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A Veterinária como Profissão da Saúde e a construção do Projeto Político

Pedagógico1
Idael Cristiano Santa Rosa2

A primeira consideração a ser feita é a de que a veterinária não é uma profissão de uma única área,
ela é uma profissão de múltiplas faces. A face da produção animal, da sanidade, da tecnologia e inspeção de
produtos de origem animal, da saúde pública, da clínica e cirurgia, da biotecnologia, do manejo e
conservação da fauna, do agronegócio e de tantas outras faces e nuances. Essa multiplicidade faz com que a
veterinária seja classificada de diversas formas por diferentes órgãos e instituições. Encontramos a
veterinária classificada como profissão de ciências agrárias, ciência da saúde, ciências biológicas, ciências da
vida, ciências do ambiente.
Pode-se indagar qual é o foco, a face que deve prevalecer. E a esse questionamento cabe,
franciscanamente, responder com outras perguntas: "Existe foco único? É necessário ter um foco único?”.
Acredito que não. A riqueza da profissão está justamente nessa grande diversidade. É preciso, porém, não
ser ingênuo. Deve-se ter claro que direcionamento existe para um foco. Há sempre, apesar da diversidade de
opções, um fio condutor, explícito ou não. Esse fio/foco é dado pelo contexto histórico onde se define o
projeto político pedagógico e pelo contexto onde se desenrola a formação do estudante.
Os valores e os conflitos de valores expressos nesses momentos induzirão um foco hegemônico com
maior ou menor pluralidade. Logo, os projetos políticos pedagógicos são os definidores a priori dos focos de
um curso, pois refletem o momento em que foram construídos e o horizonte que se almejava. Com o passar
do tempo as correlações de forças definidoras do projeto se alteram, aumenta a divergência entre o currículo
do curso e o juízo de valores presentes no curso ( currículo oculto). Conflitos que acabam por suscitar uma
nova construção onde as novas correlações de força pactuem um novo horizonte materializado em um novo
projeto.
No momento atual de reconstrução dos Projetos Políticos Pedagógicos e de reforma curricular
disparados pela Lei de Diretrizes e Base, da educação (LDB) é preciso se indagar sob qual o norteamento
esses serão construídos. Tentando contribuir nas discussões da construção deste horizonte dentro da
vertente (face) da saúde tentaremos contextualizar o momento histórico da última reforma até o momento
atual.
A última grande reforma curricular de veterinária se deu na década de 80. Vigorava na saúde (apesar
da reforma sanitária que ganhava força) um modelo previdenciário, médico e hospitalocêntrico caracterizado
pela necessidade da manutenção da força de trabalho através da incorporação de medicamentos fármacos. A
saúde era mera ausência de doença. Era também um legado para apenas uma parcela da população. Dentro
deste contexto era de se esperar que a veterinária não fosse identificada como uma profissão de saúde.
Na veterinária, a saúde animal era tida como a expressão do máximo potencial produtivo e espalhava-
se pelo país uma concepção de saúde construída a partir da teoria social do processo saúde - doença. Essa
concepção, que teve como caixa de ressonância e irradiação o Centro Pan Americano de Zoonoses
(CEPANZOO), discutia a saúde como construção social, tendo seus determinantes na forma de produção. A
construção social do processo saúde - doença não foi suficiente para dar uma roupagem à reforma curricular
que se distanciasse do modelo francês dos cursos de veterinária. Um modelo que possui uma estrutura
médica (anatomia, fisiologia, farmacologia, patologia, semiologia, clínica e cirurgia) apresentando outras
áreas como apêndices nessa estrutura. Observa-se nesse período a gradual translocação da visão de clínica
do coletivo para uma visão de clínica individual (modelo paulista).
A veterinária se insere na saúde pública nos programas de controle de zoonoses, em especial a raiva,
e dentro da vigilância sanitária, uma vez que a inspeção de produtos de origem animal é atribuição restrita à
veterinária. A Inspeção de produtos de Origem Animal, com exceção da realizada pela vigilância sanitária,
obedecendo à lógica do modelo agroexportador, fica inserida dentro do Ministério da Agricultura, ainda que
tenha sérias implicações de saúde coletiva.
Enquanto se processava a reforma curricular da década de 80, o setor saúde passa por mudanças
significativas. O conceito de saúde é ampliado pela Organização Mundial da Saúde e incorporado à
Constituição e a prática da saúde brasileira. A ampliação do conceito de saúde gera a internalização de
outros atores sociais ao campo da saúde e amplia o espaço que a veterinária vinha gradativamente
conquistando. A veterinária além de se ocupar da Vigilância Sanitária, do controle de zoonoses e do controle
de animais (vetores, pragas, peçonhentos, populações animais que por algum motivo requeiram controle no
meio urbano, rural ou silvestre) passa a participar também do controle de endemias, controle de infecções
emergentes, infecções hospitalares, do saneamento, da vigilância à saúde em todas as suas frentes, da
educação em saúde, da gestão, do planejamento, do controle e mobilização social, de todos os campos onde
se vê a interação homem - animal (animais como facilitadores psicossociais, animais em terapias), tornando-
se indiscutivelmente uma profissão também da saúde. A saúde animal passa a ter definição diferenciada,
sendo considerada a expressão do potencial de maneira economicamente viável, ecologicamente sustentável
e socialmente aceitável.
Ao mesmo tempo em que o horizonte de atuação da veterinária na saúde se amplia, tende à
hegemonia o modelo paulista possuindo como contraponto (ainda que não antagônico) o modelo de
veterinária voltada para o agronegócio. Esses modelos se pautam por atender não ao conjunto da sociedade,
mas apenas aos interesses de grupos restritos com poder de vocalização ampliada, não apresentando
compromisso de transformação e/ou inclusão social.
Para a saúde, esses dois modelos apresentam-se como um não avanço ou mesmo como um
retrocesso da veterinária, principalmente o modelo paulista com sua visão de clínica individual num processo
de incorporação tecnológica crescente (em detrimento da própria clínica) que na década de 80 já havia
iniciado seu processo de superação pelo setor saúde (conferência de Alma Ata, Carta de Otawa).
O momento de construção dos projetos políticos pedagógicos disparados pela LDB apresenta-se
como uma oportunidade de superação deste processo, alçando a veterinária a um patamar de qualidade
social muito superior ao atual. É necessário, porém, que haja uma articulação nacional que gere esse
direcionamento garantindo um foco de compromisso e qualidade social a partir de um olhar plural.
O momento é rico, cheio de oportunidades e parafraseando Beto Guedes e Ronaldo Bastos, quem se
omitir ou "perder o trem da história, não apenas sairá do juízo, e será mais um covarde a se esconder diante
de um novo mundo", será o responsável pelo desvirtuamento e pela deterioração de um curso e uma
profissão das mais belas e com enormes possibilidades de geração de qualidade de vida, saúde.
1 Texto presente no Caderno de Textos do Seminário Nacional de Ensino em Veterinária de 2004
2 Prof. da UFLA Epidemiologista - ex. coordenador nacional da ENEV

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