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Método e verdade nas Regras para a direção do espírito de Descartes

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens [1]

Resumo: O propósito do artigo é apresentar um estudo sobre as Regras para direção do


espírito de René Descartes.[2] Esse exercício limita-se a interpretar as nove primeiras
regras da obra, opção que se justifica por estas já explicarem o que está em questão em
sua primeira parte; permitindo uma tematização adequada à extensão do nosso pequeno
trabalho. Procuraremos esclarecer alguns conceitos elementares do texto cartesiano,
buscando apresentá-los de maneira suficiente, dando ênfase, sobretudo, à implicação
existente entre método e verdade, à luz dos conceitos de matemática universal (e a
ordenação que esta torna possível) e ciência moderna.

Palavras-chave: Filosofia Moderna, Descartes, Regras para a direção do espírito,


Método.

Para Descartes, a noção de verdade está ligada ao método. É isso que se presencia, por
exemplo, no texto em questão, escrito inacabado de juventude do autor, publicado
postumamente. Embora incompleto, constitui fonte importante para compreender as
idéias de método, conhecimento e verdade, pois expõe com clareza os principais pontos
do pensamento cartesiano e seu programa para a ciência, caracterizando-se como uma
obra metodológica, e não de metafísica (BEYSSADE, 2001). Nesta obra, fica também
evidente a vocação prática da filosofia cartesiana, posto que a busca pela verdade
afigura-se como tentativa de asseguramento de um conhecimento que pode ser voltado à
boa condução da vida. Esta tese se comprova com o próprio Descartes (1999), quando
deixa claro que não há coisa mais útil em tal tratado, pois ensina que todas as coisas
podem ser postas em séries distintas quanto ao que umas se podem conhecer a partir de
outras, de tal modo que, quantas vezes ocorrer uma dificuldade, possa-se logo perceber
se será útil examinar primeiro algumas outras, quais e em que ordem.

O traço dessa vocação é o que encontramos no conteúdo dessas regras, quando propõem
um estudo cuja finalidade é a orientação do espírito, para que possamos formular juízos
firmes e verdadeiros sobre as coisas que se nos apresentam. Para tanto, segundo
Descartes (1999), seria preciso lidar exclusivamente com os objetos cujo conhecimento
é certo e indubitável. Desse modo, é tarefa investigar o que podemos apreender através
de uma intuição clara e evidente, ou que possamos deduzir com certeza, pois, de outro
modo, não se adquire um saber seguro. Portanto, o método é necessário à procura da
verdade.

O que Descartes chama de método consiste, em última análise, na ordem e disposição


das coisas, para as quais é necessário dirigir toda agudeza do espírito para descobrir a
verdade. O que obteríamos se, do espírito, reduzimos gradualmente os problemas
complicados e obscuros a outros mais simples, tentando, a partir desses últimos, elevar
o grau de conhecimento de todas as outras coisas. Daí, para distinguir as coisas simples
das mais complexas e prosseguir ordenadamente na investigação, seria preciso que
deduzíssemos diretamente algumas verdades de outras. É preciso, pois, examiná-las
como um movimento contínuo e jamais ininterrupto de pensamento, tendo em vista
como estas coisas se relacionam com o nosso propósito, para uma reunião em uma
enumeração suficiente e ordenada. Entretanto, se entre as coisas tratadas, há alguma que
nosso intelecto não possa intuir suficientemente bem, haveríamos de nos deter mais
nestas, dirigindo toda a força do espírito às coisas menores e deter-se nelas tempo
suficiente até que possamos vê-las por uma intuição de maneira clara e distinta.

O que presenciamos na enunciação acima, sobre o conteúdo das regras (em vista do
método), consiste unicamente na ordenação dos títulos das nove primeiras que serão
tratadas aqui (por isso, o caráter sintético que esta introdução assume) em títulos, que,
como podemos ver, uma vez ordenados, compõem um sumário das idéias, que serão
explicadas, uma a uma, em cada regra, sumário esse que expressa, de maneira clara, um
roteiro e nesse a ordem das idéias a serem tratadas na obra, o que torna evidente, desde
já, a importância que Descartes dá à ordenação para obtenção de um conhecimento.
Portanto, o que se segue é a apresentação das citadas primeiras regras e os comentários
pertinentes às mesmas, ilustrados por passagens do texto do autor.

Em sua Regulae I,[3] Descartes aponta a orientação a ser tomada pelo espírito para que
esse possa formular juízos firmes e verdadeiros sobre as coisas que se apresentam. Esta
já marca a diferença frente à ciência medieval, cujo procedimento ainda recorria a um
saber dogmático, pautado nas escrituras tradicionais da Igreja, como fontes de
revelação, em conhecimentos assumidos por Descartes como dignos de serem postos
em dúvida, por desconsiderarem o conhecimento natural de fontes, ditas, mundanas e,
principalmente, por não prezar por um estatuto racional de cognoscibilidade e
fundamentação. Portanto, é possível afirmar, desde já, que Descartes está preocupado
em dar ao conhecimento uma base na qual, enquanto sabedoria humana (humana
sapientia), pudesse ser aplicado em diversas circunstâncias de maneira irrestrita. Assim,
esse conhecimento possuiria uma fundamentação que permitiria sempre inferências
irrefutáveis, oferecendo uma certeza autêntica, quesitos sem os quais não se atinge a
premissa de que “ciência (scientia universalis) é um conhecimento certo e evidente”
(DESCARTES, 1999).

Resta ainda definir o modelo a ser tomado como fundamento. Movido por esse intuito,
Descartes afirma que “a aritmética e a geometria eram as únicas isentas de qualquer
defeito de falsidade ou de incerteza” (DESCARTES, 1999), o que já marca a convicção
de que, para esse autor, as ditas matemáticas podem, com efeito, servir de modelo às
outras ciências, dado a comprovarem, fundamentalmente, a eficácia do espírito humano.
Todavia, é preciso deixar bem claro que não se trata de “importar” procedimentos ou
operações das matemáticas, fazendo que todo e qualquer saber fique restrito ao cálculo
ou à comprovação desta por intermédio das matemáticas correntes. Essa interpretação é
descartada pelo próprio autor quando define o papel do matemático:

(…) qualquer um, contudo, que considerar minha idéia com atenção, perceberá
facilmente que não penso aqui em nada menos do que nas matemáticas comuns
(mathematica vulgaris), e que exponho uma outra disciplina da qual elas são antes as
vestes do que partes. Essa disciplina deve, de fato, conter os primeiros rudimentos da
razão humana e estender sua ação até fazer jorrar as verdades de qualquer assunto que
seja (DESCARTES, 1999, p. 23).

Na passagem, encontramos referências implícitas de que a disciplina proposta por


Descartes (que busca o conhecimento em uma matemática) não é a tentativa de
transformar esse conhecimento em aritmética ou em geometria. Em verdade, mesmo
estas ciências só são importantes ao conhecimento se apreendidas indissociavelmente de
seu fundamento matemático, posto que é esse fundamento que possibilita as suas
certezas, partindo de um solo seguro desde o qual é possível acessar a verdade do que se
apresenta. A definição cartesiana do fundamento matemático é o que presenciamos no
documento que se segue:

Ora, vemo-lo, não há quase ninguém, desde que mal tenha somente tocado o umbral das
escolas, que não distinga facilmente, dentre o que se lhe apresenta, o que pertence à
Matemática e o que pertence às outras disciplinas (…) Daí resulta que deve haver uma
ciência geral que explique tudo quanto se pode procurar referente à ordem e à medida,
sem as aplicar a uma matéria especial: essa ciência se designa, não pelo nome
emprestado, mas pelo nome, já antigo e consagrado pelo uso, Matemática universal,
porque ela encerra tudo o que fez dar a outras ciências a denominação de partes das
Matemáticas. Quanto a Matemática universal suplanta em utilidade e em facilidade
essas outras ciências que lhe são subordinadas,(…) É por isso que cultivei até agora essa
Matemática universal, na medida de minhas possibilidades, de sorte que creio poder
depois tratar de ciências mais elevadas, sem a elas me aplicar prematuramente
(DESCARTES, 1999, pp. 27-28).

Com a citação, fica claro: 1) o real interesse de Descartes no modelo matemático, a


saber, seu rigor disciplinar e a capacidade de propiciar a ordem e a medida, quesitos
esses de importância determinante do método que Descartes constrói (DESCARTES,
1973); 2) o conceito de matemática universal (mathesis universalis), como fundamento
ordenador de um método para atingir um saber seguro (portanto, todas as teses
expressas nas Regulae de Descartes); 3) a indicação clara, comprovando o item acima,
de que o método proposto por Descartes é cultivado junto à compreensão de matemática
universal. A partir desta enumeração, algumas indagações podem ser propostas, à guisa
de tornar clara a postura de Descartes no panorama do pensamento ocidental: qual seria
o ganho qualitativo impresso pela assunção de um fundamento matemático, ordenador
do conhecimento? Qual o diferencial que o fundamento matemático da filosofia
cartesiana traz à modernidade?

Em respostas às perguntas, podemos apontar, de imediato, o advento de uma nova


modalidade do saber, aquela que liberta o conhecimento da concepção escolástica de
revelação como primeira fonte de verdade, configurando novos moldes do saber
enquanto tal. À primeira vista, como conseqüência do pensamento cartesiano, isso
significa o abandono de uma tradição instituída. Entretanto, ao propor o modelo
matemático, o autor funda um solo no qual o saber passa a mover-se de maneira
autônoma, estando sujeito apenas aos próprios fundamentos exigidos por esse mesmo
saber. Isso é a evidência de que com o modelo matemático, o conhecimento coloca sua
própria essência como fundamento de si mesmo; isto já representa uma contribuição
significativa ao conhecimento, a ponto de gerar grande diferenciação entre o
pensamento medieval e a modernidade, que se inaugura com esse passo em direção à
autonomia do conhecimento.

Diversos autores concordam com esta tese, entre eles Foucault (1999), quando vê nesse
episódio a marca de uma nova concepção de saber, distanciado do que ele compreende
por época clássica (período no qual o conhecimento deixa de ser busca por semelhanças
para se tornar uma relação de ordem entre idéias).[4]
A última pergunta enumerada, durante sua resposta, cria condições para a reconstrução
teórica dos argumentos cartesianos contidos nas regras; oportunizando o seguinte
comentário de M. Gueròult, no qual o autor examina o papel do matemático no método
cartesiano, confirmando sua distinção frente à metafísica:

O método nos é revelado pelas Regulae (as quais se referem implicitamente ao Discurso
do Método). O caráter particular das Regulae é que a obra da ciência não é atrelada a
nenhum outro princípio que a faculdade humana de saber. Sem dúvida, as teses da
metafísica têm deixado entrever, por exemplo: a redução do mundo material à extensão
e ao movimento; a distinção real da extensão e do pensado; a teoria da imaginação,
faculdade corporal; a ligação da dúvida e do critério de evidência; a relação entre o
cogito e a posição de Deus: Sum, ergo Deus est etc. Todavia, essas concepções não
aparecem como exemplos nem como pontos de apoio. O método se apresenta tendo
uma validade independente da metafísica; é como se fundasse imediatamente sobre a
certeza imanente da razão humana em sua manifestação autêntica e original, a saber, as
matemáticas.(…) A ciência repousaria, para Descartes, sobre a faculdade humana do
conhecer, e a intrusão ulterior de questões metafísicas teriam transformado e
desnaturado a posição primeira do verdadeiro problema. Nas Regulae, Descartes se
remete apenas à inteligência. Nas Meditações aparece uma outra que Descartes apropria
de questões antigas. Esta concepção interpreta inexatamente as tendências do filósofo.
Na realidade, as Regulae se situam no ponto onde se trata de construir o método, mas os
problemas que serão assumidos por esse ainda não são aparentes. Surgirão do que esse
método teria absolutamente generalizado; quer dizer, posto em obra de maneira rigorosa
o princípio de não aceitar por verdadeiro a que não seja absolutamente evidente.
Descartes porá a questão de validade da evidência matamática em si, considerada antes
de tudo, para ele, suficiente por si mesma, sem outra justificação(…) (GUERÒULT,
1968, pp. 30-31).

O primeiro ponto a ser considerado na passagem citada é a indicação de que as Regulae


são suporte para o método cartesiano, estando comprometidas com um projeto de
ciência, o que, para nosso autor, significa “conhecimento” (sentido previsto pela palavra
latina “scientia”). Não por acaso tal método funda-se na faculdade do conhecimento,
não se ocupando com questões complexas como as suscitadas pela metafísica. Notem
que Gueròult é enfático ao marcar a independência do método frente à metafísica. Em
segundo lugar, a citação aponta que o conhecimento certo e evidente permite ao homem
funda-se em uma faculdade que é capaz de expressar puramente os princípios mais
seguros do saber: a matemática. Diz-se puramente pois, através das matemáticas o
conhecimento (ou ciência) não sofreria interferência de qualquer outra instância que
pudesse comprometer o que se deduz racionalmente desses princípios simples,
considerados claros e distintos pelo autor (DESCARTES, 2004). Assim, a idéia de
conhecimento e de método no sistema cartesiano aparecem atreladas aos alicerces dados
pelas Regulae, cujo “formato” respeita a essência das matemáticas entre as quais é
premissa válida não tomar o ambíguo por certo. Ainda para Gueròult (1968), na
essência do matemático como modelo peculiar, reside um intuito de configuração de
novos moldes do saber. Entretanto, isto significa apenas que o matemático, de acordo
com sua exigência mais íntima, fundamenta-se a si mesmo; quer apresentar-se a si
mesmo como padrão de todo conhecimento e estabelecer regras daí resultantes. As
regras são, pois, proposições fundamentais e diretrizes nas quais o matemático se sujeita
à essência do conhecimento, para que, ele próprio, se torne condutor do espírito que
investiga.
Munido desses princípios, Descartes é prescritivo desde sua primeira regra. Entretanto,
é apenas na Regulae III que o autor afirma que devemos investigar não o que
suspeitamos, mas o que intuímos clara e evidentemente para deduzimos com certeza,
caso contrário, não se adquire a ciência. Nesses termos, cabe-nos demonstrar, na
seqüência de nosso texto, o que Descartes entende por intuição:

(…) não a confiança instável dada pelos sentidos ou o juízo enganador de uma
imaginação com más construções, mas o conceito que a inteligência pura e atenta forma
com tanta facilidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o que
compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito que a inteligência pura e
atenta forma, sem dúvida possível, conceito que nasce apenas da luz da razão e cuja
certeza é maior, por causa de sua maior simplicidade, do que a da própria dedução,
embora esta última não possa ser mal feita mesmo pelo homem (DESCARTES, 1999,
pp. 13-14)

É possível inferir a partir dessa passagem que a intuição intelectual (intuitus mentis) é o
modo com o qual o espírito vê. O mesmo ver que encontramos tratado na Segunda
Meditação como “percepção da verdade”,[5] guardando esse significado, o autor faz
questão de grifar que esse é o sentido a ser prezado, distanciando-se do significado de
revelação beatífica ou intuição mística, largamente utilizado na formação escolar de sua
época.

Segundo a ordem dos elementos apresentados por Descartes e em decorrência desta


ordem, vemos, logo em seguida, a definição de outro conceito importante para o modo
de ordenação instituído pelo método. Trata-se do conceito de dedução. Daí, dizendo
com Descartes, “na dedução (…) entendemos a conclusão necessária tirada de outras
coisas conhecidas com certeza” (DESCARTES, 1999). Entretanto, ainda que a verdade
das coisas não seja de todo evidente, esta pode ser deduzida por princípios verdadeiros
já apreendidos pela intuição, através de um movimento contínuo e ininterrupto de
pensamento. Assim, se desconhecemos etapas de um saber, é possível, através da
dedução, que esse se torne evidente através da seqüência das outras verdades que estão
ligadas a esse. Como Descartes ilustra com uma imagem recorrente em suas Regulae:

Não é de outro modo que conhecemos o vínculo que une o derradeiro anel que de uma
longa cadeia ao primeiro, conquanto um único e mesmo olhar seja incapaz de nos fazer
apreender intuitivamente todos os anéis intermediários que constituem esse vínculo:
basta que tenhamos percorrido sucessivamente e guardemos a lembrança de cada um
deles, desde o primeiro até o derradeiro, está preso aos que estão mais próximos dele.
Portanto, aqui distinguimos a intuição intelectual da dedução certa pelo fato de que,
nesta, concebe-se uma espécie de movimento ou de sucessão, ao passo que daquela não
se dá ao mesmo; ademais, a dedução não requer, como a intuição, uma evidência atual,
mas, ao contrário, extrai de certa maneira sua certeza da memória (…) Tais são as duas
vias que conduzem à ciência da maneira mais segura: não se deve admitir maior número
delas por parte do espírito, mas todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e
sujeitas ao erro (DESCARTES, 1999, pp. 15-16).

O autor faz questão que se distingam estas duas estruturas do conhecimento e que se
ressalte sua real importância para a ciência. Destarte, como foi visto, a intuição
intelectual distingue-se da dedução necessária pelo fato de que, na dedução, se concebe
o movimento de sucessão das evidências. Ao passo que a intuição é só a apreensão da
certeza em uma enunciação em proposição veritativa, ou seja, em uma asserção sobre o
dado intuído. Desse modo, tanto a intuição quanto à dedução são caminhos seguros,
podendo-se dizer que são indispensáveis ao acesso à ciência, eliminando assim as
possibilidades de erro. Assim, podemos concluir que, para Descartes, a intuição e a
dedução necessária são as únicas operações intelectuais que asseguram a verdade pura
da ciência, trazendo em si mesmo a gênese da idéia de método (DESCARTES, 1999).
Assim, a expressão “caminhos mais seguros”, utilizada acima, já faz menção ao que o
filósofo compreende por método, compreensão revelada mesmo na etimologia do termo
oriundo do grego “méthodos” e composto pelas palavras “meta” e “hódos”, portanto,
possível de ser traduzido como caminho através do qual… (BAILLY, 1950), idéia que
podemos caracterizar com o seguinte trecho do texto cartesiano:

(…) regras certas e fáceis cuja exata observação fará que qualquer um nunca tome nada
de falso por verdadeiro, e que, sem despender inutilmente nenhum esforço de
inteligência, alcance, com um crescimento gradual e contínuo de ciência, o verdadeiro
conhecimento de tudo quanto for capaz de conhecer (DESCARTES, 1999, p. 20).

Essa definição de método confirma que, através de uma estipulação de regras, poder-se-
á fazer juízos acertados sobre as coisas que são objetos do conhecimento. Dentre estas
prescrições podemos identificar duas, que seriam a pilares de tal pensamento: a) não
tomar o falso pelo verdadeiro; b) aplicar as regras como princípios simples com o único
fim de atingir a ciência. Em vista dessas duas premissas, justifica-se a importância do
método, pelo fato de esse permitir uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual
e do meio de encontrar deduções para o conhecimento de todas as coisas,
compreendendo o método como ordem, o conhecimento seguro é o que se dá a partir
desta ordenação. Nesses termos, pecar contra o método é ficar vulnerável ao erro.[6]

Descartes afirma na Regulae V (ponto que engendra um movimento explicativo que se


estende até a Regulae VII) que essa ordenação deve partir das proposições mais simples
para as mais complexas. Nosso autor compreende por proposição asserções simples
acerca das coisas, o que conteria e conservaria as coisas como são. Para distinguir as
coisas simples das mais complexas e prosseguir ordenadamente, convém deduzirmos
uma verdade da outra. Para isso, Descartes prescreve uma classificação destas coisas
como absolutas ou relativas, consideradas coisas absolutas como as que:

(…) contém em si a natureza pura e simples sobre a qual versa uma questão: por
exemplo, tudo o que se olha como independente, causa, simples, universal, uno, igual,
semelhante, reto, ou outras coisas desse tipo; e, ao mesmo tempo, eu chamo assim
mormente o que há de mais simples e de mais fácil, para utilizá-lo na solução das
questões.(…) relativo, é o que tem a mesma natureza ou pelo menos um de seus
elementos em participação, em virtude do que se pode reportá-lo ao absoluto e dele
deduzi-lo, construindo uma série; mas ele encerra, ademais, em seu conceito outras
coisas que chamo relações (DESCARTES, 1999, p. 32).

Diante dessas duas definições, segue-se a distinção:

Estas coisas relativas se afastam tanto mais das coisas absolutas quanto mais relações
desse tipo, subordinadas umas às outras, elas contêm. Nossa regra nos adverte de que se
deve distinguir todas essas relações e tomar cuidado com sua conexão mútua e com a
ordem natural, de maneira que, partindo da última, possamos chegar ao que há de mais
absoluto, por intermédio de todas as outras (DESCARTES, 1999, p.32).

Assim, a distinção entre absoluto e relativo cabe, na mesma proporção, para o simples e
o complexo, para o essencial e o acidental, ao original e ao derivado, devendo-se notar
que existem poucas naturezas realmente puras e simples, que se pode acessar pela
intuição imediata da coisa que se apresenta e as demais que se apresentam não podem
ser deduzidas de outro modo senão das coisas simples. Donde se conclui que a dedução
deve avançar progressivamente das coisas simples às complexas, segundo a ordem de
suas essências, tornando claro, a partir dessas evidências: a) como cada intuição está
implicada; b) como a proporção e a ordem são atributos capazes de serem adquiridos a
partir da intuição e da dedução, respectivamente, em suas noções elementares no
interior do método; c) nesse modo de procedimento experimenta-se o fundamento
matemático do método como ordenação, ou seja, a matemática universal como a
essência da ordem.

A Regulae VII nos diz que é preciso examinar, com um movimento contínuo e jamais
ininterrupto, o pensamento das coisas que se relacionam com o nosso propósito e reuni-
las em uma enumeração suficiente e ordenada. Descartes introduz nesta regra o conceito
de enumeração, definindo-o como uma “investigação diligente e cuidadosa” no que se
refere a uma questão proposta, e que dela podemos concluir com certeza e evidência. A
enumeração tem caráter de indução, como o filósofo define:

(…) por enumeração suficiente ou indução, entendemos somente aquela que nos oferece
a verdade em sua conclusão com mais certeza do que qualquer outro gênero de prova,
exceto a simples intuição. Todas as vezes que não podemos reduzir à intuição algum
conhecimento, depois de ter rejeitado todos os vínculos dos silogismos, resta-nos
unicamente essa via à qual somos obrigados a dar total crédito (DESCARTES, 1999, p.
41).

Enumeração e indução são, pois, formas de obter a ordem, formas estas que encontram
prescrição com o próprio autor, quando esse afirma que a enumeração deve ser, umas
vezes completa, outras distinta e outras não fazem nem uma coisa nem outra; por isso,
somente diz ser suficiente. A enumeração ou indução é um modo proveitoso de garantir
o conhecimento, pois com ela adquire-se, a partir da ordem bem estabelecida; em pouco
tempo e com facilidade, uma série de tarefas que, à primeira vista, pareciam enormes.
Descartes utiliza um exemplo que alude ao uso desse procedimento na geometria,
quando, ao se calcular o perímetro de um único círculo, esse resultado pode ser
estendido aos demais círculos idênticos, sem que se precise repetir o procedimento em
cada um, singularmente. Assim, é possível afirmar, de maneira categórica, que
enumerar é ordenar,[7] pois, para tanto, basta propor uma ordem tal para examinar as
proposições que nunca se repita um número atribuído em classes previamente
determinadas. Entretanto, se, ainda assim, houver alguma coisa que impossibilite nosso
intelecto de intuir suficientemente bem, é preciso deter-se nesta até que se torne clara
(DESCARTES, 1999), não deixando esse intelecto obstaculizar-se com outras
faculdades do espírito, como a imaginação, os sentidos e a memória.

Para o exposto no último parágrafo, faz-se necessário o preceito proposto na Regulae IX


(última a ser tratada por nós aqui), que afirma que, para se obter clareza quanto ao modo
verdadeiro das coisas intuídas, é preciso dirigir toda a força do espírito a essas coisas e
deter-se nelas tempo suficiente, até ver a verdade por intuição, de tal maneira clara e
distinta. Esta proposta defende a idéia de não se passar para um outro tema ou objeto de
pesquisa sem que se esteja certo do que está em jogo em cada problema, com o qual o
intelecto propõe conhecer. Para tanto, são indispensáveis as duas principais operações
do espírito, as quais se tratou durante o nosso trabalho (a saber a intuição intelectual e a
dedução necessária). Operações propiciam o aperfeiçoamento do espírito humano e o
desenvolvimento da perspicácia e da sagacidade como principais qualidades desse.
Como podemos percebê-las e seu papel determinante no ofício do artífice, aludido por
Descartes: “(…) os artesãos que se ocupam com trabalhos minuciosos e se habituaram a
dirigir atentamente a penetração de seu olhar a cada ponto em particular, adquirem com
o uso o poder de distinguir perfeitamente o que há de menor e mais delicado (…)”
(DESCARTES, 1999).

Poderíamos, à guisa de conclusão, indagar se estas qualidades espirituais, cunhadas pelo


método, já não seriam pressupostos para que, posteriormente, se pudesse pôr um
questionamento sistemático pelos limites do conhecimento? (em Descartes apenas
ensejado e levado a termo, posteriormente, por Kant em sua Crítica da razão pura) do
mesmo modo, se essas qualidades espirituais, junto ao método proposto, não seriam os
pré-requisitos para o projeto cartesiano de “(…) nos tornarmos mestres e possuidores da
natureza” (DESCARTES, 1973).

Bibliografia:

BAILLY, A. Dictionaire: Grec-Français. Rédiger avec le concour de E. Egger. Paris:


Hachette, 1950.

BEYSSADE, J-M.. Descartes au fil de l’ordre. Paris: Presses Universitaires de France,


Épiméthé, 2001.

DESCARTES, R. Œuvres et Lettres. Bibliothèque de la Pléiade. André Bridoux (org).


Paris: Gallimard, 1953.

___________. Regras para orientação do espírito. Tradução Maria Ermantina Galvão.


São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___________. Meditações metafísicas. Tradução Fausto Castilho. In: Col. Multilíngues


de filosofia Unicamp, Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.

___________. Discurso do método. Trad. J. Guinsburg. In: Col. Os Pensadores, Rio de


Janeiro: Abril Cultural, 1973.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

GUERÒULT, M. Descartes selón l’order de las rasions. Lâme et Dieu, Vol. I, Paris:
Aubier, 1968.

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