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O antes, o do meio e o depois.

Roosevelt R. Starling

Publicado em Brandão, M.Z.; Conte, F.C. e Mezza-


roba, S. M. (orgs). Comportamento Humano: tudo
ou quase tudo que você gostaria de saber para viver
melhor. Santo André: Esetec, pp. 13-38

Pelo barulhão que as colheres faziam lado, dando para Quitéria aquela o-
nas panelas onde Quitéria preparava lhada de cachorro que rasgou roupa
o almoço da família, todo mundo na no varal. Sejamos justos: bebum, as-
casa sabia que ela estava num dia sim bebunzão mesmo, estava não.
daqueles: uma cobra de braba. Altinho, meio-que-besta, meio-mole,
alterado...ah!, isso é que sim. Mas, de
 Desgraçado, filho-da-mãe, cachor- tudo isso, o que deixava Quitéria pu-
ro, cretino!  resmungava Quitéria, ruca da vida era o “mais uma vez”.
numa ladainha interminável e repeti-
da, ouvisse quem quisesse ouvir, ta-  Ó, Aleluia, vou te falando logo…
passe os ouvidos quem não quises-  disse a Quitéria para um Aleluia
se. E, a cada xingamento, colheradas meio sem graça quando aquilo havia
nas panelas: des – PÁ! - gra – PAM! - acontecido pela segunda ou terceira
ça – PAF! - do! – BUM! vez no seu casamento  eu não sou
desse tipo de mulher que briga à toa,
É que, mais uma vez, o Aleluia, seu que implica com qualquer coisinha.
marido, havia chegado tarde do tra- Nem fico vigiando homem meu, não.
balho. Bem, não era bem isso...ou Eu cuido das minhas obrigações, eu
melhor, era isso, mas era mais do sou uma mulher direita e o que eu
que isso, ou era isso e mais do que quero de você é a mesma coisa. Não
isso. quero saber de vizinhança minha fa-
lando que sou mulher de bêbado e de
Aleluia havia chegado tarde do servi- vagabundo e NÃO ADMITO, ”  e
ço e com um bafo de água-que-boi- nessa hora Quitéria deu um grito e o
não-bebe que encheu a casa na hori- Aleluia deu um pulo.  …não aceito
nha mesma em que ele disse um de jeito nenhum que filho meu vá
“boa noite” cabreiro, assim meio de
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passar vergonha na rua por maledi-  Quitéria, Quitéria! Tem dessa de


cência do pai! amigo levar a gente para o mau ca-
minho, não, Quitéria! Pardal não voa
Quitéria era mulher resolvida nesses com andorinha e nem andorinha com
assuntos, sabia o que era certo fazer. pardal. Má companhia eles são é pa-
Afinal, tinha visto a sua mãe, Afonsi- ra você, Quitéria. Para ele são ótima
na, passar pelo mesmo problema companhia. Olho no seu marido, mi-
com o seu pai. Só que Dona Afonsina nha filha, que o demo está é dentro
foi mansa demais, entendia demais, dele mesmo: fica com os outros é só
perdoava demais. O resultado foi que pelo prazer da companhia!
o pai de Quitéria, de atrasos e goles
com os amigos que ocorriam um dia Quem lhe disse isso foi a velha Geni,
por ano, passou a fazer isso dois dias pessoa sabedora e esclarecida das
por semestre e terminou chumbando coisas da vida e muito religiosa, cujo
um dia sim e o outro também. terreiro dava fundo para o de Quitéria
desde que ela se mudou para Vista
Que vergonha passava a menina e a Alegre.
moça Quitéria! Que raiva tinha! Raiva
do pai, raiva dos amigos do pai, dó da  Será?!!!  pensava Quitéria lá
mãe e dó dela. Dó do pai e dos ami- com os seus botões, pois que no fun-
gos do pai, raiva da mãe e raiva dela. do sabia que o seu Aleluia era mes-
Que confusão era os sentimentos de mo um homem bom! Arre, que bom
Quitéria. Mas,  Por tudo quanto é podia até ser, mas Quitéria é que não
mais sagrado na minha casa isso não era boba de dar moleza. Gato escal-
vai acontecer, não!  resmungava dado tem medo de água fria e Quité-
Quitéria, enquanto marcava a frase ria era bem escaldada. A cada vez
batendo com a colher nas panelas. que Aleluia saía dos trilhos, Quitéria
passava mais de uma semana sem
A desgraça, meus amigos, é que pa- falar com ele. Carinho, então, nem
recia que tudo ia direitinho pelo mes- pensar!
mo caminho. Dava até para dizer: tal
a mãe, tal a filha. Dava até para a-  Fácil para ele, não é? Apronta e
creditar em destino certo. Aleluia era depois no outro dia fica todo meloso,
moço bom, mas muito simples, de todo gato roça-roça, querendo fazer
gênio aberto, amigo de todo mundo, as pazes!  resmungava Quitéria.
trabalhador que só ele. Honesto, o Certa vez, até mesmo uma imagem
Aleluia! Mas tinha essa coisa de gos- de Nossa Senhora, igualzinha a que
tar dos amigos que o levavam para o Quitéria sempre admirava na casa da
mau caminho, pensava Quitéria. Geni, o Aleluia comprou para ela no
outro dia, depois do quase porre.
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 Pois sim! Ele é que espere, para Mas fazer o quê? Aleluia gostava de-
ver o que é bom para a tosse! la: que bonita era a sua Quitéria, até
mesmo quando estava com raiva!
Quitéria é que não era mulher de ser Mais até quando estava com raiva!
dobrada assim tão, tão. Que às vezes Como isso era possível, Aleluia não
o coração dela amolecia ao ver a ca- tinha a menor idéia, mas que era, era!
ra de coitado do Aleluia, o seu rela- E lá ficava o Aleluia, conversando
rela meio sem jeito, as suas tentati- com ele mesmo, falando tão baixinho
vas de fumar o cachimbo da paz, ah!, que só ele ouvia: Aleluia ficava pen-
isso amolecia; mas ela endurecia! sando… (porque, quando a gente
Podia até ouvir o que havia jurado está “pensando”, o que a gente está
para si mesma:  Por tudo quanto é fazendo mesmo é ficar falando para a
mais sagrado, na minha casa isso gente mesmo, não é? Igualzinho
não vai acontecer, não! quando a gente fala com uma outra
pessoa mas só que, nesse caso, a
 Ca – PAM! – cho – PLAF! - rro! - gente mesmo fala, a gente mesmo
BUM!  Mas, xingando ou não, res- ouve, a gente mesmo responde…).
mungando ou não, feliz ou aborreci-
da, o almoço tinha que sair: comer Nós já sabemos que Aleluia era uma
era preciso. Tinha os meninos, coita- pessoa muito simples. Só sabia falar
dos, que não tinham nada com isso, um pouco, portanto, só sabia pensar
inocentes que eram! um pouco. Seus pais eram muito ca-
ladões. Pouco falavam entre eles
♣♣♣♣♣ mesmos e com os meninos e assim
continuaram, a medida que Aleluia
Aleluia estava mais do que bem a- crescia. Para falar a verdade, era difí-
cordado! Acordou com um arrepio ao cil para Aleluia saber até o que ele
primeiro PAM! que ouviu. Estremeceu sentia: ele sentia umas “coisas” no
na cama ao PLAF! e virou de barriga- corpo dele, um aperto no peito, um nó
para-cima na cama e ficou olhando na garganta, um frio na barriga. Sabia
para o teto ao BUM! Ééééé! Mais um se eram “coisas” boas ou ruins aquilo
dia do cão ia ser aquele. Pior: mais que sentia, mas não sabia dar um
uma semana cachorra ia ser aquela! nome para elas.
Ia até usando o bate-que-bate que
vinha da cozinha para fazer a sua Como poderia? Ninguém havia lhe
rima: se-ma-na-ca–PAM!-cho–PLAF!- ensinado que, se a “coisa” fosse as-
rra–BUM! Êta, mulher braba dos in- sim ou assado, chamava “medo”. Se
fernos era aquela sua! fosse assado e assim, chamava “ale-
gria”, e por aí vai. Aleluia, coitado, só
sabia falar um pouco e por isso não
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sabia direito o que sentia. Ele sabia Na verdade, era difícil para Aleluia
que, quando Quitéria ficava braba, entender porque Quitéria ficava tão
ele sentia certas “coisas” no corpo braba. Diacho! Isso nunca acontecia
dele e daí ele ficava falando para ele mais do que uma vez por mês, a
mesmo que o melhor era sair de per- maioria das vezes até mais picado
to dela. Mas quando ele pensava em ainda! Por que ela tinha de brigar
sair de perto dela, ele sentia outras com ele toda vez? Puxa vida! E aí
“coisas” tão ruins que logo desistia da tinha também essa coisa de ficar bri-
idéia. E então, quando ele já ia mes- gada uma semana inteira. Ficava lá,
mo desistindo, sentia outra “coisa” no canto dela: cara amarrada, con-
que lhe fazia pensar de novo em sair; versa atravessada, sim-não e não-
e quando pensava assim, sentia uma sim. Punha a comida na mesa como
outra “coisa” ainda, muito ruim que, se estivesse dando comida para os
logo, logo, o fazia desistir de sair de cachorros: puf, paf, trof, assim, joga-
perto dela; e quando ele já ia mesmo da. Nem um dedo de prosa, nem sen-
desistindo… tar junto, nem mesmo olhar para ele!
Chegar perto dela para um cafuné?
Pois é! Aleluia, em momentos como Acabou ficando com um frio na barri-
aquele, ficava que nem um iô-iô: ia e ga só de pensar. Mas o frio na barriga
vinha, subia e descia. E nesse vai-e- foi só no começo. Tinha vezes que
vem, nesse sobe-e-desce, como sua- dava um troço ruim nele que a vonta-
va o coitado! Ah! Bom mesmo era de danada era xingar ela, era brigar
quando ele estava com os colegas do com ela. Depois, ficava jururu, sem
serviço dele. Sentia um friozinho na graça. Aleluia não era homem de xin-
barriga quando pensava no que a gar, de brigar. Ficar mais de esgue-
Quitéria faria no outro dia...mas isso, lha, mais quieto no seu canto, é que
afinal, era só no outro dia! Naquele era mais do seu jeito. Depois, com o
momento, que bom que era ficar ali, tempo, ele já estava ficando era só
rindo das piadas que um fazia sobre mais afastado, mais arredio, sem
o outro; comentando os acontecimen- nem mesmo tentar fazer as pazes; se
tos do dia, ouvindo as estórias dos não adiantava mesmo, então para
outros e - por que não?! – tomando, quê tentar?
sim, um traguinho ou outro, que Ale-
luia era homem de saber até onde ir: Uma coisa engraçada: cada vez que
nunca havia ficado bêbado em toda a a semana cachorra acontecia, Aleluia
sua vida! Era só para alegrar, para ficava cada vez mais pensando em
fazer a conversa ficar mais fácil, para que bom mesmo era se ele pudesse
rir mais fácil. estar se divertindo naquela hora com
os amigos...! Não porque ele se sen-
tisse assim tão bem com eles – o que
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ele sentia sim, se não fosse o frio na Zé podia dizer “sim” com mel na boca
barriga, mas não era só isso, ele sa- e o danado podia também dizer “não”
bia - mas mais porque ele estava se com o mesmo mel. Onde já se viu
sentindo assim tão mal com a Quité- isso?! Até parecia que o Zé não liga-
ria, quando ela ficava de ovo virado. va muito para as pessoas. Bem, não
Diacho de mulher dura, sô: parecia é que não ligava; ligava, mas ligava
até que quanto mais ele tentava che- de um jeito diferente.
gar perto dela, mais ela se afastava
dele! Havia quem gostasse muito do Zé e
Quando a semana cachorra aconte- havia quem não gostasse do Zé. Mas
cia, Aleluia sempre pensava também todos acabavam por respeita-lo, por
no tio Zé. Porque isso, ele também ouvir o que ele falava. É que, com o
não sabia… jeito do Zé, a gente não precisava
ficar imaginando o que ele queria di-
♣♣♣♣♣ zer; quando ele dizia, o que ele que-
ria dizer era o que ele dizia, ora! Até
Zé de Nadir era um velhote magro, mesmo Dona Geni já havia filosofado
espigado, peão moreno do sol de ca- sobre isso:
da dia. Zé de Nadir não sabia ler, não
sabia escrever; mal sabia fazer conta.  No Zé de Nadir a gente pode se
Mas, para lidar com a criação, em fiar. Quando ele fala “sim”, a gente
toda a região não havia ninguém co- confia, porque a gente sabe que, se
mo ele. Cavalo brabo, que não dava ele quiser, ele dá conta de dizer
montaria a ninguém, andava como “não”. Então, o “sim” dele tem valor,
um doce quando o Zé de Nadir lidava não é?”.
com ele. E o que mais deixava todo
mundo de boca aberta: nunca se viu ♣♣♣♣♣
ou se soube que o Zé usasse espora
ou chicote. Como podia? Acontece que Zé de Nadir era sobri-
nho de Dona Afonsina, mãe de Quité-
Cachorrada então, nem falar: quando ria. E, por essa e outras tantas, aca-
o Zé chegava no terreiro, era uma bou por ser convidado e por aceitar
alegria só! Vinha tudo correndo, tudo ser padrinho do filho mais velho dela,
querendo um carinho, tudo pulando. coisa que deu a Quitéria muita alegri-
Zé ria muito quando isso acontecia. a, pois, embora ela não entendesse
Dava um carinho para um aqui, um direito porque é que toda a gente o
pedacinho de pão ali, um assovio do- respeitava, o fato era que toda gente
ce acolá. Pessoa curiosa, Zé de Nadir o respeitava – inclusive Quitéria – e
era também muito severo, muito posi- sempre se soube que o afilhado puxa
tivo. Quando lhe pediam as coisas, o padrinho. Ele não era querido por
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todo mundo, mas e daí? Quem é que uma coisa que era muito dele: ele
era? conversava com o afilhado. Falava,
coisa que quase todo mundo faz, mas
Mas também, embora existisse quem também ouvia, coisa que muito pouca
não gostasse dele, esse não gostar gente faz. Pequeno que fosse o Re-
não era muito grande, porque Zé de nato, boba que fosse a conversa, ele
Nadir não se intrometia na vida dos ouvia o afilhado e respondia que nem
outros, não se via nele intento de pre- se estivesse falando com gente gran-
judicar os outros. O que mais parecia de! Ah! Como brilhavam os olhinhos
é que ele estava mesmo era cuidan- do Renato quando ele estava conver-
do principalmente dele e já não se sando com o padrinho! Como ficava
disse que a gente precisa amar o alegre sempre que o via chegar! Da-
próximo como a gente ama a gente va até uma pontadinha de ciúme em
mesmo? Pois é: se a gente não cuida Quitéria, que não era lá de dar muita
bem da gente, como pode amar os trela para menino.
outros direito? De qualquer jeito, gos-
tado ou não, “Seu” Zé de Nadir era Não me entendam mal: Quitéria ama-
ouvido por todo mundo e, afinal, até va os seus filhos, e amava muito.
mesmo a Geni já havia falado sobre Mas ela havia aprendido que dar mui-
isso com respeito e sabedoria. Talvez ta trela para menino não era bom,
o seu filho Renato pudesse crescer e porque eles perdiam o respeito. O
ser tão respeitado quanto o padrinho! mistério é que Zé de Nadir dava trela
e os meninos não perdiam o respeito:
Vocês sabem que coisa boa não tem parecia até que aumentava, coisa
hora de acontecer e nem o vento pe- esquisita!
de licença para ventar. Não é que
naquele mesmo dia em que Quitéria Bem, cada um tem seu jeito: Quitéria
resolvia parte da sua raiva dando co- era Quitéria e sabia o que fazia. Que
lheradas nas pobres das panelas, Zé ela ficava incomodada quando via o
de Nadir precisou ir ao vilarejo e re- Renato todo chegado ao padrinho,
solveu visitar os compadres e levar ficava. Porque ele não fazia isso com
uns ovos para o afilhado. Quando Zé ela, se ela amava tanto os filhos?
de Nadir ia visitar o afilhado, sempre Pensando nisso, porque até mesmo o
levava alguma coisinha para ele. Coi- Aleluia ficava babando o tio Zé e ra-
sa pouca, é verdade, mas demons- ramente ficava babão com ela, a não
trava sempre consideração, sempre ser quando ele queria fazer as pa-
lembrança, sempre afeto. zes?

Das vezes em que não levava nada, Pensando ainda melhor, porque é
Zé de Nadir levava para o afilhado que embora todo mundo sempre dis-
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sesse que ela era uma mulher muito Nadir e ainda que ela não desse
honesta, muito direita, um exemplo mesmo conta de entender aquela
para os outros, pouco gente chegava pessoa, tão perto dela no sangue e
perto dela para bater um papo, para tão distante no jeito, Quitéria acabava
jogar conversa fora? E pensando um por gostar das visitas do tio, mesmo
pouco melhor ainda, porque tanta que fosse de um jeito enviesado. O
gente falava tão bem dela e tão pou- fato é que ele conversava com ela
ca gente ficava amiga dela? também e, como já vimos, isso não
Quando Quitéria pensava nessas coi- acontecia muito na vida de Quitéria.
sas – o que não acontecia muitas
vezes, é verdade – ela sentia coisas É que Quitéria não era mulher de
muito esquisitas: sentia um nó na confidências e mexericos. Não gosta-
garganta, sentia um aperto no peito, va de fazer, não gostava de ouvir.
os olhos marejavam água. Aí então Achava que cada um deve dar conta
Quitéria tratava logo de pensar outras das suas coisas sozinho e que a gen-
coisas; melhor era quando tinha pela te não deve amolar ninguém com os
frente uma panela e nas mãos uma problemas da gente. Havia aprendido
colher e aí…bem, vocês já sabem: isso com a sua mãe, que havia a-
PAF! PAM! BUM! prendido isso com a sua avó, que
havia aprendido isso com a sua bisa-
 Dia, sobrinha, licença!  dizia o tio vó e, então, Quitéria fazia assim e
Zé, enquanto parava na soleira da pronto! Na verdade, até que, quando
porta da cozinha. mocinha, ela havia sentido falta de ter
alguém com quem poder falar daquilo
 Entra, tio! Chegou na horinha. A- que andava pensando, daquilo que
cabei de passar o café!  Quitéria andava sentindo. Mas foi quando co-
sorria para o tio. Mas os seus olhos nheceu o Aleluia e ficou encantada
não sorriram. A voz de Quitéria foi com ele que ela desobedeceu a sua
educada, passava até mesmo um regra; uma vezinha só! Contou para
certo entusiasmo, mas as sobrance- irmã, que contou para a outra irmã,
lhas estavam franzidas, as costas que contou para a mãe, que contou
duras, os movimentos duros e Zé de para o pai, que criou um caso danado
Nadir, enquanto ia chegando, havia até entender que focinho de porco
bem escutado o paf,pam,bum da co- não era tomada e que o Aleluia, afi-
lher nas panelas e o resmungo que nal, era um moço bom e que não es-
as acompanhava. tava a fim de se aproveitar da filha.

Uma coisa é preciso dizer: embora Daí para frente e pelo sim ou pelo
ela ficasse muitas vezes incomodada não, Quitéria juntou a regra com a
com o jeito meio diferente do Zé de experiência: em boca calada não en-
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tra mosquito! Verdade! Não entra


nem mosquito, nem doce, nem qui- Zé de Nadir não era pessoa de ficar
tanda, nem chocolate: em boca fe- encucada com esse tipo de coisa. A
chada não entra nada! Mas a essa maioria das gentes, ele já havia nota-
outra parte da boca fechada, Quitéria do, parece que pensa que tudo o que
não estava atenta e, assim, se calada acontece no mundo, acontece só por
era, mais calada ficou. Às vezes, causa delas. Ou, se não pensa as-
quando as coisas apertavam, sentia sim, age como se pensasse. Se al-
até uma comichão na língua, mas, na guém está de cara amarrada, é por
mesma hora, se lembrava da encren- causa delas; se alguém as cumpri-
ca do Aleluia e acabava por seguir a menta meio de lado, é por causa de
sua regra: boca fechada! alguma coisa que elas “acham” que o
outro “acha” que elas fizeram; se um
Como já lhes contei, Zé de Nadir era convidado não vai a uma festa, é
danado de esperto. Nada do que ha- porque ele não gosta de quem convi-
via visto havia escapado aos seus dou, e por ai vai. Coisa engraçada: é
olhos. Gostava de Quitéria. Doeu-lhe como se o outro não tivesse uma vida
ver aquele jeito dela, o de falar uma dele, como se tudo o que aconteces-
coisa com a boca e outra com o cor- se com o outro tivesse a ver comigo!
po. O que poderia ter acontecido? Já Parecia até que cada um pensava
tinha percebido antes - poucas vezes, que ele era a única fonte do bem e do
é verdade - um certo clima mais pe- mal no mundo!
sado entre o casal, certos silêncios
cheios de falta de graça, preenchidos Zé de Nadir, por sua vez, sabia que
custosamente por comentários de não era bem assim. Sabia disso por-
ocasião. que gostava de observar o que ele
mesmo fazia. Muitas vezes, Zé de
Mas até aquele dia jamais havia visto Nadir estava de cara amarrada por-
Quitéria tão afetada! E onde estava o que tinha muitas contas e pouco di-
sobrinho emprestado, o Aleluia? E o nheiro; cumprimentava alguém meio
seu afilhado, Renato? Não os viu e brusco porque estava com muita
nem perguntou por eles. Haveria pressa; não ia a uma festa porque
tempo. Primeiro, Quitéria, que era precisava cuidar de algum serviço
quem estava ali e que parecia não urgente ou, às vezes, porque sim-
estar lá muito contente. plesmente estava cansado demais:
não tinha nada a ver com o outro!
 Ô, tio, o senhor fica para o almoço,
não fica?  disse Quitéria. Zé de  Ora,  falava Zé de Nadir com os
Nadir olhou e viu: mais uma vez, a seus botões  se isso funciona as-
boca sorria; os olhos não. sim comigo, porque seria diferente
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com as outras gentes? Por acaso eu  Então eu vou pegar um franguinho


não sou como eles? Não sou seme- no terreiro para fazer um molho pardo
lhante? que acho que o senhor vai gostar
muito.
E assim, Zé de Nadir não tomava
como ofensa o que podia não ser o-  Bobagem, Quitéria. Precisa ir bus-
fensa. Dava tempo ao tempo, deixava car o frango, não. É frango de casa,
a água correr solta e ia observando a não é? Então! Chama ele, que ele
espuma…se fosse com ele, cedo ou mesmo vem para cá.
tarde saberia. Foi por isso que aquele
jeito de Quitéria, diferente do habitual,  Ô, tio. Lá vem o senhor de novo
não o preocupou muito. com as suas idéias...  respondeu
Quitéria que, naquele dia, não estava
 Fico sim, Quitéria. Obrigado! Você lá muito paciente com novidades.
sabe que nunca resisto a sua comida:
seu tempero é especial de bom. Zé de Nadir riu uma risada gostosa,
daquelas que só sabe dar que sabe
Quitéria gostou de ouvir isso; gostou também chorar de vez em quando.
mais ainda porque quem estava fa- Não falou nada. Foi até a beira do
lando era o Zé de Nadir. Ela se lem- fogão, tirou com uma colher um pou-
brou de uma vez que havia lhe servi- co de angu, foi para a porta do terrei-
do um café e lhe perguntou se estava ro e chamou:
bom. Ele respondeu que sim, mas
que preferia o café um pouco mais  Pruu, tchiu, tchiu; pruuuu, tchiu,
forte. Então? Se ele estava falando tchiu, tchiu...!  Na mesma hora, a
que gostava do tempero do jeito que galinhada veio toda correndo para a
ela fazia…ora, é porque ele gostava porta. Zé de Nadir jogou uma bolinha
do tempero do jeito que ela fazia! de angu para elas e, picando o resto
nas mãos, fez um caminhozinho de
Éééé; Zé de Nadir não era uma pes- bolinhas de angu. Logo, logo, tinha
soa difícil de lidar, se a gente enten- três ou quatro frangotes no chão da
desse o jeito dele. Na verdade, agora cozinha.
que ela pensava nisso, Zé de Nadir
era até mesmo mais fácil de lidar do  Algum desses serve, Quitéria? 
que a maioria das pessoas, que qua- perguntou-lhe o tio Zé.
se nunca falam o que querem, o que
gostam, e a gente tem que ficar adi-  Aquele ali, o de pescoço pelado,
vinhando; trabalheira besta! está bom, tio.  respondeu Quitéria,
que estava entretida, porque nunca
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havia pensado naquele jeito esquisito falar para ele mesmo de um jeito
de pegar frango. pouco comum. Ele não ficava pen-
sando se fulano era assim ou assado,
Zé de Nadir, que já havia fechado a se ele fazia isso ou aquilo porque
porta que dava da cozinha para a gostava ou porque queria.
sala, fechou a porta do quintal, en-
quanto não parava de jogar umas Talvez por lidar com a criação desde
bolinhas de angu para entreter os pequenininho, com bichos, que não
frangos que ficaram presos na cozi- falam com a boca e nem são assim
nha. Pegou um balaio, segurou uma ou assado - ou, se são, o povo não
das beiradas dele com uma mão e o diz por seguro que são e nem a gente
emborcou, com a outra beirada apoi- pode saber ao certo; e que se gostam
ada no chão. Continuou jogando boli- ou se querem alguma coisa a gente
nhas de angu, fazendo um caminho também não sabe ao certo, porque só
para debaixo do balaio. Quando to- de ver não dá para saber o que acon-
dos os quatro frangotes estavam lá, tece ou não dentro deles – o que Zé
vupt!, ele deixou cair o balaio. de Nadir fazia era ficar observando,
vendo o que acontecia no mundo a
“Cocoricó” para cá, “cocoricó” para cada vez, antes que as galinhas cor-
lá…mas já era tarde. Zé de Nadir en- ressem para um lugar só, que nem
fiou a mão por baixo do balaio e deu um bando formigas em correição.
sorte: o primeiro frangote que pegou Observava o que estava acontecendo
era o do pescoço pelado, que foi tri- no mundo antes de cada vez que um
unfantemente entregue nas mãos de cavalo refugava um salto, antes de
Quitéria. cada vez que um boi ameaçava dar
uma chifrada. Era simples assim!
♣♣♣♣♣
Zé de Nadir olhava, via, observava e
Zé de Nadir, como já lhes contei, não aprendia. Por exemplo, toda vez que
era estudado. O que o tio Zé da Qui- se jogava comida numa direção, a
téria sabia fazer muito bem, era olhar galinhada toda corria para aquele
para as coisas e para as pessoas e lugar. Talvez elas quisessem, talvez
ver, porque tem gente que olha, mas elas gostassem; isso não se pode
não vê. Não era só olhar só assim, saber, pois, afinal, quem é que já en-
com os olhos da cara, não! Parecia trou dentro de uma galinha para ver o
que ele olhava com o corpo todo: a- que ela gosta ou quer? O que o Zé de
tento que nem uma garça quando vê Nadir sabia ao certo era que, ao cair
o peixe na água. De tanto olhar e ver, da tarde, era preciso que a galinhada
“Seu” Zé, tio Zé ou Zé de Nadir, que entrasse no galinheiro. Isso era bom
afinal é uma pessoa só, começou a para o Zé, porque assim os gambás e
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as raposas não comiam as suas gali- pre levava um pouco de sal ou um


nhas. punhado de milho no bolso. Tirava o
sal do embornal e, enquanto ia che-
Assim, quando Zé de Nadir queria gando devagar e cantando o aboio,
que as galinhas entrassem no gali- acenava delicadamente a mão na
nheiro, ora, ele jogava a comida lá direção do boi, com o sal ou o milho
dentro e depois fechava a porta e na palma aberta. E não é que o da-
pronto! Dava certo e por isso o Zé de nado vinha? Vinha bonito, sem dar
Nadir fazia isso sempre. Ficar tocan- cabeçada nem nada. Nem sempre
do as galinhas, gritando “chô!, chô!” dava certo, é verdade. Mas dava
era muito mais complicado, demorava mais certo do que dava errado e por
mais e, na maioria das vezes, algu- isso Zé de Nadir continuava fazendo
mas galinhas burras acabavam fugin- isso.
do para o mato, o que dava mais tra- ♣♣♣♣♣
balho ainda. Melhor mesmo jogar a
comida no lugar que ele queria que Voltemos à cozinha de Quitéria. Mal
elas fossem. havia acabado de passar o frango
para a sobrinha quando Zé de Nadir
E quando um boi ameaçava dar uma ouviu o raspar suave das patas do
cabeçada? Ah, alguma coisa aconte- Pastéis, arranhando a porta do terrei-
cia antes, alguma coisa que assusta- ro. Pastéis era um cachorrinho vira-
va ou ameaçava o boi. Se essa coisa latas que, um dia, chegou em casa
que assustava o boi pudesse ser evi- seguindo o Aleluia.
tada, talvez o boi não desse mais ca-
beçadas, pensava Zé de Nadir. Se Aleluia e seus amigos estavam num
dava certo com todas as outras coi- dos papos de fim de serviço, comen-
sas que podiam assustar um boi, Zé do pastéis como tira-gosto e forra-
de Nadir não sabia, mas ele passou a barriga, quando aquele cachorrinho,
chegar mansinho, sempre que ia re- magrelo e assustado, aproximou-se
colher os bois. Já de longe, começa- da mesa para lamber os farelos que
va a cantar o aboio, aqueles cantos haviam caído no chão.
sem palavras, mas que pareciam a-
calmar os bois:  Ôôôô…ei Já lhes disse que Aleluia era um ho-
boi…chum, chum, chuuum!”. mem bom. Ele não vacilou: tirou um
pedaço do pastel que estava comen-
Cantava suave, espichando os sons, do e deu para o cãozinho que, famin-
meloso. Como a estória da comida to como estava, o devorou de uma só
dava certo com as galinhas, Zé de vez.
Nadir pensou que talvez desse certo
também com os bois e por isso sem-
12

 Pouco para mim, pouco para poderiam ficar com o Pastéis, mas
ele!  pensou Aleluia. Com o troca- só se eles mesmos cuidassem dele.
do que lhe sobrara do leite que com-
prara para levar para casa, comprou  E ele que fique morando no paiol,
um pastel inteirinho só para o ca- se quiser.  disse Quitéria, severa
chorrinho. Isso foi o quanto bastou como sempre.  Por tudo o que é
para que o cachorrinho o acompa- mais sagrado, eu NÃO ADMITO ca-
nhasse, quando finalmente Aleluia se chorro vagabundo dentro da minha
levantou para ir para casa. E não casa!  falou, enquanto o seu olhar
houve xingamento ou ameaça que o fulminante procurava o Aleluia, que
fizesse desistir. Cada vez que Aleluia nessa altura já estava meio encolhi-
se virava e numa raiva fingida batia o do num canto da sala, na esperança
pé para afastar o cãozinho, o cãozi- secreta de ficar invisível enquanto a
nho dava uma paradinha…ficava o- patroa e os meninos resolvessem o
lhando meio duvidoso…e recomeça- problema lá entre eles.
va a acompanhar o Aleluia.
Quando o pai contou a história do
Não teve jeito. Quando Aleluia acor- encontro, ninguém teve dúvida: o ca-
dou no dia seguinte, lá estava o Pas- chorrinho iria se chamar Pastéis.
téis, dormindo enrolado na soleira da
porta da sua casa e tiritando de frio. Pastéis ficava sempre fora de casa,
Isso foi demais para o Aleluia! Mes- como combinado, mas havia duas
mo com medo da reação de Quitéria, ocasiões em que essa regra podia
Aleluia foi pé ante pé até a cozinha, ser desobedecida sem maiores ris-
pegou um bom naco de angu, pôs cos: a primeira, quando Quitéria es-
numa folha de bananeira e levou pa- tava com evidente bom humor. Nes-
ra o Pastéis. Pensava em lhe dar o ses raros dias, Aleluia costumava
café da manhã e, logo depois, ver se ficar na cozinha, sentado no banqui-
arrumava um bom dono para ele. nho de madeira perto do fogão, o-
lhando a sua Quitéria vivendo – co-
Pensava! Nesse meio tempo, Renato mo ele gostava disso! Era então
e Rubens, seus filhos, vieram ver o permitido ao Pastéis entrar na cozi-
que o pai fazia e o encontro deles nha e enroscar-se aos pés de Alelui-
com o Pastéis foi o início de um a- a. A segunda, era por ocasião das
mor para o resto da vida, que nem visitas do tio Zé.
mesmo o azedume de Quitéria, que
resmungou alguma coisa sobre “va- ♣♣♣♣♣
gabundo atrair vagabundo”, foi pode-
roso o bastante para impedir. Ficou Zé de Nadir tinha mesmo um jeito
então combinado que as crianças especial com criação e, para lhes
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provar isso, conto uma história. Pas- o tio Zé e, se o Pastéis podia às ve-
téis tinha uma mania danada de cha- zes ficar na cozinha, perto do Aleluia,
ta: tentava lamber a mão dos amigos. ora, podia também ficar lá perto do tio
Coisa de cachorro, vocês sabem co- Zé.
mo é. Até mesmo o Aleluia já tinha
passado vários pitos e dado mais de E lá ficavam, o Pastéis e o tio Zé, la-
uma cocada no Pastéis por causa do a lado. Com a amizade crescendo,
disso. Quitéria, afinal, não devia ser tio Zé ficava lá na cozinha, sentado,
amiga no entender do Pastéis. Ele só olhando, vendo, conversando e qua-
tentou lamber a mão dela uma vez. se sempre deixava a mão cair e co-
Foi uma tapona no focinho que nunca çava a orelha do Pastéis, roçava sua
mais, para orgulho de Quitéria, que cabeça. Era evidente a alegria do
julgava saber lidar com bicho e com Pastéis! E, acreditem, o Pastéis não
gente. tentava lamber a mão do tio Zé nem
uma vez!
Pastéis lambia a mão de todo mundo
que era amigo, menos a do Zé de Pois é; tenho que repetir: Zé de Nadir
Nadir. Não que tivesse sido assim era mesmo danado de observador.
desde o começo. O que aconteceu Vocês já sabem da história de como
desde o começo foi que o Pastéis se ele achou um jeito diferente de lidar
tomou de amores pelo tio Zé, coisa com as galinhas e os bois. Bem, tal-
bastante impressionante, porque o tio vez não um jeito diferente, porque
Zé nem mesmo festa para ele fez, outras pessoas também faziam isso.
quando o conheceu. Simplesmente Mas a maioria fazia isso porque dava
chegou, como era do seu costume e, certo. Só por isso.
quando estava parado na soleira da
porta da cozinha, viu o cachorrinho Que eu saiba, nenhum deles tinha
que, avançando e recuando, tentava pensado sobre isso do jeito que Zé
se aproximar dele. Não fez nada. Fi- de Nadir havia pensado. Ora, se pen-
cou ali…parado. sar é falar com a gente mesmo, então
o que Zé de Nadir sabia era falar so-
Com o tempo, Pastéis acabou sendo bre aquilo que fazia. Cada vez que
vencido pela curiosidade. Aproximou- uma situação parecida com aquela
se e cheirou a barra da calça do tio acontecia, Zé de Nadir se lembrava e
Zé. Foi só aí então que o tio Zé olhou tentava falar sobre ela do mesmo jei-
mesmo para o Pastéis e lhe esfregou to. Experimentava. Funcionava quase
a cabeça. Mais nada. A partir desse sempre.
dia, era o tio Zé chegar, era o Pastéis
se aproximar. Quitéria, por severa e Assim, Zé de Nadir não precisava
correta que fosse, também respeitava ficar aprendendo primeiro como lidar
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com galinhas, depois como lidar com sa só para cientista, não; é coisa para
bois, depois como lidar com cavalos, qualquer um que não fica só repetin-
um de cada vez e como se uma coisa do o que aprendeu: gente que é inte-
não tivesse nada a ver com a outra. ligente. Ele então trocou os grãos de
Ele podia passar de uma coisa que milho por pedrinhas do mesmo tama-
dava certo com um, direto para o ou- nho e quase da mesma cor. Tendo
tro, ganhando tempo. feito isso, ele chegava e fazia o antes
igualzinho como se fosse jogar o mi-
Zé de Nadir já havia aprendido que lho, mas jogava as pedrinhas.
algumas coisas que acontecem no
mundo antes de algumas outras coi- E adiantava? No começo sim. Toda
sas podem até mesmo servir para a vez que ele jogava as pedrinhas, lá ia
gente saber se a outra coisa vai a- a galinhada em disparada na direção
contecer. Se cada vez que um bichi- delas. Algumas até mesmo tentavam
nho voa na direção do rosto da gente, bicar as pedrinhas. E de outra vez: a
a gente pisca o olho, então, se eu mesma coisa. E de outra. E ainda de
vejo um bichinho voado na direção do outra. E de muitas outras. Mas, Zé de
rosto de um amigo meu, eu posso Nadir observou, já não eram mais
quase apostar que ele vai piscar o todas as galinhas que saiam corren-
olho. Mais até do que isso: e se eu do. Umas, sim, saiam correndo sem-
quiser que ele pisque o olho? Fácil: pre. Mas uma parte delas, depois de
pego um pedacinho de papel e sopro muitas pedrinhas jogadas, já não cor-
na direção do rosto dele: ele pisca o ria mais. Até que iam, mas parecia
olho! que iam mais para conferir do que
pondo fé…
Mas e o que acontece depois que
alguém faz alguma coisa? Faz dife- Zé de Nadir insistiu nisso. Estava cu-
rença? Assim: eu jogo a comida para rioso. Queria saber por quanto tempo
as galinhas. Isso é o antes. As gali- as galinhas poderiam ser enganadas.
nhas correm na direção da comida, Zé de Nadir descobriu que elas podi-
isso é o “do meio”, aquilo que as gali- am ser enganadas por um bom tem-
nhas fazem. E o que acontece de- po, mas não todas elas e nem o tem-
pois? Ora, as galinhas comem a co- po todo. Já no finalzinho da experiên-
mida. E se eu jogasse uma coisa que cia, quase galinha nenhuma caia
elas não pudessem comer? O que mais nessa esparrela, pelo menos
aconteceria? não quando era ele quem jogava as
pedrinhas…
É claro, vocês já adivinharam! Dana-
do de ativo, Zé de Nadir tratou de Mas vejam a novidade da experiên-
fazer uma experiência, que não é coi- cia: Zé de Nadir já havia descoberto
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que certas coisas que acontecem no que acontecia depois que alguém
mundo antes fazem diferença para o fazia alguma coisa.
que as galinhas fazem ou deixam de
fazer, o do meio. Ele já sabia que jo- Alguém: bicho ou gente! Zé de Nadir
gar o milho fazia com que as galinhas sabia, é claro, que bicho é bicho e
corressem na direção em que eles que gente é gente. Mas que diacho,
caíam. Então, o antes influenciava o porque o que funcionava com um ti-
do meio, o que as galinhas faziam. nha que não funcionar com o outro?
Como se fosse uma espécie de obri-
Mas quando ele começou a se per- gação? Bem, é claro que gente e bi-
guntar sobre o depois, se o que acon- cho não são iguais. Mas são tão de-
tecia depois do do meio tinha também siguais assim? Tem muita coisa que
alguma influência no do meio, uma eles fazem até de maneira diferente
coisa engraçada aconteceu: ele fez o da gente, mas no fundo fazem como
antes igualzinho como sempre fazia e a gente faz: por exemplo, comem,
esse antes passou a não dar mais o dormem, correm, gritam quando se
mesmo resultado. Será que era por- machucam, saram quando tomam
que o depois era diferente: no lugar algum remédio…será?!
de comida, as galinhas encontravam
pedrinhas? Então, o que as galinhas Sabido Zé de Nadir era, mas ele era
faziam, o do meio, podia mudar, con- também muito humilde: queria apren-
forme o que acontecesse antes e der mais. Por isso, ele começou a
também conforme o que acontecesse fazer algumas experiências e viu que,
depois? em muitas delas, bicho e gente não
eram assim tão diferentes.
Só tinha um jeito de saber: Zé de Na-
dir voltou a jogar o milho! E não é que Por exemplo, quando a sobrinhada
bem mais depressa do que haviam dele ia visitar o sítio, Zé de Nadir cos-
parado de correr na direção da “co- tumava por a mesa do café e gritar
mida” falsa elas voltaram a correr na para a meninada que estava brincan-
direção da comida verdadeira?! E do no terreiro:  Hora da bóia, gee-
nisso tudo ele não tinha mudado o ente!!!  e não era que a meninada
antes. Só mudou o depois e isso fez vinha correndo para dentro que nem
diferença: o do meio também muda- as galinhas?! Éééé; pelo menos nisso
va, quando o depois mudava! não pareciam ser assim tão diferen-
tes…
A partir daí, é claro que se Zé de Na-
dir já estava atento ao que acontecia Pastéis! Como tudo indicava que o
antes, ficou também muito atento ao Pastéis desde logo incluiu o tio Zé na
lista dos seus amigos, é claro que ele
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tentou lamber a mão do Zé de Nadir. que o mundo continuava tão difícil?


E foi aí que a diferença mais uma vez Por que a gente continuava a fazer
apareceu. coisas que machucavam pessoas
que na maior parte das vezes a gente
Zé de Nadir já havia observado a luta não queria machucar? Por que a gen-
do povo da casa com as lambidas do te continuava a fazer coisas que sa-
Pastéis. Já tinha visto que os xinga- bia que não devia, que até mesmo
mentos e as cocadas na cabeça adi- não queria e ainda assim fazia? Por
antavam sim, mas só por algum tem- falta de pancada, xingamento e bom
po. Já tinha visto isso acontecer com conselho é que não é!
o Pastéis e em muitas outras situa-
ções. Por exemplo, Zé de Nadir se Zé de Nadir pensou então que se ele
lembrava que o seu pai sempre bri- fizesse igual aos outros, dando pan-
gava com ele porque ele não gostava cada, xingamento e bom conselho -
de estudar. Quando o pai brigava embora ele acreditasse que não ia ter
com ele, por um ou dois dias até que jeito de dar bom conselho para um
ele se sentava lá com o livrinho na cachorro - porque haveria ele de ob-
mão, fazia umas garatujas no cader- ter resultados diferentes dos outros?
no, ficava mais quieto. Mas só por O mais certo é que tudo ia ficar que
alguns dias. Era só pai se esquecer nem o que acontecia com os outros:
de ficar de cima dele que ele também lambida, cocada; passa um pouqui-
se esquecia de estudar e, com pouco nho de tempo, é lá vem tudo de novo:
tempo, lá estava ele de novo, mexen- lambida, cocada…lambida, cocada,
do com a criação no lugar de fazer o um tico de tempo e mais lambida e
dever da escola! E de muitos outros cocada…sem parar…
exemplos Zé de Nadir se lembrou.
Zé de Nadir resolveu então fazer dife-
 Éééé;  falava consigo mesmo o rente. Quem sabe se ele pudesse
Zé de Nadir.  pancada, xingamento mudar o antes e o depois, o do meio
e bom conselho são tudo o que todo ficava diferente? O do meio, aquilo
mundo costuma ganhar quando faz que o outro faz e que a gente preferi-
alguma coisa errada! Se pancada, ria que mudasse, a lambida do Pas-
xingamento e bom conselho fossem téis. Quem sabe? E se não desse
bons para mudar o mundo, o mundo para mudar o antes, quem sabe se
então já não devia estar mudado? então ele mudasse somente o depois
Não era esse o remédio que vinha ainda assim o do meio mudaria?
sendo distribuído com tanta fartura
desde que o mundo era mundo? Não Quando o Pastéis tentou a sua pri-
era esse o depois que acontecia meira lambida, Zé de Nadir não fez
quando alguém errava? Então? Por- nada: não xingou, não bateu. Somen-
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te tirou a mão de perto da cara do mesmo nisso: experimentem vocês


Pastéis e ficou de olho. Passado um mesmos e depois me contem.
pouquinho, Pastéis desistiu de ficar
com a cabeça levantada e a pôs en- Afinal, para saber se um bolo é mes-
tre as patinhas. Zé de Nadir então mo bom, só tem um jeito: provar um
baixou de novo a sua mão e fez um pedaço dele, não é mesmo? Fazer a
agrado na cabeça do cachorrinho. prova! Quem fizer a prova, saberá.
Pastéis tentou outra lambida. Zé de Quem não fizer…bem, quem não fi-
Nadir tirou de novo a mão e deu um zer não vai ter como saber, não é
tempo nem ligando para o Pastéis. mesmo? Vai poder é só ficar discu-
Quando novamente o Pastéis ficou tindo num sem fim: será que sim, se-
quieto, Zé de Nadir baixou de novo as rá que não…será que não, será que
mãos e deu um agrado nas orelhas sim?
do Pastéis. Mais uma tentativa de
lambida, mais uma retirada da mão. E ♣♣♣♣♣
assim foi. Uma, duas, dez vezes! Se
o jogo era de paciência, Zé de Nadir Meus amigos, essa vida pode ser
tinha boas chances de ganhar! O que muito engraçada! Tem dias em que a
Zé de Nadir fez foi só isso: só fazia gente se levanta de manhã e é tudo
carinho no Pastéis quando ele passa- igualzinho a qualquer outro dia: o
va um tempo sem tentar lamber a sua mesmo sol, a mesma sensação da
mão e quando ele estava fazendo água fria no rosto, o mesmo gosto do
alguma coisa que não incomodava. primeiro cafezinho. E aí, sem mais
nem menos, BUM!, tudo muda. Cai a
O que aconteceu? Cada vez menos o panela no pé da gente e lá vamos
Pastéis tentava lamber a mão do Zé nós, não mais para o trabalho ou para
de Nadir. Cada vez mais ele ficava a escola, mas para o médico! E
quietinho, só aproveitando do cari- quando, às vezes, a gente chega per-
nho. E isso foi…foi…até que, depois to de uma amigo e diz para ele, como
de algum tempo o Pastéis nem mes- sempre diz: “Fulano, tudo bem com
mo tentava lamber a mão do Zé de você?” E aí ele cai num chororô de
Nadir. dar dó, de cortar o coração? Pois é;
uma coisinha de nada, um preguinho
Ahá! Vejo que alguns de vocês pare- mais besta que se solta numa escada
cem estar duvidando desse fazer di- …e tudo muda da água para o vinho,
ferente! Está certo: quando uma coisa do fogo para o gelo.
nova aparece, a gente fica mesmo
sem saber ao certo se pega ou se Não é que foi a danada da lambida
larga. Mas existe uma saída: faço um do Pastéis, lambida que por sinal
desafio a vocês! Não acreditem nem aconteceu, que foi o BUM! da
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Quitéria naquele dia? Tudo muito i-


gual: tio Zé chega, tio Zé senta. Pas-  Por que, por que, POR QUE, meu
téis entra, Pastéis se enrosca aos pés Deus?  se perguntava ela  Por
do tio Zé. tio Zé baixa a mão, tio Zé que comigo, que sou tão correta, tão
esfrega a cabeça do Pastéis e o Pas- direita, que faço tudo tão direitinho,
téis nem tentou lamber a mão do tio que nunca deixei uma obrigação mi-
Zé. nha por cumprir? Por que até o raio
Foi só isso o que a Quitéria viu. Coisa desse cachorro não chega perto de
que já havia visto antes, muitas e mim e, da única vez que chegou, quis
muitas vezes. Mas, sejamos justos, me lamber? Por que todo mundo cor-
nunca havia visto aquilo com a mes- re para ver o tio Zé quando ele che-
ma quantidade de raiva que ela esta- ga, até essa droga de cachorro? E
va sentindo naquele dia e naquela por que essa droga de cachorro pelo
hora. E então...BUM! menos não TENTA lamber as mãos
dele?!!!
Quitéria explodiu! A primeira coisa
que Quitéria sentiu foi um fogo subin- E enquanto Quitéria achava que es-
do do peito para a cabeça. A cabeça tava “pensando isso”, ela estava fa-
inchou, parecia. A vista turvou: Quité- lando isso! Falando mesmo, em voz
ria viu tudo vermelho. Ela nem mes- alta. Isso e muito mais. Como numa
mo percebeu que havia cambaleado enxurrada de chuva forte, Quitéria
na beira do fogão e que agora estava estava falando da sua tristeza com o
sentada no banquinho, ao lado do tio Aleluia. Contando suas raivas, suas
Zé. Nem percebeu que estava tre- tentativas de mudar aquele compor-
mendo, nem percebeu que estava tamento do Aleluia que tanto a desa-
chorando até ouvir um barulho estra- gradava, do medo que tinha de viver
nho. Com esforço, descobriu que o outra vez o que a sua mãe vivera, de
barulho era o do seu choro e que a que os seus filhos sofressem o que
água que pingava nas suas mãos era ela sofrera!
a das suas lágrimas.
Zé de Nadir já havia lidado com chi-
Foi a custo que Quitéria se deu conta fradas de boi assustado, lembram-
de que o tio Zé havia passado o bra- se? Quietinho, ele ficava só esfre-
ço nos ombros dela e que ela, com a gando o ombro de sua sobrinha, sua-
sua cabeça apoiada nos ombros do ve, amigo. E quando a torrente virou
tio, chorava com o abandono e a ino- um riozinho fraco, ele começou a fa-
cência de uma criança. Fun- zer o seu aboio:  Shhh! Chora, Qui-
do...sentido! Foram só alguns instan- ta, que isso é bom...o choro é o ba-
tes, mas, para a Quitéria, duraram nho da alma…shhhh. E assim ia:
uma vida! sons sem sentido, palavras amigas,
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licença para sofrer, licença para do- no bar do Cuca com os amigos...!
er… Aleluia chega em casa: o frio na bar-
riga aperta. Vontade de não estar ali,
Como toda enxurrada, esta também vontade de ter ficado mais algum
aos poucos foi se acalman- tempo com os amigos, onde estava
do…acalmando…até virar um riachi- tão bom! Aleluia vai para a cama.
nho manso, onde a água continuava Deita-se.
a correr, mas a correr sem pres- O depois...! Quitéria vira para o outro
sa…só correndo, assim por correr. lado. Aleluia se aperta na beiradinha
Foi aí que o tio Zé começou a falar. dele, dorme incomodado. Acorda.
Tão manso quanto antes, mas, agora, PAF! PUM! PAM! Aleluia nem tem
uma firmeza nova estava nas suas ânimo para se levantar. Melhor ficar
palavras, no tom da sua voz. Tudo ali mesmo. Mas se levanta. Quitéria
tendo ouvido, pensando no antes, no está na cozinha. Aleluia fica na sala.
do meio e no depois, tio Zé falava. Quitéria vai para a sala. Aleluia entra
na cozinha. Quitéria volta para cozi-
Ninguém ali era boi ou galinha. Era nha. Aleluia vai para o terreiro, dá a
gente e gente que ele amava e ele volta, entra pela sala, pega as suas
sabia disso. Mas sabia também que o ferramentas e sai de fininho para o
que ele sabia com a força da experi- trabalho.
ência era o melhor que ele podia ofe-
recer. O antes, o do meio e o depois. E um outro antes: Aleluia chega ao
O antes, o do meio e o depois... trabalho. Meio macambúzio, meio
calado. Um colega brinca, o outro
♣♣♣♣♣ responde. Outro brinca, e o outro, e o
outro. Aos poucos, Aleluia começa
O antes...! Aleluia cansado do traba- também a brincar. Aos poucos es-
lho. Aleluia saindo com os amigos, a quece. Aos poucos vai ficando alegre,
conversa amiga, a camaradagem. A o ânimo volta. Até a hora do fim do
passagem em frente ao boteco. A serviço. Voltar para casa…ver a Qui-
cara amiga do Cuca, o dono do bote- téria de cara amarrada…nem uma
co, sorrindo de gosto. palavra! Comida fria na me-
sa…enfrentar isso tudo…
O do meio...! A parada no balcão pa-
ra o papo sem compromisso e um Aleluia cansado do trabalho. Aleluia
trago da “branca. Só um traguinho. saindo com os amigos, a conversa
Tão bom, tão gostoso. amiga, a camaradagem. A passagem
em frente ao boteco. A cara amiga do
Aleluia vai para casa. O frio na barri- Cuca, o dono do boteco, sorrindo de
ga aumenta. Tão diferente de estar lá gosto. A parada no balcão para o pa-
20

po sem compromisso e para um trago da bola, senão ela vai bater no seu
da branca. Só um traguinho. Tão vaso. O que você precisa fazer? Vo-
bom, tão gostoso. cê, Quitéria, tem primeiro que mudar
o seu comportamento. Se você esti-
Aleluia vai para casa. O frio na barri- ver sentada, vai ter que levantar para
ga aumenta. Tão diferente de estar lá tocar nela, para mudar a direção dela.
no bar do Cuca com os amigos...! No mínimo, vai ter que jogar alguma
Aleluia chega em casa: o frio na bar- coisa nela, bater nela com um pau,
riga aperta. Vontade de não estar ali, uma vassoura, sei lá. Mas de um jeito
vontade de ter ficado mais algum ou de outro, você vai ter que mudar
tempo com os amigos, onde estava primeiro, porque senão a coisa pro-
tão bom! Aleluia vai para a cama. vavelmente não vai mudar, a não ser
Deita-se. por acaso ou por outras razões. Mas,
às vezes, você não vai poder apostar
Quitéria vira para o outro lado... nesse acaso, não é mesmo? Pode
não dar tempo...
♣♣♣♣♣
 Sniff?
 Quita? Quitéria!
 É sim, Quitéria. Sozinha é que a
 Fong? Buuu, huuu! bola não vai mudar de direção, prin-
cipalmente se estiver indo para baixo,
 Quitéria, minha filha, me escuta não é?
um pouquinho.
 O que, tio?
 Fong?
 Isso que eu estou falando, Quité-
 Se você quer mudar alguma coisa, ria. Pense um pouco comigo: toda
qual é a primeira coisa que você pre- vez que o Aleluia chega meio alto, o
cisa fazer? que acontece? Sempre a mesma coi-
sa: você briga com ele, põe ele de
 Buuu, huuuu, snifff? castigo, modo de dizer. Está adian-
tando?
 Eu te digo: a primeira coisa que
você precisa fazer é mudar o seu  Ele – buuu – fica um tempão sem
comportamento, aquilo que você está – sniff – fazer isso de novo – huuu!
fazendo. Imagine, por exemplo, que
uma bola está vindo rolando em dire-  Fica. Você disse. Mas volta a fa-
ção ao seu vaso de flores, que está zer, não é? Pode demorar, mas volta!
no chão. Você quer mudar a direção
21

É só tudo voltar ao normal, é só ele você é você e o Aleluia é o Aleluia.


esquecer que ele faz de novo, não é? Cada um é cada um. Cada um é pa-
recido, mas é também diferente do
 É, mas... outro. Além do mais, a casa da sua
mãe não é a sua casa. Algumas coi-
 Quitéria, isso não está adiantando sas que você aprendeu lá vão dar
muito, não é? Atrasa o problema, certo também aqui. Mas só algumas
mas não está resolvendo, não é? coisas. Outras não, porque são pes-
Pois bem: vou lhe dizer agora um soas diferentes, em lugares diferen-
segundo segredo que aprendi. Fun- tes, num tempo diferente.
ciona com gente ou bicho, pode ex-
perimentar. A segunda coisa que vo-  Isso até que é verdade…mas, tio,
cê precisa fazer quando você quer eu já estou fazendo diferente da mi-
mudar o comportamento de um viven- nha mãe e tudo fica se repetindo o
te que tem o poder de ir e vir por si tempo todo…
mesmo, é que ele “goste” de ficar
perto de você não é? Com ele longe  Mas, filha, se você está repetindo
de você, com medo de você, fica tudo sempre a mesma coisa a cada vez,
mais difícil, não é mesmo? não está claro que o que você está
fazendo não é o melhor a ser feito?
 Mas eu NÃO ADMITO... Mesmo que seja algo diferente daqui-
lo que sua mãe fazia? E uma coisa
 Quitéria, filha, você pode não ad- lhe digo, Quitéria: vão continuar se
mitir o que você quiser. Isso não vai repetindo. Enquanto a gente fizer o
mudar o mundo. Você não admite que sempre fez, o mais certo é que
que o Aleluia dê lá suas fugidas de vamos conseguir o que sempre con-
vez em quando. Bem, ele continua seguimos, não é? Como poderia ser
dando, não é? Você não admite que de outro jeito? Como você poderia
o Rubens saia para o terreiro na hora fazer um bolo exatamente do mesmo
do almoço, mas ele continua saindo, jeito que sempre fez, com as mesmas
não é? Você pode não admitir o que medidas, com o mesmo tempo no
quiser, mas se você não fizer diferen- mesmo forno, na mesma temperatu-
te, as coisas provavelmente vão con- ra, e querer que o bolo fique diferen-
tinuar do mesmo jeito: você não ad- te? Não vai ficar diferente: não pode!
mitindo e as coisas acontecendo... Se você quiser um bolo diferente, de
gosto diferente, vai ter que fazer o
 Mas, tio, minha mãe... bolo de um jeito diferente, não con-
corda?
 Não, Quitéria, agora escute: sua
mãe é sua mãe, seu pai é seu pai,  Tio, mas o Aleluia...
22

ruim. O que você acha que ele vai


 Ele está com medo de você, Quité- preferir fazer?
ria. Está fugindo de você. Você já
parou para pensar nisso? Já parou  Tio, o que o senhor está querendo
para pensar que aqui, na casa dele, dizer? Que eu devo passar a mão na
as coisas estão ficando ruins para cabeça dele a cada vez que ele a-
ele? Já parou para pensar que quan- prontar alguma?
do ele está com os amigos dele, não
tem ninguém de cara feia? Que com  Não, Quitéria. O que eu estou que-
eles ele se diverte, ele se sente bem? rendo dizer é que você devia, sim,
passar a mão na cabeça dele cada
 Isso é porque é tudo igual, uma vez que ele NÃO estiver aprontando.
cambada de... Por exemplo, ele aprontou hoje. En-
tão...
 Xinga, Quita. Xinga, se isso te faz
bem. Agora, se xingar vai mudar as  Santo Pai! Era isso que minha
coisas, sei não! Você já está xingan- mãe fazia. Ela sempre carinhava o
do há tanto tempo e as coisas não meu pai, sempre; chegasse ele bê-
mudaram muito, não é? Quitéria, vo- bado ou não!
cê pode não gostar dos amigos dele,
pode chamar eles pelos nomes que  Ah! Pois é; o que uma fazia de
quiser. Pode até ter razão. Mas isso mais, parece que a outra está fazen-
não muda o fato de que, para ele, o do de menos. Mas, então, vamos vol-
Aleluia, é gostoso ficar na companhia tar ao fazer diferente: se ele aprontou
deles. Senão, ele não ficava, não é hoje, você não passa a mão na cabe-
mesmo? ça dele de jeito nenhum! Mas, ama-
nhã ou depois de amanhã, ele vai
 Ah! Então, bem que a Dona Geni chegar na hora, vai chegar sem ter
disse que má companhia não existe bebido. E aí, quando ele chega fa-
para quem está naquela companhia; zendo exatamente aquilo que você
ele é que não presta, andorinha… quer que ele faça, o que ele conse-
gue? Cara feia, resmungo, comida
 Não voa com pardal, não foi isso o fria. Quando ele sai com os amigos, o
que ela disse? Mais ou menos. Voa e que ele consegue? Diversão, brinca-
não voa. Depende do que a andori- deira, alegria. Do jeito que as coisas
nha e o pardal têm para fazer, no lu- estão cá e lá, você não acha que ele
gar de ficar voando juntos. No seu vai fazer isso de novo, nem que seja
caso, está difícil. Quando ele está só de vez em quanto?
voando com o bando, fica tudo bem.
Quando ele pousa no ninho, fica tudo
23

 Mas, tio, eu sempre aprendi que  Vai; a maior parte das vezes, vai.
fazer direito não é mais do que a o- Algumas vezes pode falhar. Quando
brigação! Vai dar prêmio por causa falha, a gente pensa mais, toma mais
disso? tempo para ver direitinho o antes e o
depois e quem sabe o do meio....
 Vai, sim. Se o fazer errado está
dando prêmio, é preciso dar prêmio  O que é isso de o antes, o do meio
também para o fazer direito. Senão o e o depois, tio? Não estou entenden-
fazer errado é que vai acontecer cada do nada…
vez mais. E o pior, Quitéria, é que  Ah! Isso é um jeito de falar comigo
fazendo do jeito que você está fazen- mesmo que eu tenho. Vou ver se te
do, você mesma está aumentando o ensino. Tem sido de muita valia para
prêmio do fazer errado, você não mim. Acho que vai ser de valia para
percebe? Quanto pior aqui, cada vez você também. Vamos ver primeiro se
melhor fica lá, em comparação! Que você entendeu a idéia do fazer dife-
coisa: vê lá se você não vai repetir o rente: tente me dar um exemplo do
que aconteceu com o seu pai e sua que você entendeu, para eu ver.
mãe fazendo errado pelo contrário:
uma por premiar demais, outra por  Tipo assim…veja se é isso: quan-
premiar de menos. Ah, minha filha, do o Rubens quiser sair para o terrei-
nesta vida eu acho que é só fechadu- ro: isso é um antes?
ra que, se não funciona para um lado,
costuma funcionar para o outro. Ti-  Calma, Quitéria, primeiro, vamos
rando fechadura, esse negócio de ver um exemplo inteiro. Depois a gen-
ficar virando para cá e, se não dá cer- te fala sobre o antes, o do meio e o
to, virando para o lado contrário, cos- depois. Mas, já que você começou o
tuma não funcionar muito. O proble- assunto, o antes que eu falo não tem
ma, Quitéria, não é dar prêmio ou não nada a ver com o que o Rubens quer
dar prêmio. O problema é saber ou não quer, porque…
quando dar prêmio e quando não dar.
 Ué, tio? Como não?  interrom-
 E como eu posso saber isso, tio? peu Quitéria, confusa.  O que acon-
tece antes de ele sair não é ele que-
 Até que pode ser simples: não dê rer sair? Não é por isso que ele sai?
quando ele estiver fazendo o que vo-
cê não quer. Dê quando ele estiver  Bom, Quitéria, esse é um jeito
fazendo o que você quer. da gente falar, o jeito que quase todo
mundo fala. Mas o que é que faz ele
 Mas isso vai dar certo tio? “querer” sair? Esse “querer” dele não
aparece do nada, não é verdade?
24

se eu me distrair ou se ele sair assim


 Isso lá é! Quando ele sai antes mesmo, melhor do que ficar xingando
do almoço, tem sempre algum meni- ele é eu esperar um dia que ele não
no chamando ele. Será que é por is- saia e aí fazer um carinho especial
so que ele “quer” sair? para ele. É isso? Então, pode ter dois
“depois”: ele sai, eu xingo ele; esse é
 Isso e mais uma dúzia de ou- um depois. O outro “depois” seria as-
tras coisas. Por exemplo, ver o Pas- sim: ele não sai, eu faço um carinho
téis no terreiro, sentir frio e sair para nele. E o senhor está me dizendo que
tomar um solzinho, e muitas outras esse segundo “depois”, o do carinho,
coisas. Esse é o antes que eu estou seria melhor para ele não sair mais?
falando: alguma coisa que acontece
fora dele, que acontece no mundo!  Quitéria, minha filha, se você con-
Pode até ser que isso faça ele “que- tinuar falando assim com essa inteli-
rer” mas, como nós não mandamos gência toda, ainda vai acabar saben-
no “querer” dele nem no de ninguém, do disso até melhor do que eu. É isso
eu acho que é melhor então a gente mesmo!  disse o Zé de Nadir, muito
ver o que acontece que faz ele “que- alegre e divertido com a rapidez com
rer”, se você insiste nisso. Se antes que sua sobrinha ia pegando as coi-
de ele “querer” seja lá o que for, a- sas.  Nas vezes em que ele sair,
contece sempre alguma outra coisa, você pode até chamar ele para den-
talvez a gente possa ver se, mudan- tro, pode até dar um castigo para ele,
do essa outra coisa, o que ele faz por exemplo, cortando o doce de so-
também muda. Por exemplo, e se a bremesa. Mas o principal é dar um
gente já põe o Pastéis dentro de ca- carinho para ele, quando ele fizer o
sa nessa hora? Se o que ia aconte- que você deseja. Vai demorar um
cer quando ele saísse era brincar pouco mais para ele aprender, mas
com o Pastéis, o depois, então ele você vai ver que será melhor para
não precisa mais sair para conseguir vocês dois. Pelo menos, ele não vai
a mesma coisa, o mesmo depois, ter medo de você e, sem medo, ele
não é? E se for o menino do vizinho, vai querer ficar mais tempo perto de
chama ele para dentro. Dá no mes- você. Ai então você tem mais chan-
mo para o Rubens, não dá? ces ainda de ajuda-lo a ver as suas
razões, os seus medos, os seus pro-
 Ah! Entendi…mais ou menos, tio. pósitos. Além disso, se ele não tiver
O senhor está me dizendo que, por medo de você, ele vai ter coragem
exemplo, se eu quero que o Rubens para mostrar para você o lado dele,
fique dentro de casa na hora do al- para lhe mostrar as razões que ele
moço, eu posso mudar o que geral- tem para fazer o que faz, o que ele
mente acontece antes dele sair. Mas sente, tudo isso.
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 Sei não!  disse Quitéria em voz


 Por que isso agora, tio Zé? Menino alta. Mas, falando só para ela mes-
não tem que dar palpite, foi o que eu ma, Quitéria continuou pensativa.
sempre aprendi! Aquela estória do bolo…aquilo era
verdade, não era? Se não experimen-
 E foi assim que trataram você, te- tasse fazer diferente, ia comer sem-
nho a certeza. Você gostava? Não, pre do mesmo bolo, com o mesmo
não é? Estou vendo, só pela sua ca- gosto, não é? Além disso, ela já esta-
ra… falou o tio Zé, com um sorriso va ficando tão cansada de lutar tanto
matreiro.  Não precisava ter sido para ganhar tão pouco! Era só briga,
assim, Quitéria. Isso que estou lhe xingamento, um inferno de vida…e
ensinando, vai dar certo para você quando ela conseguia alguma mu-
mudar o comportamento do Rubens, dança, durava tão pouco. E depois,
você vai ver. Mas se você sempre tio Zé tinha parte da razão. Aleluia
fizer isso tirando coisas boas da vida ficar em casa o tempo todo, mas ficar
dele, só porque você não gosta delas, em casa triste, irritado, calado, fugin-
sem pensar direito se elas são mes- do dela…isso não era a mesma coisa
mo ruins, ele vai acabar ficando ma- do que ele ficar na rua? Não era a
goado, jururu. Gente magoada pode mesma coisa do que ela não ter ma-
até fazer o que a gente quer, mas ele rido? Ou até pior? Será que essa mi-
muda: fica menos alegre, talvez fique nha implicância com deus e todo
mais irritado…de qualquer jeito, não mundo não é só o meu medo falando
vai mais ser a mesma pessoa. Se comigo, aqueles antes que eu passei
você faz isso com o Aleluia, que nem na minha vida e que me fazem fazer
menino é, pode ser que você até um “do meio” assim tão zangado, tão
consiga que ele faça tudo o que você severo? Um “não pode porque não
quer, mas talvez você não goste do pode porque eu sei que não pode por
marido que ele pode se tornar… Por que eu estou com medo”?
isso é que vale a pena conversar com
ele, sim. Pode até ser que vocês, Será?!  disse Quitéria.
conversando, encontrem um jeito me-
lhor de atender ao que você precisa e Foi neste momento que o Aleluia en-
ao que ele gosta. Conversando é que trou na cozinha. Sorriso meio de lado,
a gente se entende, não é? olhar de esguelha. Foi direto para o
tio Zé e lhe deu um abraço. Já ia se
Quitéria ficou pensativa. Mudar o que virando para os lados da Quitéria
ela já sabia? Mudar o que todo mun- quando se avermelhou e vacilou. Pa-
do sempre fazia? Fazer diferente? recia até que tinha murchado, assim,
de repente.
26

Mas o tio Zé estava lá…quem sabe? Quitéria insistisse em fazer diferente,


De lado, sem olhar nos olhos dela, tio Zé tinha certeza de que ia valer a
Aleluia estendeu a mão e tocou de pena, ah, isso é que ia!
leve no braço da sua Quitéria. Uma
outra mão, tímida, roçou a sua. Os Entretido com os seus pensamentos,
olhos de Aleluia brilharam por um Zé de Nadir baixou a mão, sabendo
instante e ele se empinou: susto, ale- que ia encontrar a cabeça do Pastéis
gria, e esperança; tudo junto! que, como sempre, continuava enro-
dilhado aos seus pés. Com um gran-
♣♣♣♣♣ de susto, ele sentiu uma lambida na
Zé de Nadir baixou os olhos para o sua mão!
fogo. Já havia feito o que podia. Ago-
ra, era esperar para ver. Talvez um Zé de Nadir deu então um sorrisinho
dia a Quitéria pudesse até mesmo ir manso, de canto de boca, que não
encontrar o Aleluia na saída do traba- escondia uma surpresa divertida e
lho e compartilhar com ele do boteco filosofou que, nesta vida, nem tudo é
do Cuca, porque tudo mostrava que perfeito. Mas, por via das dúvidas, ele
não havia mesmo nada de mais lá e na mesma hora tirou a mão da cabe-
nem no Aleluia: era só divertimento ça do Pastéis e ficou esperando até
sadio, que em nada prejudicava o que ele ficasse quieto, para que de-
bom pai de família que ele era e que pois pudesse novamente acariciá-lo.
talvez até mesmo ajudasse a fazer Afinal, fazia tão bem para ele acarici-
um marido mais contente. ar o Pastéis e fazia tão bem para o
Pastéis ser acariciado por ele!
Talvez. No momento, a torcida dele
era para que o almoço que ele, Zé de O antes, o do meio e o depois: não é
Nadir, oferecera à Quitéria, pudesse que funcionava?! Danado de sabido
ser aceito. Era alimento de digestão esse Zé de Nadir!
lenta, mais de alto valor nutritivo! Se

‫بئش‬

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