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Nildo Avelino 1
Resumo
Retomando a formulação da anarqueologia dos saberes de Michel Foucault, o trabalho descreve o processo de
ortologização dos saberes colocado em funcionamento pela cultura Escolástica a partir da "revolução escolar" do
Renascimetno no século XII. O processo ortológico visou estabelecer para o pensamento um padrão de
similaridade das diferenças entre os saberes, reduzindo a singularidade dos saberes a uma única espécie
homóloga. Para descrever esse processo, as práticas de vassalagem próprias da sociedade feudal foram
deslocadas da relação entre vassalo e senhor para a relação entre magister e scholasticus. O contrato de
vassalagem é caracterizado por um tipo de obediência ativa na qual o vassalo constituía sua própria subjetividade
nas relações de fidelidade.
Abstract
Retaking the formulation of anarchaelogy of the knowledge of Michel Foucault, the work describes the process
of orthologization of knowledge into operation by culture Scholastic from the "educational revolution" of
Renaissance of the 12th century. The orthological processes aimed establish to thought a pattern of similarity the
differences between the knowledge, reducing to uniqueness of knowledge in a homologue species. To describe
this process, the practice of vassalage own feudal society were displaced from relationship between lord and
vassal to the relationship between magister and scholasticus. The vassalage contract was characterized by a kind
of active obedience in which the vassal was his own subjectivity in elations of loyalty.
Introdução
A partir de 1980 Michel Foucault introduz uma nova problematização nos seus
estudos sobre as relações de poder através da qual ele renova consideravelmente seu
“método” de análise: trata-se da anarqueologia dos saberes que consiste no deslocamento
analítico que levou do eixo Poder-Saber para o eixo do “governo dos homens pela Verdade
sob a forma da Subjetividade” (FOUCAULT, 2010). Com a anarqueologia Foucault confere
um grau de complexidade extraordinário às suas pesquisas, resultando, anos mais tarde, na
formulação do tema da estética da existência. Como já escrevi em outra ocasião (AVELINO,
2008), a anarqueologia prolonga e resitua as análises da governamentalidade, iniciadas em
1978 com o objetivo de marcar a distinção entre política e guerra, e também para tornar
operatório o problema da luta no domínio político definido em termos de relações agonísticas.
A obra chave para apreender o tema da anarqueologia é o curso inédito Du gouvernement des
vivants, proferido por Foucault no Collège de France no ano de 1980.
Como afirmaram Dreyfus e Rabinow (1995, p. 141), entre as noções em relação as
quais Foucault organizou sua obra durante toda a década de 1970 estava a noção de hipótese
repressiva, caracterizada pela afirmação segundo a qual “a verdade é intrinsecamente oposta
ao poder, desempenhando todavia um papel libertador”. Segundo Foucault (1993, p. 83), a
hipótese repressiva descreve um poder portador unicamente da potência do não, apto somente
a estabelecer limites e a existir no negativo, e cuja eficácia implica o paradoxo de um poder
que nada pode “a não ser levar aquele que sujeita a não fazer senão o que lhe permite.” A
descrição do poder nesses termos tem como corolário inevitável que, se o poder é
simplesmente interdição, prescrição da lei, rejeição etc., não lhe resta outra saída que a de se
exercer mascarando-se, ocultando seu cinismo para fazer-se tolerável, cobrindo de sombras
suas principais formas. “Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre
seus mecanismos.” (Id.) É neste sentido que o poder, descrito nos termos da hipótese
repressiva, aparece como antitético à verdade: obrigado a esconder sua verdadeira face e a
escamotear sua nudez repressiva, seus mecanismos aparecem ligados essencialmente com a
cegueira, o desconhecido, o segredo, o não dito. Esta imagem do tirano mascarado foi o
principal alimento das análises fundamentadas na noção de Ideologia realizadas a partir dos
anos 1960. Contra essas análises, decorrentes da descrição do poder como repressão, Foucault
empreendeu sua investigação em torno do eixo Poder-Saber.
Que o exercício do poder implique o mecanismo do segredo, isto é certo. Não se
trata de afirmar que a mecânica do poder seja sempre e em toda parte plenamente visível; que
sua verdade se mostre sempre evidente e manifesta; que seu exercício reflita nas consciências
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seus mais temíveis poderes.” E de outro lado, “o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT, 1999a, p. 9-10) No ano seguinte, ao escrever o
resumo do curso “Teorias e instituições penais” pronunciado no Collège de France nos anos
1971-1972, Foucault (2001a, p. 1257) afirma sua hipótese de trabalho:
as relações de poder (com as lutas que as atravessam ou as instituições que as mantém) não jogam
com relação ao saber somente um papel de facilitação ou de obstáculo; elas não se contentam de
favorecê-lo ou de estimulá-lo, de falseá-lo ou limitá-lo; poder e saber não são ligados um ao outro
somente pelo jogo dos interesses e das ideologias; o problema não é apenas em determinar como o
poder subordina o saber e o faz servir suas finalidades ou como imprime-lhe e impõe conteúdos e
limitações ideológicas. Nenhum saber forma-se sem um sistema de comunicação, de registro, de
acumulação, de deslocamento que são em si mesmo uma forma de poder ligada, em sua existência e
funcionamento, a outras formas de poder. Nenhum poder, por sua vez, exerce-se sem a extração, a
apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber. Neste nível, não existe o conhecimento de um
lado e a sociedade de outro, ou a ciência e o Estado, mas formas fundamentais do “poder-saber”.
Assim, a partir de 1972 Foucault desloca cada vez mais o foco da sua análise que
passa da “arqueologia do saber” à “dinastia do saber”: após ter analisado as formações
discursivas e os tipos de discurso em Arqueologia do Saber e As palavras e as coisas, seu
projeto é agora estudar como esses discursos puderam formar-se historicamente e sobre quais
realidades históricas eles se articularam, ou seja, em quais condições, históricas, econômicas e
políticas eles emergiram. A questão do poder ganha cada vez mais relevo. “Parece-me que
fazer a história de certos discursos, portadores de saberes, não é possível sem ter em conta as
relações de poder que existem na sociedade onde esse discurso funciona. (...) As palavras e as
coisas, situa-se no nível puramente descritivo que deixa inteiramente de lado toda análise das
relações de poder que sustentam e tornam possível a aparição de um tipo de discurso”
(FOUCAULT, 2001b, p. 1277).
Entretanto, o tema do poder parece ter conduzido a análise de Foucault a um
impasse a partir da segunda metade dos anos 1970. Como observou Mitchell Dean (1999, p.
25), visando se desfazer das teorias sociológicas que davam ao Estado a imagem de uma
realidade unificada, Foucault suplantou os problemas do fundamento da soberania e de sua
obediência por uma análise das múltiplas operações dos mecanismos do poder e da
dominação. Para isso, adotou primeiramente a linguagem da guerra como maneira de re-
conceitualização das relações de poder. Mas resultou daí o inconveniente de estabelecer uma
dicotomia entre soberania, como forma jurídica de um poder “pré-moderno” próprio das
monarquias absolutistas, e o que seria um poder “moderno” de tipo disciplinar e
normalizador. Essa aparente dicotomia que provocava a linguagem da guerra teria induzido
formas de denúncias extremistas do poder visto conforme o modelo repressivo pela esquerda.
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Este inconveniente levou a análise de Foucault para um novo contexto, aquele do governo a
partir dos cursos de 1978, através do qual ele procurou rediscutir os problemas do poder fora
dos discursos da soberania e da guerra. Foi nesta ocasião que, segundo Pasquale Pasquino,
colaborador de Foucault no Collège de France, emergiu “a questão do governo – um termo
que Foucault utiliza gradualmente em substituição ao que ele considerou como uma palavra
muito ambígua, ‘poder’” (PASQUINO, 1993, p. 79). A análise da governamentalidade
encontra aqui sua procedência.
Projeto anarqueológico
Acompanhar esses desdobramentos na analítica do poder de Michel Foucault é
necessário para compreender a importância que a anarqueologia ocupa na sua elaboração da
estética da existência. Como compreender este percurso analítico que, passando pela análise
do governo ou da governamentalidade, levou do tema Poder-Saber para a estética da
existência? Inútil seria buscar uma coerência teórica de conjunto que o próprio Foucault
rejeitara ao reivindicar uma escrita sem rosto no prefácio da sua Arqueologia dos saberes. Em
todo caso, é perfeitamente plausível esboçar um plano de inteligibilidade buscando articular
esses diferentes níveis analíticos.
Michel Senellart (2004, p. 382), procurando compreender o abandono do discurso
da guerra como operador analítico do poder, afirmou que Foucault, “rompendo com o
discurso da ‘batalha’ utilizado desde o começo dos anos 1970, o conceito de ‘governo’
marcaria o primeiro movimento, acentuado desde 1980, da analítica do poder à ética do
sujeito”. Portanto, é da noção de governamentalidade que é preciso partir. Definida no curso
de 1978 como uma análise genealógica do poder que descreve os caracteres específicos da
tecnologia geral do poder do Estado, no curso do ano seguinte, Nascimento da biopolítica de
1979, Foucault vai elaborar mais conceitualmente a análise da governamentalidade dizendo
que aquilo que buscou-se estudar não foi a prática governamental real, ou seja, o modo
efetivamente como os governos governam. O objetivo foi estudar a maneira refletida de
governar ou o conjunto de reflexões sobre a melhor maneira de governar; enfim, trata-se de
estudar a “instância reflexiva” das práticas de governo e sobre as práticas de governo. Em
outras palavras, o objeto de estudo são os modos de conceitualização das práticas de governo
com a finalidade de apreender a maneira pela qual essa conceitualização estabeleceu os
objetos, as regras gerais e os objetivos de conjunto que são próprios ao seu domínio. Trata-se,
em suma, do estudo da racionalização da prática governamental no exercício da soberania
política.
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como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte desses que
são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade
de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas dizer a verdade a propósito dele
mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de
governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar,
enunciando-o, aquilo que se é? (FOUCAULT, 2001b, p. 944)
137) é a idéia verdadeira que serve de norma de verdade. Através desta posição tradicional,
diz Foucault (2010), a questão colocada pela filosofia é a seguinte: a partir da ligação
voluntária que o sujeito estabelece com a verdade, ligação que lhe fornece os fundamentos, os
instrumentos e as justificações com as quais o sujeito sustentará um discurso de verdade; a
partir dessa ligação voluntária do sujeito com a verdade, a filosofia pergunta: o que é que esse
sujeito pode dizer sobre, para ou contra o poder que o assujeita? A postura anarqueológica é a
inversão da posição clássica da filosofia. É preciso não mais partir da ligação voluntária com
a verdade, mas colocar como questão inicial o poder. Partir do questionamento, da atitude de
questionar o poder para perguntar
o que esse gesto sistemático, voluntário, teórico e prático de colocar em questão o poder tem a dizer
sobre o sujeito de conhecimento e sobre a ligação com a verdade na qual involuntariamente ele se
encontra preso? Dito de outro modo, não se trata mais de dizer: considerando o vínculo que me liga
voluntariamente a verdade, o que é que eu posso dizer do poder? Mas, considerando minha vontade,
decisão e esforço de desfazer a ligação que me liga ao poder, o que é [feito] então do sujeito de
conhecimento e da verdade? (FOUCALT, 2010)
como lutar contra as verdades das ciências humanas que (...) me subjugam e dominam uma vez que
não posso deixar de percebê-las como verdades; ou ainda, como liberar-se de uma verdade sem
deixar de perceber que é verdade. (...) A empresa de rejeitar a verdade do poder, empresa
extremamente complicada visto que está nas raízes mesmas do que somos, Foucault chamou-a de
“anarqueologia”. “Anarqueologia” é um jogo de palavras para sugerir que a tarefa de recusar o
poder da verdade tem algo de anarquismo epistemológico, já que trata-se de mostrar que nenhum
poder é necessário e que, portanto, tampouco o poder da verdade o é.” (LARRAURI, 1989, p. 124)
constituir como sujeitos que aceitamos o império dos discursos científicos e não científicos
que tem por função revelar aquilo que somos verdadeiramente. Do mesmo modo como o
austríaco Paul Feyerabend (1993, p. 23) que, no começo dos anos 1970, propôs o anarquismo
como um “tratamento médico para a epistemologia e para a filosofia da ciência” e localizou a
possibilidade de uma metodologia e “ciência anarquista” no ato de transgressão metodológica.
De maneira semelhante, Foucault propôs, com o nome de anarqueologia dos saberes, a
anarquia como atitude crítica frente ao poder da verdade.
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Este aspecto encontra-se mais longamente desenvolvido em AVELINO, 2009.
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anarquistas nos regimes nazi-fascistas. Aristóteles certamente não podia se dar conta das
conseqüências políticas que poderiam resultar da sua classificação lógica dos discursos. Mas
o fato é que estas conseqüências se deram.
Para Aristóteles o discurso lógico é somente o discurso que está ligado a uma
tecnologia de demonstração, é o discurso científico, o discurso universalmente válido. Assim,
a Escolástica retoma os princípios da lógica aristotélica e os generaliza, impondo-os a todos
os outros campos do saber: ao direito, à medicina, à teologia. Em cada um destes campos de
saber, a lógica vai subordinar e excluir o que não lhe é conforme, excluir o que pode existir no
pensamento de absurdo, de irracional, de contraditório, para só extrair e consagrar como único
discurso válido o discurso realmente verdadeiro, ou seja, o discurso conforme a lógica. Desta
maneira, a lógica foi nomeada a polícia dos discursos pela Escolástica, desempenhando a
mesma função que a fogueira e a tortura tiveram para os corpos, todavia aplicadas no plano
do conhecimento. A lógica foi a fogueira da razão. É este método, esta maneira de proceder,
que constituiu a unidade Escolástica, da qual herdamos inteiramente.
A polícia do pensamento desempenhada pela lógica é quase sempre considerada como
simples técnica formal de conhecimento, como aquilo que normalmente é chamado de rigor
científico. Quando na realidade o método, a lógica, é bem mais que isto. A Escolástica fez da
lógica o princípio diretor, o princípio de autoridade que impõe práticas de submissão, de
respeito, de veneração, de reverência. Em outras palavras, a lógica impõe práticas de
vassalagem toda vez que se estiver frente a certos textos, a certos autores, a certos discursos, a
certas verdades por ela consagradas. E pouco importa se as verdades servem à direita ou à
esquerda, se as verdades sejam as verdades do socialismo, do comunismo ou do anarquismo:
toda vez que a verdade estiver consagrada pela lógica, pelo método, seja quem for que a
sustente, o fará a partir de uma relação de vassalagem.
Foi desta forma que, como observou Foucault (1999b), ao invés de promoverem o
fogo ininterrupto dos hereges, os Padres da Igreja articularam as fogueiras da ortodoxia com
uma prática de dominação bem mais sofisticada e duradoura: promoveram a ortologia da
razão. Até agora, a quase absoluta totalidade das críticas e das queixas, quase toda atenção foi
direcionada exclusivamente contra a ortodoxia, o dogmatismo e a intolerância do pensamento;
assim, quase ninguém ainda se ocupou do enorme processo ortológico ao qual o pensamento
foi submetido por mais de oito séculos. Todavia, foi a ortologia dos saberes o que permitiu a
Igreja economizar petróleo. Por que sustentar indistintamente a ortodoxia, a censura, a
proibição de certos conteúdos de saber, exigia frequentemente ações economicamente
onerosas e politicamente perigosas: as fogueiras não só tinham um alto custo aos cofres da
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Igreja, como também seu ritual provocava, algumas vezes, a revolta popular toda vez que o
condenado sustentava uma postura corajosa frente os inquisidores (Giordano Bruno, por
exemplo). Assim, a prática da ortodoxia continha muitos inconvenientes e provocava muitos
atritos que minavam a própria autoridade da Igreja. Foi por esta razão que, ao longo dos anos,
a prática da ortodoxia foi diminuindo paulatinamente até chegar na sua abolição formal na
modernidade. Mas isso só foi possível graças a esta outra prática sistemática e constante de
ortologização dos saberes que consiste em não mais censurar, mas estabelecer um controle
minucioso sobre os saberes para verificar se eles estão conformes a lógica e ao método justo.
Não mais proibir, mas, uma vez normalizados e disciplinados, fazer o saber circular
livremente, fazê-lo expressar-se, fazê-lo falar através da educação escolar e universitária.
Percebe-se que se na ortodoxia a obediência imposta é exterior ao sujeito do conhecimento,
na ortologia a obediência é exercida pelo próprio sujeito do conhecimento: é o próprio sujeito
de conhecimento que, na medida que pensa e fala, estabelece sua própria obediência às regras
da lógica e do método; é o próprio sujeito que é e que exerce a polícia de seu próprio
conhecimento; em obediência à lógica, ele segrega, ele exclui e nega o que pode existir de
ilógico e de absurdo em seu próprio pensamento. Com isso, se a ortodoxia foi a
disciplinarização dos corpos, a ortologia é a disciplinarização e a normalização dos saberes.
Portanto, não foi o Iluminismo do século XVIII quem jogou a última cartada contra o
dogmatismo: sua abolição já estava dada em germe desde o século XII pela ortologia dos
saberes.
* * *
A anarqueologia e a ortologia dos saberes trazem para discussão sobre a educação em
geral, e em particular a educação universitária, um aspecto que tem ocupado a vontade de
saber ocidental desde os gregos: o problema da força da verdade e de sua pretensão de poder
sobre os homens. Que o discurso não seja essa dimensão tranquila e transparente sonhada por
muitos politólogos e filósofos da educação mostra o fato, na história do Ocidente, dos
indivíduos terem sido nele vinculados a dois níveis e de dois modos: de um lado à obrigação
de dizer verdade e, de outro, ao estatuto de objeto no interior desta manifestação de verdade;
enfim, foram vinculados à obrigação de ligarem a si mesmos como objetos de saber. Além
disso, a anarqueologia possibilita recolocar a atualidade da reflexão anarquista. Que Foucault,
um dos filósofos mais importantes do século XX, tenha intitulado o seu método investigativo
de an-anarqueológico, significa certamente que já era possível encontrar no anarquismo, e eu
diria especialmente no anarquismo de Proudhon, a disposição que considera os discursos que
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articulam o que pensamos, dizemos e fazemos com a mesma seriedade concedida aos eventos
históricos.
Existe uma novidade ruidosa na anarqueologia. Se é verdade que o relativismo
epistemológico já havia sido colocado em funcionamento pelos lingüistas anglo-saxões desde
os anos 1960, no entanto, é preciso perceber que quando Paul Feyerabend entra cena
declarando-se anarquista epistemológico, do mesmo modo quando Foucault declara-se
anarqueologista do saber, neste momento o relativismo epistemológico passa a operar não
mais simplesmente no plano da linguagem ou na relação entre as sintaxes, mas no campo da
política, no exercício do poder político, numa palavra, no governo dos homens. E é neste
momento em que o anarquismo epistemológico, introduzido para problematizar o governo da
conduta dos indivíduos, se dá como tarefa a de tornar evidente as conexões sempre existentes
entre poder e verdade, buscando reintroduzir nos jogos de verdade as dessimetrias e seus
efeitos sobre as subjetividades.
Em suma, se na teoria de Marx encontra-se uma espécie de realismo sociológico ao
objetivar na realidade social, na práxis, o critério de verdade da análise. Diria que no
anarquismo e na anarqueologia dos saberes existe uma espécie de realismo não sociológico
mas epistemológico que confere a verdade a mesma realidade e a mesma concretude que
normalmente são apenas atribuídos aos fatos. Todavia, neste realismo epistemológico não se
trata de estabelecer um critério de verdade, mas simplesmente descrever as articulações
obscuras entre o poder político e a verdade na configuração disto que precisamente é chamado
o real.
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Pós-Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP); bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP);
pesquisador no Grupo de Pesquisa “Gênero, Experiência e Subjetividade” (IFCH/UNICAMP), pesquisador
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