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Michel Foucault: anarqueologia e ortologia dos saberes

Nildo Avelino 1
Resumo
Retomando a formulação da anarqueologia dos saberes de Michel Foucault, o trabalho descreve o processo de
ortologização dos saberes colocado em funcionamento pela cultura Escolástica a partir da "revolução escolar" do
Renascimetno no século XII. O processo ortológico visou estabelecer para o pensamento um padrão de
similaridade das diferenças entre os saberes, reduzindo a singularidade dos saberes a uma única espécie
homóloga. Para descrever esse processo, as práticas de vassalagem próprias da sociedade feudal foram
deslocadas da relação entre vassalo e senhor para a relação entre magister e scholasticus. O contrato de
vassalagem é caracterizado por um tipo de obediência ativa na qual o vassalo constituía sua própria subjetividade
nas relações de fidelidade.

Palavras-chave: governamentalidade, anarqueologia, ortologia, saber, Escolástica.

Abstract
Retaking the formulation of anarchaelogy of the knowledge of Michel Foucault, the work describes the process
of orthologization of knowledge into operation by culture Scholastic from the "educational revolution" of
Renaissance of the 12th century. The orthological processes aimed establish to thought a pattern of similarity the
differences between the knowledge, reducing to uniqueness of knowledge in a homologue species. To describe
this process, the practice of vassalage own feudal society were displaced from relationship between lord and
vassal to the relationship between magister and scholasticus. The vassalage contract was characterized by a kind
of active obedience in which the vassal was his own subjectivity in elations of loyalty.

Keywords: governmentality, anarchaeology, orthology, knowledge, Scholastic.


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Introdução
A partir de 1980 Michel Foucault introduz uma nova problematização nos seus
estudos sobre as relações de poder através da qual ele renova consideravelmente seu
“método” de análise: trata-se da anarqueologia dos saberes que consiste no deslocamento
analítico que levou do eixo Poder-Saber para o eixo do “governo dos homens pela Verdade
sob a forma da Subjetividade” (FOUCAULT, 2010). Com a anarqueologia Foucault confere
um grau de complexidade extraordinário às suas pesquisas, resultando, anos mais tarde, na
formulação do tema da estética da existência. Como já escrevi em outra ocasião (AVELINO,
2008), a anarqueologia prolonga e resitua as análises da governamentalidade, iniciadas em
1978 com o objetivo de marcar a distinção entre política e guerra, e também para tornar
operatório o problema da luta no domínio político definido em termos de relações agonísticas.
A obra chave para apreender o tema da anarqueologia é o curso inédito Du gouvernement des
vivants, proferido por Foucault no Collège de France no ano de 1980.
Como afirmaram Dreyfus e Rabinow (1995, p. 141), entre as noções em relação as
quais Foucault organizou sua obra durante toda a década de 1970 estava a noção de hipótese
repressiva, caracterizada pela afirmação segundo a qual “a verdade é intrinsecamente oposta
ao poder, desempenhando todavia um papel libertador”. Segundo Foucault (1993, p. 83), a
hipótese repressiva descreve um poder portador unicamente da potência do não, apto somente
a estabelecer limites e a existir no negativo, e cuja eficácia implica o paradoxo de um poder
que nada pode “a não ser levar aquele que sujeita a não fazer senão o que lhe permite.” A
descrição do poder nesses termos tem como corolário inevitável que, se o poder é
simplesmente interdição, prescrição da lei, rejeição etc., não lhe resta outra saída que a de se
exercer mascarando-se, ocultando seu cinismo para fazer-se tolerável, cobrindo de sombras
suas principais formas. “Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre
seus mecanismos.” (Id.) É neste sentido que o poder, descrito nos termos da hipótese
repressiva, aparece como antitético à verdade: obrigado a esconder sua verdadeira face e a
escamotear sua nudez repressiva, seus mecanismos aparecem ligados essencialmente com a
cegueira, o desconhecido, o segredo, o não dito. Esta imagem do tirano mascarado foi o
principal alimento das análises fundamentadas na noção de Ideologia realizadas a partir dos
anos 1960. Contra essas análises, decorrentes da descrição do poder como repressão, Foucault
empreendeu sua investigação em torno do eixo Poder-Saber.
Que o exercício do poder implique o mecanismo do segredo, isto é certo. Não se
trata de afirmar que a mecânica do poder seja sempre e em toda parte plenamente visível; que
sua verdade se mostre sempre evidente e manifesta; que seu exercício reflita nas consciências
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toda a transparência e o brilho do que é exaustivamente conhecido. O problema está nos


efeitos de simplificação provocados pela análise da ideologia na medida em que nela
encontra-se invariavelmente e de maneira central a noção de falso e de não científico em
oposição ao verdadeiro e ao científico. A ideologia, como problema no plano do
conhecimento, tem sido descrita como falsa consciência oposta à verdade que vela e mascara
os piores efeitos do poder (MARX, 2006), ao mesmo tempo em que produz sua aceitação em
termos de legitimidade (WEBER, 1999). Se considerarmos a análise que Chrétien-Goni
(1992) fez da instituição do segredo na política, percebe-se quanto é inadequada a explicação
em termos de ideologia. Ao tomar a prática do segredo no Absolutismo Monárquico como
uma prática de comunicação, Chrétien-Goni mostra como ela portava duas lógicas: uma
defensiva consistindo em ocultar os mecanismos da dominação, em fechar no gabinete do
Príncipe os meandros do exercício da sua soberania, em defender contra o conhecimento dos
súditos as verdadeiras razões do seu poder. Mas a instituição do segredo era constituída
igualmente de uma lógica ofensiva com poder de propagação na qual o segredo representa
sobretudo a força performativa do poder soberano. “Ser soberano é organizar o segredo,
instituí-lo, divulgá-lo, retê-lo, no limite é hierarquizar o mundo em função do lugar de cada
um vis-à-vis disto que pode tornar-se um imenso sistema generalizado do segredo” (Ibid.: p.
152). Assim, ao invés de trancar no gabinete do Príncipe os arcanos de seu poder, a lógica
ofensiva do segredo faz circular no próprio fundo opaco de seus mecanismos uma
transparência destinada a propagar quanto possível a força performativa dos saberes e
racionalidades do poder soberano. Não se trata, portanto, do banimento da verdade para um
mundo de sombras de onde a soberania exerceria seu obscuro poder; trata-se do jogo
complexo entre verdadeiras dissimulações e falsas dissimulações, conteúdos de comunicação
amalgamados em jogos de luz e de sombras. Um poder unicamente enclausurado no gabinete
do Príncipe seria incapaz de ser poder; seu exercício exige a abertura para o espaço dos
súditos. É nesta articulação clausura-abertura que ocorre uma intensa teatralização do político:
ali o exercício resplandecente do poder não passa sem o brilho da verdade.
Para escapar da inadequação das análises do poder em termos de ideologia,
Foucault conduziu sua investigação em termos de Poder-Saber. Muito ao contrário de ocupar
uma posição antitética em relação ao poder, a verdade é um de seus principais elementos de
catalisação, ela conduz e reproduz relações de poder. Se é assim, diz Foucault na sua aula
inaugural no Collège de France em 1970, dois aspectos se destacam: de um lado, o discurso,
“longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a
política se pacifica, [é] um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de
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seus mais temíveis poderes.” E de outro lado, “o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT, 1999a, p. 9-10) No ano seguinte, ao escrever o
resumo do curso “Teorias e instituições penais” pronunciado no Collège de France nos anos
1971-1972, Foucault (2001a, p. 1257) afirma sua hipótese de trabalho:

as relações de poder (com as lutas que as atravessam ou as instituições que as mantém) não jogam
com relação ao saber somente um papel de facilitação ou de obstáculo; elas não se contentam de
favorecê-lo ou de estimulá-lo, de falseá-lo ou limitá-lo; poder e saber não são ligados um ao outro
somente pelo jogo dos interesses e das ideologias; o problema não é apenas em determinar como o
poder subordina o saber e o faz servir suas finalidades ou como imprime-lhe e impõe conteúdos e
limitações ideológicas. Nenhum saber forma-se sem um sistema de comunicação, de registro, de
acumulação, de deslocamento que são em si mesmo uma forma de poder ligada, em sua existência e
funcionamento, a outras formas de poder. Nenhum poder, por sua vez, exerce-se sem a extração, a
apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber. Neste nível, não existe o conhecimento de um
lado e a sociedade de outro, ou a ciência e o Estado, mas formas fundamentais do “poder-saber”.

Assim, a partir de 1972 Foucault desloca cada vez mais o foco da sua análise que
passa da “arqueologia do saber” à “dinastia do saber”: após ter analisado as formações
discursivas e os tipos de discurso em Arqueologia do Saber e As palavras e as coisas, seu
projeto é agora estudar como esses discursos puderam formar-se historicamente e sobre quais
realidades históricas eles se articularam, ou seja, em quais condições, históricas, econômicas e
políticas eles emergiram. A questão do poder ganha cada vez mais relevo. “Parece-me que
fazer a história de certos discursos, portadores de saberes, não é possível sem ter em conta as
relações de poder que existem na sociedade onde esse discurso funciona. (...) As palavras e as
coisas, situa-se no nível puramente descritivo que deixa inteiramente de lado toda análise das
relações de poder que sustentam e tornam possível a aparição de um tipo de discurso”
(FOUCAULT, 2001b, p. 1277).
Entretanto, o tema do poder parece ter conduzido a análise de Foucault a um
impasse a partir da segunda metade dos anos 1970. Como observou Mitchell Dean (1999, p.
25), visando se desfazer das teorias sociológicas que davam ao Estado a imagem de uma
realidade unificada, Foucault suplantou os problemas do fundamento da soberania e de sua
obediência por uma análise das múltiplas operações dos mecanismos do poder e da
dominação. Para isso, adotou primeiramente a linguagem da guerra como maneira de re-
conceitualização das relações de poder. Mas resultou daí o inconveniente de estabelecer uma
dicotomia entre soberania, como forma jurídica de um poder “pré-moderno” próprio das
monarquias absolutistas, e o que seria um poder “moderno” de tipo disciplinar e
normalizador. Essa aparente dicotomia que provocava a linguagem da guerra teria induzido
formas de denúncias extremistas do poder visto conforme o modelo repressivo pela esquerda.
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Este inconveniente levou a análise de Foucault para um novo contexto, aquele do governo a
partir dos cursos de 1978, através do qual ele procurou rediscutir os problemas do poder fora
dos discursos da soberania e da guerra. Foi nesta ocasião que, segundo Pasquale Pasquino,
colaborador de Foucault no Collège de France, emergiu “a questão do governo – um termo
que Foucault utiliza gradualmente em substituição ao que ele considerou como uma palavra
muito ambígua, ‘poder’” (PASQUINO, 1993, p. 79). A análise da governamentalidade
encontra aqui sua procedência.

Projeto anarqueológico
Acompanhar esses desdobramentos na analítica do poder de Michel Foucault é
necessário para compreender a importância que a anarqueologia ocupa na sua elaboração da
estética da existência. Como compreender este percurso analítico que, passando pela análise
do governo ou da governamentalidade, levou do tema Poder-Saber para a estética da
existência? Inútil seria buscar uma coerência teórica de conjunto que o próprio Foucault
rejeitara ao reivindicar uma escrita sem rosto no prefácio da sua Arqueologia dos saberes. Em
todo caso, é perfeitamente plausível esboçar um plano de inteligibilidade buscando articular
esses diferentes níveis analíticos.
Michel Senellart (2004, p. 382), procurando compreender o abandono do discurso
da guerra como operador analítico do poder, afirmou que Foucault, “rompendo com o
discurso da ‘batalha’ utilizado desde o começo dos anos 1970, o conceito de ‘governo’
marcaria o primeiro movimento, acentuado desde 1980, da analítica do poder à ética do
sujeito”. Portanto, é da noção de governamentalidade que é preciso partir. Definida no curso
de 1978 como uma análise genealógica do poder que descreve os caracteres específicos da
tecnologia geral do poder do Estado, no curso do ano seguinte, Nascimento da biopolítica de
1979, Foucault vai elaborar mais conceitualmente a análise da governamentalidade dizendo
que aquilo que buscou-se estudar não foi a prática governamental real, ou seja, o modo
efetivamente como os governos governam. O objetivo foi estudar a maneira refletida de
governar ou o conjunto de reflexões sobre a melhor maneira de governar; enfim, trata-se de
estudar a “instância reflexiva” das práticas de governo e sobre as práticas de governo. Em
outras palavras, o objeto de estudo são os modos de conceitualização das práticas de governo
com a finalidade de apreender a maneira pela qual essa conceitualização estabeleceu os
objetos, as regras gerais e os objetivos de conjunto que são próprios ao seu domínio. Trata-se,
em suma, do estudo da racionalização da prática governamental no exercício da soberania
política.
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E no final deste mesmo curso, precisamente na última aula, Foucault diz o


seguinte: “o exercício do poder, esta prática muito singular da qual os homens não podem
escapar, ou que escapam apenas por momentos, instantes, por processos singulares e atos
individuais ou coletivos, que coloca ao jurista, ao historiador, toda uma série de problemas,
esse exercício do poder como é possível regrá-lo e determiná-lo naquele que governa?”
(FOUCAULT, 2004b, p. 314-315) Segundo Foucault, grosso modo, houveram duas grandes
maneiras de regrar o exercício do poder naquele que governa. Uma delas consistiu em indexar
o exercício do poder à sabedoria e à verdade do texto religioso, à verdade da revelação e da
ordem do mundo. Em seguida, o exercício do poder foi indexado não mais à sabedoria
religiosa, mas à sabedoria do Príncipe. Todavia, essa indexação conheceu na história duas
formas distintas de racionalidades: num primeiro momento ela se deu sob a forma da Razão
de Estado como racionalidade do soberano na qual o poder de soberania ocupa um papel
central. Mas, num segundo momento, essa racionalidade deixou de assumir a forma unitária
da Razão de Estado adotando a forma do pacto e do contrato social correspondentes a uma
série de novos problemas que foram colocados não mais pelo Príncipe, mas pelo mercado,
pela população, pela economia.
Esta passagem da indexação do exercício do poder que leva da racionalidade do
Príncipe para a racionalidade do contrato social foi considerada por Foucault como um ponto
de clivagem e de transformação absolutamente importante na economia do poder. O que
significa, afinal, indexar o exercício do poder à racionalidade do contrato social? Significa,
simplesmente, indexá-lo sobre a racionalidade daqueles que são governados, e que são
governados de modo particular: como sujeitos econômicos, como sujeitos de interesse, como
indivíduos que, para satisfazer seus interesses utilizam de maneira mais ou menos livre as
regras e os objetos disponibilizados pelo mercado. Dessa forma, este ponto de clivagem é
importante por que ele constitui nossa atualidade e indica o modo como nós somos
governados hoje. Esta racionalidade política do contrato é a do liberalismo e do
neoliberalismo de nossos dias que consiste em indexar o exercício do poder na racionalidade
daqueles sobre os quais o próprio poder é exercido. Deste modo, após a Razão de Estado, a
racionalidade política colocada em funcionamento pelo liberalismo introduziu a exigência
indispensável para o exercício do poder deste elemento que precedentemente tinha pouca
importância: a subjetividade dos governados. O exercício do poder será doravante uma
atividade cuja indexação não é independente de um Sujeito, de um Eu, de um Si. Daí a
afirmação de Foucault (2002, p. 247), no curso de 1982, A hermenêutica do sujeito, de que “a
reflexão sobre a noção de governamentalidade não pode deixar de passar, teórica e
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praticamente, pelo elemento de um sujeito que se definiria pela relação de si consigo”.


É da tríade Poder, Governo e si mesmo de que se ocupa a anarqueologia
introduzida por Michel Foucault no curso Do governo dos vivos. Tal como definida por
Foucault (2001b, p. 1604), a governamentalidade consiste no “encontro entre as técnicas de
dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si”. Todavia, a maneira como ocorre
esse encontro, quais são os objetos próprios do seu domínio e no que ele constitui são
aspectos obscuros para os quais existem poucos elementos permitindo elucidá-los na obra
publicada de Foucault. Assim, quais interseções estabelecer, e como estabelecê-las, entre as
técnicas de dominação e as técnicas de si, é uma questão que o curso de 1980 permite
responder de uma maneira mais precisa. Uma visão rápida da sua gênese ajuda na
compreensão. Segundo Daniel Defert (2001, p. 77), a partir de janeiro de 1979, a história da
confissão conduziu Foucault “a estudar os primeiros textos dos Padres da Igreja, [João]
Cassiano, [Santo] Agostinho, Tertuliano. Nasce progressivamente uma nova matéria para o
segundo volume da História da Sexualidade, “As Confissões da carne” [Les Aveux de la
chair]: o estudo dos primeiros textos cristãos orienta sua pesquisa genealógica em direção aos
textos latinos da Antiguidade tardia.” Do governo dos vivos é o curso que no Collège de
France será o meio pelo qual Foucault apresentará os resultados desses estudos sobre os
textos dos Padres da Igreja; significa que o curso apresenta o material de base que deveria
constituir o volume As Confissões da carne.
Desta forma, para fazer a genealogia do tipo de racionalidade governamental que
tem como traço principal o de indexar o exercício do poder sobre a subjetividade do
governado, Foucault realizou um longo recuo histórico até as práticas cristãs de confissão.
Isso leva a pensar que uma questão subjacente, que atravessa a reflexão foucaultiana sobre o
poder, seja a questão da obediência. Retomando o que foi dito sobre a técnica liberal e neo-
liberal de indexação do exercício do poder na racionalidade do contrato social, ou seja, na
racionalidade daqueles sobre os quais o poder será exercido. Como é óbvio, essa indexação
apenas será eficaz unicamente se a racionalidade daqueles sobre os quais o poder é exercido
estiver orientada, determinada, direcionada, organizada. Em suma, a indexação do poder só
será possível se a racionalidade do governado estiver, de algum modo, ajustada ou disposta
para a produção da obediência. Assim, a produção de racionalidades suficientemente
obedientes aos objetivos do poder é um problema político importante. Como mostrou
Senellart (2006:37), “a arte de governar está inteiramente na capacidade de fazer-se
obedecer.” Deste modo, a racionalidade do governado não pode ser produto do acaso,
resultado espontâneo de processos que escapam ao exercício do poder; ao contrário, é preciso
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que a racionalidade do governado seja suficientemente suscitada, provocada e motivada pela e


para a obediência. O curso Do governo dos vivos descreve a história genealógica desta
racionalidade direcionada para a produção da obediência, mostrando de maneira contundente
e decisiva que não há produção de obediência possível sem tecnologias de si. Foucault vai
mostrar que só foi possível ao liberalismo e ao neoliberalismo indexar o exercício do poder na
racionalidade dos governados porque existe, e existiu durante séculos, da parte destes sobre os
quais se exerce o poder, práticas de relação de si consigo produtoras de estados de obediência.
É preciso uma relação de si consigo, são necessárias tecnologias de si para realizar a
governamentalização dos indivíduos. Por isso, os estudos da governamentalidade serão
focados, a partir de 1980, sobretudo na dimensão programática das artes de governar, isto é,
sobre os programas e racionalidades para o governo das condutas.
Por racionalidades Foucault entendia os conjuntos de prescrições calculadas e
razoáveis que organizam instituições, distribuem espaços e regulamentam comportamentos;
neste sentido as racionalidades induzem uma série de efeitos sobre o real. “São fragmentos de
realidade que induzem esses efeitos de real tão específicos que são aqueles da separação do
verdadeiro e do falso na maneira pela qual os homens se ‘dirigem’, se ‘governam’, se
‘conduzem’ a si mesmos e aos outros” (FOUCAULT, 2001b, p. 848). É o problema da
verdade o que está em jogo nas racionalidades. Assim, a questão central colocada por
Foucault, no curso Do governo dos vivos, é a de saber

como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte desses que
são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade
de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas dizer a verdade a propósito dele
mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de
governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar,
enunciando-o, aquilo que se é? (FOUCAULT, 2001b, p. 944)

Para responder a essas questões, Foucault introduziu a noção de anarqueologia


entendida como “postura metodológica” e “atitude filosófica” de transgressão frente ao poder
da verdade. A anarqueologia é uma atitude, uma postura intelectual que inverte a posição
tradicional da filosofia em relação a verdade. A posição da filosofia, desde Platão até nossos
dias, foi a de aceitar o poder da verdade. Essa posição de conformação da filosofia com o
poder da verdade foi consagrada por Espinoza com a sua famosa fórmula do verum index sui,
que afirma: a verdade não obriga, a verdade não constringe, porque a verdade é o índice de si
mesma. Ao sustentar que “a obediência contempla a vontade daquele que comanda, não a
necessidade e a verdade da coisa”, Espinoza (2003, p. 246) afirmou que a verdade é norma de
si própria na exata medida em que a luz revela a si própria e as trevas; para Espinoza (2008, p.
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137) é a idéia verdadeira que serve de norma de verdade. Através desta posição tradicional,
diz Foucault (2010), a questão colocada pela filosofia é a seguinte: a partir da ligação
voluntária que o sujeito estabelece com a verdade, ligação que lhe fornece os fundamentos, os
instrumentos e as justificações com as quais o sujeito sustentará um discurso de verdade; a
partir dessa ligação voluntária do sujeito com a verdade, a filosofia pergunta: o que é que esse
sujeito pode dizer sobre, para ou contra o poder que o assujeita? A postura anarqueológica é a
inversão da posição clássica da filosofia. É preciso não mais partir da ligação voluntária com
a verdade, mas colocar como questão inicial o poder. Partir do questionamento, da atitude de
questionar o poder para perguntar

o que esse gesto sistemático, voluntário, teórico e prático de colocar em questão o poder tem a dizer
sobre o sujeito de conhecimento e sobre a ligação com a verdade na qual involuntariamente ele se
encontra preso? Dito de outro modo, não se trata mais de dizer: considerando o vínculo que me liga
voluntariamente a verdade, o que é que eu posso dizer do poder? Mas, considerando minha vontade,
decisão e esforço de desfazer a ligação que me liga ao poder, o que é [feito] então do sujeito de
conhecimento e da verdade? (FOUCALT, 2010)

A anarqueologia é a posição analítica que consiste numa atitude de transgressão ao


poder, posição analítica que coloca o ato de desobediência como ponto de partida da análise.
No começo dos anos 1970, Foucault (1973, fl. 16) tomava o sistema das táticas punitivas
como analisador das relações de poder e acrescenta que neste procedimento “o elemento que
será considerado central é o elemento da luta”. Agora, no começo dos anos 1980, Foucault
(2010) afirma que “é o movimento para separar-se do poder que deve servir de revelador da
transformação do sujeito e das relações que ele mantém com a verdade”. E aqui, o elemento
central é o ato de transgressão, de desobediência, numa palavra, de anarquia epistemológica.
Como estabelecer relações de conhecimento recusando ao mesmo tempo o poder da verdade?
A questão parece fácil, mas envolve um aspecto político bastante complexo. A feminista
espanhola Maite Larrauri chamou atenção precisamente para isso. O problema, segundo ela, é
que não basta ter clareza dos laços entre saber e poder para tornar-se capaz de se opor à
verdade. Afirmando que este aspecto constitui a parte nodal do pensamento foucaultiano e a
de mais difícil compreensão, pergunta

como lutar contra as verdades das ciências humanas que (...) me subjugam e dominam uma vez que
não posso deixar de percebê-las como verdades; ou ainda, como liberar-se de uma verdade sem
deixar de perceber que é verdade. (...) A empresa de rejeitar a verdade do poder, empresa
extremamente complicada visto que está nas raízes mesmas do que somos, Foucault chamou-a de
“anarqueologia”. “Anarqueologia” é um jogo de palavras para sugerir que a tarefa de recusar o
poder da verdade tem algo de anarquismo epistemológico, já que trata-se de mostrar que nenhum
poder é necessário e que, portanto, tampouco o poder da verdade o é.” (LARRAURI, 1989, p. 124)

O poder da verdade referido aqui e contra o qual a anarqueologia se opõe opera


sobretudo sob a forma da subjetividade: é no momento em que somos chamados a nos
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constituir como sujeitos que aceitamos o império dos discursos científicos e não científicos
que tem por função revelar aquilo que somos verdadeiramente. Do mesmo modo como o
austríaco Paul Feyerabend (1993, p. 23) que, no começo dos anos 1970, propôs o anarquismo
como um “tratamento médico para a epistemologia e para a filosofia da ciência” e localizou a
possibilidade de uma metodologia e “ciência anarquista” no ato de transgressão metodológica.
De maneira semelhante, Foucault propôs, com o nome de anarqueologia dos saberes, a
anarquia como atitude crítica frente ao poder da verdade.

Ortologização dos saberes


Na anarquelogia o que está em jogo não é a história do verdadeiro, mas uma
história da força do verdadeiro, uma história do poder da verdade na vontade de saber no
Ocidente. Ao retomar a anarqueologia, busco descrever o processo de ortologização dos
saberes, colocado em funcionamento pela cultura Escolástica a partir do Renascimento no
século XII, que visou estabelecer para o pensamento um padrão de similaridade das
diferenças entre os saberes. Ao descrever esse processo, procuro deslocar as práticas de
vassalagem da sociedade feudal para o interior da relação entre magister e scholasticus.
Ortologia foi um termo utilizado por Foucault (1999b) para descrever a luta do liberalismo
contra a ortodoxia do pensamento escolástico. O termo não é novo, mas remonta a Grécia
antiga; segundo Kerferd (2003), o termo foi utilizado pelos Sofistas na elaboração de sua
teoria da linguística como dicção correta, orthoepeia, e como correção das palavras, orthos
onomaton. Protágoras, no seu tratado sobre A Verdade, presumivelmente teria desenvolvido
essa teoria no intuito de tornar um logos mais correto (orthos) que outro. Desta forma, a
ortologia designa o conjunto das regras que estabelecem a justa logia, o verdadeiro logos, em
suma, o pensamento e o discurso corretos: orto, do grego orthós, designa reto, direito, correto,
normal, justo. Todavia, retomo o termo para aplicá-lo num contexto absolutamente diverso
procurando descrever o enorme processo promovido pela Escolástica de ortologização da
razão. Neste sentido, emprego ortologia para referir o processo que reduz a singularidade das
diferentes espécies de saberes numa única espécie homóloga. A ortologia é a ciência ou a arte
de fazer o pensamento pensar corretamente e em obediência a um método ou a uma lógica.
Minha questão é perceber de que maneira o princípio da vassalagem próprio das
sociedades feudais, tomado como regra de conduta e princípio condutor da vida em geral
durante a Idade Média, funcionou não nas relações entre senhor feudal e vassalo, mas nas
relações entre mestre e alunos. Se é verdade que a vassalagem tornara-se o princípio diretor
das relações sociais no Feudalismo, como seria possível perceber este princípio no campo da
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educação e do saber? Gostaria, portanto, de isolar o elemento da vassalagem, considerado,


bem entendido, como convicção de fidelidade, como ato de reverência, de veneração e de
respeito, para percebê-lo nas relações com o conhecimento.
No Feudalismo as relações de vassalagem foram caracterizadas como sermão de
fidelidade que integrava o contrato estabelecido entre vassalo e senhor. Este contrato tomava
a forma de um pequeno ritual muito significativo. Nele, segundo Le Goff (2004, p. 71), “o
vassalo colocava suas mãos unidas sob as de seu senhor, que as segurava, em seguida
exprimia sua vontade de entregar-se ao seu senhor por meio de uma fórmula do gênero: ‘Sire,
torno-me vosso homem’”. Era este ritual do contrat vassalique que selava a obediência do
vassalo para com seu senhor. 1 Nele, a subjetividade constituí o elemento central na medida
em que a fidelidade do vassalo ganha estatuto de concepção de vida, elevada em princípio de
conduta para orientar as mais diversas relações sociais. No Feudalismo, a obediência passa
pela convicção e pelo consentimento na qual o vassalo não se coloca como sujeito passivo,
mas devendo efetuá-la em si mesmo de uma maneira ativa.
Sobre este pano de fundo é que ocorre o chamado Renascimento teológico no século
XII e o surgimento da Universidade, uma das grandes criações da Idade Média. Sua origem
está relacionada ao progresso urbano e ao boom escolar da época; neste contexto, a
Universidade emerge como instituição corporativa para a prática do que hoje é chamado
ensino superior. A primeira Universidade surge em Paris, criada por volta de 1215,
inicialmente como federação de escolas na qual cada mestre exercia autoridade sobre seus
alunos (VERGER, 1999; 2002). Mas bem rápido estas escolas foram agrupadas por
disciplinas em faculdades: faculdade de artes, de medicina, de direito canônico, de teologia.
Cabia a cada faculdade o papel de organizar uniformemente os estudos e de zelar pela
ortodoxia do ensino, de modo que a Universidade é antes de mais nada uma organização
coorporativa que sedentariza mestres e alunos, fixando-os e separando-os em espaços
específicos. Estes espaços específicos são as universidades: corporações intelectuais no
interior das quais a cultura Escolástica reina plenamente sem ser perturbada. O próprio nome
universitas em latim tem o significado de corporação, de conjunto, de todo. Assim, o que está
em jogo na universidade é ainda o mesmo tipo de união coorporativa que nesta mesma época
une vassalo e senhor. Na universidade os diversos saberes foram agrupados em disciplinas,
depois em faculdades, e a Universidade é este conjunto de faculdades e aquilo que dele
resulta: um saber universitário fechado sobre si mesmo que se arroga o privilégio de resumir e

1
Este aspecto encontra-se mais longamente desenvolvido em AVELINO, 2009.
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sintetizar todos os “verdadeiros” saberes; um saber entrincheirado atrás de seus próprios


textos que despreza qualquer contribuição vinda de fora de seus muros e fronteiras. Este saber
autêntico, o saber universitário, jamais poderá ser encontrado para além dos limites da sala de
aula. A universidade, e somente ela, detém a totalidade deste saber cuja autoridade estende-se
ao mundo inteiro.
Entretanto, a universidade não é simplesmente uma organização coorporativa do saber,
ela foi sobretudo uma operação no pensamento, um tipo de funcionamento da razão, um tipo
de prática específica do saber. Assim, o que importa não é tanto a organização mais ou menos
autoritária dos saberes propiciada pela instituição universitária; importa descobrir qual é, no
plano mesmo do saber, o nível mais elementar em que a obediência é exercida. Trata-se de
estudar, para além da instituição universitária, uma outra unidade bem mais sofisticada e bem
menos perceptível elaborada pela cultura escolástica. Esta unidade residiu inteiramente nas
questões de método, ou seja, na invariabilidade das regras e das técnicas que o escolástico
deveria obrigatoriamente observar quando tivesse que estabelecer relações de conhecimento.
Estas regras, a Escolástica as retirou da obra de Aristóteles intitulada Organon, que significa
instrumento e por isso mesmo define bem o conceito e a finalidade da lógica aristotélica, que
era a de fornecer os instrumentos mentais necessários para realizar qualquer tipo de pesquisa.
A lógica é a parte da filosofia aristotélica que considera a forma que deve ter qualquer tipo de
discurso que pretenda demonstrar algo; mostra como procede o pensamento quando pensa,
qual é a estrutura do raciocínio, quais os seus elementos, como é possível fornecer
demonstrações, que tipos e modos de demonstrações existem, como e quando são possíveis
(REALE, 2002).
Ao definir desta forma a lógica, Aristóteles estabeleceu um princípio de subordinação
no pensamento a partir da separação entre discursos demonstrativos e discursos não-
demonstrativos, discursos lógicos e discursos ilógicos. Definindo o discurso lógico como
sendo unicamente portador de um enunciado que exprime um julgamento e um juízo, excluiu-
se todos os demais discursos como ilógicos: todas as frases que exprimem pedidos,
invocações, exclamações, foram colocadas fora da lógica, e esta massa de discursos
destituídos de lógica foi classificada ou como discurso retórico ou como discurso poético. O
problema é que, historicamente falando, o que é um discurso sem lógica? É um discurso
absurdo, irracional, contraditório, mágico, não científico, louco. E sabe-se qual foi o destino
destes discursos no Ocidente: seu destino foi a perseguição e a morte de bruxas, adivinhos e
alquimistas na Idade Média; a segregação da loucura a partir da Idade Clássica; o fuzilamento
de poetas, artistas e anarquistas nos regimes comunistas; o encarceramento de comunistas e
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anarquistas nos regimes nazi-fascistas. Aristóteles certamente não podia se dar conta das
conseqüências políticas que poderiam resultar da sua classificação lógica dos discursos. Mas
o fato é que estas conseqüências se deram.
Para Aristóteles o discurso lógico é somente o discurso que está ligado a uma
tecnologia de demonstração, é o discurso científico, o discurso universalmente válido. Assim,
a Escolástica retoma os princípios da lógica aristotélica e os generaliza, impondo-os a todos
os outros campos do saber: ao direito, à medicina, à teologia. Em cada um destes campos de
saber, a lógica vai subordinar e excluir o que não lhe é conforme, excluir o que pode existir no
pensamento de absurdo, de irracional, de contraditório, para só extrair e consagrar como único
discurso válido o discurso realmente verdadeiro, ou seja, o discurso conforme a lógica. Desta
maneira, a lógica foi nomeada a polícia dos discursos pela Escolástica, desempenhando a
mesma função que a fogueira e a tortura tiveram para os corpos, todavia aplicadas no plano
do conhecimento. A lógica foi a fogueira da razão. É este método, esta maneira de proceder,
que constituiu a unidade Escolástica, da qual herdamos inteiramente.
A polícia do pensamento desempenhada pela lógica é quase sempre considerada como
simples técnica formal de conhecimento, como aquilo que normalmente é chamado de rigor
científico. Quando na realidade o método, a lógica, é bem mais que isto. A Escolástica fez da
lógica o princípio diretor, o princípio de autoridade que impõe práticas de submissão, de
respeito, de veneração, de reverência. Em outras palavras, a lógica impõe práticas de
vassalagem toda vez que se estiver frente a certos textos, a certos autores, a certos discursos, a
certas verdades por ela consagradas. E pouco importa se as verdades servem à direita ou à
esquerda, se as verdades sejam as verdades do socialismo, do comunismo ou do anarquismo:
toda vez que a verdade estiver consagrada pela lógica, pelo método, seja quem for que a
sustente, o fará a partir de uma relação de vassalagem.
Foi desta forma que, como observou Foucault (1999b), ao invés de promoverem o
fogo ininterrupto dos hereges, os Padres da Igreja articularam as fogueiras da ortodoxia com
uma prática de dominação bem mais sofisticada e duradoura: promoveram a ortologia da
razão. Até agora, a quase absoluta totalidade das críticas e das queixas, quase toda atenção foi
direcionada exclusivamente contra a ortodoxia, o dogmatismo e a intolerância do pensamento;
assim, quase ninguém ainda se ocupou do enorme processo ortológico ao qual o pensamento
foi submetido por mais de oito séculos. Todavia, foi a ortologia dos saberes o que permitiu a
Igreja economizar petróleo. Por que sustentar indistintamente a ortodoxia, a censura, a
proibição de certos conteúdos de saber, exigia frequentemente ações economicamente
onerosas e politicamente perigosas: as fogueiras não só tinham um alto custo aos cofres da
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Igreja, como também seu ritual provocava, algumas vezes, a revolta popular toda vez que o
condenado sustentava uma postura corajosa frente os inquisidores (Giordano Bruno, por
exemplo). Assim, a prática da ortodoxia continha muitos inconvenientes e provocava muitos
atritos que minavam a própria autoridade da Igreja. Foi por esta razão que, ao longo dos anos,
a prática da ortodoxia foi diminuindo paulatinamente até chegar na sua abolição formal na
modernidade. Mas isso só foi possível graças a esta outra prática sistemática e constante de
ortologização dos saberes que consiste em não mais censurar, mas estabelecer um controle
minucioso sobre os saberes para verificar se eles estão conformes a lógica e ao método justo.
Não mais proibir, mas, uma vez normalizados e disciplinados, fazer o saber circular
livremente, fazê-lo expressar-se, fazê-lo falar através da educação escolar e universitária.
Percebe-se que se na ortodoxia a obediência imposta é exterior ao sujeito do conhecimento,
na ortologia a obediência é exercida pelo próprio sujeito do conhecimento: é o próprio sujeito
de conhecimento que, na medida que pensa e fala, estabelece sua própria obediência às regras
da lógica e do método; é o próprio sujeito que é e que exerce a polícia de seu próprio
conhecimento; em obediência à lógica, ele segrega, ele exclui e nega o que pode existir de
ilógico e de absurdo em seu próprio pensamento. Com isso, se a ortodoxia foi a
disciplinarização dos corpos, a ortologia é a disciplinarização e a normalização dos saberes.
Portanto, não foi o Iluminismo do século XVIII quem jogou a última cartada contra o
dogmatismo: sua abolição já estava dada em germe desde o século XII pela ortologia dos
saberes.
* * *
A anarqueologia e a ortologia dos saberes trazem para discussão sobre a educação em
geral, e em particular a educação universitária, um aspecto que tem ocupado a vontade de
saber ocidental desde os gregos: o problema da força da verdade e de sua pretensão de poder
sobre os homens. Que o discurso não seja essa dimensão tranquila e transparente sonhada por
muitos politólogos e filósofos da educação mostra o fato, na história do Ocidente, dos
indivíduos terem sido nele vinculados a dois níveis e de dois modos: de um lado à obrigação
de dizer verdade e, de outro, ao estatuto de objeto no interior desta manifestação de verdade;
enfim, foram vinculados à obrigação de ligarem a si mesmos como objetos de saber. Além
disso, a anarqueologia possibilita recolocar a atualidade da reflexão anarquista. Que Foucault,
um dos filósofos mais importantes do século XX, tenha intitulado o seu método investigativo
de an-anarqueológico, significa certamente que já era possível encontrar no anarquismo, e eu
diria especialmente no anarquismo de Proudhon, a disposição que considera os discursos que
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articulam o que pensamos, dizemos e fazemos com a mesma seriedade concedida aos eventos
históricos.
Existe uma novidade ruidosa na anarqueologia. Se é verdade que o relativismo
epistemológico já havia sido colocado em funcionamento pelos lingüistas anglo-saxões desde
os anos 1960, no entanto, é preciso perceber que quando Paul Feyerabend entra cena
declarando-se anarquista epistemológico, do mesmo modo quando Foucault declara-se
anarqueologista do saber, neste momento o relativismo epistemológico passa a operar não
mais simplesmente no plano da linguagem ou na relação entre as sintaxes, mas no campo da
política, no exercício do poder político, numa palavra, no governo dos homens. E é neste
momento em que o anarquismo epistemológico, introduzido para problematizar o governo da
conduta dos indivíduos, se dá como tarefa a de tornar evidente as conexões sempre existentes
entre poder e verdade, buscando reintroduzir nos jogos de verdade as dessimetrias e seus
efeitos sobre as subjetividades.
Em suma, se na teoria de Marx encontra-se uma espécie de realismo sociológico ao
objetivar na realidade social, na práxis, o critério de verdade da análise. Diria que no
anarquismo e na anarqueologia dos saberes existe uma espécie de realismo não sociológico
mas epistemológico que confere a verdade a mesma realidade e a mesma concretude que
normalmente são apenas atribuídos aos fatos. Todavia, neste realismo epistemológico não se
trata de estabelecer um critério de verdade, mas simplesmente descrever as articulações
obscuras entre o poder político e a verdade na configuração disto que precisamente é chamado
o real.

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1
Pós-Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP); bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP);
pesquisador no Grupo de Pesquisa “Gênero, Experiência e Subjetividade” (IFCH/UNICAMP), pesquisador
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associado ao MoDyS-Monds et Dynamiques des Sociétés (www.modys.fr) e pesquisador na área de Teoria


Política no Centro de Cultura Social. E-mail nildoavelino@gmail.com

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