vincent Ward; P.: Robin
Williams, Cuba Gooding Jr.; Annabella Sciorra. De-
pois de morrer em um acidente de automóvel, um
médico encontra-se no paraíso. Ao saber que sua mu-
lher havia cometido suicídio, e por isso encontrava-se
no inferno, resolve ir ao seu encontro e trazê-la para o
céu. Uma interessante reflexão sobre vida-depois-da-
morte, com fantásticas imagens.
Babe, O Porquinho Atrapalhado (Babe) Austr.;
1995; 92 min.; Dir. Chris Noonan; P.: James Crowell,
Magda Szubanski, Zoe Burton. Fazendeiro ganha

63
como prêmio numa feira um porquinho órfão, sem sa-
ber que ele seria motivo de muita alegria. Uma fábula
irresistível, na qual os animais se comunicam e pos-
suem fortes personalidades. Premiado com um Gol-
den Globe e indicado para sete Oscars, dos quais ga-
nhou o de efeitos especiais.
Central do Brasil Brasil; 1997; 99 min.; Dir.:
Walter Salles; P.: Fernanda Montenegro, Marilia
Pêra, Vinícius de Oliveira. Uma professora aposenta-
da, que ganha alguns trocados escrevendo cartas para
analfabetos na estação central do Rio de Janeiro, re-
solve levar um menino que havia perdido a mãe em
um acidente, de volta para o nordeste e entregá-lo a
seu pai. A viagem acaba transformando a vida dos
dois. Uma apresentação quase documentária da reali-
dade dos imigrantes nos grandes centros do Brasil e
uma história sensível sobre o tornar-se mais humano.
Ganhador do Urso de Ouro em Berlim, prêmio da
crítica em San Sebastián e um Golden Globe de me-
lhor filme estrangeiro.
Cidade dos Anjos (City of Angels) EUA.; 1997;
114 min.; Dir.: Brad Silberling; P.: Nicolas Cage, Meg
Ryan, Andre Braugher. Um anjo da guarda, que com-
preende o sentimento humano, apaixona-se por uma
médica e sacrifica sua imortalidade para poder sentir,
tocar e amar como ser humano. Nova interpretação do
filme “Asas do Desejo” (1987), do alemão Wim Wen-
ders. Uma ótima reflexão sobre vida, amor e morte.
Cortina de Fumaça (Smoke) EUA; 1994; 108
min.; Dir.: Wayne Wang e Paul Auster; P.: William
Hurt, Harvey Keitel, Stockard Channing. Dono de ta-
bacaria no Brooklyn catalisa várias histórias sobre
amizade, reencontro, buscas e solidariedade. Premiado
com o Urso de Ouro em Berlim.
Os Dez Mandamentos (The Ten Commandments)
EUA; 1957; 229 min.; Dir.: Cecil B. DeMille; P.:

64
Charlton Heston, Yul Brynner, Anne Baxter. A traje-
tória de Moisés: seu nascimento, suas peregrinações e
visões, o recebimento dos Dez Mandamentos e o esfor-
ço para levar seu povo à terra prometida. Oscar de
efeitos especiais.
2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: Space Odys-
sey) EUA; 1965/68; 139 min.; Dir.: Stanley Kubrick;
P.: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester.
Um misterioso monolito negro interfere no destino da
Terra, desde o tempo das cavernas e, no futuro, leva os
homens a viver sua mais fascinante aventura no espa-
ço. Ganhador de um Oscar.
Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potymkin)
URSS; 1925; 65 min.; Dir.: Sergei M. Eisenstein; P.:
A. Antonov, V. Basky, Grigori Alexandrov. Em 1925,
marinheiros de um encouraçado soviético revoltam-se
quando lhes é servida carne podre. Obra encomendada
a S. M. Eisenstein para comemorar os 20 anos da re-
volta de I905. A seqüência da escadaria de Odessa, na
qual populares são massacrados por tropas do governo,
possui uma técnica exemplar, mantendo o público em
constante expectativa. Mudo e em preto e branco.
Os Intocáveis (The Untouchables) EUA; 1987;
119 min.; Dir.: Brian De Palma; P.: Kevin Costner,
Sean Connery, Robert de Niro. Durante a vigência da
Lei Seca em Chicago, agente federal cerca-se de poli-
ciais incorruptíveis para enfrentar Al Capone, o
gângster que fazia da cidade seu quintal particular.
Oscar de melhor coadjuvante para Connery.
O Exterminador do Futuro (The Terminator) EUA;
1984; 105 min.; Dir.: James Cameron; P.: Arnold
Schwartzenegger, Michael Biehn, Linda Hamilton. An-
dróide vem do futuro matar mulher, cujo filho será um
revolucionário, e enfrenta um homem, também do fu-
turo, enviado para protegê-la. Teve continuação em
1991.

65
Jesus de Nazaré (Gesu Di Nazareth) Ingl./Itália;
1976; 279 min.; Dir.: Franco Zeffirrelli; P.: Robert
Powell, Anne Bancroft,Ernest Borgnine. A vida de Je-
sus Cristo: da manjedoura à ressurreição. Superprodu-
ção feita para TV.
O Manto Sagrado (The Robe) EUA; 1953; 135
min.; Dir.: Henry Koster, P.: Richard Burton, Victor
Mature, Jean Simmons. O destino do manto de Jesus
Cristo após a crucificação deste.
O Nome da Rosa (The Name of the Rose)
Ita./Ale./Fra.; 1986; 130 min.; Dir.: Jean-Jacques An-
naud; P.: Sean Connery, Christian Slater, Valentina
Vargas. Na Itália medieval, monge franciscano é cha-
mado para solucionar crimes inexplicáveis que abalam
uma abadia. Ele cai nas malhas de uma trama diabóli-
ca e presencia novos crimes que conduzem a um desfe-
cho surpreendente.
Pink Floyd - The Wall (Pink Floyd - The Wall)
lngl.; 1982; 95 min.; Dir.: Alan Parker; P.: Bob Gel-
dof, Bob Hoskins. Superstar do rock revive seu passa-
do através de delírios em quarto de hotel em Los An-
geles. Cenas de animação.
Pulp Fiction - Tempo de Violência (Pulp Fiction)
EUA;1994;154 min.; Dir.: Quentin Tarantino; P.:
John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman.
Uma história que se desenvolve em três partes não
cronológicas, envolvendo um rei do crime, sua mu-
lher, seus capangas, seu boxeador e outros marginais.
Oscar de melhor roteiro original e Palma de Ouro em
Cannes 1994.
Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan)
EUA; 1998; 168 min.; Dir.: Steven Spielberg; P.:
Tom Hanks, Edward Burns, Matt Damon. Depois de
desembarcarem na Normandia, oito soldados norte-
americanos recebem uma missão: resgatar um soldado
e fazê-lo retornar são e salvo para casa, pois sua mãe

66
viúva já havia perdido na guerra três dos quatro filhos.
Com cenas jamais vistas no cinema, Spielberg impres-
siona com o realismo, levando o público a sentir-se em
um campo de combate.
O Show de Truman (The Truman Show) EUA;
1998; 103 min.; Dir.: Peter Weir; P.: Jim Carrey, Lau-
ra Linney, Noah Emmerich. A vida de um cobrador de
seguros, Truman Burbank, transmitida para todo o
mundo sem que ele saiba, desde trinta anos, em um
programa de TV. Uma sátira muito inteligente e uma
crítica dura à manipulação da mídia, ao conformismo
e à comercialização.
Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society)
EUA; 1989; 129 min.; Dir.: Peter Weir, P.: Robin
Williams, Robert Sean Leonard, Ethan Hawke. Jovem
professor de literatura revoluciona os métodos de ensi-
no de um colégio tradicional americano, incentivando
seus alunos a buscarem o sentido de suas vidas. Oscar
de melhor roteiro original.
Titanic (Titanic) EUA; 1998; 192 min.; Dir.: Ja-
mes Cameron; P.: Kate Winslet, Leonardo DiCaprio,
Billy Zane. A história da tragédia do R.M.S Titanic,
contada através de uma apaixonante Love Story entre
Rose e Jack. Uma superprodução ganhadora de 11
Oscars.
Trainspotting – Sem Limites (Trainspotting) Ingl.;
1996; 90 min.; Dir.: Danny Boyle; P.: Ewan MacGre-
gor, Ewen Brenner, Jonny Lee. A vida de um grupo de
amigos na Escócia que se envolvem com drogas num
caminho sem volta. Virou cult internacional, por ser
um retrato espirituoso de toda uma geração, com direi-
to inclusive a uma trilha sonora pop de primeira linha.

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SOBRE O LIVRO

Formato: 12 x 21 cm
Mancha: 19 x 40 paicas
Tipologia: Garamond 3 11.5 / AvanGarde 18

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Coordenadora Executiva
Luzia Bianchi

Revisão
Carlos Valero

Criação da capa
Olício Pelosi

Projeto Gráfico
Cássia Leticia Carrara Domiciano

Catalogação
Valéria Maria Campaneri

Diagramação
Carlos Fendel

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