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VIOLÊNCIA E GÊNERO

Novas propostas, velhos dilemas*

Guita Grin Debert


Maria Filomena Gregori

Este artigo tem como propósito situar alguns vidos na distribuição de justiça e na consolidação
deslocamentos semânticos nos usos da noção de dos direitos de cidadania na sociedade brasileira
violência contra mulher, desde o início dos anos contemporânea. De outro lado, a partir do exame
de 1980 no Brasil. Discussão intrincada pelas suas desses deslocamentos é possível empreender uma
variadas vozes, vale enfrentá-la para a compre- reflexão sobre os efeitos e os limites das articu-
ensão, de um lado, de alguns problemas envol- lações analíticas entre crime, violência e relações
marcadas pelas diferenças de gênero.
* Esta reflexão foi elaborada em meio a um esforço O ponto de partida dessa discussão é a apos-
conjunto de discussão da pesquisa “Gênero e cida- ta política que os movimentos sociais têm feito na
dania: tolerância e distribuição de justiça”, coorde- revisão jurídica e nas instituições do sistema de
nada por Guita Grin Debert, Maria Filomena Gre- justiça criminal como modo privilegiado de com-
gori e Adriana Piscitelli no Núcleo de Estudos de
bate à violência. Essa aposta dá um caráter espe-
Gênero da Unicamp – Pagu, com financiamento da
Fundação Ford, de 2000 a 2006. Entre 2002 e 2004, cífico ao que tem sido chamado de judicialização
analisamos o atendimento das Delegacias de Defesa das relações sociais. Tal expressão busca contem-
da Mulher no Estado de São Paulo e na cidade de plar a crescente invasão do direito na organização
Salvador; entre 2005 e 2006, realizamos a pesquisa da vida social. Nas sociedades ocidentais contem-
com foco no atendimento dos Juizados Especiais porâneas, essa espécie de capilarização do direito
Criminais em São Paulo.
não se limita à esfera propriamente política, mas
Artigo recebido em agosto/2007 tem alcançado a regulação da sociabilidade e das
Aprovado em dezembro/2007 práticas sociais em esferas tidas, tradicionalmente,

RBCS Vol. 23 nº. 66 fevereiro/2008


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como de natureza estritamente privada, como são Da mesma forma, o significado de violência
os casos das relações de gênero e o tratamento – que atribui o sentido de danos, abusos e lesões
dado às crianças pelos pais ou aos pais pelos fi- a determinadas ações – é constituído historica-
lhos adultos. mente e depende do poder de voz daqueles que
Alguns analistas consideram que essa expan- participam do jogo democrático. É, portanto, de
são do direito e de suas instituições ameaça a ci- importância fundamental empreender distinções
dadania e dissolve a cultura cívica, na medida em entre os significados de processos de violência e
que tende a substituir o ideal de uma democracia daqueles processos que criminalizam os abusos.
de cidadãos ativos por um ordenamento de juris- Longe de construir verdades ou normativida-
tas que, arrogando-se a condição de depositários des, nosso objetivo nesse artigo é entender as di-
da idéia do justo, acabam por usurpar a soberania nâmicas de negociação no âmbito da justiça, bem
popular.1 As delegacias especiais de polícia volta- como seus limites para atender à complexidade
das para a defesa de minorias são, no entanto, fru- que reveste as relações de violência, o que tem a
to de reivindicações de movimentos sociais e, por ver com as dessimetrias de poder relativas a gêne-
isso, podem ser vistas como exemplo que contesta ro e está implicado nas idiossincrasias que marcam
tal argumentação. Elas indicam antes um avanço os contextos contemporâneos. Sem a pretensão de
da agenda igualitária, porque expressam uma in- esgotar ou fechar questões, é preciso reconhecer
tervenção da esfera política capaz de traduzir em que as dinâmicas dessimétricas das relações de gê-
direitos os interesses de grupos sujeitos ao estatuto nero têm pontos de encontro e semelhança com
da dependência pessoal. outras dessimetrias relacionadas com a produção
A história dos movimentos feministas no Bra- de diferenças tornadas desigualdades. Gênero não
sil foi assim marcada por conquistas significativas é uma dimensão encapsulada, nem pode ser vista
no que diz respeito a seus objetivos legais. Con- como tal, mas ela se intersecciona com outras di-
tudo, o que fica evidente nos debates em torno mensões recortadas por relações de poder, como
das delegacias de defesa da mulher e mais recen- classe, raça e idade.
temente em torno da Lei “Maria da Penha”2 é o Sabemos que a cidadania no Brasil sofre in-
encapsulamento da violência pela criminalidade e tricado paradoxo: nossa Carta Constitucional é
o risco concomitante de transformar a defesa das uma das mais avançadas do mundo – integrando
mulheres na defesa da família. temas, segmentos sociais e direitos segundo con-
Foucault já ensinou que não é possível en- cepção inegavelmente progressista –, um conjun-
tender a dinâmica das relações de poder apenas to de instituições governamentais, organismos da
pela instância do jurídico. Isso não significa dizer sociedade civil e movimentos sociais atuantes e,
que o universo jurídico não seja perpassado por no entanto, vivemos em meio a uma persistente
poder e interesses, mesmo com sua pretensão de desigualdade social no acesso a justiça. Segundo
neutralidade. Ainda que devamos reconhecer que definições correntes, o Estado não é puramente
o jurídico é um campo de disputas, no qual o sis- o aparelho de estado (setor e burocracias públi-
tema de direitos é constantemente atualizado, ele cas), mas também e, sobretudo, um conjunto de
se organiza institucionalmente com base em crité- relações sociais que apresenta uma ordem sobre
rios que, ao buscar uma justiça para todos, tende a um determinado território. “Tal ordem não é igua-
apagar a dinâmica política que o constitui. litária ou socialmente imparcial; tanto no capitalis-
A luta pela expansão do acesso à justiça im- mo como no socialismo burocrático ela sustenta,
plica, pois, negociações. E negociações entre ato- e ajuda a reproduzir, relações de poder sistemati-
res sociais que não têm o mesmo poder na disputa camente assimétricas” (O’Donnell, 1993, p. 125).
que formata as regras do jurídico, sendo próprio O sistema legal é uma dimensão que constitui tal
do jogo democrático a emergência de novos atores ordem e garante que as relações sociais, mesmo
empenhados na formulação de demandas. Essa di- implicadas em tramas assimétricas, sigam um cur-
nâmica, na expressão de Habermas (1994, p. 134), so de aquiescência e compromissos mútuos. Não
tem que ser vista de modo crescentemente “con- há efetividade e garantias no sentido estrito e for-
texto-sensitivas” para que o sistema de direitos mal do conteúdo da lei e de sua aplicação. Como
possa ser atualizado democraticamente. afirma O’Donnell,
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[...] a cidadania não se esgota nos limites do po- em cada uma dessas instâncias é combinar a ética
lítico (estritamente definidos, como faz a maior policial com a defesa dos interesses das minorias
parte da literatura contemporânea). A cidadania atendidas. Esse desafio cria arenas de conflitos éti-
está em jogo, por exemplo, quando, depois de
cos, dando uma dinâmica específica ao cotidiano
ingressar numa relação contratual, uma parte que
pensa ter uma reclamação legítima pode ou não das delegacias, exigindo de seus agentes uma mo-
apelar a um órgão público legalmente competen- numental dose de criatividade.
te, do qual pode esperar tratamento justo, para
que intervenha e julgue a questão (Idem, p. 127).
A violência contra a mulher e
O quadro brasileiro tem sido considerado as instituições políticas e judiciárias
paradoxal, porque mistura características demo-
cráticas e autoritárias: os direitos políticos são res- Sem a pretensão de fornecer explicações
peitados, porém, “os camponeses, os favelados, os ordenadas, nosso propósito é o de levantar pro-
índios, as mulheres etc. não conseguem normal- blemas, questões e dilemas a partir da nossa ex-
mente receber tratamento justo nos tribunais, ou periência de pesquisa e acompanhamento dos
obter dos órgãos do Estado serviços aos quais têm debates. Qual seria o melhor modo de qualificar
direito, ou estar a salvo da violência policial – e essas relações? Quais os desafios envolvidos no
mais um extenso etc.” (Idem, p. 134).3 Mistura essa intercâmbio de expressões como violência contra
que tende a ser vista como resultante de uma es- a mulher (noção criada pelo movimento feminis-
pécie de truncamento do exercício pleno da cida- ta a partir da década de 1960), violência conjugal
dania, que é qualificado com expressões como “ci- (outra noção que especifica a violência contra a
dadania contraditória” (Santos, 1999) ou “cidadania mulher no contexto das relações de conjugalida-
regulada” (Santos, 1979). Sem negar a especificida- de), violência doméstica (incluindo manifestações
de brasileira, devemos, no entanto, reconhecer que de violência entre outros membros ou posições no
é difícil hoje encontrar uma sociedade democrática núcleo doméstico – e que passou a estar em evi-
que não seja palco de polêmicas sobre como as dência nos anos de 1990), violência familiar (no-
instituições públicas deveriam melhorar a capaci- ção empregada atualmente no âmbito da atuação
dade de reconhecerem as identidades das minorias judiciária e consagrada pela recente Lei “Maria da
que as compõem. Penha” como violência doméstica e familiar con-
A criação das delegacias especiais voltadas tra a mulher) ou violência de gênero (conceito
para a defesa de minorias desprivilegiadas remete mais recente empregado por feministas que não
a forma pela qual universalidade e particularidade querem ser acusadas de essencialismo)? Trata-se
se articulam no nosso país. Essas instituições são de saber o que significa o emprego de cada uma
respostas a um conjunto de ações levadas a cabo dessas noções, sua rentabilidade em termos analí-
por movimentos e organizações da sociedade ci- ticos, bem como as limitações e os paradoxos que
vil empenhados no combate a formas específicas elas apresentam. De um lado, há um esforço de
pelas quais a violência incide em grupos discrimi- pensar como essas noções estão sendo usadas – e
nados. Tendo suas práticas voltadas para segmen- por quais atores – no campo da intervenção so-
tos populacionais específicos, o pressuposto que bre isso que, genericamente, se chama violência
orienta a ação dessas organizações é que a uni- de gênero. De outro, a reflexão incide sobre os
versalidade dos direitos só pode ser conquistada limites dessa noção e sua substituição pelo termo
se a luta pela democratização da sociedade con- violência de gênero. Nesse caso, a pergunta recai
templar a particularidade das formas de opressão sobre a validade e o interesse desse novo conceito.
que caracterizam as experiências de cada um dos O conceito de gênero, principalmente nos estudos
diferentes grupos desprivilegiados. Esse movimen- que têm como referência o sistema de justiça, foi
to leva à criação de tipos diversos de delegacias de incisivo na crítica à vitimização, que compreendia
polícia que terão impactos distintos, a exemplo das as mulheres como vítimas passivas da dominação.
delegacias da criança e do adolescente, do idoso Contudo, o interesse pelas formas alternativas de
e as de crimes de racismo. O dilema dos agentes justiça não pode nos levar ao extremo oposto,
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pressupondo que as mulheres que forem capazes sa lei, encontra imensas resistências nas práticas e
de desenvolver atitudes adequadas podem facil- nos saberes que compõem o campo da aplicação
mente se livrar das práticas discriminatórias, en- e efetividade das leis.
contrando caminhos capazes de restaurar direitos Mesmo se considerarmos a importância da
e práticas libertárias. Desta perspectiva, não pode- criação de delegacias de defesa da mulher (DDMs)
mos cair na armadilha de transformar a violência, no combate à violência em 1985,7 temos que ter
o poder e o conflito em problemas de falta de em mente que a legislação sobre tais delegacias
confiança e auto-estima dos oprimidos ou, então, não fazia menção à violência contra a mulher. A
de dificuldade de comunicação. cultura jurídica que informava e orientava o traba-
A definição de violência contra a mulher lho nas delegacias definia como função da polícia
no Brasil foi elaborada em meio a uma experiên- judiciária investigar crimes com base no “princípio
cia política inovadora na década de 1980, em de legalidade”, segundo o qual não há crime sem
que, ao lado de práticas de sensibilização e de lei anterior que o defina como tal, não há pena
conscientização, militantes feministas atendiam sem prévia determinação legal (Santos, 1999). As
mulheres que sofriam violências nos chamados delegacias atuavam segundo tipificações penais e,
SOS-Mulher.4 O conjunto de idéias que deu su- como sabemos, violência contra mulher (familiar,
porte e substância a essa expressão foi elaborado doméstica ou de gênero) não constituía figura jurí-
a partir de uma compreensão particular acerca da dica, definida pela lei criminal. O que era descrito
opressão sofrida pelas mulheres no âmbito do Pa- como tipo penal, implicando uma classificação,
triarcalismo – noção sintonizada com as discus- dependia, sobretudo, da interpretação que a agen-
sões feministas em cenário internacional. Gênero te (e, no caso concreto, a delegada ou a escrivã)
não era a categoria empregada nessa definição e a tinha da queixa enunciada pela vítima. A maior
condição feminina tinha seu significado articulado parte dos estudos etnográficos, realizados nos
a pressupostos universalizantes, como a idéia de anos de 1980 e 1990, sobre os atendimentos nessas
que a opressão é uma situação partilhada pelas delegacias revela que em função da ausência de
mulheres pelas circunstâncias de seu sexo, inde- uma abordagem sobre a complexidade da dinâmi-
pendentemente do contexto histórico ou cultural ca em que ocorrem os conflitos interpessoais nos
observado. Uma década mais tarde, tal interpreta- quais as vítimas são mulheres, a classificação dos
ção sofreu revisões críticas. Se é possível dizer que casos tornava-se aleatória ou por demais imiscuí-
a década de 1960 marcou definitiva e cabalmente da nos repertórios ou representações pessoais das
a história política do ocidente – e as mudanças agentes.8 Como destaca Santos (1999), as policiais
promovidas tiveram participação intensa dos vá- tendiam a restringir a noção feminista de violência
rios movimentos libertários (entre os quais, o fe- contra a mulher aos crimes e às infrações cometi-
minismo) –, a segunda metade dos anos de 1980 dos no âmbito da sociedade conjugal em cenário
e os anos de 1990 inauguraram novos paradigmas doméstico, excetuando-se, evidentemente, o estu-
no âmbito dos debates teóricos e acadêmicos que pro ou a violência sexual quando cometidos por
questionaram as teorias.5 desconhecidos.
De qualquer modo, mesmo com conotação Outro aspecto importante destacado pela li-
universal e um tanto essencialista, o movimento teratura especializada sobre procedimento judici-
feminista tornou pública uma abordagem sobre ário desse período era de que todo o saber que
conflitos e violência na relação entre homens e se tinha sobre os conflitos conjugais e que orien-
mulheres como resultante de uma estrutura de do- tavam o atendimento e o encaminhamento dos
minação. Tal interpretação não estava presente na casos estava subordinado às demandas das quei-
retórica tampouco nas práticas jurídicas e judiciá- xosas. Santos (1999) e Brandão (1999) alertaram
rias no enfrentamento de crimes até a promulga- sobre esse aspecto: a violência conjugal em que a
ção, em 2006, Lei n. 11.340 (“Maria da Penha”).6 A vítima é a mulher parece ter se constituído como o
questão da desigualdade de poder implicada nas caso paradigmático a descrever a violência contra
diferenças marcadas pelo gênero, ainda que esteja a mulher em geral e, mais tarde, também o que
sugerida na Constituição e no delineamento des- era entendido quando se mencionava a violência
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de gênero. De fato, esse paradigma não é resul- destas delegacias especializadas para também
tante da prática policial. O atendimento nos SOS- investigar crimes contra crianças e adolescentes.
Mulher, tal como os dados a partir dos quais os Com apoio da assessoria que coordenava as DDMs
estudiosos elaboraram suas análises, foram sendo e assinatura do governador Mario Covas, tal am-
balizados pelas demandas majoritárias da clientela. pliação visou a expandir o universo atendido de
A maioria dos casos referia-se a mulheres de um modo a dar conta dos crimes cometidos em meio à
certo extrato social e queixas relativas ao relacio- família. O argumento subjacente a essa decisão foi
namento com maridos, companheiros ou parceiros a tentativa de delimitar o conjunto de atendimentos
em contexto doméstico. Paradoxal e limitante: o policiais, deixando a cargo das DDMs a violência
objeto foi sendo definido a partir de informações familiar (e aí não apenas a que é cometida contra
fornecidas pela demanda imediata. Além disso, ca- a mulher) e, a cargo dos distritos comuns, outros
sos como violência sexual em relações conjugais, crimes que são associados à violência urbana.
assédio sexual, discriminação sexual, ou, ainda, Essa ampliação de atribuições das DDMs, em
violência psicológica, não encontravam guarida no que o acento deixa de ser nos direitos da mulher
tratamento institucional. e se volta para a violência doméstica, tende a ser
Outra conseqüência decorrente da ausência defendida em termos estritamente judiciários. Nas
de uma reflexão mais fina sobre o fenômeno está palavras de uma delegada:
relacionada com a tarefa monumental que as femi-
nistas esperavam que as delegacias desempenhas-
Na área do direito, quando a gente apura um fato,
sem. A expectativa difícil de ser realizada era a a gente apura o fato por inteiro. Esqueça a ques-
de que esses equipamentos policiais tivessem não tão da mulher. [...] Eu apuro o crime de homicídio
apenas um papel ativo em coibir e punir abusos e os crimes conexos a ele, tudo que aconteceu.
e agressões, mas também um papel pedagógico, Se foi homicídio contra uma pessoa, 2 pessoas, 3
como espaço para o aprendizado e o exercício de pessoas, tentativas de homicídio, lesões corporais,
virtudes cívicas. O fato é que o atendimento das está tudo num contexto. É um inquérito policial,
demandas não alterou o escopo das representa- um juízo que vai julgar todas as pessoas. Quando
ções das vítimas no sentido de uma maior sensi- se cria a delegacia da mulher para apurar crimes
específicos contra a vítima mulher, acontece o se-
bilização sobre os seus direitos. As pesquisas de
guinte: eu tenho numa casa a mulher agredida, o
cunho etnográfico mostraram que as mulheres filho agredido, o avô agredido, a outra filha vítima
atendidas pelas DDMs descreviam os conflitos sem de agressão sexual; eu só podia tocar os crimes
mencionarem a categoria violência.9 No mais das em que a mulher era a vítima. Até por extensão
vezes, referiam-se “às graças”, “às ignorâncias” dos eu tocava os crimes em que a criança era mulher,
maridos como excessivas e inaceitáveis, mas, nem menina. E a criança do sexo masculino, o filho,
por isso, manifestavam qualquer reconhecimento ficava para o distrito da área apurar – era o mes-
sobre os efeitos de tais atitudes no que se refere a mo fato sendo apurado por 2 distritos diferentes.
esperar que seus relacionamentos transcorressem Conclusão – a vítima tinha que prestar depoimen-
to na minha delegacia, no distrito, no fórum. A
em bases mais igualitárias. Gregori (1993) suge-
gente repartiu um fato que, juridicamente, não é
riu que sem uma atuação que consiga obliterar a assim que se apura. Com isso nós trazemos prejuí-
“lógica da queixa”, corre-se o risco de alimentar zo para a prova. E o distrito tocava muito mal essa
a vitimização, dificultando que os atores sociais apuração, com relação às crianças; dava margem
envolvidos nos conflitos problematizem de modo a que o cidadão fosse absolvido. Então a gente
mais contundente os motivos mais profundos que queria que a Delegacia da Mulher, se possível, ti-
envolvem as contendas, tal como, suas posições vesse até outro nome e passasse a se chamar De-
como sujeitos detentores de direito.10 Da mesma legacia de Apuração de Crimes Contra a Família,
forma, Debert et al. (2006) mostraram que do pon- em geral. Mas é difícil porque a deputada – a Rose
– não abre mão disso aí; [...] Então, fica Delega-
to de vista da corporação policial era possível ob-
cia da Mulher, mas se abriu a competência para
servar um deslocamento da violência de gênero se atender criança e adolescente, independente
para a violência doméstica. do sexo, mas vítima da violência doméstica. Nós
Em 1996, uma nova lei (Decreto n. 40.693/96) não atendemos qualquer criança ou adolescente
no estado de São Paulo ampliou a competência vítima de qualquer crime. É só aquele que é viti-
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mizado no ambiente da família; porque o fato é a sério o fato de a mulher ser sujeito de direitos.
único e o atendimento é diferenciado. Então este Por isso é relevante que tenhamos em mente esse
foi o objetivo e tanto foi bem que as condenações deslocamento do objeto de intervenção e pensar
aumentaram bastante e os inquéritos saíram [...].11
sobre seus desdobramentos. Organizar ações que
visam a eliminar a violência de gênero implica es-
É preciso, no entanto, reconhecer o efeito boçar outros modos de conceber a família. Mais
político da violência doméstica. Lesões corporais, do que corrigir os excessos, os abusos cometidos
tentativas de homicídio e homicídios cometidos pelos chefes de família – o que parecia estar sendo
por maridos ou companheiros são, sem dúvi- indicado no modelo do decreto de 1996 –, erradi-
da, as expressões mais dramáticas e convincentes car esse tipo de violência supõe colocar em xeque
da opressão de que as mulheres são vítimas e da a desigualdade de poder no seio familiar e tornar
importância do trabalho das instituições voltadas inadmissível qualquer atitude que fira os direitos
para medidas punitivas ou para procedimentos fundamentais dos envolvidos.
de proteção às vítimas. Os dados sobre violência O que se observa no atendimento concreto
doméstica têm levado autores como Luiz Eduardo fornecido pelas DDMs – como mostram estudos
Soares et al. (1996) e Saffioti (2001), a considera- etnográficos e foi confirmado por nossas pesqui-
rem que o lar é o espaço onde as mulheres e as sas (Debert e Gregori, 2002; Debert et al., 2006)
crianças correm maior risco.12 – é a tendência a tratar a violência familiar como
A idéia de que a violência contra a mulher disfunção originada no âmbito de famílias de-
não se reduz ao espancamento de esposas e com- sestruturadas ou carentes de educação ou ainda
panheiras é um princípio básico do discurso das provenientes de formações culturais tradicionais.
feministas que se manifestaram contra a criação Brandão (1999), Soares (1999, 2002) e Izumino
das Delegacias de Polícia de Proteção à Mulher ou (2003) sugerem que as DDMs passaram a fornecer
a seu favor. Mas são essas as expressões que mobi- recursos simbólicos para as mulheres que procu-
lizam maior indignação e por isso, apesar das ên- ram, por intermédio da queixa, chances para ne-
fases dos militantes de não reduzir os problemas à gociar suas relações na família.
dimensão familiar, a violência doméstica aparece É, portanto, importante ampliar o escopo da
como uma expressão englobadora das mazelas da reflexão sobre o que se quer ou o que se enten-
sociedade brasileira e passa a ser confundida e de a respeito da erradicação da violência familiar,
usada como sinônimo da violência contra a mu- da violência contra a mulher, da violência domésti-
lher, da violência contra a criança ou ainda da vio- ca ou ainda da violência de gênero. Pois, se é ver-
lência contra o idoso. dade que negociar desse modo implica lutar pelo
Esse deslocamento semântico causa efeitos que consideram ser os seus direitos, as mulheres
indesejados quando pensamos no registro da er- atendidas podem ainda atuar ou operar com no-
radicação da violência de gênero. As demandas ções de direito distantes do modelo de cidadania.
feministas – incorporadas pelo poder público na O poder Judiciário, em contrapartida, por não
forma das DDMs – partiam do pressuposto de que con­tar com definições ou diagnósticos mais claros
existe um tipo particular de violência, baseado nas sobre as diferentes dinâmicas que encobrem tais
assimetrias de poder imbricadas em determinadas violências acaba refém da demanda imediata da
relações sociais, aquelas que são marcadas pelo gê- clientela, não conseguindo instituir novos parâme-
nero e que não se restringem à violência familiar. tros, novos procedimentos ou práticas que efetiva-
Por outro lado, e isso está presente nas falas mente constituam entraves para que esses crimes
de vários agentes e atores ligados às delegacias es- não mais ocorram.
peciais, a ampliação das atribuições das delegacias
corresponderia a uma tentativa de ampliar a pro-
teção da família, cuja abordagem, no entanto, está Da defesa da mulher à defesa
distante da visão feminista sobre o papel das as- da família
simetrias de gênero nas configurações familiares.
Não se trata de exigir que as instituições judiciá- Os Juizados Especiais Criminais (Jecrims) fo-
rias partilhem o ideário feminista, mas que levem ram criados pela Lei 9099 de 1995, o que represen-
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tou uma mudança radical na dinâmica das Delega- Um dos pontos mais polêmicos da perspecti-
cias de Defesa da Mulher e no modo como eram va dos movimentos feministas é o fato de essa lei
conduzidas as ocorrências nelas registradas. Esta estabelecer que nos delitos de lesão corporal leve,
lei tem como objetivos centrais ampliar o acesso culposa e de ameaça é necessária a representação
da população à Justiça e promover a rápida e efe- do ofendido, o que não ocorre em outros tipos de
tiva atuação do direito, simplificando os procedi- crime, como, por exemplo, porte ilegal de arma
mentos com o intuito de dar maior celeridade ao ou dirigir sem habilitação. Essa condição torna a
andamento dos processos.13 Orientados pelos prin- apuração e a solução da violência de gênero mais
cípios da busca de conciliação, esses juizados jul- complicadas, como expressa a Dra. Maria Bereni-
gam casos de contravenção e crimes considerados ce Dias, desembargadora do Tribunal de Justiça do
de menor poder ofensivo, cuja pena máxima não Rio Grande do Sul, nos seguintes termos:
ultrapassa dois anos de reclusão. Aqui, os princí-
pios da informalidade e da economia processual [...] não foi dada atenção merecida ao fato de a Lei
dispensam a feitura do inquérito policial; o bole- n. 9099/95, ao criar os juizados especiais, ter con-
dicionado o delito de lesão corporal leve e culpo-
tim de ocorrência foi substituído pela elaboração
sa à representação do ofendido. Com isso, omitiu-
de um “termo circunstanciado” que traz um relato se o Estado de sua obrigação de agir, transmitindo
dos fatos e a caracterização das partes e pode ser à vítima de buscar a punição de seu agressor,
encaminhado, com presteza, ao Tribunal. segundo critério de mera conveniência. Ora, em
O efeito dessa lei sobre as delegacias de defe- se tratando de delitos domésticos, tal delegação
sa da mulher foi extraordinário, sobretudo porque praticamente inibe o desencadeamento da ação
quando o agressor é marido ou companheiro da
a maioria dos casos atendidos por elas é tipificado
vítima. De outro lado, quando existe algum vín-
como crimes considerados de menor poder ofensi- culo entre a ofendida e seu agressor, sob a jus-
vo (lesões corporais e ameaças) e, como tal, objeto tificativa da necessidade de garantir a harmonia
de atendimento pelos novos juizados. Na inves- familiar, é alto o índice de absolvições, parecendo
tigação de 1.036 processos de audiência prelimi- dispor de menor lesividade os ilícitos de âmbito
nar no Jecrim do Fórum de Itaquera em São Paulo doméstico, quase se podendo dizer que se tor-
ocorridos em 2002, constatamos que 76,6% das naram crimes invisíveis. Mas tudo isso não basta
para evidenciar que a Justiça mantém um viés dis-
vítimas eram do sexo feminino, sendo que des-
criminatório e preconceituoso quando a vítima é
se montante 80% eram mulheres que sofreram de- mulher (Zero Hora, 21/7/2001, p.3).
litos de lesão corporal e de ameaça por parte de
maridos ou companheiros. Os estudos recentes Uma das críticas mais contundentes dirigidas
têm chamado atenção para essa “feminização” às delegacias da mulher estava relacionada ao nú-
da clientela atendida pelos juizados especiais e, mero elevado de boletins de ocorrência que não
em particular, para a acentuada concentração de se transformava em denúncias encaminhadas para
casos relativos às brigas e agressões entre casais o Ministério Público e, portanto, ao fato de, no
no cenário doméstico. A pesquisa revelou que tal limite, as vítimas continuarem a ter acesso redu-
configuração é resultante do expressivo encami- zido à Justiça. Mas, com a criação dos Jecrims, as
nhamento dos “termos circunstanciados” das dele- ocorrências registradas como lesões corporais le-
gacias da mulher para os juizados especiais. Nesse ves e ameaças, e que são a grande maioria, têm
sentido, constata-se um represamento da demanda um rápido encaminhamento à Justiça, e as partes
das DDMs para os Jecrims. podem ser chamadas a comparecer numa audiên-
A Lei 9099 e os Jecrims, além de modificar a cia perante o Juiz em até menos de uma semana.
dinâmica das delegacias da mulher mostram como a As agentes das delegacias da mulher avalia-
demanda dessas instituições acabou por surpreen- ram essa mudança de maneiras distintas. De um
der seus próprios propositores. Criados para assu- lado, considerou-se que a lei não trazia mudanças
mirem na prática uma parcela dos processos cri- significativas no trabalho, mas apenas uma agiliza-
minais das varas comuns, esses juizados passaram ção no sentido de, como disse uma delegada, “de-
a dar conta de um outro tipo de infração que não sacumular os BOs parados na delegacia”. De outro,
chegava às varas judiciais. algumas delegadas lamentavam o fato de a lei res-
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tringir o poder de coação da polícia, desvirtuando legadas, não foi formado, não está preparado, nem
o próprio sentido das delegacias da mulher. Um é dele esperado atentar para a questão da ‘violência
dos procedimentos definidos pela lei consiste em contra a mulher’” (Idem, p. 331).
autorizar penas alternativas que envolvem a pres- A indignação com o modo pelo qual a vio-
tação de serviços à comunidade, sendo o paga- lência doméstica era tratada e a visão de que esse
mento de uma cesta básica a pena imputada com crime merecia um tratamento diferenciado indu-
maior freqüência aos casos de violência doméstica ziram os movimentos feministas a reivindicar mu-
e de agressões de vizinhos e parentes. Beraldo de danças que levaram à promulgação da Lei “Ma-
Oliveira (2006) mostra claramente que o proces- ria da Penha”. Como descrito no Artigo 1º, tal Lei
so de informalização dos procedimentos judiciais, “dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
que tinha por objetivo maximizar a eficiência e Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece
ampliar o acesso à Justiça, acabou por produzir medidas de assistência e proteção às mulheres em
um efeito de invisibilidade dos delitos cometidos. situação de violência doméstica e familiar”.
Com base em vários episódios descritos etnogra- Refletir sobre as mudanças ocorridas ao longo
ficamente, bem como em depoimentos dos agen- dos vinte anos de existência das DDMs é atentar
tes envolvidos, a autora afirma que foi criada uma para um duplo processo. De um lado, o processo
nova institucionalidade, cujos resultados indicam por meio do qual a violência entre casais, antes re-
uma tentativa persistente de retirar do âmbito pe- legada a um problema doméstico, transformou-se
nal estes crimes em que as mulheres são vítimas. A numa questão pública, pois as delegacias de defe-
observação dos atendimentos anteriores às audiên- sa da mulher tiveram um impacto importante no
cias preliminares revelou induções insistentes para sentido de explicitar que tais agressões eram cri-
que as mulheres renunciassem à representação e mes. De outro lado, com a criação dos Juizados
aguardassem o prazo decadencial.14 Mais do que Especiais Criminais, assistimos a um processo in-
isso, como mostram Debert e Beraldo de Oliveira, verso, em que os delitos voltaram a ser privatiza-
no fluxo do processo da delegacia aos juizados dos. A tendência nesses juizados é ver esse tipo
está envolvido, de fato, um deslocamento muito de criminalidade como uma questão menor a ser
maior do que de início poderia se imaginar: resolvida em casa ou com a ajuda de psicólogos
ou assistentes sociais de modo a não atrapalhar
A vítima de sujeito de direitos é constituída em o bom funcionamento dos tribunais. Além disso,
esposa ou companheira; da mesma forma que são as vítimas que devem decidir se as agressões
o agressor passa a ser marido ou companheiro. O e as ameaças por elas sofridas devem ser ou não
crime se transforma num problema social ou num tratadas como crimes.
déficit de caráter moral dos envolvidos que, na vi- A Lei “Maria da Penha” foi criada justamente
são da justiça, pode ser facilmente corrigido atra-
com o objetivo de reverter essa situação. É muito
vés do esclarecimento e nos casos mais difíceis
pode ser compensado com uma pequena pena. A cedo para avaliar seu impacto e seria apressado
lógica que orienta a conciliação nos juizados im- fazer qualquer generalização, dadas as diferenças
plica em uma solução rápida, simples, informal e que marcam o país e o modo de atuação, em cada
econômica para os casos que não deveriam estar contexto, das diferentes instâncias do sistema de
ocupando espaço no Judiciário tampouco o tem- justiça. Contudo, o acento nessa nova figura ju-
po dos seus agentes (2007, pp. 330-331). rídica – “violência doméstica e familiar contra a
mulher” – sugere que a lei se volta exclusivamen-
Economias morais e jurídicas distintas estão te para o que se configurou como a demanda da
em jogo nessas instituições. Centradas no problema clientela das delegacias especiais. A violência se-
da “violência contra a mulher”, as delegacias foram xual em relações conjugais ou o assédio sexual
criadas para responder a demanda de um sujeito de não encontram guarida no tratamento institucio-
direitos, e suas agentes são capazes de se indignar nal, posto que a violência de gênero é subsumida
com o fato de a mulher abrir mão do exercício des- ao espaço doméstico e à esfera familiar.
tes direitos. Já nos juizados especiais, o juiz, “apesar Impressiona, no entanto, o caráter das críticas
de possuir um poder simbólico maior do que as de- feitas a essa lei, sobretudo as que se pretendem
VIOLÊNCIA E GÊNERO 173

progressistas, defensoras dos direitos humanos, é lheres eram tratadas, quando a defesa da família
pela aposta que fazem na família e pelo alimento dava a tônica central das decisões tomadas pelos
que fornecem às ilusões da liberdade de escolha. agentes do sistema de justiça.15
Em um artigo intitulado “Violência de gêne- Esse retorno da família como a instituição
ro: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal”, a privilegiada para garantir a boa sociedade tem ga-
juíza de Direito Maria Lúcia Karan, critica a Lei nhado força, o que preocupa sobremaneira quan-
“Maria da Penha” nos seguintes termos: do a questão de gênero, justiça e democracia es-
tão em pauta.16 Vale a pena discutir como a defesa
O enfrentamento da violência de gênero, a supe- da família se combina com as ilusões da liberdade
ração dos resquícios patriarcais, o fim desta ou de escolha.
de qualquer outra forma de discriminação não
se darão através da sempre enganosa, dolorosa
e danosa intervenção do sistema penal [...]. Esse
doloroso e danoso equívoco vem de longe. Já faz Da vitimização ao império da escolha
tempo que os movimentos feministas, dentre ou-
tros movimentos sociais, se fizeram co-responsá- No Brasil, com toda a razão, grande parte
veis pela hoje desmedida expansão do poder pu- do movimento feminista criticou a vitimização das
nitivo. Aderindo à intervenção do sistema penal mulheres, que eram apresentadas como sujeitos
como pretensa solução para todos os problemas, passivos da violência dos homens, da indústria da
contribuíram decisivamente para a legitimação do
beleza, do sistema de justiça, da mídia e de outras
maior rigor penal que, marcando legislações por
instâncias da vida social. Essa crítica foi fundamen-
todo o mundo a partir das últimas décadas do
século XX, se faz acompanhar de uma sistemáti- tal porque exigiu, de um lado, que a atenção se
ca violação a princípios e normas assentados nas voltasse para as formas de agenciamento das mu-
declarações universais de direitos e nas Consti- lheres, realçando a sua capacidade de resistência
tuições democráticas [...]. A restrição e suspensão aos arranjos opressivos em diferentes contextos.
de visitas a filhos viola o direito fundamental de De outro lado, exigiu que os autores se detivessem
crianças e adolescentes a convivência familiar [...]. nas formas específicas que a dominação assume
Quando se insiste em acusar da prática de um
em contextos particulares. Entretanto, o discurso
crime e ameaçar com uma pena o parceiro da
mulher, contra a sua vontade, está se subtrain-
alternativo que ganha um espaço cada vez maior
do dela, formalmente dita ofendida, seu direito e em estudos de gênero, particularmente nos traba-
seu anseio a livremente se relacionar com aquele lhos sobre o sistema de justiça, tende no limite a
parceiro por ela escolhido. Isto significa negar- considerar que as mulheres que forem capazes de
lhe o direito à liberdade de que é titular, para desenvolver atitudes adequadas podem se livrar
tratá-la como se coisa fosse, submetida à vontade das práticas discriminatórias, encontrando cami-
de agentes do Estado que, inferiorizando-a e viti- nhos para restaurar direitos e práticas libertárias e
mizando-a, pretendem saber o que seria melhor
vias capazes de “empoderá-las”.17 Dessa maneira,
para ela, pretendendo punir o homem com quem
ela quer se relacionar – e sua escolha há de ser vai-se de um extremo ao outro: a visão da mu-
respeitada, pouco importando se o escolhido é lher como puro objeto do sistema de dominação
ou não um “agressor” – ou que, pelo menos, não masculina é substituída pela consideração de que
deseja que seja punido (2007, pp. 10-11). as trajetórias individuais são sempre flexíveis, os
constrangimentos sociais e econômicos são de
Não é sem razão que, tendo como referência pouca monta e as desigualdades podem ser facil-
considerações desse tipo, Carmem Hein de Cam- mente neutralizadas. Passa-se, então, a fazer coro
pos afirma com veemência que “o pensamento pe- com os tão aplaudidos manuais de auto-ajuda e os
nal crítico no Brasil é, majoritariamente, misógino” programas da mídia, em que basta haver vontade e
(2007, p. 1). disposição para garantir o sucesso desejado. Além
A defesa da mulher se reduz à exaltação in- disso, violência, poder e conflito transformam-se
gênua da liberdade de escolha, mesclada com a em problemas de falta de confiança e auto-estima
valorização da família, e, nesses termos, restabe- dos oprimidos ou, então, de dificuldade de comu-
lecem-se as hierarquias a partir das quais as mu- nicação do casal. A boa sociedade é aquela do di-
174 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

álogo pautado nos valores democráticos e cristãos; vez mais importância com a proposta de multas e
a possibilidade do diálogo é a condição necessária serviços comunitários (como no caso dos Jecrims),
e suficiente de uma sociedade justa e igualitária. mas, ao mesmo tempo, se constata o aumento da
É essa a tônica que, como já vimos, tem marcado população encarcerada.
o discurso dos críticos da Lei “Maria da Penha”, Rose, no entanto, procura realçar que essas
particularmente dos defensores do abolicionismo propostas e avaliações aparentemente contraditó-
penal. Celmer e Azevedo fazem as seguintes con- rias têm uma mesma lógica estratégica. Inspirado
siderações sobre essa lei: em Foucault, o autor mostra que os programas de
controle da criminalidade sempre estiveram mais
As medidas não penais de proteção à mulher em vinculados com questões relacionadas à ordem
situação de violência [...] mostram-se providências moral do que propriamente ao combate ao cri-
muito mais sensatas para fazer cessar as agressões me – a preocupação com a ilegalidade e o crime
e, ao mesmo tempo, menos estigmatizantes para há muito tempo é objeto de instituições e práticas
o agressor. [...] Certamente o mais adequado seria
que não são parte integrante do sistema de justiça
lidar com esse tipo de conflito fora do sistema
penal, radicalizando a aplicação de mecanismos criminal. Seu interesse é chamar a atenção, de um
de mediação, realizados por pessoas devidamen- lado, para as concepções sobre o criminoso que
te treinadas se acompanhadas por profissionais vigoram na atualidade e, de outro, para a redefi-
do Direito, Psicologia e Assistência Social. [...] Ao nição operada nas diferentes instâncias do Estado
invés de avançar e desenvolver mecanismos alter- que caracterizam o “liberalismo avançado”. Ape-
nativos para a administração de conflitos, vamos sar da diversidade de concepções em vigor, as vi-
mais uma vez recorrer ao mito da tutela penal,
sões contemporâneas a respeito de quem é cri-
nesse caso ela própria uma manifestação da mes-
ma cultura que se pretende combater. [...] [excluir]
minoso não se restringem ao sujeito jurídico do
a participação da mulher na discussão do pro- império da lei, nem ao sujeito biopsicológico da
blema, inviabiliza uma solução satisfatória para o criminologia positiva, mas englobam também o
conflito (2007, pp. 16-17). sujeito responsável da comunidade moral, gover-
nado por mecanismos de autocontrole ou, então,
Alguns analistas das formas de poder e con- desgovernado e, portanto, carente de uma reabi-
trole têm sugerido que vivemos uma época radical- litação terapêutica de modo a exercer o controle
mente diferente, o que se traduz no uso de novas sobre si mesmo.
expressões como “sociedades pós-disciplinares”, Da mesma forma, a tendência dos governos
“panóptico eletrônico”, “sociedade de risco” ou nacionais não é mais aspirar a condição de princi-
“justiça atuarial”. Outros consideram que houve pais provedores da segurança. O Estado deve ser
uma complexificação das formas de controle, mas antes um parceiro, um animador e facilitador não
que isso não significa exatamente uma mudança apenas das agências de segurança privada, mas
tão radical. também de uma variedade de agentes e poderes
O que certamente merece ser avaliado com encarregados dessa reabilitação terapêutica. In-
cuidado, como mostra Nicholas Rose (2000), é o venta-se um conjunto de novas tecnologias com o
modo como o discurso contemporâneo sobre o objetivo de promover um governo à distância, ao
controle do crime combina formas aparentemen- qual Rose chamará de “tecnologias da liberdade”.
te incompatíveis na caracterização dos problemas Cada indivíduo deve ser prudentemente res-
abordados e nas formas de solucioná-los. Propos- ponsável pelo seu destino, calculando de modo ati-
tas que enfatizam a necessidade de indivíduos e vo o futuro e provendo sua própria segurança e a
comunidades se tornarem mais responsáveis por de sua família, com a assistência de uma pluralidade
sua própria segurança coexistem com argumentos de experts independentes, que se especializam no
a respeito da “tolerância zero”. Reivindicações de que Rose denomina ethopolitics – políticas que pro-
pena de morte convivem com propostas que foca- curam regenerar e reativar valores éticos que hoje
lizam a relação entre agressor e vítima e buscam se acredita regulam a conduta individual e ajudam
formas de mediação e conciliação. O interesse pe- a manter a ordem e a obediência à lei, prendendo
las formas comunitárias de controle ganha cada os indivíduos às normas e aos valores compartilha-
VIOLÊNCIA E GÊNERO 175

dos, como honra, vergonha, obrigação, confiança, duo ativo no império da escolha, em que cada
fidelidade e compromisso com os outros. um deve fazer o trabalho por si mesmo, não em
Os tribunais não são mais responsáveis pela nome da conformidade, mas como condição para
garantia da segurança dos cidadãos. A proteção se tornar livre.
contra o risco envolve investimento em medi- Sabe-se que a prisão não é um lugar de res-
das capazes de operar uma reforma moral e uma socialização e futura reintegração social, mas um
reconstrução ética dos envolvidos na criminali- depósito de corpos para os quais os únicos inves-
dade. Isso abre espaço para um amplo espectro timentos estão na redução total da possibilidade
de técnicas psicológicas recicladas em programas de fuga e no rigoroso sentenciamento com base
para governar os excluídos, que atuam com os ju- no aumento da pena.
ízes de modo a aprimorar a aplicação de meca- Contudo, a alternativa ao direito penal não
nismos de mediação de conflitos. Neles, o pressu- pode ser o rearmamento moral que os especia-
posto da escolha ética é central, a relação que o listas estão propondo de modo a impor o que a
indivíduo estabelece consigo mesmo é o alvo dos antropóloga norte-americana Laura Nader (1994)
profissionais e o trabalho a ser feito em associação denomina “harmonia coerciva”. Num movimen-
com os diferentes especialistas é o de preparação to similar ao que ocorre nos Estados Unidos, os
dos indivíduos para se tornarem livres. Jecrims indicam que estamos passando de uma
Num estudo sobre os significados da lingua- preocupação com a justiça para uma preocupação
gem do “empoderamento”, Bárbara Cruikshank com a harmonia e a eficiência; de uma preocupa-
(1994) analisa as novas tecnologias do self que ção com a ética do certo e do errado para uma
caracterizam programas sociais norte-americanos ética do tratamento. Um modelo de justiça cen-
que se pretendem inovadores, mostrando como a trado nos tribunais, cuja lógica é ter ganhadores e
relação entre o público e o privado é neles redese- perdedores, tende a ser substituído por outro, em
nhada. A auto-estima ou o seu déficit é considera- que o acordo e a conciliação desenham um novo
do a fonte de uma variedade de problemas sociais. contexto em que só há vencedores. Não se trata
Os movimentos da auto-estima, afirma a autora, mais de evitar as causas da discórdia, mas a sua
não se limitam ao domínio do pessoal, mas seu manifestação. Exaltam-se as virtudes dos mecanis-
objetivo é uma nova política e uma nova ordem mos alternativos regidos pela ideologia da harmo-
social. Eles anunciam uma revolução, não contra nia, criando-se um contexto de aversão à lei e de
o capitalismo ou o sexismo, mas contra as formas valorização do consenso. De acordo com Nader,
incorretas de autogoverno. Desse ponto de vista, o considerar a harmonia algo benigno é uma forma
ângulo da intervenção política e social é modifica- poderosa de controle social e político. Quem está
do. Não são fatores estruturais como desemprego, errado e age em confronto com a lei é sempre o
alcoolismo e criminalidade que devem ser resol- mais interessado numa solução conciliatória.
vidos – pressuposto do welfare state –, mas cate- No caso de agressões entre casais ou gera-
gorias individuais subjetivas como a auto-estima ções na família, a questão é muito mais compli-
e o auto-respeito de modo de modo a garantir o cada, pois se combina com a hipocrisia da defe-
empowerment. sa da família. Não se trata da família patriarcal,
Dessa maneira a exclusão torna-se funda- nem da família como reino de proteção e afetivi-
mentalmente uma condição subjetiva, relacionada dades, mas da família como única solução para
com o modo pelo qual as pessoas conduzem sua o cidadão que falhou, que é pobre e incapaz de
própria vida. A autonomia passa a ser compreendi- exercer os direitos conquistados (Debert, 2001).
da como capacidade de aceitar a responsabilidade
e reconhecer a sua própria forma de conluio que
impede cada um de ser o que realmente é. Só A importância da perspectiva
assim o indivíduo pode ser reinserido na comu- relacional no tratamento da violência
nidade moral e aderir à família, ao trabalho, ao
consumo e aos outros circuitos da sociedade de Os aspectos problemáticos da formulação
controle. O “empoderamento” produz um indiví- da Lei “Maria da Penha” já foram suficientemen-
176 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

te explorados. Resta destacar que a definição, em própria definição de igualdade e de acesso à jus-
forma de lei, de determinados abusos cometidos tiça constitui processo aberto às disputas e aos po-
como “violência doméstica” encerra um paradoxo deres diferenciais entre os atores sociais. Foucault
de difícil operação: a desigualdade de poder que também sugere que os dispositivos que confor-
perpassa as relações entre as vítimas e os agres- mam os regimes de poder em sociedades como
sores não se manifesta apenas nas esferas da vida a nossa se organizam de maneira a ocultar suas
doméstica, tampouco nas posições ocupadas por engrenagens e encobrir seu modo de se “entra-
homens e mulheres no núcleo familiar. Além dis- nhar” no corpo social. A idéia de uma justiça igua-
so, o problema mais agudo desta lei parece ser o litária baseada em princípios ou valores universais
de confundir violência e crime, ou de tentar sub- oculta, na verdade, as desigualdades que a Justiça
sumir o fenômeno. produz, aquilo (e aqueles) que ela exclui ou ainda
Por mais bem intencionados que tenham os que nem considera. Seria fantasioso imaginar
sido os propósitos dos atores sociais envolvidos na a existência de uma esfera na sociedade, mesmo
sua formulação e a inegável importância política com as melhores intenções ou excelência de pro-
de tentar resolver a “invisibilização” e a banalida- cedimentos, que possa atuar com pretensões de
de com a qual os Jecrims atuam diante de con- neutralidade. Importante salientar que antes de ser
flitos dessa natureza, é preciso indagar sobre os uma fantasia, a idéia da justiça para todos é uma
limites da esfera judiciária no contexto observado, quimera, algo que deveria ser alcançado, corri-
no sentido de atenuar, ressarcir, dar justiça àque- gindo seus desacertos, cujo resultado é a dificul-
les que sofrem abusos em nome da preservação dade de apreender ou mesmo decifrar os mecanis-
de normatividades relacionadas às configurações mos que tornam complexas e intrincadas as rela-
de gênero. ções de violência.
Sem a pretensão de oferecer alternativas con- Examinar as articulações entre violência e
cretas, mas com o intuito de ampliar o debate, gênero permite avançar a análise sobre as dinâ-
sobretudo no âmbito analítico, propomos uma dis- micas que configuram posições, negociações e
tinção estratégica entre crime e violência. Crime abusos de poder nas relações sociais, constituindo
implica a tipificação de abusos, a definição das um campo vigoroso para desafiar as dificuldades
circunstâncias envolvidas nos conflitos e a reso- sugeridas. Ao discorrer criticamente sobre a lite-
lução destes no plano jurídico. Violência, termo ratura especializada sobre tal temática no Brasil
aberto aos contenciosos teóricos e às disputas de na década de 1980, Gregori (1993) observa que
significado, implica o reconhecimento social (não nos diversos estudos desse período predominava
apenas legal) de que certos atos constituem abu- uma tendência a alimentar ou mesmo reproduzir
so, o que exige decifrar dinâmicas conflitivas que a trama assimétrica que constituía as relações per-
supõem processos interativos atravessados por po- passadas pela violência. Sua crítica foi elaborada
sições de poder desiguais entre os envolvidos. As no sentido de alertar para o efeito “vitimizador” de
violências evocam uma dimensão relacional que, uma série de “convenções” explicativas e descriti-
segundo Foucault, estão longe de serem resolvidas vas presentes no tratamento político e acadêmico
pela esfera jurídica, pois tal instância, mesmo ten- da violência contra a mulher: ressaltavam-se situ-
do como objetivo a justiça para todos, cria, produz ações em que as mulheres eram vítimas diretas, e
e reproduz desigualdades. Com tal ponderação, outras manifestações de violência (contra crianças,
não se está supondo que a Justiça e seu escopo entre mulheres, ou contra os parceiros) eram vis-
legal e institucional não forneçam instrumentos tas como atos de resistência, reação e reprodução
importantes que organizam e definem padrões de de padrões de comportamento internalizados pe-
ressarcimento, chegando a uma resolução. Além las mulheres com base em regras reiteradas pelos
disso, trata-se de uma arena de disputas politica- costumes e pela tradição. De fato, a mulher apare-
mente relevante. cia como um ser passivo, vitimado por uma situ-
Estamos chamando atenção não só para o ação já determinada pela estrutura de dominação.
fato de que a igualdade perante a lei jamais foi Os relacionamentos violentos eram descritos
alcançada por alguma nação, como também que a como uma relação típica, tomando por base os
VIOLÊNCIA E GÊNERO 177

dados majoritários do perfil dos agentes e suas problema da diferença entre os sexos.18 Essas au-
relações – não era feita, pois, uma análise das va- toras posicionam-se contra qualquer retórica que
riações de natureza socioeconômica, étnica, etá- não encare a violência como algo en-gendered (is-
ria, tampouco variações de ciclo vital da família, to é, perpassado pela assimetria sexual e de gê-
número de filhos etc. Além disso, a construção nero).19 A conceituação de gênero que tomamos
narrativa dessa relação típica compunha-se dos se- como referência neste artigo é aquela proposta por
guintes passos: todos os gestos de abuso descritos Judith Butler (2004), pois acreditamos ser a mais
comportavam o desrespeito, a humilhação e eram vigorosa na interface com a violência. Butler trata
necessariamente seguidos pelo espancamento até o conceito em termos foucaultianos: as regulações
o assassinato. Tais gestos eram apresentados em de gênero são organizadas em um aparato de po-
ordem crescente, numa espécie de evolução dos der por meio do qual a produção e a normatiza-
acontecimentos que levam à morte. Os homens ção do masculino e do feminino tomam lugar a
agem; as mulheres sentem, reafirmando uma es- partir de variadas formas, como, por exemplo, hor-
pécie de passividade emocional recoberta pelo mônios ou cromossomos.20 Trata-se de um aparato
medo, pela vergonha e pelo sentimento de culpa. que institui constrangimentos, mas não conduz a
Outra concepção cara nas análises em exame uma estabilidade definitiva. Deve ser visto, nes-
era a de sublinhar que a violência ocorre como ma- se sentido, como um conjunto de dispositivos que
nifestação dos homens contra as mulheres, sem cria desigualdades de poder e, simultaneamente,
que fosse empregada uma interpretação de que as está aberto a transformações. Como bem assinala
hierarquias sociais acionadas nessas relações vio- Butler, gênero é uma prática de improvisação em
lentas vão de encontro ao jogo entre um conjunto um cenário de constrangimentos. Ademais, não há
de atributos relativos à masculinidade, à feminili- risco de se incorrer em tentações modernas que
dade e aos diferentes conteúdos associados a cada conduzem ao substantivismo e aos essencialismos:
um desses termos. De fato, vinculava-se o sexo ninguém faz o gênero sozinho, ele implica uma
ao gênero, construindo rígidos pares de oposição. relação, uma socialidade.21
Entre os pólos – a mulher e o homem – existem Essa vertente de estudos sobre a violência
contraste e conflito. A partilha e o convívio entre não focaliza a questão apenas na prefiguração dos
eles eram concebidos e explicados a partir da idéia comportamentos individuais, mas discute, proble-
de um sistema ideológico, qualificado de machis- matizando, a expansão do conceito de violência
mo, e, nesse caso, uma noção de ideologia como na direção dos aspectos que constituem as práti-
falseamento. cas sociais, seguindo a tendência dos estudos pós-
Em Cenas e queixas, Gregori assinalou a estruturalistas influenciados por Foucault. Porém,
imensa limitação de incorrer em uma visão que essas novas teorias criticam o modo generalista
enfatiza a problemática em pauta apenas a par- de que esse filósofo trata as assimetrias e as de-
tir de convenções explicativas que reafirmam, em sigualdades de poder relativas às diferenças se-
vez de questionar, o dualismo entre vítima e al- xuais. Segundo Butler (2004), Foucault considera
goz ou, ainda, reduzem as representações das mu- o gênero apenas uma entre as diversas normas de
lheres à dicotomia tradicional/moderno. Tais di- uma operação mais ampla de regulação do poder.
cotomias não servem como instrumento analítico Para a autora, o aparato regulatório que governa
porque supõem uma coerência a cada termo da o gênero cria um regime “disciplinar” próprio. Tal
oposição, inexistente na dinâmica que constitui as ponderação, contudo, não deve conduzir o racio-
representações e as relações sociais. cínio à armadilha de construir uma fronteira que
Essa perspectiva crítica está em consonância isola o gênero de outros marcadores de diferença
com o debate proposto por algumas teóricas do (como classe, raça, etnia, idade etc), os quais tam-
feminismo contemporâneo que questionam justa- bém são eixos de desigualdade. Interessa analisar
mente a concepção monolítica sobre a violência e as intrincadas operações regulatórias mediante um
analisam as articulações entre gênero e violência. procedimento metodológico que visa a estabele-
A bibliografia mais recente tem procurado supe- cer interseccionalidades entre os diversos eixos e
rar certa “neutralidade” difusa no que concerne ao marcas.22
178 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

Outra autora que mantém uma posição crítica tegoria genérica ou essencial que imponha aprio-
a Foucault é Teresa de Lauretis (1997).23 Ela discu- risticamente o traçado ou o perfil dessa identida-
te especificamente sua concepção de violência (e, de (Gregori, 1993). E, como bem pondera Lauretis,
em particular, a relação com o poder disciplinar e é preciso acentuar que a dinâmica dessas relações
com as tecnologias da sexualidade), que não con- é recortada pela desigualdade, por uma assimetria
sidera os recortes assimétricos configurados numa que, inclusive, leva à violência.
relação de força em que um dos pólos se encontra Para pensar os paradoxos que envolvem as
em desigualdade. Com efeito, o que importa, nes- relações violentas, em uma abordagem que não
se caso, é a desigualdade que incide na relação abandona as dinâmicas concretas e experienciais
entre o feminino e o masculino, pois as repre- de que elas são revestidas, adotamos a perspecti-
sentações e as práticas posicionam os gêneros em va que acredita na coexistência de vários núcleos
“suportes empíricos” variados. Isso significa que, de significado que se sobrepõem, se misturam, e
no limite, os homens também podem ser violados, estão permanentemente em conflito. Na situação
sendo seus corpos tratados como femininos. Nes- das relações familiares, por exemplo, cruzam-se
se sentido, não é suficiente abordar o problema concepções sobre sexualidade, educação, convi-
da violência como se fosse algo relativo ao casal, vência e sobre a dignidade de cada um. Cruzam-se
desviando o olhar das relações de poder imiscuí- também posições definidas por outros marcadores
das entre os envolvidos. Lauretis tem razão ao afir- ou categorias de diferenciação que implicam va-
mar que Foucault peca por uma análise circular riadas posições de poder: geracionais ou etárias,
que resulta numa posição política neutralizadora. marcadores raciais e também os relativos à classe
A autora toma como base as idéias apresentadas e à ascensão social. Exercer uma posição é agir
no livro História da sexualidade I – A vontade de em função de várias dessas concepções, posições
saber (Foucault, 1976) e, em particular, ao seu ar- e marcadores, combinando-os mesmo quando são
gumento sobre o poder do Estado em normatizar conflitivos. Desse modo, importa salientar que ao
a nossa vida amorosa. Ao partir da noção de que a tratar de posições de gênero é preciso considerar
sexualidade é produzida discursivamente (institu- que, certamente, existem padrões legitimados so-
cionalmente) pelo poder e de que o poder é pro- cialmente importantes na definição de identidades
duzido institucionalmente (discursivamente) pelas e condutas. Contudo, é preciso ter em mente que
tecnologias envolvidas na sexualidade, Foucault eles devem ser vistos como construções, imagens,
não abre espaço para a atuação e a formulação referências compostas e adotadas de modo bas-
concreta de um contra-discurso ou de uma contra- tante complexo, pouco linear e nada fixo.
posição. E, para ilustrar o efeito paradoxal dessa Pensar em termos relacionais implica também
noção geral, Lauretis lembra o posicionamento de não reificar ou estabelecer como determinação as
Foucault a propósito do estupro: para neutralizar o assimetrias baseadas nos marcadores de gênero.
poder do Estado sobre a sexualidade, seria melhor, De fato, atualmente torna-se cada vez mais rele-
segundo o autor, tratar tal delito como um ato de vante problematizar isso que tem sido qualificado
agressão e não como um ato de violência sexual. A como violência de gênero. Isso não quer dizer que
abordagem proposta por Lauretis segue a direção os marcadores de gênero, como categorias de di-
oposta, indicando a relevância de se considerar o ferenciação que compõem mapas hierárquicos e
estupro a partir da noção de tecnologia de gênero, constituem posições de desigualdade, não sejam
ou, mais precisamente, apreender as técnicas e as fundamentais para atuar contra dissimetrias e rela-
estratégias por meio das quais o gênero é construí- ções de poder e de força. Mas, convém indagar se
do e a partir das quais a violência é en-gendered. esses marcadores não deveriam ser articulados a
Algumas dessas proposições tornam mais outros também fundamentais, como os de classe,
complexas as conexões entre o conceito de vio- os de raça e os de escolha e orientação sexual,
lência e o de gênero, pois sugerem que a identida- mesmo que eles sejam pouco evidentes quando
de dos envolvidos em uma relação de violência é observamos de perto os scripts que compõem as
criada em meio a um movimento de espelhamento relações violentas. Dessa complexidade deriva
e contrastes, e que não se esgota. Não existe ca- uma constatação que inegavelmente traz dificul-
VIOLÊNCIA E GÊNERO 179

dades para a ação política, sobretudo aquelas tão dade, o que exigia mudanças de ordem estrutural.
sequiosas de explicações e que buscam inimigos Daquela perspectiva, as campanhas tinham pouco
essenciais e permanentes. Ou seja, mulheres, ne- significado em si mesmas e eram avaliadas em ter-
gros, índios, homossexuais, transexuais, transgê- mos de avanço ou retrocesso na construção das
neros (bem como aquelas pessoas que praticam bases de uma sociedade que almejava a reversão
transgressões às normas sexuais, mas não desejam das desigualdades econômicas. Para as esquerdas
portar identidades) vivem em meio a relações em contemporâneas, considera Rorty, a questão cen-
que as identidades vão sendo criadas num pro- tral no debate deixou de ser a estrutura econômi-
cesso permanente de espelhamento e contras- ca. Na luta pelos direitos humanos, as esquerdas
te. Não existe uma categoria genérica que imponha hoje permitem que a política cultural suplante a
um perfil fixo dessa identidade. Recurso estratégi- política real, colaborando com a direita no sentido
co e importante em termos políticos, ela se perfaz de fazer com que as questões culturais centralizem
na trajetória e nas relações sociais e particulares. o debate público. A defesa do multiculturalismo,
Cabe a nós indagarmos se do ponto de vista po- da política da diferença ou das políticas da iden-
lítico não seria relevante suspeitar de categorias tidade, afirma Rorty com humor, torna mais rele-
prévias e dadas, apontando antes e de modo mais vante o stigma que o dinheiro. Ao contrário dos
“certeiro” para uma aliança entre movimentos que movimentos sociais, a política de campanha tem
buscam ruir as bases da intolerância e do precon- um fim em si mesma, é algo que se pode pron-
ceito nas relações mais concretas, cotidianas, em tamente reconhecer e avaliar se as iniciativas to-
que as desigualdades e as assimetrias de poder madas foram ou não bem-sucedidas. As campa-
não são apenas negociadas, podem ser mantidas, nhas de hoje não se acumulam em movimentos
mas também transformadas. Trata-se, a nosso ver, e não incluem entre suas finalidades a melhoria
de garantir o reconhecimento público (e privado) radical da vida social; são conseqüências, segundo
de que vivemos numa arena de disputas, compos- Rorty, de um mundo fragmentado e da existência
ta por variados objetos e posições de poder. Se a humana fragmentada.
própria relação e “nomeação” contrastiva e polar Rorty deplora a substituição das campanhas
entre objeto e sujeito devem ser postas em ques- pelo movimento social. Contudo, é preciso reco-
tão – objeto de discussão para artigos futuros –, nhecer a atração que exerce a política de campa-
nosso intento nesse texto foi o de apoiar as posi- nha, sobretudo se, contra esse autor, pensarmos o
ções teóricas e políticas do debate contemporâneo quanto os antigos movimentos sociais tenderam a
que apontam na direção de consolidar o reconhe- transformar o bom no inimigo do melhor. Todos
cimento social e político dos sujeitos que lutam nós sabemos hoje, reavaliando a política do mo-
por constituir novos âmbitos e instrumentos de vimento social, que nunca se conseguiu atingir o
poder inovadores. ótimo, ao passo que conseguimos sacrificar muito
Isso não quer dizer que a aposta na mudan- do bom.24 Ademais, as campanhas cumprem um
ça das instituições do sistema de justiça criminal papel importante no sentido de ajudar a melhorar
de modo a ampliar o seu potencial “contexto-sen- as condições de vida: melhorar o transporte cole-
sitivo” não tenha nenhum significado quando se tivo, aumentar as vagas em escolas, fazer com que
pensa em sociedades mais afinadas com os ideais o sistema de telefonia seja mais eficiente, inibir
democráticos. a corrupção e o superfaturamento, que continua
Num livro sobre o pensamento de esquerda existindo em toda parte, oferecer recursos a mu-
nos Estados Unidos, Richard Rorty (1999) contra- lheres, idosos e crianças que ainda são vítimas de
põe campanha a movimento social, lamentando lesões corporais e ameaças. Mas se isso irá provo-
que no mundo contemporâneo as campanhas te- car uma transformação radical na sociedade é uma
nham substituído a política de movimento social outra questão. Essa não poderia ser a intenção,
que caracterizava as esquerdas nos anos de 1960. nem a promessa das delegacias de defesa da mu-
No movimento social, cada campanha específica lher ou da Lei “Maria da Penha”.
era vista como parte de algo muito maior: uma
matriz a partir da qual seria gerada a boa socie-
180 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

Notas 7 A primeira Delegacia de Defesa da Mulher foi


criada em 1985, por iniciativa do Conselho Esta-
1 Para um balanço deste debate, ver Werneck Vian- dual da Condição Feminina e pelo então Secre-
na et al. (1999); sobre a judicialização dos confli- tário Estadual da Segurança, Michel Temer. Entre
tos conjugais, ver Rifiotis (2002). os estudos disponíveis sobre a atuação dessas
delegacias, merecem particular atenção Ardaillon
2 Trata-se da Lei Federal 11.340 sancionada pelo (1989), Blay e Oliveira (1986), Brandão (1997),
presidente da República em 7/8/2006 e que en- Brocksom (2006), Carrara et al. (2002), Debert e
trou em vigor em 22/9/2006. Ela é conhecida Gregori (2002), Gurgel do Amaral et al. (2001),
como Lei “Maria da Penha”, referência cunhada Machado e Magalhães (1999), Moraes (2006), Mu-
por setores do movimento feminista em homena- niz (1996), Nelson (1996), Oliveira (2006), Rifiotis
gem a Maria da Penha, uma vítima de violência (2003), Santos (1999); Soares (1999); Suárez e Ban-
doméstica, cujo caso sofreu significativa omissão deira (1999); Taube (2002).
pelas autoridades judiciais. Em 2001, a Comis-
8 A pesquisa que coordenamos no ano 2002 mos-
são Iteramericana de Direitos Humanos condenou
trou que há uma uniformidade muito grande na
o governo brasileiro por tal omissão. Essa é a pri-
tipificação dos crimes, apesar das diferenças en-
meira lei no Brasil que trata da violência domésti-
tre as DDMs pesquisadas. A grande maioria das
ca e familiar contra a mulher.
ocorrências levadas a todas as delegacias do país
3 A própria expressão utilizada para o reconheci- é tipificada como “lesão corporal leve” ou “amea-
mento de atores excluídos do sistema de direitos ça”.
é contingente. Termos como “camponeses” ou “fa-
9 Esse aspecto também estava presente nas narrati-
velados” perderam a expressão política que goza-
vas das mulheres que procuravam o SOS-Mulher,
vam até muito recentemente. analisadas em estudo anterior (Gregori, 1993).
4 O SOS-Mulher de São Paulo foi a primeira entida- 10 Um dos aspectos que chamou a atenção de Gre-
de no Brasil criada por iniciativa de vários grupos gori é o fato de esses depoimentos estarem sendo
feministas em outubro de 1980 com o propósi- enunciados na forma da queixa: um tipo de nar-
to de prestar atendimento a mulheres vítimas de rativa que tende a reduzir as situações de confli-
violência. Essa entidade atuou durante três anos, to e abuso vivenciadas no cotidiano das relações
atendendo as mulheres em plantões, realizando interpessoais marcadas por gênero por meio de
encaminhamentos para aconselhamento jurídico uma polarização estática entre vítima e algoz. Os
e psicológico e organizando campanhas de cons- paradoxos e os efeitos não esperados desse tipo
cientização sobre a gravidade do problema trata- de construção discursiva são salientados: me-
do. Para maior detalhamento, ver Pontes (1986) e nos do que a busca de uma investigação, segui-
Gregori (1993). da pela devida punição dos responsáveis pela
5 São inúmeras as referências bibliográficas para o violência sofrida, essas queixas enredavam as
acompanhamento desse debate, em suas várias enunciantes em uma posição não muito propícia
modalidades disciplinares (na arquitetura, na teo- à emancipação, porque tendia a reiterar o lugar
ria literária, na filosofia, na antropologia), seja na das mulheres como vítimas (Gregori, 1993, pp.
direção das propostas, seja na das ponderações 185-186).
críticas. Algumas das indicações importantes na 11 Entrevista fornecida a Debert e Brockson em
discussão da problemática de gênero e o ques- 2002.
tionamento das antigas epistemes encontram-se,
entre outros, em Scott (1988); de Lauretis (1997); 12 Os dados sobre criminalidade reforçam essa
Butler (1990); Moore (1994). Para uma discussão imagem. No suplemento sobre vitimização da
sobre o impacto dessa literatura sobre os estu- pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar
dos no Brasil, ver Heilborn e Sorj (1999); Gregori (PNAD) de 1988, vemos que 55% das mulheres
(1999); Piscitelli (1997). vítimas de agressão, na região sudeste do Brasil,
foram atacadas na sua própria residência e 45%,
6 Antes disso, em 2002 a lei 10.455 possibilitou ao em local público. Parentes e conhecidos foram
juiz, como medida cautelar, afastar o agressor do responsáveis por 62,29% dos ataques violentos
domicílio nos casos de violência doméstica. Em (33,05% por parentes e 29,24% por conhecidos).
2004, a Lei 10.886 aumentou a pena mínima de Nas agressões cometidas por parentes, 86,80%
três meses para um ano nos casos de lesão corpo- dos casos ocorrem nas residências. Os boletins
ral em que o agressor é parente ou companheiro de ocorrência feitos no ano de 1991, no estado do
da vítima. Rio de Janeiro, mostram que 67% dos homicídios
VIOLÊNCIA E GÊNERO 181

praticados contra crianças (de zero a onze anos) atualizam os papéis dos membros da família,
foram perpetrados pela própria família (Soares como pode ser visto nas políticas de renda mí-
et al., 1993). O Movimento Nacional de Direitos nima ou bolsa escola. Nesse sentido, fazem coro
Humanos pesquisou todos os homicídios contra com a violência familiar tratada nos Jecrims.
crianças e adolescentes noticiados por jornais de
17 Termo derivado do inglês empowerment, usado
catorze estados do país, de janeiro a dezembro
sobretudo pela militância de movimentos sociais
de 1997 (três estados do Norte, seis do Nordeste,
para indicar a transformação do público alvo de
dois do Centro Oeste, dois do Sudeste e um do
Sul), e concluiu que 34,4% dos homicídios infantis sua ação em sujeitos de direitos e indivíduos ca-
foram cometidos por parentes (pais, avós, tios e pazes de reverter a situação de opressão e sub-
irmãos) e 4,6%, por vizinhos e amigos. O autor missão de que são vítimas.
do crime não é conhecido em 55,3% dos casos, e 18 Para uma análise sobre essa tendência da bi-
44,3% dos crimes investigados ocorreram na pró- bliografia contemporânea, ver Gordon e Breins
pria casa das crianças (Daniela Falcão, Folha de (1983). Henrietta Moore (1994) constrói sua abor-
São Paulo, 23/7/1998, p. 3.3) dagem sobre a violência com base em uma con-
13 Para a pesquisa na área de ciências sociais sobre cepção discutida pela psicologia, segundo a qual
os Jecrims, ver, especialmente, Amorim (2003), o que leva um indivíduo a assumir uma posição
Azevedo (2000 e 2001), Beraldo de Oliveira identitária tem a ver com o grau de investimento
(2006), Burgos (2001), Campos (2002 e 2003) Car- acionado. Esse grau é concebido num processo
doso, (1996), Cunha (2001), Debert e Beraldo de em que o indivíduo confronta seus compromissos
Oliveira (2007), Faisting, (1999), Kant de Lima et emocionais e seus interesses. A violência ocorre
al. (2001 e 2003), Sadek (2001) e Werneck Vianna em função da inabilidade de se sustentar uma
et al. (1999); sobre juizados semelhantes nos Esta- posição identitária de gênero, o que resulta em
dos Unidos, ver Cardoso Oliveira (1989) crise, real ou imaginária, da auto-imagem e/ou
da imagem pública que se tem. Pode ser efeito,
14 Essas tentativas parecem ter tido sucesso, como também, das contradições nascidas da exposi-
indica o estudo realizado no Jecrim de Itaquera, ção à multiplicidade de posições. Muitos casos
em que 36,4% dos casos relativos aos delitos do- de violência são, segundo a autora, resultantes
mésticos em que a vítima era mulher tiveram ex- da inabilidade de se controlar o comportamento
tinção de punibilidade e 40% aguardavam o pra- sexual do outro – comportamento que ameaça a
zo decadencial. Esses dados foram coletados em auto-imagem e dificulta as avaliações sociais so-
2002. bre alguém. O problema desse tipo de argumento
15 Sobre família e justiça penal, ver, especialmente, está na dificuldade de se discernir o momento em
Corrêa (1981 e 1983), Ardaillon e Debert (1987), que as frustrações em relação à auto-imagem –
Grossi (1998) e Teixeira (2004). certamente numerosas na dinâmica biográfica de
cada indivíduo – se constituem, levando a atos de
16 Vários autores têm mostrado que os anos de 1980 violência. Outra fragilidade é o fato de a análise
e início da década seguinte assistiram, nos países estar por demais focalizada nas dinâmicas indi-
da Europa ocidental, à emergência de uma nova viduais e não – como acreditamos – em relações
agenda moral que questionava a dependência em estabelecidas por indivíduos. Trata-se de relações
relação ao Estado. A preocupação com os custos que, no mais das vezes, envolvem uma assimetria
financeiros das políticas sociais levou a uma nova de poder.
ênfase na família e na comunidade como agências
capazes de solucionar uma série de problemas 19 É extensa a polêmica sobre as intrincadas rela-
sociais. Uma ótica distinta da que caracterizava ções entre sexo e gênero e suas implicações con-
o papel da família em agendas anteriores entra ceituais. Se o conceito de gênero foi formulado
em jogo. No pós-guerra, considera Simon Biggs por Robert Stoler, ainda na década de 1970, como
(1996), as ideologias e as práticas do Welfare State a armadura cultural (variável e desessencializada)
tinham um conteúdo paternalista que impedia o que incide sobre as diferenças de sexo, na déca-
questionamento da integridade da família como da de 1980, a polaridade entre sexo – como algo
instância privilegiada para arcar com o cuidado relativo ao corpo no seu sentido biológico – e gê-
de seus membros. Esse paternalismo foi abalado nero – como a força atuante e criativa da cultura
nos anos de 1970 pelos movimentos de denúncia – passou a ser questionada. Tanto Lauretis, como
da violência contra a criança e a mulher. Na agen- Moore compartilham as críticas desenvolvidas a
da atual, os deveres e as obrigações da família partir da década de 1980, de modo que, quando
foram redefinidos. No Brasil, as políticas públicas se referem ao conceito de gênero, pressupõem
voltadas para setores mais pobres da população uma relação não polarizada com o conceito de
182 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

sexo. Para esclarecimento dessa discussão, ver AZEVEDO, R. G. (2000), Informalização da Jus-
Scott (1988), Butler (1990), Heiborn e Sorj (1999), tiça e controle social: estudo sociológico
Gregori (1999) e Piscitelli (1997)... da implementação dos Juizados Espe-
20 É importante esclarecer que tais normatizações ciais Criminais em Porto Alegre. São
correspondem a um conjunto de arranjos por Paulo, IBCCRIM.
meio dos quais a matéria prima biológica do sexo
e da procriação é modelada pela intervenção hu- _________. (2001), “Juizados Especiais Criminais:
mana. uma abordagem sociológica sobre a in-
21 O aparato de gênero não age sobre um indivíduo formalização da Justiça penal no Brasil”.
tomado como sujeito preexistente, mas age e for- Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16
ma tal sujeito (Butler, 2004, p. 42). (47): pp. 97-110, out.
22 Para uma teorização consistente sobre a relação Bauman, Z. (1998), O mal-estar da pós-moderni-
entre gênero, classe e raça na perspectiva da in- dade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
terseccionalidade, ver Brah (1996).
BERALDO DE OLIVEIRA, M. (2006), Crime in-
23 Ver também o trabalho de Elisabeth Brofen
visível: a mudança de significados da
(1992).
violência de gênero no Juizado Especial
24 Para uma crítica à oposição que Rorty faz en- Criminal. Campinas, dissertação de mes-
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Relume Dumará/Iser.
resumos / abstracts / résumés 211

Violência e Gênero: novas VIOLENCE AND GENDER: nEW ViolEncE ET GENRE  : NOUVEL-
propostas, velhos dilemas PROPOSALS, OLD DILEMMAS LES PROPOSITIONS, VIEUX DI-
LEMMES

Guita Grin Debert e Guita Grin Debert and Guita Grin Debert et
Maria Filomena Gregori Maria Filomena Gregori Maria Filomena Gregori

Palavras-chave: Violência; Gêne- Keywords: Violence, Gender, Forms Mots-clés: Violence; Genre; Formes
ro; Formas de controle; Sistema de of control; Justice System. de contrôle; Système de justice.
justiça.
This article discusses and analyses Cet article discute et analyse les di-
Este artigo discute e analisa os di- the dilemmas involved in the usage lemmes liés à l’emploi des notions
lemas envolvidos no uso das no- of notions that have been used to qui sont utilisées pour qualifier la
ções que têm sido empregadas para qualify the violence in social rela- violence dans les rapports sociaux
qualificar a violência em relações tions marked by gender and in its marqués par le genre et dans ses mi-
sociais marcadas pelo gênero e em updating in different instances of the ses à jour dans différentes instances
suas atualizações em diferentes ins- justice system. Basing it on ethnog- du système de justice. Ayant pour
tâncias do sistema de justiça. Tendo raphies performed at Police Stations base les ethnographies réalisées
como base etnografias realizadas for the Defense of the Woman and dans les Commissariats de Défense
nas Delegacias de Defesa da Mulher at Criminal Special Courts, as well de la Femme et dans les Tribunaux
e nos Juizados Especiais Criminais e as the polemics surrounding “Maria Criminels Spéciaux et les polémi-
as polêmicas em torno da Lei “Maria da Penha” Law, the article maps out ques à propos de la loi “Maria da
da Penha”, trata-se de mapear o sig- the meaning articulated by expres- Penha”, nous nous proposons de
nificado articulado por expressões sions such as violence against wom- dresser un relevé du sens issu d’ex-
como violência contra a mulher, en, conjugal violence, domestic vio- pressions telles la violence conte
violência conjugal, violência domés- lence, family violence, and gender la femme, la violence conjugale, la
tica, violência familiar e violência de violence. The central argument is violence domestique, la violence fa-
gênero. O argumento central é que that transforming violence in crime miliale et la violence liée au genre.
a transformação da violência em cri- leads to semantic and institutional L’argument central est que la trans-
me leva a desdobramentos semân- unfoldings that tend to replace the formation de la violence en crime
ticos e institucionais que tendem a interest in politicizing justice in de- possède des dédoublements séman-
substituir o interesse de politizar a fending the woman by the legaliza- tiques et institutionnels qui tendent
justiça na defesa da mulher pela ju- tion of family relations. à substituer l’intérêt de politiser la
dicialização das relações na família. justice dans la défense de la femme
par la transformation des relations
en famille en affaires judiciaires.

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