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DEMOCRACIA VIVA 45

JUlHO 2010

Especial crise financeira


Por que é necessário democratizar
o sistema financeiro?
Na cultura, textos
e charges de Aroeira

UPPs
Olhares sobre as unidades
de polícia pacificadora

Entrevista
Tânia Bacelar
apoio a esta edição
e d i t o r i a l
Dulce Chaves Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do Cpdoc/FGV

A pesar de não se tratar de uma edição temática, parte expressiva deste


número da Democracia Viva é dedicada à recente crise financeira que abalou o mundo. No seu artigo
sobre o déficit democrático das instituições multilaterais, Fernando Cardim chama a atenção para
a pouca atenção que organizações da sociedade civil dão ao funcionamento do mercado financeiro
e mostra as razões pelas quais isso não deveria ocorrer. Esse e outros artigos presentes no Caderno
Especial desta edição foram produzidos no âmbito do projeto Liberalização Financeira e Governan-
ça Global, que o Ibase desenvolve com recursos da Fundação Ford. A crise financeira também está
brilhantemente retratada por meio de charges de Aroeira.

Além da crise e da nova arquitetura do poder mundial, outras questões relevantes da


conjuntura estão contempladas na revista.

O historiador Alexandre Fortes analisa, em uma perspectiva histórica, as eleições de


2010. Ao mesmo tempo em que aponta para as diferenças entre os projetos das duas candidaturas
presidenciais mais competitivas, a do PT e a do PSDB, compara a dimensão da liderança do presi-
dente Lula à de Getulio Vargas, a despeito das diferenças que existem entre os dois, tanto em termos
de origem social, como dos caminhos trilhados por cada um para se consolidarem como referências
centrais da política brasileira.

O recente drama provocado pelas chuvas no Rio de Janeiro foi o pretexto para que o
tema das remoções das favelas voltasse com força total. Em contundente artigo, Luiz Antônio Ma-
chado entra no debate e rebate de forma qualificada os argumentos que, a pretexto de salvar a vida
da população favelada, só contribuem para reforçar o apartheid social existente em nossa cidade.

Além de reportagem, trazendo diversas vozes sobre a experiência das Unidades de Polícia
Pacificadoras, as UPPs, a Democracia Viva examinou os principais resultados da pesquisa Juventudes
sul-americanas, recém-concluída, coordenada por Ibase e Instituto Pólis, com o apoio do Centro Inter-
nacional de Desenvolvimento e Pesquisa do Canadá (IDRC). A revista também mostra a importância
do sistema de gestão da informação da economia solidária, o Cirandas, criado a partir de mapeamento
realizado com cerca de 22 mil empreendimentos no país.

Por último, mas não menos importante, gostaria de chamar a atenção para a entrevista
com a socióloga e economista Tânia Bacelar. Ela nos fala sobre nosso processo de desenvolvimento, a
viabilidade do Nordeste, as tensões e os embates que ocorrem entre governo e movimentos sociais, a
diferença entre ganhar o governo e ganhar o poder e o significado das mudanças que estão ocorrendo
no Brasil de hoje. Enfim, como mostra Tânia, governar é administrar conflitos de interesses, e, como
não existe espaço vazio na política, tensionar e disputar são as armas fundamentais para quem quer
fazer avançar o jogo político.
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas
3 ARTIGO Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
O Rio depois da tempestade 20040-916 Rio de Janeiro/RJ
Há culpados? O que fazer? Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
Luiz Antonio Machado da Silva <ibase@ibase.br><www.ibase.br>

Conselho Curador
10 OPINIÃO IBASE Sebastião Soares
João Guerra
Remoções: as palavras e as coisas Carlos Alberto Afonso
Itamar Silva e Renata Lins Nádia Rebouças
Sonia Carvalho
12 NACIONAL Direção Executiva
Eleições de 2010 em Cândido Grzybowski
perspectiva histórica Dulce Pandolfi
entrevista Alexandre Fortes Francisco Menezes
Tânia Bacelar Moema Miranda

16 ARTIGO Coordenadores(as)
Nova forma de gerir informação Antônia Rodrigues
Carlos Aguilar
para uma nova economia Fernanda Carvalho
Eugênia Motta e Daniel Tygel Itamar Silva
João Roberto Lopes Pinto
Luzmere Demoner
20 ENTREVISTA
Renata Lins
Tânia Bacelar
DEMO C RA C IA V I V A
32 CRÔNICA
Alcione Araújo ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral

Diretora Responsável
34 OPINIÃO IBASE Dulce Pandolfi
Por onde caminham os(as) jovens
Conselho Editorial
CULTURA
sul-americanos? Os diálogos de Alcione Araújo
uma pesquisa em rede Cândido Grzybowski
Patrícia Lanes Charles Pessanha
Cleonice Dias
Jane Souto de Oliveira
38 RESENHA João Roberto Lopes Pinto
Márcia Florêncio
40 CULTURA Mário Osava
Moema Miranda
Crise? Que crise? Regina Novaes
Aroeira Rosana Heringer
Sérgio Leite
50 Caderno Especial
Edição
Democracia e governança Flávia Mattar
financeira Jamile Chequer

O déficit democrático nas Edição dos textos em inglês


instituições multilaterais Fernanda Carvalho
Fernando J. Cardim de Carvalho Renata Lins

Revisão
Finanças internacionais Paulo Ferreira
É hora de radicalizar
Bruno Jetin Assessoria de imprensa
Rogério Jordão
Finanças a serviço das pessoas ou
tornar o cassino mais seguro para Produção
os jogadores? Geni Macedo

O Ibase adota a linguagem de Peter Wahl


Distribuição
gênero em suas publicações por Elaine Amaral de Mello
acreditar que essa é uma estratégia Reforma do FMI
para dar visibilidade à luta pela Pensamentos e reflexões de um Projeto Gráfico
equidade entre mulheres e homens. militante em Washington Mais Programação Visual
Trata-se de uma política editorial, Rick Rowden
fruto de um aprendizado e de um Foto de capa
acordo entre os(as) funcionários(as) Aroeira
72 Reportagem
do Ibase. No caso de artigos UPP: tecendo discursos
redigidos voluntariamente por Tiragem
Flávia Mattar, Jamile Chequer e Mariana Dias 5.000 exemplares
convidados(as), sugerimos a adoção
da mesma política. democraciaviva@cidadania.org.br
Os artigos assinados nesta 82 SUA OPINIÃO
publicação não traduzem,
necessariamente, a posição do Ibase. 84 ÚLTIMA PÁGINA
Nani

2 Democracia Viva Nº 45
artigo
Luiz Antonio Machado da Silva*

O Rio depois da tempestade

Há culpados?
O que fazer?
1. Abaixo da linha d’água: O que não costuma ser considerado

Em 2010, o Rio sofreu a mais forte tempestade desde 1916 - ano em que o índice pluvio-

métrico começou a ser medido no Brasil. Era de se esperar que seus resultados devasta-

dores pusessem a administração da cidade em questão, o que de fato ocorreu. A todas as

manifestações extraordinárias da natureza, segue-se uma caça frenética aos responsáveis

pelas trágicas consequências sociais. E, como naquela brincadeira infantil em que se vai

retirando cadeira por cadeira até que alguém termine sendo obrigado a ficar em pé, a

responsabilidade sempre acaba sendo atribuída aos favelados, ora vistos como espertos

“invasores ilegais”, ora como incapazes objetos da “politicagem clientelista”, outra maneira

de falar de ilegalidade em relação às favelas. Como quem está na ilegalidade tem um status

público muito restrito e, a rigor, não precisa ser ouvido, sempre que o processo é deflagra-

do, segue-se uma veemente defesa unilateral da remoção das favelas, sempre apresentada

como uma política habitacional objetiva, racional e até benevolente, “em favor da vida e

da dignidade dos favelados”. Tudo isso é tão previsível que seria monótono se não fosse

catastrófico para os removidos.

Julho 2010 3
artigo

Culpas podem e devem ser avaliadas, hierarquia entre os participantes), não são a so-
claro. Os americanos têm um termo, accounta- ciedade civil, isto é, o outro lado do Estado?
bility, para referir-se ao fato de que todos, cada A construção do argumento que
organização e cada pessoa, devem responder sempre desemboca na demanda por mais
– inclusive criminalmente, se for o caso – pelo Estado e menos “favelização”, eterna con-
que ocorre em sua esfera de atribuições. Mas é sequência dos desastres “naturais”, ignora
interessante aprofundar o olhar e expor o que completamente que fala da excepcionalidade
está subjacente as culpas individuais, e o que do Estado nas favelas, e não da falta dele.
desastres como a última tempestade deixam en- Faço uma aposta: não possuo bola de cristal,
trever: a natureza da soberania estatal no Brasil. mas antevejo que nos próximos meses haverá
Creio que seria muito útil começar a discutir intensa intervenção (por sorte, uma boa parte
responsabilidades e soluções neste nível. apenas retórica) nas favelas, e serão intensi-
Em nosso país, o Estado, em todas as ficadas as remoções que, aliás, já estavam
esferas e formas de atuação, administra as dis- mesmo voltando a ocorrer sob a forma de
putas e conflitos entre os vários segmentos que práticas isoladas e não tanto como política
compõem a população pela excepcionalidade. governamental. Mas em pouco tempo tudo
Estranho paradoxo, que só se manifesta com vai se “acalmar” – menos, é claro, para as
alguma nitidez com a interferência do “extraor- famílias removidas nesse ínterim.
dinário natural”, como a tragédia dos dilúvios Continuemos por mais um parágrafo
anunciados (nas chacinas e “abaixo da linha d’água”, isso é, dos termos
nos escândalos financeiros explícitos do debate sobre o que fazer depois da
também, porém com menor trágica enchente. A excepcionalidade não é ape-
Desastres clareza), porque o Estado de nas política, ela também tem lastro econômico.
exceção não é ocasional nem No capitalismo, os trabalhadores ven-
como a última ligado a momentos de crise, dem sua força de trabalho aos donos dos
faz parte da nossa (de todos meios de produção e destes recebem o que
tempestade os moradores da cidade)
vida cotidiana.
Marx chamava de “capital variável”: o equi-
valente, sob a forma de salário, do “trabalho
deixam entrever Tome-se o caso dos
culpados de sempre pelo
socialmente necessário” (outro conceito) para
se reproduzirem e serem capazes de voltar a

a natureza da “caos urbano”: os fave-


lados. Costuma-se dizer
vender sua força de trabalho aos donos dos
meios de produção. Dessa maneira, o salário
que o Estado está ausente deveria corresponder à cesta de utilidades que,
soberania estatal das favelas. É fato que o em cada momento histórico, os trabalhadores
parcelamento do solo, a precisam consumir para manter-se como tais,
no Brasil construção, a compra, ven- dentre as quais a moradia. Nas cidades brasi-
da e aluguel de habitações leiras, porém, isso nunca ocorreu, como todos
nas favelas, durante toda a história de sua sabem o salário não cobre o aluguel, não dá
produção, oscila entre a exclusão explícita da acesso a financiamento, nem o Estado provê
atividade regulatória (jurídica e urbanística) habitação, com ou sem subsídio, para toda
estatal e a produção de regulamentos especiais a massa de trabalhadores. Uma quantidade
que visam corrigir o que é definido como irre- significativa deles precisa estender suas horas
gularidade fundiária ou construtiva (claro que de trabalho além do tempo que vende aos
elas não podem deixar de ser irregulares, pois o donos dos meios de produção para prover a
Estado sempre as colocou à margem da regu- indispensável moradia, o que já foi chamado,
lação). Mas o que são os políticos clientelistas com toda a razão, de “superexploração” (na
tão criticados, se não um braço do Legislativo produção capitalista, o salário já expressa
nas favelas? E a presença da polícia, tão temida a exploração econômica, uma vez que não
pelos moradores, não é o braço repressivo? corresponde a tudo o que os trabalhadores
E a precariedade das escolas e creches, não é produzem durante o tempo de trabalho ven-
indicativa da presença de serviços públicos? E dido; os donos dos meios de produção retêm
as associações de moradores não são veículos a parte que excede o “trabalho socialmente
das demandas locais na esfera pública? E as necessário” – a “mais-valia”).
ONGs, com ou sem suas várias “parcerias” É claro que a moradia produzida fora
(termo que encobre com um grão de açúcar a da relação capitalista imediata faz parte inte-

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O R i o d e p o i s da t e m p e s ta d e . H á c u l pa d o s ? O q u e fa z e r ?

gral do capitalismo, mas é precária por, pelo é uma relação social da qual ninguém escapa,
menos, dois motivos. Primeiro, os recursos todos somos culpados. Porém, na hierarquia
produtivos à disposição dos trabalhadores são das responsabilidades pela tragédia, os menos
escassos, de modo que as habitações resul- culpados, ou seja, os contingentes com mais
tantes são de baixa qualidade ou inacabadas, precário acesso à cidade, são justamente os
e, durante muito tempo, os serviços urbanos, que têm sido desde sempre apresentados
que complementam a habitação e são cole- não como vítimas, mas como autores de sua
tivos por definição ficam faltando. Segundo, própria desgraça. Sua ilegalidade, que no mais
os trabalhadores não dispõem de um meio das vezes é real, mas imposta, é convertida
de produção fundamental: a propriedade da em falha de caráter, ou seja, em esperteza
terra. Daí que, além da escassez de meios de ou ignorância.
produção, só é possível aplicá-los nos interstí-
cios da propriedade urbana. No máximo, boa
2. Ao nível da água: O que todos
parte dos trabalhadores obtém acesso apenas
sabem, mas fica entre parênteses
às piores parcelas da cidade.
Nesse ponto, é interessante um co- Não sejamos ingênuos. Há muita exploração e
mentário adicional. No início da urbanização, dominação entre a massa de trabalhadores, que
a terra não era uma mercadoria, e havia pode ser até mais virulenta que a do “sóbrio
pouquíssimos proprietários. A criação de um capitalismo burguês” ao qual se referia Max
mercado de terras, essencial para a produção Weber. No primeiro artigo que escrevi sobre
imobiliária tal como a conhecemos hoje, foi favelas (em 1967), já usava a metáfora de uma
um longo, difícil e conflitivo processo históri- “burguesia favelada”, para me referir a essas
co que não cabe analisar neste artigo. Aqui, formas menores de capitalismo e política. Atu-
basta indicar algo que tem sido muito pouco almente, o capitalismo nas favelas é muito mais
reconhecido: a tão falada “favelização” foi uma pujante, como todo mundo reconhece, embora
das formas de parcelamento do solo no Rio de continue intersticial e não decisivo. Mesmo um
Janeiro, agregando vastas áreas ao mercado grande proprietário ou “incorporador” nas
de terras urbano, o que só foi possível por favelas do Rio atual, embora integre sua elite,
sua irregularidade do ponto de vista jurídico não é comparável, em termos de disponibilidade
e urbanístico. Nesse sentido, os comentários de capital ou influência política, às grandes
acima sobre a excepcionalidade do Estado empresas do setor. O mesmo pode ser dito
devem ser tomados como contemporâneos a respeito das demais atividades econômicas
da própria formação da cidade, e não como nessas localidades.
algum desvio pouco ortodoxo de seu desen- Também é fato que a grilagem de
volvimento recente. terras urbanas sempre foi bastante difundida,
Essa brevíssima descrição não se refere enquanto isso era viável, pois hoje há pouca
apenas às características da exploração econô- terra passível de ser grilada no Rio de Janeiro.
mica vinculada à produção física da cidade, que Nesse quesito, porém, os favelados não estão
está por baixo da série de catástrofes anuncia- sozinhos. Muito mais importantes do que eles
das das cidades brasileiras como um todo e do são os proprietários de loteamentos (pessoas
Rio de Janeiro em particular. Ela diz respeito individuais ou empresas), responsáveis pelo
também ao que me parece ser o fundamento parcelamento de enormes glebas da cidade,
da dominação política. Regulando certas partes quase sempre com inúmeras irregularidades.
da cidade e certas atividades urbanas, e não Isso, porém, não altera a característica básica
outras, o Estado não está se omitindo destas do desenvolvimento urbanístico segundo a
últimas: está controlando o acesso à cidade produção conjugada do Estado de exceção e
e, dessa forma, dificultando e canalizando boa de suas margens: favelas e loteamentos crescem
parte do esforço reivindicatório dos trabalha- em área e população como uma cebola que se
dores. Em síntese: o Estado cria suas margens descasca: dentro das favelas, regiões cada vez
e delas retira sua força. mais precárias, progressivamente melhoradas
Primeira conclusão: o culpado, não com muito esforço para darem lugar a novas
pelo fenômeno da natureza, mas pela exten- sub-regiões. Variáveis ilicitudes na incorpora-
são de suas consequências, é nosso Estado de ção de loteamentos, criação de favelas nos
exceção. E, como o Estado, pelo menos em loteamentos, “sub-loteamentos” dentro de
todas as sociedades ocidentais como a nossa, loteamentos etc.

Julho 2010 5
artigo

3. Acima da linha d’água: Os vive em favela é um cidadão especial” (posto


termos explícitos do debate nesta condição não pela Carta Magna ou pelo
assistencialismo barato, mas pelas operações
de poder que produzem nosso Estado de exce-
“Até quando teremos que assistir o Rio
ção), como já deve ter ficado claro nas seções
sendo depredado por invasores que depois
anteriores. Porém, não aceito os argumentos
se transformam em vítimas de sua própria
que sustentam a (des)qualificação corres-
esperteza?” (Opinião de um leitor sob o
pondente. Os entrevistadores da revista Veja
título “Favela em risco”, O Globo, 17-04-
apresentam Sérgio Besserman como uma das
2010, p.8)
autoridades que podem falar de “favelização”
com conhecimento de causa. Eu concordo: ele
“No Rio de Janeiro, a remoção de favelas
obteve por mérito próprio credenciais que o
passou a ser um grande tabu, sustentado
situam nessa posição, além de que sua atuação
por um assistencialismo barato segundo
pública leva a crer que tudo o que ele diz visa
o qual o Estado deve prover
tão somente o bem público. Uma vez que con-
tudo aos pobres dos morros
vergimos ambos neste último ponto (“alguma
– ainda que sua permanência
coisa temos em comum”, como no anúncio),
A proposta é ali possa pôr a própria vida
em risco e acarretar prejuízos
estabeleço, nesta seção final, um diálogo em
torno dos principais aspectos do conteúdo da
"racionalizar", à cidade como um todo. A
idéia absurda embutida nesse
entrevista, a qual tomo como uma exposição
fiel do pensamento que considero exemplar
por meio das raciocínio é a de que quem
vive em favela é um cidadão
da opinião acadêmica mais próxima dos atuais
formuladores das políticas públicas.
especial que não precisa se
remoções, a submeter nem à Constituição
Sérgio Besserman: “Antes de tudo, é
e não tem os mesmos deveres
ocupação física dos outros brasileiros.” (Sérgio
preciso começar a tratar essa questão
[os ‘muitos casos em que a remoção se
Besserman; entrevista a Môni-
da cidade, de ca Weinberg e Ronaldo Soa-
justifica’] com a objetividade que ela re-
quer, longe da sombra da ideologia e dos
res, Veja - Páginas Amarelas,
interesses escusos”.
modo a favorecer 21-04-2010, pgs. 17-21).

Tratar a questão racionalmente e com


seu uso como “O sociologismo de almana-
que posto a serviço da grita
a objetividade que ela requer, afastando a
ideologia, demanda em primeiríssimo lugar
recurso produtivo contra as remoções sugere
que ninguém escolhe morar
explicitar a perspectiva valorativa que sustenta
a racionalidade das políticas públicas propos-
em áreas de risco ou em
difuso condições de vida degradan-
tas. Sem fazê-lo, o argumento necessariamente
cai sob a “sombra da ideologia”, que se nutre
tes. Isso não é argumento,
exatamente das meias verdades que apresen-
mas obviamente um con-
tam pontos de vista e aspectos particulares
senso. O problema está em, ao abrigo
como se fossem universais. Eis a perspectiva
de tal enunciado, tentar obstruir ações
de Besserman:
inadiáveis, com a falsa lógica de que as
pessoas vivem em tais condições por falta
Sérgio Besserman: “Não há como discordar
de opções.” (“Nossa Opinião”, O Globo,
da ideia de que alguém que tenha seu
24-04-2010, p.6).
barraco fincado sob os restos de um antigo
As citações acima, ressalvadas as varia- lixão, como é o caso de dezoito favelas do
ções na virulência, sofisticação e acabamento, Rio, deve ser retirado imediatamente de lá.
são praticamente iguais. Elas expressam a O mesmo vale para quem tem a casa espe-
opinião dominante, pelo menos quanto à po- tada à beira de um precipício, em flagrante
pulação que lê jornais, e a uma boa parte dos situação de risco Até aí, prevalece um
“formadores de opinião”. relativo consenso. No entanto, é preciso
De minha parte, visto as duas cara- ir além, encarando uma questão de fundo
puças, a do “sociologismo de almanaque” econômico que é central mas foi posta
e a relativa à “ideia absurda” de que “quem de lado no debate: as áreas favelizadas

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provocam uma acentuada degradação da custo-benefício seja apresentada por Sérgio


paisagem da cidade, um ativo cujo valor é Besserman como um antídoto à “sombra da
incalculável. Portanto, quando uma análise ideologia” e uma condição da objetividade do
de custo-benefício revelar que a realocação argumento, a destruição do valor agregado
de uma favela trará retorno financeiro e às favelas pelo esforço de gerações de mo-
social elevado, por que razões não cogitar radores, quando este é definido como “de-
sua remoção?” gradação da paisagem urbana”, não poderia
mesmo ser incluída na rubrica “custo”. Quero
Aqui, há dois problemas. Primeiro, de lembrar que não estou discutindo o reducio-
fato, que eu saiba, ninguém jamais discutiu nismo economicista contido na compreensão
que onde há risco de desabamento há ne- das cidades como um recurso econômico.
cessidade de remoção. Porém, o consenso é Nem tampouco a ideia geral e abstrata de
realmente muito relativo, porque, se “não há um “retorno social” que evita mencionar
como discordar”, pode-se discordar (como o aspecto crucial da desigualdade inerente
eu, por exemplo) da maneira unilateral, au- ao capitalismo, isto é, desconhece que o
toritária e sem nenhuma transparência pela “retorno” – mais claramente, a apropriação
qual são definidas as áreas de risco. Além econômica dos “benefícios” da remoção –
disso, no caso de risco verdadeiro, pode-se está longe de ser equitativo. Esses aspectos
discordar (como eu) da maneira pela qual a levariam a questões filosóficas e de método
remoção foi e tem sido conduzida a pretexto que nos desviariam do assunto específico
da urgência, com claro desrespeito à digni- aqui tratado.
dade das famílias afetadas. Outro aspecto dessa mesma questão,
O argumento, entretanto, não se sobre o qual também não quero me alongar,
limita ao risco. É generalista, saltando do diz respeito à ideia de “paisagem urbana”.
fundamento geofísico da remoção para a Trata-se de um eufemismo para discutir ou,
“degradação” do potencial econômico da mais precisamente, para propor uma inter-
cidade representado pela “favelização”. De venção sobre a apropriação do território da
fato, pode haver casos em que a remoção se cidade tal como ela vem ocorrendo na prática
justifica – se e quando for o resultado de um atual da acumulação e da divisão do trabalho.
amplo e absolutamente indispensável debate A proposta é “racionalizar”, por meio das re-
público, que deve incluir as condições da re- moções, a ocupação física da cidade, de modo
moção, o destino dos removidos e etc. – em a favorecer seu uso como recurso produtivo
virtude de necessidades coletivamente reco- difuso (“ambiente de negócios”) e, assim,
nhecidas de desenvolvimento da economia estimular o desenvolvimento urbano (cfr. Sér-
urbana. Nada disso, porém, é mencionado por gio Besserman: “A experiência internacional
Sérgio Besserman, que se limita ao argumento mostra – e o caso brasileiro confirma – que a
técnico de uma relação custo-benefício que presença maciça de favelas afeta o ambiente
nunca é publicamente demonstrada. Como de negócios e faz reduzir as chances de uma
o salto do risco de vida para o raciocínio cidade competir globalmente”). Admita-se que
econômico é muito rápido, de passagem o objetivo deva ser elevar a competitividade
sugiro que é urgente definir com clareza o do Rio de Janeiro. Quanto a essa finalidade,
fosso que separa esses dois fundamentos para mais uma vez, “não há o que discordar”. Mas
propostas de remoção – as “áreas de risco” e pode-se, continuando a operar com a lógica
as vantagens para o desenvolvimento urbano da relação custo-benefício tão cara ao en-
–, como forma de dificultar o aproveitamento trevistado, indagar se as remoções seriam os
dos funestos resultados do temporal pela meios mais adequados para atingir tal meta.
grande especulação imobiliária que todos Minha resposta é não. Intervenções que visem
sabemos existir. de­sobstruir o que chamei acima de “acesso à ci-
Isso remete ao segundo problema. dade”, sustentadas pelo estímulo a um debate
É chocante o absoluto silêncio quanto ao público capaz de produzir uma ampliação das
maciço investimento (em tempo de trabalho, condições materiais de exercício da cidadania
especialmente; lembremo-nos da referência pelos subalternos, podem demonstrar-se mais
à “superexploração”) dos favelados em suas “rentáveis” e mesmo produzir resultados mais
casas e, mais amplamente, nas áreas coletivas rápidos. Sem contar, é claro, que seriam bem
de suas localidades. Muito embora a análise mais democráticas.

Julho 2010 7
artigo

* Luiz Antonio Para terminar o diálogo, eu gostaria de de que os removidos tenham se beneficiado com
Machado da Silva fazer um último comentário. consequências indiretas da remoção. De minha
Iuperj/Ucam e IFCS/UFRJ parte, acredito que as condições materiais (para
lmachado@iuperj.br Sérgio Besserman: "A Lagoa Rodrigo de Frei- não falar das sociais, culturais etc.) de vida desse
tas, cartão-postal da Zona Sul carioca, é um contingente provavelmente terão piorado. Desse
caso emblemático dos aspectos positivos que modo, ainda que a soma do jogo tenha sido maior
podem se seguir a uma remoção. Quando do que zero, o resultado está longe de indicar que
uma favela foi retirada dali, em 1970, os imó- todos os jogadores se beneficiaram.
veis da região, cujos valores vinham sendo Mas há outro aspecto das remoções na
depreciados, inverteram a curva e passaram a Lagoa que eu gostaria de comentar. Sergio Bes-
se valorizar, aumentando a riqueza do bairro serman refere-se à Catacumba, sem nomeá-la.
e da cidade, em benefício de todos." Mas algo semelhante ocorreu com a Praia do
Pinto. Esta também valorizou o entorno após a
Não conheço estimativas a respeito, mas “retirada” que se seguiu à quebra da resistên-
admitamos que a destruição dos “ativos” (os cia dos moradores, decorrente da mais explícita
barracos) dos favelados tenha sido mais do que violência: a prisão dos líderes e o incêndio do
compensada pela valorização dos “ativos” do local (que foi sabidamente criminoso, embora
entorno. Em primeiro lugar, para continuar nessa isso nunca tenha sido provado). Considero que
linha de reflexão, é mais do que evidente que tal uma análise que se pretenda livre de ideologia,
processo embute, na prática, uma transferência objetiva e racional das remoções não deveria
financeira dos favelados para os moradores do ter omitido um comentário sobre o caso da
bairro, até porque não há nenhuma indicação Praia do Pinto.

..
sol vido.
le m a re
Prob

8 Democracia Viva Nº 45
Julho 2010 9
ibase
opinião
Itamar Silva e Renata Lins *

Remoções:
as palavras
e as coisas
É preciso deixar claro, sem delongas nem tergiversações, que somos contra a remoção

como política pública. Em qualquer caso.

Tome-se o que está ocorrendo hoje no Rio de Janeiro. Em nome da urbanização, a

questão das remoções volta a ser discutida. Urbanização implica necessariamente inves-

timento no território: mas a urbanização capitalista não tem como fim o uso do solo por

seus moradores, e sim a especulação com a terra e a os imóveis. Por isso, as Olimpíadas são

um momento perfeito para que se traga de novo à tona a antes maldita ideia da remoção.

Fala-se sem pejo que “as favelas são lugares em condições subumanas. Por isso, vai ser bom

para todo mundo que elas sejam removidas”. Quem é todo mundo, cara pálida?

É bom que se diga que a palavra remoção não mete medo: palavras não metem

medo. O que de fato assusta são os conceitos que, preconceituosamente, embutem-se em

algumas palavras, há muito tempo.

10 Democracia Viva Nº 45
Remoção de quantos? Do que é que se tanto direito à cidade quanto os da Barra - que * Itamar Silva e
está falando? Qual é a população envolvida, (será que alguém lembra?) também não estava Renata Lins
cujas vidas vão ser mudadas ao sabor dos tra- urbanizada na década de 70, quando houve a Coordenadores do Ibase
çados do Comitê Olímpico Internacional, com expansão da cidade para lá. Aliás, não está até
a justificativa de que São Pedro, que enviou as hoje. Nem por isso se fala em remover a Barra.
grandes chuvas, não está ajudando? E aqui se chega à questão central que queremos
Vamos pensar juntos. 119. Imaginem um destacar: o problema é de cidadania e não de
conjunto de 119 pessoas em pé. Ocupa espaço, “área de risco”. As áreas de risco são definidas
né? Agora imaginem que não são pessoas, são e redefinidas ao bel-prazer dos governantes.
famílias. Mais espaço. Vamos adiante, imagi- Com propósitos diversos e distantes daquela que
nando ainda: não são famílias, são favelas. 119 deveria ser a prioridade máxima: o bem-estar dos
favelas. Cuja opinião não foi ouvida. Ou não foi cidadãos do Rio de Janeiro.
considerada. Nada se aprendeu com o malfa- E, com foco no bem-estar e no resgate
dado legado do PAN, que nada deixou senão da cidadania plena, podemos nos permitir so-
prédios em terrenos pouco seguros (vejam a nhar. Com governantes que façam uma ação
ironia... os prédios construídos pelas empreiteiras única e continuada para todas as favelas e
do PAN estão em terreno que não é próprio!). E bairros de periferia do Rio: uma ação integra-
os nossos atuais governantes, nascidos e criados dora, que contemple urbanização, transporte,
na lógica da Barra - compartimentada, dividida, instrumentos de geração de trabalho e renda
onde não há espaços públicos, onde se sai de locais, escolas, postos de saúde, médicos, pro-
carro de condomínio para condomínio -, não fessores, serviços culturais. Segurança, sim. Se-
conseguem nem conceber que alguém queira gurança treinada para trabalhar com cidadãos,
morar em uma favela. Não conseguem conceber que somos todos, no morro ou no asfalto. Uma
o que é uma favela. ação realizada em conjunto e com consulta à
Favela: uma palavra maldita na década população. Aí sim, estaremos construindo uma
de 90, quando foi substituída pelo eufemismo cidade digna. De Copa, de Olimpíadas. Mas,
“comunidade”. Substituída e depois recuperada. sobretudo, de seus moradores.
Por seus moradores, pelo movimento de favelas,
porque deram-se conta de que as palavras têm
peso. E essa palavra conta uma história. Conta
de Canudos e do Morro da Favela. Conta de
migrantes e de falta de poder público. Conta
de sonhos de cidade grande, de redes de solida-
riedade, de Joões, Franciscos, Antonios, Marias,
tantos que vieram, que construíram, que foram
deslocados e deslocados de novo para novos
territórios que, de novo, foram abandonados
pelo poder público. Favelizaram-se.
E agora? Dada a situação de fato (as
favelas estão aí, existem, fazem parte da trama
urbana do Rio de Janeiro), o que se faz? A pro-
posta dos governantes é uma só: remover. Para
onde, para que, ninguém diz. Quando e como,
ninguém sabe. O que se quer é “fazer limpeza”.
Tirar os favelados do caminho da Copa, das
Olimpíadas. Fica feio. Fica bagunçado.
E, no entanto, há outras soluções. Caso
se considere que os moradores da favela têm o
mesmo direito ao território que os do asfalto,
há meios e maneiras. Se há risco, e for neces-
sário reorganizar o espaço, por que não? Com
obras, com contenções, dá para preparar o
território para os moradores. Que, mais uma vez
( para reforçar uma idéia que parece boba de
tão óbvia, mas não está na ordem do dia), têm

Julho 2010 11
nacio
nacional
Alexandre Fortes*

Eleições de 2010
em perspectiva
histórica
A indicação mais óbvia de que a eleição presidencial de 2010 marca o fim de uma era

é que, pela primeira vez em duas décadas, os brasileiros não terão a opção de votar no

ex-sindicalista metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Paradoxalmente, essa retirada de cena

de Lula como candidato coincide com o fortalecimento do chamado “lulismo”, alimen-

tado pelas astronômicas taxas de aprovação do presidente da República, apontadas por

muitos analistas como o fenômeno político da atualidade no Brasil.

Evidentemente, a popularidade de um líder, por si só, nos diz pouco sobre o seu

lugar na história. Porém, comentários como os do presidente norte-americano Barack

Obama, indicando Lula como “o político mais popular da Terra”, não são, em hipótese

alguma, banais. Para aquilatar adequadamente a dimensão histórica da liderança de

Lula, é necessário situá-la em perspectiva. Não se trata apenas de contrastá-la com a

medíocre aprovação obtida por Fernando Henrique Cardoso – primeiro presidente reeleito

12 Democracia Viva Nº 45
onal
em toda a nossa história – ao final do seu se- qualquer alteração das regras do jogo político,
gundo governo. A comparação mais adequada como ocorrera com seu antecessor e continuava
seria, de fato, com o único outro líder político a ocorrer em vários dos países vizinhos ao longo
que se tornou a referência central da política do seu próprio mandato.
nacional por várias décadas, polarizando-a entre Deve-se lembrar ainda que a popularida-
seus apoiadores e opositores: Getúlio Vargas. de de Getúlio entre as massas não estava dada
Em termos cronológicos, os 21 anos quando da sua chegada ao poder. Ela começou
transcorridos entre a façanha realizada por Lula a ser construída, de fato, mais de uma década
ao chegar no segundo turno das eleições de depois. A máquina do Estado Novo realizou bem
1989 e o final do seu segundo mandato já se sucedida combinação entre, de um lado, bene-
aproximam dos 25 anos que separam a primei- fícios concretos e simbólicos proporcionados
ra candidatura de Vargas do seu suicídio, em aos trabalhadores e, de outro, a introdução de
1954. E a extensão da trajetória política do atual técnicas de propaganda estatal até então inéditas
presidente continua em aberto, já que ele não no país. A consolidação de sua imagem de “pai
demonstra nenhuma pressa em “sair da vida dos pobres” se deveu muito ao silenciamento
para entrar na História”. Mas, evidentemente, da oposição, com amplo uso da censura e da
em termos de origem social e dos caminhos repressão política, e foi fortalecida posteriormen-
de construção de liderança política, nada mais te pelo contraste com o governo abertamente
distante de Lula do que Vargas. antipopular do general Eurico Gaspar Dutra.
Antes de 1930, o latifundiário gaúcho Voltando ao poder “nos braços do
fizera uma bem sucedida carreira política con- povo” em 1950, Vargas enfraqueceu-se drama-
vencional para os padrões de uma República ticamente pela incapacidade de equacionar as
oligárquica (deputado, ministro, governador). ambiguidades constitutivas de sua base de sus-
Fracassou na sua primeira tentativa de eleição tentação política num ambiente democrático,
à Presidência, chegando a ela pela articula- tal como fizera anteriormente ao governar por
ção de um movimento de elites dissidentes quinze anos sem passar por eleições nacionais.
com apoio de importantes setores das Forças Seu legado só foi salvo por um gesto extremo
Armadas. Uma vez no poder, manobrou com de sacrifício pessoal que o transformou, de
maestria para nele permanecer, explorando as um dia para o outro, de um líder encurralado
contradições entre seus opositores nas classes e desgastado em objeto de culto, e projetou
dominantes, enquanto reprimia sistematica- sua sombra no cenário político nacional por
mente as tentativas de organização autônoma mais dez anos. Ainda assim, o herdeiro político
dos trabalhadores. Não titubeou em se lançar por ele escolhido, João Goulart, jamais sequer
no caminho da ditadura aberta quando lhe ousou concorrer à Presidência, pois tinha cons-
foi conveniente. ciência de que o legado de Vargas não fazia dele
Já o retirante nordestino trilhou os cami- automaticamente um candidato viável.
nhos do sindicato, das greves, da fundação de Portanto, voltando ao contexto atual,
um partido político organizado com base em podemos concluir que, independente do resul-
lideranças de movimentos sociais, das caravanas tado eleitoral, o Brasil se prepara para conviver
pelo interior do país e das sucessivas derrotas com uma situação historicamente inédita.
eleitorais até chegar à Presidência e nela per- Um presidente democraticamente eleito deixa
manecer pela força das urnas, sem promover o poder após oito anos e tudo indica que,

Julho 2010 13
nacional

independentemente do resultado eleitoral, ele direita. Evidentemente, a política regional e


permanecerá, por um período indeterminado, local pode embaralhar de modo distinto esses
sendo o maior líder político do país. elementos, a depender de que forças estabe-
lecem a polarização em cada esfera e a cada
conjuntura, o que torna ainda mais complexas a
O sistema partidário e as
construção e operação de alianças nacionais.
candidaturas do PT e do PSDB
Essa delicada engenharia garante a es-
As eleições de 2010 apontam também a con- tabilidade política do país, forjando um sistema
solidação de um sistema partidário articulado com altíssima capacidade de acomodação de
pela polarização entre PT e PSDB. Os dois interesses diversos. Mas o seu custo não se re-
partidos podem ser vistos como expressões da duz à corrupção endêmica que abastece as má-
capacidade de liderança nacional conquistada quinas políticas e, em muitos casos, as fortunas
ao longo do processo de redemocratização por pessoais construídas com o desvio de recursos
dois segmentos da sociedade paulista: os sin- públicos. A imperiosidade das negociações com
dicalistas do ABC e a intelectualidade formada os “aliados” fisiológicos limita severamente a
na USP. Será a quinta eleição capacidade do exercício do governo numa linha
sucessiva na qual nenhum programática coerente por parte dos partidos
outro partido apresentará que protagonizam as disputas presidenciais.

Nas últimas qualquer candidato capaz


de colocar em xeque essa
Esse está longe de ser um quadro ideal,
mas mesmo assim tem proporcionado condi-
polarização. Na verdade, ções para melhoras graduais e cumulativas no
duas eleições, podemos dizer que ela vem que diz respeito à qualidade de vida dos setores
se acentuando, já que, nas menos favorecidos da população e à consolida-
os candidatos duas últimas eleições, os ção de um ambiente institucional democrático.
demais candidatos capazes Um fato positivo mais perceptível nos últimos
capazes de obter de obter mais do que 1% anos é o amadurecimento de mecanismos
dos votos são dissidentes de controle social que estabelecem limites e
mais do que petistas (Heloísa Helena e
Cristovam Buarque em 2006;
barreiras crescentes à impunidade e, portanto,
produzem certa depuração no próprio sistema.

1% dos votos Marina Silva e Plínio de Arru-


da Sampaio em 2010).
Entretanto, a possibilidade de que a contradi-
ção entre essa crescente consciência cidadã e

são dissidentes Se PT e PSDB são


os únicos capazes de forjar
a base fisiológica da nossa estabilidade política
gere uma crise capaz de promover um salto de
candidaturas presidenciais, qualidade nas regras do jogo político brasileiro,
petistas outros elementos, entretan- parece, nesse momento, bastante remota.
to, cumprem papel distinto
dentro do sistema partidário
Dilma e Serra
brasileiro. Algumas agre-
miações de porte médio, Tendo em conta o quadro comentado acima,
com maior presença em regiões específicas e/ como podemos analisar as principais candida-
ou maior penetração em alguns segmentos turas presidenciais atuais? Dilma Rousseff e José
sociais, tentam manter alguma identidade e Serra possuem algumas características pessoais
autonomia enquanto gravitam ao redor dos semelhantes. Quadros de perfil técnico-político,
dois pólos. Isso ocorre, de um lado, com PSB, ingressaram na política como estudantes vincu-
PCdoB e PDT, em suas alianças com o PT, e, de lados à organizações de esquerda e participaram
outro, com DEM, PPS – e, geralmente, PV – na da resistência à Ditadura Militar. Dilma tem dois
sua relação com o PSDB. trunfos principais: ser a candidata de situação
Completam o quadro dois elementos de um governo e de um presidente altamente
centrais à “governabilidade” de qualquer pre- populares e a aliança do PT com o PMDB, que
sidente eleito na atual configuração da política lhe fornece maior tempo na televisão e uma es-
nacional. De um lado o PMDB, federação de trutura de campanha com enorme capilaridade
máquinas políticas estaduais, massa amorfa em todo o território nacional. Já Serra conta com
sem qualquer identidade programática. De o fato de ter fixado seu nome no eleitorado por
outro, a poeira cósmica dos chamados partidos meio de uma longa e destacada vida pública,
“nanicos”, majoritariamente de direita e centro- especialmente como candidato presidencial em

14 Democracia Viva Nº 45
e l e i ç õ e s d e 2 0 1 0 e m p e r s p e c t i va h i s t ó r i ca

2002 e como governador de São Paulo desde e melhor remuneração do funcionalismo) será * Alexandre Fortes
2007. Consequentemente, possui muito mais rompida ou, na melhor das hipóteses, conge- Doutor em História
experiência para lidar com os riscos da exposição lada, caso ele seja vitorioso. pela Unicamp e
em uma campanha presidencial. Outro aspecto que diferencia fortemente professor da UFRRJ
Em termos da construção de uma linha as duas principais candidaturas diz respeito às (Campus Nova Iguaçu)
de campanha, o principal desafio dos dois can- perspectivas de continuidade do processo de
didatos será credenciar-se junto ao eleitorado distribuição de renda que fez emergir no Brasil
como a alternativa mais segura para a continui- o embrião de um mercado interno de massas.
dade e aprofundamento das conquistas sociais Juntamente com o resgate do papel do Estado,
obtidas sob o governo Lula. Para isso, Dilma comentado acima, a distribuição de renda pos-
precisará não apenas ampliar o conhecimento sibilitou ao país atravessar suavemente a maior
público de que ela é a sucessora escolhida pelo tempestade econômica mundial em oitenta
presidente, mas também demonstrar a capaci- anos. Novamente, não se trata de um problema
dade de liderança e a autonomia esperadas de ideológico abstrato. Trata-se sim de estabelecer
um(a) presidente da República. uma relação entre a base social de apoio de
Já Serra enfrentará tarefas ainda mais cada candidato e as condições políticas necessá-
difíceis. Uma delas é desvencilhar sua imagem rias à viabilização dessas políticas distributivas.
do saldo social e econômico negativo registra- Apenas para servir de exemplo, é razoável supor
do particularmente no segundo mandato de que, sem o fortalecimento do poder de pressão
Fernando Henrique Cardoso, que pavimentou o das centrais sindicais e a disposição para a ne-
caminho para a eleição de Lula. Outra é furtar-se gociação do governo federal, o aumento real
à comparação, amplamente desfavorável, entre continuado do salário mínimo, apontado como
as suas realizações como governador e as de a medida redistributiva de maior impacto nos
Lula como presidente. Obviamente, o candidato últimos anos, não teria ocorrido e que, por isso
tucano conta com a complacência e o apoio mesmo, esse fato, provavelmente, deixaria de
da grande mídia nacional, mas na reta final ocorrer num eventual governo Serra.
da campanha os governistas terão um tempo O Brasil ainda está longe de consolidar as
de televisão que lhes permitirá explorar essas mudanças estruturais necessárias à superação do
questões de forma detalhada e abrangente. seu longo histórico de profundas desigualdades
Do ponto de vista programático, haverá sociais e o nosso sistema político permanece afe-
certamente muitos pontos de convergência en- tado por sérios vícios e distorções. Mesmo assim,
tre os discursos dos dois favoritos. Serra jamais podemos dizer que a atual corrida sucessória
abraçou o fundamentalismo neoliberal e defen- ocorre num cenário em que podemos vislumbrar
de a importância da intervenção do Estado na diversos elementos positivos, especialmente se
gestão da economia. A ênfase na necessidade tivermos em mente a comparação com outros
de um “choque de gestão”, entretanto, traz momentos vividos na curta e acidentada expe-
embutida a defesa da crescente introdução riência democrática nacional.
de mecanismos e padrões administrativos da Em primeiro lugar, a chegada do pri-
iniciativa privada nas instituições públicas. Do meiro líder popular à Presidência da República
mesmo modo, a ideia de que a competição e a sua consolidação como novo referencial
é a principal geradora de eficácia certamente da história política nacional não implicou no
levaria, num eventual governo Serra, ao forta- enfraquecimento do sistema partidário, nem
lecimento dos setores privados em áreas como alimentou qualquer tentação de continuísmo
educação e saúde. personalizado no poder.
A introdução de parâmetros de “produ- Em segundo, o país apresenta, nos úl-
tividade” exógenos no setor público pode levar timos anos, indicadores econômicos e sociais
à sua descaracterização e à perda de qualidade expressivos, que fortalecem a convicção de
nos serviços prestados, como já se verificou em que há bases consistentes para a geração de
governos tucanos nas diversas esferas. Portanto, avanços muitos maiores no que diz respeito à
malgrado o fato de Serra defender em teoria um garantia de condições dignas de existência para
Estado “robusto”, na prática a recomposição da a população brasileira. Resta aos cidadãos e
capacidade reguladora do Estado gradualmente cidadãs do país escolher, dentre as coalizões e
iniciada sob Lula (com o fim das privatizações, a candidaturas apresentadas, a que demonstra
ampliação da capacidade de investimento públi- maiores compromissos e condições de avançar
co, o fortalecimento da área social, a renovação nesse sentido.

Julho 2010 15
artigo
Eugênia Motta e Daniel Tygel*

Nova forma de
gerir informação
para uma
nova economia
A economia solidária é um campo social de inovação no que diz respeito a arranjos eco-

nômicos baseados na autogestão. Uma nova forma de fazer economia precisa fortalecer

suas unidades – os empreendimentos econômicos solidários –, principalmente por meio

da articulação econômica e política entre eles. A produção de informação qualificada

por meio de uma pesquisa nacional possibilitou a construção de um sistema na internet

que pretende ser um instrumento de gestão de informação que esteja de acordo com os

princípios da horizontalidade e da democracia econômica.

Quando se fala em economia, facilmente imaginamos a circulação de bens e

serviços, geralmente mediados pelo dinheiro. Mas para que ocorram as transações que

identificamos como econômicas, existem outros circuitos, que envolvem informações,

contratos, pessoas, saberes e afetos.

16 Democracia Viva Nº 45
Um dos circuitos invisíveis da economia constituição de políticas públicas e possibilitar que
é o da informação. Possivelmente, qualquer o levantamento de dados fosse um momento de
um de nós reconheceria que a informação é mobilização e divulgação. O resultado de dois mo-
importante para a economia, mas dificilmen- mentos distintos – em 2005 e 2007 – de trabalho
te consideramos e percebemos isso na vida de campo de abrangência nacional para aplicação
cotidiana. Se admitimos que a circulação de de questionários é um banco de dados inédito no
informação é uma parte central daquilo que mundo, que contém informações sobre cerca de
reconhecemos como economia, podemos per- 22 mil empreendimentos em todo país.
ceber também que existem formas específicas Os desafios da produção de conheci-
associadas a tipos específicos de negócios. mento coerente com os princípios de partici-
Na produção voltada para o lucro, a pação da economia solidária não terminaram
informação é tanto mais relevante e valiosa com a construção de uma base de dados. A
quanto mais exclusiva. Aquilo que se sabe sobre utilidade das informações para pesquisadores,
como funcionam os governos, os gostos dos e para o desenvolvimento de políticas públicas,
consumidores e consumidoras e os concorren- era inegável e, certamente, se reverteria no
tes é valioso instrumento para quem planeja a fortalecimento da economia solidária. Mas, o
execução de ganhos no mercado capitalista. A segundo desafio colocado, desde as primeiras
espionagem, as garantias de segredo industrial, formulações sobre uma pesquisa nacional, era
o valor das patentes e a propriedade intelectual fazer com que essas informações pudessem ser
são a outra face da informação como objeto de utilizadas pelos seus próprios protagonistas.
apropriação de poucos. Um sistema que pudesse ser utilizado
Hoje, para além de explicitar que a pelos empreendimentos seria uma forma de
informação, da forma como está organizada utilizar a internet, um espaço por definição
usualmente na economia capitalista, é parte livre e horizontal, para apoiar a construção de
fundamental do funcionamento dos circuitos conexões entre empreendimentos solidários do
concentradores de riquezas (materiais e imate- país. Assim, as informações do mapeamento
riais), devemos apontar para uma gestão que começaram a ser usadas no que foi chamado
se alie aos objetivos da Economia Solidária. Sistema FBES, hoje conhecido como Cirandas.
Um sistema de gestão de informação voltado
para esse campo deve ter como princípio que
O que é o cirandas.net?
quanto mais descentralizadas as informações,
mais vantajoso deve ser para todas as pessoas. O Cirandas representa o casamento entre a
Isso significa colocar em prática e potencializar virtualidade da internet e a territorialidade da
as vantagens do princípio da cooperação e da realidade da economia solidária, possibilitando
inteligência coletiva sobre o da concorrência. a conformação de um novo tipo de espaço, no
qual a informação compartilhada pode diminuir
distâncias. Uma iniciativa na qual a inteligência
Construção participativa de
gerada pelo compartilhamento irrestrito entre
conhecimento
os atores, mas organizado de acordo com as
A necessidade de conhecer os empreendi- práticas concretas, é capaz de desafiar as bar-
mentos solidários pôde se transformar numa reiras do espaço físico.
política efetiva e nacional a partir da institucio- O sistema é uma iniciativa do FBES e
nalização dos dois principais atores nacionais tem como principais objetivos potencializar
da economia solidária, em 2003. O Fórum Bra- o fluxo de saberes, produtos e serviços da
sileiro de Economia Solidária (FBES) e a Secre- economia solidária; oferecer ferramentas para
taria Nacional de Economia Solidária (Senaes) consolidação de redes e cadeias solidárias;
estabeleceram uma parceria para realização do ser um espaço de divulgação da economia
chamado Mapeamento, que veio a constituir o solidária e de busca de seus produtos e servi-
Sistema de Informações em Economia Solidária ços para consumidores individuais e coletivos
(Sies). Com o compromisso de que fosse um (públicos, privados e grupos de consumidores)
processo coletivo, a pesquisa foi organizada e permitir a interação entre vários atores em
de forma que houvesse participação de todos comunidades virtuais e espaços territoriais,
os atores da economia solidária. temáticos e econômicos.
O mapeamento tinha como objetivos ser O Cirandas está baseado em quatro
confiável tecnicamente, servir como base para a pilares fundamentais.

Julho 2010 17
artigo

• Rede social e Sistema de Gestão de dos chamados ERPs (Enterprise Resource


Conteúdos (CMS) Planning) ou Sige (Sistemas Integrados de
Conteúdos, textos, documentos e agenda de Gestão Empresarial, no Brasil) para otimiza-
eventos são inseridos por pessoas que não en- ção dos fluxos organizacionais, de logística
tendem de programação nem de linguagens e transacionais. Entretanto, esse tipo de
de computador. Isso permite uma dinâmica e ferramenta costuma ser privada e ter um
alimentação descentralizada dos conteúdos. altíssimo custo, o que inviabiliza o seu uso
Cada usuário(a) tem uma página pela maioria dos empreendimentos solidá-
própria. Nela, a pessoa pode ter seu blog, di- rios. Além disso, os ERPs são restritos à lógica
vulgar suas ideias, fotos, eventos, mostrar de interna do empreendimento e, portanto, as
quais empreendimentos solidários participa, informações não devem ser partilhadas com
de quais empreendimentos costuma comprar outras empresas, devido à lógica de concor-
produtos, os temas que lhe rência e do valor do segredo empresarial nos
interessam, entre outras. processos produtivos capitalistas.
Além disso, existem O interessante é que, diferentemente
O Cirandas é as comunidades virtuais, de ERPs tradicionais, a informação circula
nas quais cada usuário(a) entre os empreendimentos solidários, crian-
uma tecnologia ou empreendimento pode
participar. Essas comunida-
do uma inteligência coletiva mais ampla que
potencializa o pequeno tamanho da maioria

inovadora, pois des podem ser territoriais,


temáticas ou econômicas.
desses empreendimentos. O Cirandas é
uma tecnologia inovadora, pois além de ser

além de ser As possibilidades de se re-


lacionar, encontrar pessoas
uma rede social e se organizar em Espaços,
oferecerá instrumentos para a articulação
do movimento, trocar ideias econômica entre os empreendimentos em
uma rede social e se articular politicamente cadeias curtas, médias e longas. Além disso,
são, assim, ilimitadas. pode fortalecer seus sistemas de logística e
e se organizar organização de fluxos de compra e venda,
• Organização em recor- por meio de funcionalidades para divulga-
em Espaços, tes ou "espaços" ção, comercialização e logística de produtos
Cada pessoa, texto, foto, e serviços da economia solidária.
oferecerá evento, comunidade, do-
cumento ou qualquer outro
A mais evidente dessas funcionalida-
des é a disponibilização de site gratuito. O

instrumentos tipo de conteúdo pode ser


categorizado (no caso de
Cirandas abrange, hoje, os mais de 21 mil
sites de empreendimentos solidários e, no

para a pessoas, trata-se de "inte-


resses" ao invés de "catego-
site do FBES, o “Farejador” da economia
solidária, que apresenta mais de três mil
rias"). Essas categorizações produtos e serviços diferentes em uma
articulação permitem que seja possível complexa e vasta árvore. Há várias outras
ao usuário(a) entrar em funcionalidades em desenvolvimento,
econômica portais específicos, chama- dentre as quais vale citar os Farejadores de
dos de Espaços, e lá ficar Oportunidades (sistema georreferenciado
sabendo tudo o que está que permite ao empreendimento solidário
relacionado ao seu inte- identificar fornecedores de matérias-primas
resse, o que potencializa a e compradores de seus produtos na sua
organização em redes. região que sejam também da economia
solidária); o sistema de partilha de rotas
• Inteligência econômica coletiva e solidária (banco de dados comum que armazena as
O Cirandas se propõe, também, a ser um rotas usualmente utilizadas por cada em-
sistema que articula, processa e fornece infor- preendimento para compra de insumos e
mações privilegiadas a empreendimentos de venda de seus produtos/serviços e que avisa
economia solidária e consumidores e consu- aos empreendimentos quanto à oportuni-
midoras organizados(as) para a dinamização dades de partilha de rotas entre os mesmos
de fluxos comerciais solidários. para otimização financeira e redução de
Hoje, é de fundamental importância, danos ambientais); o sistema de gestão de
nas empresas modernas, a implementação consumo coletivo (permitindo a grupos de

18 Democracia Viva Nº 45
N o va f o r m a d e g e r i r i n f o r m a ç ã o pa r a u m a n o va e c o n o m i a

pessoas fazerem gestão de listas coletivas empreendimentos solidários de produção, * Eugênia Motta
de compras, encontrando fornecedores de comercialização, de serviços e de con- Antropóloga,
no Cirandas, além de instituições públicas sumidores, além de funcionalidades para pesquisadora do Ibase
ou privadas poderem lançar na forma de fóruns, redes e entidades poderem organizar
Daniel Tygel
“pregão solidário” suas necessidades de planejamento e logística solidária.
Físico, membro da
compras que serão divulgadas ao conjunto
Secretaria Executiva
de empreendimentos no sistema); a dispo- • Interoperabilidade e protocolos de co-
do Fórum Brasileiro de
nibilização de informações relacionadas municação com outros sistemas Economia Solidária
aos critérios do comércio justo e solidário O Cirandas não é concebido como único e
(apresentação da composição do preço, exclusivo no oferecimento de ferramentas
origem dos insumos e matérias-primas, para empreendimentos de economia soli-
certificações etc). dária e para as redes, fóruns e conselhos
O pilar econômico é a inteligência mais existentes nos territórios. Desde o início, tem
profunda do sistema, que marca seu grande como base a interoperabilidade, ou seja,
diferencial como um sistema da economia a capacidade de dialogar e interagir com
solidária, e contempla funcionalidades para outros sistemas, portais, sites e softwares
existentes e em uso, tanto via web como
softwares desktop .
O Cirandas é uma experiência em
andamento que procura aliar o que há de
mais avançado no que diz respeito à ges-
tão de informação em espaços na internet
à construção de uma nova concepção
sobre a gestão de informação que atenda
à necessidade de uma economia justa. É
um sistema construído para e pela nova
economia possível e necessária, solidária
e democrática.
Sistemas avançados de informação,
logística e organização das redes e cadeias
solidárias podem e devem ser desenvolvidos
pela e para a economia solidária como
parte da estratégia de consolidação das
bases para um desenvolvimento sustentá-
O "Farejador" permite identificar empreendimentos vel, solidário, democrático e diverso a partir
pelo que produzem dos territórios.

Responsabilidade compartida

A proposta política da economia solidária se baseia na necessidade de tornar visível aquilo que está
envolvido na economia e que foi tornado invisível pelo capitalismo, na construção do consumo como
forma privilegiada de expressão das pessoas e do trabalho subordinado como obrigação inescapável de
(quase) todas as pessoas. Apagar a relação entre a forma de produzir e consumir e, por exemplo, o lixo,
a ocupação das cidades, a violência e até as guerras nos faz acreditar que não temos responsabilidade
sobre o que ocorre a nossa volta, fora da nossa própria casa, e da relação com os que nos são mais
próximos. Mais do que isso, faz com que as responsabilidades sejam atribuídas de forma injusta.
A economia solidária está baseada na democracia e na horizontalidade com valores éticos, mas
também como formas de gestão, em todos os âmbitos e esferas que envolvem as trocas econômicas. A
distribuição equitativa dos ganhos, o consumo responsável, a transparência e o conhecimento livre são
modalidades de relação presentes na proposta da economia solidária. Da mesma forma, como perspectiva
transformadora, a circulação de informação e a forma como está organizada devem estar de acordo com
os propósitos de uma economia que não seja concentradora. Os bens comuns não podem ser objeto de
apropriação privada, mas permanecer como riqueza coletiva.

Julho 2010 19
ENTRE En t r e v i s t a

VISTA
Tânia Bacelar de Araújo
Democracia Viva (DV) – Onde você
nasceu e como era a dinâmica da
sua família?
Tânia Bacelar – Nasci em 1944, no Recife, no
mesmo local onde moro hoje. Era a casa de meu
A socióloga e economista construiu uma avô que eu e meus irmãos depois transformamos
trajetória profissional recheada de momentos em um prédio. Vivemos todos lá. Minha mãe não
trabalhava. Meu pai, Tércio Bacelar, era médico
marcantes para a história do Brasil. Um
da Polícia Militar, foi diretor do Hospital da PM.
aspecto relevante na sua carreira foi a atuação Era daqueles médicos, clínico geral, que conhe-
na Superintendência do Desenvolvimento ciam o pai, a mãe, o filho, receitava por telefone,
do Nordeste (Sudene), onde começou passava duas horas em uma consulta. O pai dele
a trabalhar em 1966, quando ainda era era comerciante e tinha dois engenhos. Ele era
estudante universitária, tendo chegado à de Vitória de Santo Antão e minha mãe, de Mata
Grande. Isso era interessante porque Vitória de
diretora de Planejamento Global (1985/86).
Santo Antão é da Zona da Mata e Mata Grande é
Sua histórica ligação com a Sudene não a o sertão brabo. Os dois tinham formações muito
afastou de outras experiências. Em paralelo, diferentes, hábitos muito diferentes.
lecionava na academia, onde está até hoje. DV – Você tinha a fama de ser
Tânia também ocupou cargos públicos. Foi a melhor aluna do colégio. Era
secretária de Planejamento (1987-88) e da mesmo?
Tânia Bacelar – Gostava muito de estudar.
Fazenda de Pernambuco (1988-90), secretária
Estudei no Colégio Regina Pacis, de freiras, em
de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente Pernambuco. Tive um bom lastro na formação
do Recife (2001-02) e secretária Nacional de fundamental. Depois, no Colégio Vera Cruz, mais
Políticas Regionais do Ministério da Integração aberto. Tenho esse lado da formação católica,
Nacional (2003). “Foi um aprendizado enorme, mas não sou católica praticante, apesar de, na
tive uma leitura da política que não tinha. Fui minha formação, esse lado pesar. Desde criança,
dizia que ia ser advogada. Fiz o curso Clássico
três vezes secretária em governos de ruptura”, pensando nisso. Fiz teste vocacional no terceiro
avalia. Tânia também foi convidada, e integra ano e a psicóloga falou: “Olha, você dá para
até hoje, o Conselho de Desenvolvimento tudo, menos para advogada. Se quiser ir para a
Econômico e Social da Presidência da área de Exatas, dá. Se quiser fazer Arquitetura,
República, o Conselhão, formado por 13 dá. Se quiser fazer área de Ciências Sociais, dá.
ministros e 90 representantes da sociedade Mas não lhe recomendo fazer Direito”.
DV – E aí você desanimou?
civil. Na entrevista, nos conta sobre sua Tânia Bacelar – Eu pirei. Eu queria ser
trajetória de vida, fala sobre crise financeira e criminalista e ela disse: “Você dá para tudo,
reforça o potencial do Nordeste: “O Nordeste menos para criminalista, porque tem
é viável, gente!” que ser uma pessoa com perfil frio,

20 Democracia
Democracia Viva
Viva Nº
Nº 44
45
agressivo. Você vai ser um fracasso se escolher
essa profissão”. Fiz vestibular na Faculdade de
Filosofia de Recife para Ciências Sociais. Comecei
a cursar e, no primeiro ano, tive a disciplina
Economia. O professor era Roberto Cavalcanti,
uma pessoa muito bem formada. Ainda hoje o
admiro, apesar de ele defender ideias bastante
conservadoras. Naquela disciplina, pensei: “Isso
tem a ver comigo”. Fiz os dois cursos ao mesmo
tempo. Quando estava no terceiro ano de Ciên-
cias Sociais e no segundo
de Economia, comecei a
trabalhar na Sudene. Foi
o começo da minha
vida profissional.

Julho 2010 21
entrevista

DV – Você tinha envolvimento com DV - Como foi a experiência?


política na faculdade? Tânia Bacelar – Eu fui a única mulher se-
Tânia Bacelar – Entrei na faculdade com o lecionada. As pessoas entravam na Sudene por
golpe. A Faculdade de Filosofia era de freiras, qualificação, havia a seleção e quem passasse
não tinha um debate político grande. No mo- entrava. Eu já vinha trabalhando lá e achava que
vimento estudantil, meu primeiro voto foi para as mulheres e os rapazes tinham mais ou menos
Marco Maciel. Havia dois candidatos da União as mesmas oportunidades. Na seleção, tinha
dos Estudantes de Pernambuco, e a Faculdade uma prova escrita e uma entrevista. Quando
de Filosofia votava quase toda no Marco Maciel. terminou a minha entrevista, o entrevistador
Na Faculdade de Economia, a gente já estava na disse: “Eu não queria selecionar mulher mas,
ditadura. Nessa época, a gente só estudava teo- infelizmente, sua prova escrita foi tão boa que
ria neoclássica, nem Celso Furtado a gente lia. eu não posso reprovar”. Eu fiquei estatelada.
Eu vim conhecer a produção de Celso Furtado DV – Como foi a sua vivência no
quando entrei na Sudene. Minha politização curso?
mesmo foi na Sudene. Tânia Bacelar – Tive a oportunidade de
DV – Em que ano você entrou para conviver com uma turma de 20 pessoas das mais
a Sudene? qualificadas da Sudene. Os professores eram
Tânia Bacelar – Em 1966, ainda estudante, de fora, gente da Cepal [Comissão Econômica
como pesquisadora auxiliar, fazendo o acom- para a América Latina e Caribe]. Eu fui aluna
panhamento de um dos programas da Sudene, de [Maria da] Conceição Tavares, de [Carlos]
de formação de pessoas para as profissões que Lessa, [Antônio Bastos] de Castro, de Pedro
não eram muito comuns no Nordeste na época: Saez, de Carlos Matus, entre outros. Foi muito
economista, agrônomo, geólogo, engenheiro. A bom intelectualmente. Foi como outro curso de
Sudene dava bolsa para viabilizar o estudo de Economia. Toda aquela inutilidade que eu tinha
pessoas em Recife, em Salvador, onde estives- estudado na faculdade eu botei no lixo. Era um
sem as universidades. A gente ia até as famílias curso intensivo. Estudei em oito meses o que não
dos candidatos para conhecer a sua realidade, tinha estudado nos quatro anos de faculdade.
ver se realmente precisavam da bolsa. Muita DV- E depois do curso?
gente teve oportunidade na vida por conta Tânia Bacelar – Fui para a assessoria técnica,
desse programa da Sudene. que era o órgão da Sudene responsável pela co-
DV – E como foi, tão nova, ordenação geral. Também comecei a ensinar na
conhecer tantas pessoas Católica [Universidade Católica de Pernambuco],
diferentes? de noite. Tanto na Católica como nos cursos de
Tânia Bacelar – A Sudene realmente mu- especialização da Sudene, nos quais também
dou a minha vida. A gente ia em qualquer lugar, comecei a ensinar, descobri meu lado professora,
tanto nas áreas urbanas, nas favelas, como nos que também não sabia que tinha.
lugares mais distantes, em municípios pequenos DV – Como você entra para a
do interior. A gente via que as pessoas precisa- Geografia?
vam mesmo do apoio das políticas públicas. Tânia Bacelar – Na UFPE, onde comecei
A solidariedade entre as famílias mais pobres a ensinar em 1972, tinham criado o Programa
também era impressionante. Integrado de Mestrado em Economia e Socio-
DV – Quem dirigia a Sudene nesse logia. Era pioneiro, porque era multidisciplinar,
período? coordenado por Manoel Correia de Andrade.
Tânia Bacelar – Primeiro, teve um inter- Quando voltei da França, no final dos anos
ventor, um militar, mas durou pouco. Quando 70, o Departamento de Economia tinha sido
entrei, era João Gonçalves. Passei um tempo tomado pelos que defendiam hegemonia da
como pesquisadora social. A Sudene tinha visão neoclássica. Tiraram o Manoel Correia e
um programa de bolsas importante para os separaram o curso em dois mestrados: Econo-
funcionários. Como queriam um grupo com mia e Sociologia. Mas Manoel Correia era um
a mesma formação, montaram um curso de nome tão forte que não podia ficar no meio
especialização para a Sudene. Essa foi uma da rua. Quando voltei do doutorado, ele es-
grande oportunidade. Comecei a descobrir o tava com a missão de montar um mestrado de
mundo. Eu consegui passar na seleção paraessa Geografia. Ele me contou a situação que estava
capacitação, mas foi a primeira vez que senti instalada no departamento de Economia e disse
preconceito de gênero. “venha para Geografia porque eu vou montar

22 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar

um curso multidisciplinar, com área de domínio Existia na legislação brasileira uma taxa de 3%
conexo em economia. Nossa especialidade vai do Imposto de Renda e do IPI para o Nordeste.
ser Geografia Humana e Regional, então eu Era como se fosse um fundo que servia como
queria que você viesse para cá”. Eu fui para lá, orçamento do órgão. Ela não disputava dinheiro
fiz concurso e fiquei. Então, ensino Geografia no orçamento anual. Eram feitos planos diretores
desde 1979. Sempre agradeci a ele. Eu fui para plurianuais para usar esse dinheiro.
Geografia e achei uma maravilha. O lado reformista da proposta foi morrendo
DV – Por que os militares tinham e o dinheiro estável foi tirado. A Sudene foi
medo da Sudene? ocupada por militares, a direção comandada por
Tânia Bacelar – Porque a elite nordestina Furtado toda foi decapitada e ela levou um golpe
tinha medo. A Sudene tinha feito um trabalho forte na reforma tributária, na Constituição que
bom e os militares tinham medo dela. A equipe fizeram depois na ditadura, em 1966. Passou a
toda era muito politizada, antenada com a vida disputar o orçamento anual, não sabia quanto
do país. O projeto não era revolucionário, mas teria no ano seguinte, gerando uma fragilidade
reformista. Tinha a proposta de mudar a Zona estrutural. Ela não morreu ali porque perdeu o
da Mata, produzindo alimento lá. E mudar dinheiro orçamentário, fixo, estável, mas ganhou
a estrutura fundiária do agreste e do sertão. a dinâmica do sistema de incentivo. Foi quando
A lei de criação da Sudene passou um ano surge a segunda Sudene, a dos incentivos. Ela
no Congresso e foi aprovada, em 1959, pela perdeu força no projeto reformista porque com
bancada progressista do Nordeste com o apoio o dinheiro fixo é que se fazia pesquisa, formava
da bancada progressista do Sudeste, contra a gente. Mas os incentivos ganharam dimensão
bancada oligárquica do Nordeste. e ela virou uma agência de administração dos
DV – O que ocorreu com a chegada incentivos. E como era dinheiro significativo,
dos militares? mudou a indústria da Bahia, de Pernambuco, do
Tânia Bacelar – Podemos dizer, para sim- Ceará, mas não era esse o projeto inicial.
plificar, que existiram duas Sudenes. A de Celso DV – O governo militar então
Furtado, em um Brasil saindo de Juscelino e ainda esvaziou a Sudene?
sem ditadura. Era reformista, desembarcou no Tânia Bacelar – Esvaziou, botou um general
Nordeste com uma proposta de mudar a reali- na direção cuja esposa era, por coincidência,
dade da região. A Sudene nasceu muito forte, cliente do meu pai. Veja que mundo pequeno:
ligada diretamente ao presidente da República, um belo dia, chega esse cidadão na minha casa,
com status político e orçamento garantido. eu ainda era solteira, e ele foi buscar meu pai de

Julho 2010 23
entrevista

o AI-5 foi em 1969. Um dos irmãos dele,


acredito que da AP (Ação Popular, um dos
mais importantes movimentos de resistência
ao regime militar), não tenho certeza, foi
preso. O Alcindo é economista e também foi
preso. Primeiro, o irmão dele fugiu. Como não
o encontravam, foram lá em casa e levaram o
Alcindo. Meu cunhado ficou um ano preso, foi
muito torturado. Meu marido ficou apenas uma
semana porque perceberam que a gente não
sabia realmente onde o irmão dele estava. Em
1974, fui para a França fazer meu mestrado e
esse meu cunhado fugiu como clandestino e
morou com a gente lá.
DV – Quanto tempo você morou na
França?
Tânia Bacelar – De 1974 a 1979, quando
terminei a minha tese. Fui pela Sudene que tinha
um programa de treinamento. Eu me candidatei
para fazer o mestrado e eles aprovaram. Já o
meu marido, a Sudene não aprovou, por conta
do processo, por ter sido preso. Depois, conver-
sando com um advogado, ele disse: “Não, vocês
são casados, ele tem direito de ir com você”.
Aí, entrei com o pedido e eles suspenderam o
contrato, eles não aprovaram, mas também
não o demitiram.
DV – Nessa ocasião você conheceu
Celso Furtado.
Tânia Bacelar – Fui aluna dele em um curso
na Universidade de Paris e ele foi da minha
banca. Minha tese foi sobre a industrialização
do Nordeste. Fiz uma discussão sobre a indus-
trialização que estava sendo patrocinada pela
Sudene, que era o oposto do que Celso Furtado
tinha proposto. Ele tinha proposto uma indus-
trialização com base no empresário nordestino
urgência porque a mulher tinha tido um prob- do mercado nordestino, usando matéria-prima
lema. Meu pai já saindo com ele disse: “Minha do Nordeste. A ideia dele era que não dava
filha trabalha na Sudene”. Ele parou e disse: “Me para vencer a oligarquia de frente, portanto era
botaram na Sudene dizendo que eu iria encon- necessário criar uma classe dirigente empresarial
trar um antro de comunistas e eu encontrei um nova. O sonho dele era uma classe industrial
antro de idealistas”. Nunca esqueci essa frase. moderna no Nordeste para ver se os oligarcas
A gente sentia o clima lá dentro, tinha um SNI, perdiam força. Mas, na minha tese, mostro que
tudo o que a gente fazia era fiscalizado. Muita não foi isso o que ocorreu. Uso como apoio o
gente de referência saiu. trabalho anterior de Chico de Oliveira sobre a
DV - Alguém que você conhece integração do mercado nacional e a ida para
chegou a ser preso durante a o Nordeste de empresários do Sudeste ou de
ditadura? capital multinacional, devido aos incentivos.
Tânia Bacelar – Muita gente. Quando veio DV – A Sudene foi criada criticando
o AI-5, eu já era da Sudene. E veio uma outra as barragens. Qual era a avaliação
leva de prisões de pessoas muito próximas. Foi sobre o semiárido na ocasião?
quando me casei com um colega da Sudene. Tânia Bacelar – O semiárido tinha como las-
O Alcindo tinha uma trajetória de militância tro o latifúndio pecuário, mas a criação extensiva
diferente da minha. A gente casou em 1972, permitia o rebanho conviver com a agricultura.

24 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar

A massa da população era produtora, mas ção teve que fazer? Vender o milho e o feijão
não tinha terra, entrava na terra pela meação. que antes usava para comer. Assim, começou
Isso era bom para o proprietário do latifúndio a haver problema de desnutrição grave no
porque ele fazia um sistema de rotação com o semiárido. Quem salvou a população? A trans-
gado que permitia plantar o milho e o feijão, e ferência da Previdência.
depois o algodão do trabalhador sem terra, que DV - E agora, o Bolsa-família?
adentrava na terra pela relação de parceria. Essa Tânia Bacelar - Sim. A Constituição de
parceria era tranquila. Ele produzia no ano bom, 1988 segurou os velhos, e o Bolsa-família se-
o proprietário financiava, na hora da colheita gura as mulheres. O volume de transferência da
era feita a conta, sempre desfavorável a quem Previdência ainda é maior do que o do Bolsa-
produzia. Segundo Furtado, o problema do família. E evitou a migração em massa. Hoje,
semiárido não é o ano seco, mas sim o ano bom tem uma disputa de duas tendências: uma é
porque é quando as pessoas produzem, mas a da elite, de fazer os grandes perímetros de
não acumulam. Era uma estrutura consolidada irrigação, que é um dos eixos da transposição,
que levou 400 anos e só reproduzia miséria. O levar água para onde tem terra boa, mas não
problema não é o ano ruim que vai haver de tem água. Mas isso é o modelo de quem pode.
tempos em tempos porque é uma região que Quem não pode, convive com o semiárido. E
tem chuva irregular. O problema são as relações aí têm coisas muito interessantes ocorrendo no
sociais que estão montadas nesse modelo que é Nordeste para esses que ficaram sem algodão,
inviável. Tinha que quebrar o modelo. E ele não que não têm terra porque a estrutura fundiária
conseguiu quebrar. não foi tocada.
DV - E veio a crise do algodão. DV – E há uma série de projetos
Tânia Bacelar – Nos anos 1980, acabou de convivência com o semiárido.
o algodão. E o algodão levou de arrasto a Como você analisa isso?
pecuária. Quando terminava a colheita, sol- Tânia Bacelar - As alternativas são
tavam o rebanho em cima do algodoal, para buscadas a partir da convivência, e isso é
parte da alimentação do gado. Quando tiravam interessante. A preocupação com a ecologia
a pluma do algodão para ir para a indústria está na agenda como nunca. Por exemplo,
têxtil, o caroço era triturado e transformado em quando entrei na Sudene, não se discutia
ração para o animal. Então havia alimentação ovino e caprinocultura. Existia um preconceito
a custo zero, importante para a pecuária. O contra o comércio de bode. Só que a carne
cara que produzia não recebia nada por isso dele é mais saudável que a do gado. O leite é
e, quando fazia a conta do que tinha sido mais caro, o queijo é maravilhoso. Na França,
financiado, ficava com quase nada. A política queijo de cabra é tratado como especiaria e
de açudagem foi uma política que reforçou esse no Nordeste era considerado coisa de pobre.
modelo. Quando teve a primeira grande seca Uma das grandes dificuldades de se criar bode
do Nordeste, em 1877, morreu muito gado. é conhecer o manejo do rebanho, porque é
Depois que eles fizeram a política de açuda- criado solto. O bode está sendo visto como
gem, não morria mais. Na verdade, a política alternativa econômica, um animal menor, que
de açudagem foi importante, mas fortaleceu come menos e que tem uma cadeia produtiva
um modelão que estava lá estruturado. E a que pode ser tão boa quanto a outra. Hoje,
Sudene criticava esse modelo porque refor- também existe uma produção de mel no Piauí.
çava o poder do pecuarista. Não melhorava É um dos tais arranjos produtivos locais exitosos
o poder da maioria, não chegava ao pequeno do Nordeste. Há, entre outras, experiências com
produtor, além do que tinha a luta pela água. flores tropicais na Paraíba e no Ceará.
Os açudes ficavam nas grandes propriedades. DV – E isso é uma novidade?
A água era um elemento de dominação forte Tânia Bacelar – Sim, é uma novidade. E
sobre as pessoas. hoje muitos deles produzem para exportação.
DV – Como ficou a geração de No Rio Grande do Norte, por exemplo, na Serra
renda das famílias, sem o algodão? do Mel, tem-se uma produção muito boa de
Tânia Bacelar – As pessoas foram salvas castanha para exportação. Mas aí foi preciso
pela redemocratização, pela transferência da fazer a reforma agrária, o governo foi lá e de-
Previdência rural na Constituinte de 1988. sapropriou, criou o assentamento, que vende
Quando acabou o algodão – embora modesta castanha orgânica para Suíça. O que eles pro-
– era a única fonte de renda, o que a popula- duzirem, a Suíça compra. O fim do algodão fez

Julho 2010 25
entrevista

o que Celso Furtado sonhou fazer: desmontou permanente. A capacidade de endividamento


o modelão secular. Não tem ainda a dimensão dessas famílias não é ilimitada, mesmo com
para "segurar o tranco" da economia, mas tem crédito. É um modelo que funcionou agora. O
dimensão local. Não tem escala para ter um projeto das elites brasileiras é o projeto do PSDB,
impacto estruturante. Mas para a população um projeto de inserção competitiva e seletiva do
local isso foi a solução. Brasil no mundo. E acho que ele pode voltar.
DV – O Nordeste é viável? DV – Você acredita que o PSDB,
Tânia Bacelar – O Nordeste é viável, gente, caso ganhe as eleições, manteria a
só não recebeu os investimentos que o Sudeste política de transferência de renda?
recebeu, mas é viável. A gente perdeu o trem Tânia Bacelar – Vão manter o Bolsa-família,
do investimento no começo do século 20, mas mas isso não foi tão relevante. Um estudo do
o potencial é grande. Acho que o Nordeste Ipea mostra que o impacto na renda do au-
viveu agora um período interessante no go­ mento do salário mínimo é maior do que o do
verno Lula. Primeiro, a opção dele de retomar Bolsa-família. A bandeira da gente nos anos
o crescimento puxando o consumo da base da 1990 era de salário mínimo de US$ 100 e pare-
pirâmide, mexendo na demanda antes de mexer cia que o mundo ia cair, ia falir a Previdência,
na oferta. Ele foi pela demanda, transferência todos os municípios pequenos do Brasil iam
de renda, aumento do salário mínimo, aumento fechar. Nós já passamos de U$ 100, pode tirar
do crédito. O Nordeste tem 28% da população a desvalorização cambial, não faliu a Previdência
do Brasil e metade dos pobres do Brasil. Metade e o Brasil está muito melhor. No Nordeste estão
do Bolsa-família está lá. O Nordeste tem 43% 43% da PEA rural do país e os economistas do
da PEA agrícola do Brasil. PSDB não acreditam na agricultura familiar. O
Previdência rural, aumento do salário mínimo governo atual passou o orçamento do Pronaf
– o Nordeste tem metade dos ocupados que de R$ 2,5 bilhões para R$ 15 bilhões, e isso foi
ganham até um salário mínimo no Brasil – são bom para o Nordeste.
políticas nacionais que incentivaram a demanda DV – Há um possível resultado
no andar de baixo, e houve dinamização do benéfico da crise financeira
consumo. E isso atraiu o investimento, os super- mundial para o Brasil?
mercados se ampliaram lá. Não dinamizou só a Tânia Bacelar – Eu tenho essa visão. A
economia local, as empresas de fora também crise de 1930 foi boa para o Brasil, porque
foram para lá. A dinâmica econômica da região encontramos a brecha para fazer a industrial-
está em movimento, o que é preciso fazer? ização. A atual está batendo mais nos países
Investimento. Todos os institutos de ciência e mais desenvolvidos. A gente não depende só
tecnologia do Brasil estavam de Belo Horizonte dos Estados Unidos, da Europa, mas da América
para baixo. A [Universidade] Federal de Pernam- Latina, China e Índia irem bem. O Brasil tem um
buco conseguiu seis institutos nacionais em áreas potencial aí, tem um enorme mercado interno
de ponta, como a fármaco. Por que não fármaco e muitas oportunidades no mercado mundial.
lá. Fármaco tem que vir para o Rio de Janeiro? O O Brasil do século 20 quis ser industrial e ur-
Rio de Janeiro tem potencial, mas Pernambuco bano, mas o mundo está mudando do petróleo
também tem. Lá hoje há vários institutos nacio- para a energia renovável. Ou seja, em relação
nais, o de fármaco é um deles. às energias que estão na outra pauta, o Brasil
DV – Esse processo da redução das tem grande potencial. Também vai haver um
desigualdades regionais já ganhou debate sobre produção de alimentos porque
dinâmica própria, no sentido de os estudos da FAO (Food and Agriculture Or-
deslanchar independentemente de ganization, das Nações Unidas) mostram que,
governo? com o aumento da renda na América Latina,
Tânia Bacelar – Não ganhou dinâmica na África, na China, na Índia, a demanda por
própria. Isso é uma experiência nova, muito alimento será aumentada. E aí, ou tem au-
incipiente e em um momento difícil. Não foi con- mento da produção, ou o preço vai estourar.
solidado, tem altos e baixos, tem a crise mundial E a fronteira agrícola do mundo está aqui. A
que cria um outro ambiente. O próprio tamanho gente tem água, terra e tecnologia. Não vejo
desse mercado também não está consolidado. como o Brasil não vai fazer essa discussão: va-
Lutam 20 milhões, 30 milhões de pessoas para mos ou não vamos ser um grande produtor de
ir para outra faixa de renda e dinamizar esse alimentos? Essa é uma discussão importante no
mercado, e isso não é uma coisa que tenha gás Brasil: como ser potência industrial, porque foi

26 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar

isso que eu resolvi ser e gastei todas as minhas familiar está na base da Contag. Eles têm um
fichas, e como atender a essa nova janela de projeto claro de Brasil rural com gente, de de-
oportunidades que está aí, que vem da política fesa da agricultura familiar. O movimento da
energética e da demanda de alimentos. E as reforma urbana também defende teses muito
duas estão no mundo rural. importantes para um Brasil melhor.
DV – Isso também volta para DV – Parece a sua visão sobre
a produção ovino-caprina no desenvolvimento. Você valoriza o
Nordeste, certo? Em vez de soja, desenvolvimento local, mas, por
poderíamos exportar queijo outro lado, acha que tem que estar
de cabra? integrado.
Tânia Bacelar – Parte grande da elite em- Tânia Bacelar – Tem que dialogar com
presarial, política e acadêmica não acredita na a visão nacional se não a gente se perde no
agricultura familiar. Eu já assisti muito debate atomizado. O Brasil ainda é um país em pro-
em que se diz que isso é coisa de pobre, que cesso de construção. O modelo nem deve ser
a cabra não tem viabilidade econômica. Quem o centralizado, que é uma tragédia, nem é o
segurou o tranco foram os movimentos soci- da descentralização atomizada. É preciso um
ais. Eles defendem um Brasil rural com gente. norte único: sabermos com clareza o que temos
E a agricultura familiar tem esse diferencial, em comum.
ela resolve a questão do emprego, que a agri­
cultura patronal não resolve. A agricultura
patronal resolve a questão da produtividade e
da capacidade competitiva para exportar. Mas
não emprega, mas sim, maquiniza. Se a gente
quer um Brasil rural sem gente, vamos para
o Brasil rural da CNA (Confederação de Agri-
cultura e Pecuária do Brasil). Agora, sabemos
que as nossas cidades vão ter que aguentar
o tranco. E os movimentos sociais, a Contag
(Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura) e o MST, dizem “não!”. A
agricultura familiar tem vantagens competi-
tivas. Primeiro, arranjar emprego. Segundo,
agricultura biológica é em muitos casos mais
adequada à pequena unidade que à grande
unidade. Se eles vão para o transgênico, a
gente pode ir para a agricultura biológica
com a agricultura familiar. Essa é uma dis-
cussão no Brasil muito importante porque
nós vamos ser pressionados pelo ambiente
mundial para voltar a discutir nosso papel no
mundo como produtores de bens agrícolas e
de energia limpa.
DV – Você tem uma relação muito
forte com os movimentos sociais.
Tânia Bacelar – Tenho admiração pelo
MST, pelo seu papel no Brasil, modelo de
organização, que é tudo o que defendo. Eles
são um exemplo do modelo adequado de
gestão para o Brasil, eles têm um modelo de
organização que é coordenado nacionalmente
e descentralizado regionalmente. Por isso, em
determinados lugares do Brasil, o MST é mais
forte; em outros, menos. Porque o Brasil é
diferente mesmo. Acho que a Contag tem um
papel importante, parte grande da agricultura

Julho 2010 27
entrevista

DV – Você também teve contato que há brechas, mas a gente também precisa
com sindicatos, não é? Há críticas ter a consciência de que não é hegemônica. A
no sentido da necessidade de ideia é que não tenha exploração. Em princípio,
renovação desses espaços, de é boa, mas operar essa ideia não é fácil porque
precisarem repensar as novas toda a ideologia da sociedade está organizada na
formas de trabalho e renda. direção da individualidade, da competição. Acho
Tânia Bacelar – A economia mudou. As que mesmo com o pouco apoio que deram, o
novas tecnologias mais flexíveis mudaram as resultado é muito interessante.
relações de trabalho profundamente. E o mo- DV – E, ao mesmo tempo que
vimento sindical que a gente tem é herdeiro temos essa proposta de economia
do modelo anterior. Essa passagem para eles solidária, entramos cada vez mais
não é fácil. Se pensarmos que hoje no Brasil na era da financeirização.
metade da população ocupada é informal, eles Tânia Bacelar – A crise não está tirando a
só representam, de saída, a metade da popula- gente da era da financeirização, está aprofundan-
ção. O que está fora é heterogêneo. Quem os do. É uma dificuldade discutir a vida das pessoas,
representa? E como eles fazem para entender o desenvolvimento em um mundo onde o capital
o que é isso para também representarem? A se reproduz na esfera financeira, falindo um país.
crise mundial também afeta o mercado de Quando a gente fala em desenvolvimento, está
trabalho. São discussões muito importantes. falando do mundo real, da produção material,
Por outro lado, no Brasil dos anos Lula, ainda da inserção das pessoas na vida produtiva do
teve uma complicação. Como é um governo país. A economia mundial hoje se move em outra
do lado dos movimentos, é mais fácil fazer escala. Os ativos que estão na escala financeira
oposição, confronto, criar tensão quando o são muito maiores do que os ativos que estão na
governo é conservador. Quando o governo é escala produtiva. A dinâmica hegemônica está lá
amigo, é mais difícil construir essa relação de em cima e o próprio debate econômico fica meio
geração de tensão. abstrato. Na mídia, não tem economista falando
DV – Mas depois de oito anos não de desenvolvimento, tem economista falando
deu para aprender um pouquinho? de taxas de juros, de câmbio. Quem fala são os
Tânia Bacelar – Sim, mas houve uma mu- economistas dos bancos, porque é aí que a vida
dança no Brasil sobre a qual precisamos pensar. econômica está se dando para os que podem. E
Nos anos 1990, a taxa de desemprego aumentou, a crise não desmontou isso, a crise está se ret-
informalizamos grande parte das ocupações. roalimentando. O Brasil entrou nisso na década
Nesse período agora, voltou a formalizar. Nós de 1990. O tamanho da dívida pública ainda é
criamos quase 13 milhões de empregos formais muito grande, tinha caído para 36%, voltou para
no Brasil. Ninguém esperava. E quem lidera o 40% com a crise, e aí você pega uma dívida desse
crescimento é o Nordeste. Foi o padrão de cresci- tamanho, sobe um pontinho na taxa de juros e
mento que mudou? O que aconteceu? Ainda incide sobre um bolo enorme. E é isso que vai
falta esse debate. E aí fortaleceu o meio sindical disputar o dinheiro da educação, da saúde, que
porque contrarrestou aquela tendência de perda sempre perdem, porque são importantes, mas são
de espaço que eles tinham. Eu acho que nesses úl- atomizados, não têm a força do outro.
timos anos eles viveram isso: um governo que é do DV – Quando falamos de
lado deles e uma economia que estava voltando desenvolvimento não podemos
a gerar emprego formal e os fortalece. deixar de tocar no BNDES. Como
DV – A economia solidária pode ser você vê a atuação do Banco?
uma potencialidade para o Brasil? Tânia Bacelar – Acho que existem vários
Tânia Bacelar – Tem um povo da esquerda BNDES. O BNDES da era neoliberal era o das
que não acredita, mas acho a proposta interes- privatizações. E agora há a retomada do papel
sante. Não existe palavra mais antagônica ao do BNDES da grande indústria. Eles sabem fazer
capitalismo do que solidariedade. O que ela coloca muito bem o financiamento à grande indústria,
é isso: é possível realizar a produção material com a grandes projetos de infraestrutura. Há com-
outras relações sociais de produção, ou não? O petência para os grandes projetos e dificuldade
que elas estão mostrando é que é possível e é viá­ de lidar com os pequenos. Por exemplo, o Luciano
vel economicamente. E é possível que as pessoas Coutinho [presidente do BNDES] está fazendo
tenham uma qualidade de vida razoável. Se não um esforço para cuidar dos pequenos projetos e
for assim, não dá. Acho que eles têm mostrado para trabalhar a dimensão regional, que também

28 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar

é uma dificuldade do banco. A gente sempre


brigava porque o regional do banco estava na
área social e no terceiro escalão. Ele puxou o
regional para a presidência. Lidar com o pequeno
precisa de mais paciência, mais flexibilidade, e aí,
normalmente, operam por meio do Banco do
Nordeste, que já tem uma competência nessa
área. Mas acho que estão avançando.
DV – Como você vê o
financiamento público a
empreendimentos que geram
impactos sociais, ambientais? É
possível, por outro lado, ter algum
empreendimento econômico que
não gere impactos? Como você vê
essa tensão?
Tânia Bacelar – Desenvolvimento era
sinônimo de desenvolvimento econômico.
Então financia o quê? Financia a siderurgia, a
mineração, as atividades econômicas. O desen-
volvimento social é da natureza das instituições
de financiamento tradicionais? Não. Então, o que
a gente está fazendo é gerando tensão. E eles
estão respondendo. Acho que o banco já está
um pouco com um discurso novo. Uma empresa
como a Petrobras desembarcou no meu estado e
eles botaram, na semana passada, no auditório,
2.500 empresas de Pernambuco para dizer o que
eles vão comprar. Transparência, né? O BNDES
está criando junto com o presidente da Petrobras
um grupinho para pensar nisso.
DV – É uma atitude nova?
Tânia Bacelar – Para mim é novidade per-
ceber a Petrobras preocupada com o impacto
regional da sua presença em determinado lu-
gar. Porque se você não tiver essa preocupação
acabou o diálogo. O que tem que montar lá é
uma refinaria, esquece o resto e bota a refinaria não chiar de um lado, o que tem força para
lá. Se a população vai se agregar em favela para chiar do outro leva. Não tem buraco vazio na
poder construir e depois vai ficar na favela não é política, tem jogo de força.
problema da Petrobras, é problema dos prefeitos. DV – A justiça social e ambiental
E esse tipo de mentalidade está, devagarzinho, são compatíveis com o
mudando, porque a sociedade é que está di- capitalismo?
zendo: “Desenvolvimento não é chegar aqui e Tânia Bacelar – Não, a gente vai tensio-
pensar que é a casa da Mãe Joana, não!”. Tem nando. É nosso papel ficar na contramão.
impacto positivo, mas tem impacto negativo. DV – O capitalismo continua forte,
Agora, é do DNA, é da natureza? Eles fazem isso mas há a busca de alternativas, não?
com tranquilidade? Sabem fazer? Não. Tânia Bacelar – De um lado, o capitalismo
DV – A sua fala é muito continua forte e hegemônico, mas acho que tem
interessante porque mostra a força um debate mundial na busca de alternativas. A
que a sociedade tem até para consciência ambiental vai marcar o século 21 e o
pressionar, é uma luta permanente. Brasil tem um potencial de recursos naturais muito
Tânia Bacelar – Isso. Uma coisa que grande. Talvez seja o país com maior potencial.
aprendi no governo é que administrar significa Essa discussão do desenvolvimento sustentável
administrar conflito de interesses. Então, se você ambiental no Brasil é importante e está crescendo.

Julho 2010 29
entrevista

Os nossos filhos já têm mais consciência do que Em Pernambuco, na Secretaria de Fazenda, a


nós, então, as novas gerações vão cobrar mais. gente não ganhou nenhuma batalha que a
Esse tema veio para ficar e remete a um outro gente tinha no mundo jurídico porque o mundo
tema, que está longe de ser discutido no Brasil, jurídico não era desse lado, era do outro lado.
que é a história do padrão de consumo. Ao re- A gente perdia todas, era muito claro:“vocês
distribuir um pouco mais a renda, estimulamos a ganharam o governo, o poder está em outros
população ao padrão de consumo hegemônico. A lugares e vocês não ganharam o poder”. Um
gente baixou o IPI e todo mundo quer ter carro. acadêmico jamais vai saber o que é isso. Nunca
Essa é a solução para o século 21? É inviável todos consegui ser acadêmica pura porque sinto falta
os brasileiros terem carro. Esse debate é mundial, da realidade. Acho que a academia tem dois
a gente tem que aprender a ser feliz com outro defeitos graves: ela descola a gente da realidade
padrão de consumo. Esse debate vai ter que vir. e é palco de disputa mesquinha por poder. Mas
DV – Você teve algumas experiências também não consigo deixar a academia. Toda
na área política. Foi muito ligada a vida eu fui 20 horas na academia e 40 horas
Miguel Arraes, por exemplo. em algum outro canto. A academia deve ter
Tânia Bacelar – No governo de Sarney, muita gente 40 horas, dedicação exclusiva, mas
aceitei pela primeira vez um cargo de direção na eu acho que uma pitadinha de professor com
Sudene. Antes, eles não me dariam. Era diretora o meu perfil também é bom.
da área de planejamento, quando o Dr. Arraes DV – A Sudene foi extinta em 2001,
se candidatou para governador, em 1986. Ele por Fernando Henrique Cardoso,
tinha feito amizade com Jader de Andrade, com a justificativa de corrupção e
que tinha voltado do exílio e foi reintegrado à de desvio de seus objetivos iniciais
Sudene pela Lei da Anistia. Jader, que era uma Foi no governo Lula que houve
figura maravilhosa, foi coordenador técnico o estímulo para que a Sudene
da campanha de Arraes. Eu dei uma ajuda no idealizada por Celso Furtado
grupo técnico e quando o Dr. Arraes ganhou me fosse retomada. Você integrou a
chamou para ir para o governo. Jader foi para Secretaria Nacional do Ministério
uma secretaria especial e eu para a Secretaria da Integração no governo Lula com
de Planejamento. No segundo ano do governo, o objetivo de recriar o órgão.
fui para a Secretaria da Fazenda, que estava em Tânia Bacelar – Assumi o cargo de secretária
crise. Passei quinze dias respondendo pelas duas de Políticas Regionais. Só que veio a frustração
secretarias, mas acabei ficando na Fazenda. Dr. com o projeto. Até o primeiro semestre, parecia
Arraes saiu para se candidatar e eu ainda fiquei que o negócio ia dar certo, no segundo, com
com o Carlos Wilson até 1990. Foi nesse período a lei já no Congresso, ficou muito claro que os
que trabalhei mais na área política. Mas eu nunca empresários queriam o incentivo e ele não exis-
fui de partido político, nunca fui filiada. Isso é tia. Então, não houve apoio político empresarial
um problema para eles. forte. O fundo para dar consistência à Sudene foi
DV – O que essa experiência mudou negociado com os governadores para ir direto
para você? para os estados, em vez de ir para a Sudene.
Tânia Bacelar – Foi um aprendizado Aí ficou claro que os governadores também
enorme, tive uma leitura da política que não não queriam. Eu logo vi que aquele projeto da
tinha. Fui três vezes secretária em governos de Sudene não ia para lugar algum. Mas aí a gente
ruptura: secretária de Planejamento de Pernam- tinha começado a discutir uma proposta de
buco, secretária de Planejamento, Urbanismo e política de desenvolvimento regional. Enquanto
Meio Ambiente do Recife, quando João Paulo o projeto da Sudene estava andando, a gente
ganhou a eleição para prefeito, em 2000-2001, tinha começado a formatar o PNDR [Política
e secretária de Políticas Regionais quando o Lula Nacional de Desenvolvimento Regional]. Aí o
ganhou. Dr. Arraes substituiu Gustavo Krause/ ministro insistiu: “Não vá agora não, pelo menos
Roberto Magalhães, João Paulo substituiu Ro- deixe a política formatada”. Então, fiquei até
berto Magalhães, e Lula, Fernando Henrique. janeiro de 2004, a gente fez um primeiro esboço
Então, não é fácil. No governo, você sente como da política e eu fui embora.
é que a política pega. Na academia, jamais en- DV – Você participa do Conselhão.
tendemos como operam esses mecanismos. Por Como entrou nesse conselho?
exemplo, vivi a sensação de que se ganhou o Tânia Bacelar – Foi Lula quem convidou, era
governo, mas não o poder nos três momentos. um conselho do presidente, as pessoas foram

30 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar

escolhidas por ele. Isso me incomodou, afinal, “pode cair o mundo, mas não é para mexer nas Participaram
somos representantes de quê? Alguns que estão políticas sociais”. Como era gente que estava desta entrevista
lá são líderes legitimados. Todos estão lá porque convivendo com a crise, trazia para o presidente, Entrevistadores(as)
o presidente convidou. Disseram a mim que era com muita rapidez, o que estava se passando, e Dulce Pandolfi
porque sou nordestina, mulher e da academia. a repercussão das medidas tomadas voltava para Fernanda Carvalho
Flávia Mattar
Só que as mulheres são amplamente minoritárias, ele rapidamente, sem interlocutor. A avaliação
Jamile Chequer
são apenas dez entre quase 90 membros. da experiência foi muito interessante. Raimundo Dumas
DV – Quantos são no grupo da No começo do governo Lula, a primeira pes- Renata Lins
Rogério Jordão
esquerda? quisa que a gente fez entre os membros foi sobre
Tânia Bacelar – Uns 15. No começo, a gente qual seria o principal problema do Brasil. Quase
Decupagem
fazia uma reunião antes da reunião. O pessoal 90% disseram que era a desigualdade social. Ana Bittencourt
mais de esquerda se reunia antes. E o pessoal Então, virou um eixo importante do trabalho
Edição
do empresariado também. Depois, a gente foi que gerou o Observatório da Desigualdade,
Flávia Mattar
vendo que não era assim. Acho uma experiência hoje bastante estruturado. O Ipea ajuda, o IBGE Jamile Chequer
interessante. É uma assessoria ao presidente. também, quer dizer, tem um respaldo técnico
Fotos
Deve ser de grande serventia para ele porque dos órgãos do governo e tem uma comissão que
Marcus Vini
sente a diversidade, que é muito grande, e dá acompanha os indicadores do milênio.
para mapear convergências e divergências. DV – O presidente escuta sempre? Produção
Geni Macedo
DV – Que papel o Conselhão Tânia Bacelar – Tem coisas que ele não
desempenhou durante a crise? ouve. A gente fez uma moção propondo mu-
Tânia Bacelar – Em 2009, se tirou um co- danças do Conselho Monetário, aí não deu.
mitê de dentro do conselho para, com o presi- Mas, de vez em quando, a gente lembra ele
dente, acompanhar a crise. Tinha representante disso. Mas é válido. Tem coisa que não anda
do movimento sindical, do movimento empre- mesmo. Por exemplo, na reforma tributária,
sarial, dos bancos, Dona Zilda Arns representava tem muita discussão, andou pouquíssimo. São
a sociedade civil. E ela, quando falava, o povo os carmas do Brasil: onde tem terra, tributo, os
parava para ouvir. Ela costumava afirmar que embates não são à toa.

Julho 2010 31
C R Ô N I C A

Vozes na lama
Messias desce apressado do trem, cruza a sábado, para acompanhar Trajano. Por causa
estação atulhada de gente e se depara com dele, aliás, passou a ir à academia duas vezes
o temporal: relâmpagos e trovões no céu da na semana. Enquanto ele está no trabalho,
tarde que virou noite. Pessoas assustadas di- ela não tira cremes do rosto, pinta as unhas,
zem que vai piorar. Caxias, Messias não atrasa ajusta roupas. Com saúde e alegria, nem
nem perde aula. Bolsista do quarto período de pensa em melhorar, com medo de piorar. “O
História e filho adotivo, morde com todos os ótimo é o inimigo do bom”, ela diz.
dentes as chances que a vida lhe concede. Mas A euforia não vem do corpo sarado
hesita em avançar, embora tenha prova. nem da pele tratada. A chegada de Trajano
Como faz toda noite, Carmela liga a eletrizou seu coração, que sempre foi ale-
TV e senta na sua poltrona para assistir ao gre, mas andava sem pilha. Há três meses,
jornal. Antes, tirou as porções do jantar do se ligou na eletricidade dele. O corpo vibra
congelador - gosta que degelem antes de com a corrente que magnetiza sua vida. Hoje,
levar ao micro-ondas. E agora não são só as irradia energia, sente-se mais mulher, amada
suas saladinhas: Trajano não dispensa arroz e protegida. Uau!
e feijão nem no jantar. Ela acha pesado para O barulho da chuva cobre a voz da TV,
a noite, mas cede ao prazer dele. ela aumenta o volume. A reportagem fala da
Aos 58 anos, ela tem corpo de 45 e chuva que surpreendeu a cidade no fim do
cabeça de 30. Embora pobre, sabe viver. dia, mostra alagamentos e trânsito parado. De
Antes de se aposentar, já se cuidava. Fazia olho na tela, avalia se deu tempo de Messias
dieta, corria, dormia bem, tratava da pele e chegar à faculdade antes de chuva e fica
do cabelo. Agora, com o dia ao seu dispor, apreensiva porque Trajano pode se atrasar.
anda cinco quilômetros toda manhã e dez no As aflições do amor!

32 Democracia Viva Nº 45
Desde janeiro, Trajano deixara um Escreve com afinco em folhas de almaço, Alcione Araújo
guarda-chuva no trabalho – chuva de verão quando avisam que há ligação para ele. alcionaraujo@uol.com.br
não avisa! Precavido como bom eletricista – Bombeiros e defesa civil se agitam na
choque elétrico não avisa! –, tem 33 anos em montanha de escombros. Feridos gritam na
montagens de alta tensão, sem acidentes. Ao lama. O oficial diz à TV que barracos des-
sair, vai de guarda-chuva até o carro, onde lizaram, cruzaram a rua e soterraram casas
tem outro para eventual surpresa. Viúvo há do outro lado. Messias escava escombros
dez anos, filhos casados, sua solidão ordeira com as mãos. Sangrando, arranca concreto,
findou quando Carmela arrombou as portas pedra, ferro, lama. Súbito, grita: “Silêncio!”
e janelas do seu recato e acendeu sua vida Ouvem-se apenas vozes abafadas de TV. Ele
de energia. Sente na carne o curto-circuito se mete no buraco. Na sala, vê a poltrona de
da paixão. Carmela coberta de lama. Desesperado, tira
Carmela veda frestas da janela, que lama com a mão, até se deparar com o corpo
trepida com a ventania. Olha para o alto, vê da mãe adotiva, sentado, mãos e pés para
clarões iluminarem o morro em frente, no frente, como se tentasse deter a avalanche.
outro lado da rua. Enxurradas despencam aos Limpa o rosto dela com a camisa. Entre as
saltos pelas vielas, barracos balançam. No pé ruínas, acha o corpo de Trajano. Arrasta-o
do morro, a água sobe na rua alagada. Nada até a mãe e acomoda-o entre as pernas e
de Trajano. Volta à poltrona e à reportagem braços rígidos dela. Ajoelha-se diante dos
sobre o vendaval. De repente, ouve um forte dois, e reza. Pelo buraco, entra a luz da TV,
estrondo e sente o mundo estremecer. que filma. De fora vêem gritos abafados,
Messias faz prova na sala da faculda- e vozes continuam falando na TV coberta
de, roupas encharcadas como as dos colegas. pela lama.

Julho 2010 33
ibase
opinião
Patrícia Lanes *

Por onde caminham


os(as) jovens
sul-americanos?
Os diálogos de uma
pesquisa em rede
Conhecer as principais demandas de jovens sul-americanos, as formas de enunciação de

tais demandas e as relações entre elas e as políticas públicas existentes foram importantes

objetivos da pesquisa Juventudes Sul-americanas: diálogos para a construção da democra-

cia regional1, que acaba de ser concluída. A investigação teve o diálogo como norteador,

tanto em método como princípio. Com abordagens qualitativas e quantitativas, foram

realizados entrevistas, grupos focais e de diálogo (ver box) e ouvida a opinião de 14 mil

pessoas (jovens e adultos/as). A partir de ampla troca entre equipes de pesquisa e entre

jovens investigados(as) foi possível chegar a dados e análises que ajudam a compreender

a geração de jovens hoje na América do Sul.

A investigação foi feita a muitas mãos, coordenada por Ibase e Pólis, em parceria com

1 A publicação final da
pesquisa, assim como todos
uma rede de organizações - Fundación SES (Argentina), U-Pieb (Bolívia), Cidpa (Chile), Base-IS
os relatórios e publicações
produzidos ao longo do
estudo estão disponíveis (Paraguai), Cotidiano Mujer e FCS Udelar (Uruguai) – e apoio do Centro Internacional de De-
para download em <www.
juventudesulamericanas.org.
br> e <www.ibase.br>. senvolvimento e Pesquisa do Canadá (IDRC). Certamente, quando se realiza uma investigação

34 Democracia Viva Nº 45
em rede, cada parceiro traz uma resposta distin- e organizações exclusivamente de jovens. Os
ta sobre seus principais achados. Neste artigo, grupos de diálogo buscaram expressar em sua
trazemos algumas reflexões sobre análises desen- composição parte da complexidade de atores
volvidas ao longo do processo de pesquisa. de um campo no qual coexistem e dialogam
Em uma análise geral, no século XXI, organizações exclusivamente juvenis (como as
esse(a) jovem está mais conectado à internet, estudantis e alguns grupos culturais, por exem-
é menos católico que a geração anterior e plo), com muitas outras nas quais as principais
mais escolarizado(a) que seus pais - ainda que bandeiras e/ou identidades são permeadas pelas
muitos(as) não consigam completar o ensino realidades e questões trazidas pelos(as) jovens
médio e que “estudar e ter um diploma” per- que delas participam (movimentos e organiza-
maneça como forte anseio em muitos países. ções feministas e de mulheres, negros/as, LGBT,
Ter mais oportunidades de trabalho aparece rurais, sindicais e por trabalho etc.).
na pesquisa em primeiro lugar, quando jovens
e adultos(as) são perguntados(as) sobre o que
Juventude e participação
é mais importante para a juventude hoje. No
entanto, em todos os países, a educação de Os(As) jovens organizados(as) mostram-se
baixa qualidade e a violência são os maiores preocupados(as) com a desmobilização da
obstáculos para que os(as) jovens vivam melhor juventude como um todo e apontam como
o presente e conquistem o futuro. necessidade falar para além dos(as) militantes.
Na última fase da pesquisa, chegamos Outras questões relacionadas à participação se
a uma lista de nove demandas que vêm sendo referiram à relações de conflito, formação e co-
foco de reivindicação e debate entre jovens operação entre gerações dentro de organizações
organizados(as) e não organizados(as)2. São e movimentos; a necessidade, por vezes colocada
elas: educação com qualidade (acesso e conti- em espaços institucionais, de estar em um grupo
nuidade na trajetória escolar); oportunidades de organizado e estruturado para ter direito à parti-
trabalho digno e criativo; acesso a bens culturais cipação; e o papel dos(as) jovens organizados(as),
e condições para a produção artística juvenil; que podemos chamar de “minorias ativas”, nos
segurança (com respeito aos direitos humanos processos de transformação social.
e valorização da diversidade juvenil); cuidado Um eixo importante de investigação
com o meio ambiente, garantindo qualidade foram as políticas públicas de juventude. Por
de vida dos(as) jovens no campo e nas cidades; um lado, é possível afirmar que em muitos
gratuidade no transporte público para jovens; países e, sobretudo para especialistas e jovens
saúde com acesso a serviços que levem em organizados(as), a questão da juventude vem se
conta a atual condição juvenil; moradia (acesso consolidando na relação com o debate sobre os 2 As seis demandas
a créditos específicos para habitação juvenil no direitos dos(as) jovens e as políticas consideradas mapeadas na primeira
investigação (“Juventude e
campo e na cidade); e a consolidação de canais para essa parcela da população. A conformação Integração Sul-americana:
caracterização de situações-
de participação de grupos, redes e movimentos desse campo não se dá pela oposição entre jo- tipo e organizações juvenis”,
de jovens nas políticas públicas. vens e adultos. Ao contrário, há muitas alianças Ibase, Pólis, 2007), que
deram origem à publicação
O processo de construção de uma agen- possíveis (e tensões) entre gerações. O “outro” “6 demandas para a
construção de uma agenda
da comum para jovens sul-americanos(as) não por excelência nesse caso é o Estado e dele são comum”, foram ampliadas a
se resume a um simples inventário de deman- exigidos os direitos – muitos apresentados pela medida que outros(as) jovens
foram ouvidos(as) e outras
das e bandeiras. Durante diálogos nacionais e lista de demandas da investigação - capazes de demandas mapeadas
e analisadas.
regional (ver box) foi possível entrever as difi- garantir qualidade de vida dos(as) jovens.
3 Ao pedir que citassem
culdades e possibilidades da construção social Na etapa quantitativa, ficou claro que as espontaneamente programas
e política de tal agenda. Percebendo jovens sociedades dos seis países acreditam que seus e ações governamentais
voltados para jovens,
como sujeitos políticos de direitos, é possível governos conhecem as necessidades dos(as) jo- novamente as porcentagens
foram baixas, não
entender relações, embates e disputas entre vens, mas não fazem nada a respeito. Os países ultrapassando os 20% no
concepções e prioridades. É interessante notar onde a maior porcentagem de entrevistados(as) Uruguai, 19% no Brasil,
13% no Chile, 7% na
que muitas das questões que surgiram ao longo acredita que o governo apoia e promove pro- Argentina, 5% na Bolívia e
3% do Paraguai. Ainda assim,
dos diálogos não estão apenas nos movimentos gramas e ações para jovens foram Brasil (20%), muitas das ações citadas
e organizações de jovens. No entanto, são elas Bolívia (26%) e Uruguai (43%)3. eram, na verdade, iniciativas
de organizações não-
que perpassam as dificuldades e potencialidades Nos grupos de diálogo nacionais ficou governamentais em parceria
ou não com o governo e,
presentes nesses espaços. evidente a formação de um campo em torno ainda, diversas delas eram
Muitos(as) jovens participantes dos diá- das políticas públicas de juventude, ainda que as voltadas para crianças ou
famílias, por exemplo, e não
logos não estavam engajados em movimentos histórias dos diferentes países e dos movimentos direcionadas a jovens.

Julho 2010 35
Op i n i ã o Ib a s e

e organizações, o tempo de existência de orga- a existência de um nó mais forte dessa rede, re-
nismos governamentais específicos e as muitas presentado pelas entidades coordenadoras.
possibilidades de relação entre eles evidencias- Vale ressaltar que o desejo de construir
sem que se trata de um campo híbrido e com alianças sem eliminar diferenças requereu um
distintas conformações. As demandas colocadas esforço de tradução entre pesquisadores(as),
por jovens possuem diferentes níveis de legiti- com diferentes trajetórias, concepções teóricas
midade social4 e as entidades governamentais e experiências metodológicas. A busca por uma
que tratam das “questões da juventude” tam- relação mais horizontal entre pesquisadores(as)
bém encontram espaços diferenciados dentro e pesquisados(as) na produção de um tipo de
dos governos. No entanto, no diálogo regional conhecimento engajado foi imprescindível para
(em âmbito sul-americano) houve o reconhe- a realização da pesquisa. A relação de pesquisa
cimento de que, no geral, tais entidades ainda foi, em muitos casos, uma atualização de outras
não são suficientemente fortes e legitimadas, relações já estabelecidas em espaços políticos
nem para promover a participação de jovens de militância como conselhos, fóruns etc. No
nem para encaminhar suas demandas dentro caso do Brasil, sobretudo, essa dimensão esteve
do governo. fortemente presente.
Outra dimensão envolvendo o diálogo
durante a investigação foi a adaptação do método
Diálogos em curso
para uma nova realidade de pesquisa. Dessa vez,
O desafio de construir alianças sem eliminar tivemos o desafio de construir a metodologia
diferenças se coloca hoje não só para os movi- sabendo que iríamos “colocar em diálogo” jovens
mentos nos quais os(as) jovens estão, mas para com distintas trajetórias de militância que, em
a esquerda de maneira geral. Talvez o cenário alguns países, já vinham se encontrando em ou-
do campo das políticas públicas e seus diferen- tros espaços como assembleias, fóruns, reuniões,
tes atores da sociedade civil seja um dos mais muitas vezes com posições antagônicas.
interessantes para se pensar a construção de As práticas da esquerda e da sociedade
pontes que superem fragmentações e constru- civil organizada em geral, seus muitos fraciona-
am alternativas. Nele, “ser jovem” está longe de mentos, tensões e alianças estavam ali represen-
ser a única identidade ou a mais mobilizadora tadas.5 A metodologia dos diálogos pressupõe
da militância. A complexidade também está que seja possível ouvir o outro, seus argumentos
nas combinações possíveis entre identidades e buscar deixar preconceitos e pré-estabelecidas
que mobilizam bandeiras e demandas e nas de fora. Para pessoas que nunca se encontraram
múltiplas formas de negociação das mesmas isso pode ser mais fácil, mas para militantes
com o Estado, sociedade civil ou sociedade de que têm na disputa de ideias a centralidade
maneira geral. de sua ação, a questão se complexifica. Nossos
As estratégias para criar tais pontes são cuidados ao produzir o material, já que os temas
muitas e não devem ser excludentes. Ao analisar das políticas públicas, participação e articulação
o processo do Fórum Social Mundial, o sociólo- não eram de todo desconhecidos dos(as) jovens,
go português Boaventura de Souza Santos fala foram necessários. Possíveis preconceitos já
4 Se pensarmos, por do necessário trabalho de tradução que deve existentes, ainda que não tenham desaparecido
exemplo, nas demandas
de educação, encontramos
ser feito entre organizações e movimentos. Para por completo, deram espaço para um diálogo de
em todos os países um alto ele, a tradução deve ocorrer tanto entre saberes fato. As diferenças ideológicas, sociais, políticas
grau de apoio da sociedade
a reivindicações, já sobre (conceitos de análise, princípios políticos, obje- e morais estavam lá, e coube aos trabalhos de
demandas relativas à terra e
saúde sexual e reprodutiva,
tivos estratégicos), quanto no que diz respeito condução dos encontros e de análise do que foi
por exemplo, a adesão da às ações (organização, estilos de luta e de produzido durante seu processo lidar com elas e
sociedade é mais baixa.
atuação). É possível reconhecer tais dimensões incorporá-las como dimensões de análise.
5 Uma experiência anterior
vivida recentemente pelo do trabalho de tradução na pesquisa. No entanto, e o mais importante aqui,
Ibase (a utilização da
metodologia dos Grupos de
A formação de uma rede de investigação, tais diferenças não inviabilizaram o encontro
Diálogo na segunda fase já presente em experiências anteriores de Ibase e ou o debate. Ao contrário, os diálogos nacio-
da pesquisa Repercussões
do Programa Bolsa Família Pólis no trabalho com juventude, gerou um espa- nais e regional foram avaliados por jovens e
na Segurança Alimentar
e Nutricional das Famílias
ço de diálogo entre organizações com histórias, pesquisadores(as) positivamente e geraram in-
Beneficiadas, em 2008) nos perfis e vocações distintas. Esse trabalho, ao longo formações substantivas sobre como vêm sendo
fez perceber que, ainda que
difícil, usar a metodologia de três anos, constituiu-se como caminho dialó- construídas as relações entre sociedade civil e
para gerar diálogo entre
militantes seria possível
gico para a produção do conhecimento, ainda Estado e entre diferentes grupos e movimentos
e desejável. que sem estrada preestabelecida e considerando ligados à juventude, por exemplo.

36 Democracia Viva Nº 45
P o r o n d e c a m i nh a m o s ( a s ) j o v e n s S u l - a m e r i c a n o s ? O s d i á l o g o s d e u m a p e s q u i s a e m r e d e

A aplicação da metodologia de diálogo de entendimento sobre determinados temas e * Patrícia Lânes


pode ser uma aposta na criação de espaços de mudança de certas percepções sobre eles. Socióloga, pesquisadora
de pesquisa e construção do conhecimento Mas em seu processo de construção, antes e do Ibase e integrante
em que princípios orientadores do trabalho depois do método, pode também ser percebido da equipe técnica da
de tradução a que se refere Boaventura estão como um passo inicial para a criação de pos- pesquisa Juventudes
presentes6. Alguns aspectos podem ajudar a sibilidades de tradução entre conhecimentos, Sul-americanas

gerar as condições para a tradução de fato. saberes e experiências.


Primeiro, o compartilhar inicial de informações, A compreensão de lógicas culturais e
fazendo com que os(as) envolvidos(as) no pro- políticas de ação a partir de realidades que,
cesso "como pesquisados" tenham um mesmo apesar de próximas geograficamente, são muito
ponto de partida. Segundo, o fato de as falas diversas e por vezes guardam entre si signifi-
terem o mesmo peso e a insistência para que cativas distâncias culturais (se pensarmos, por
se ouça o outro sem preconceitos. Não se trata exemplo, nos/as jovens indígenas organizados/
de um espaço de disputa política que resulta as na Bolívia e no Chile ou nos/as jovens campo-
em posições oficiais, documentos assinados por neses/as no Paraguai, Bolívia e Brasil e naqueles/
todos(as) ou resoluções a ser encaminhadas a as organizados/as nas grandes cidades) pode
governos, mas de resultados que serão objeto ser exercitada em espaços como esses. No
de análise por parte de pesquisadores(as). entanto, a criação de processos de tradução
Esse lugar de fala para pesquisa pode não é pontual ou simples. Ela requer tempo,
ajudar a distensionar relações e ser um espaço esforço e disponibilidade mútua. Acreditamos
mais aberto para buscar compreender atores que processos metodológicos também podem
que têm posições distintas em um mesmo abrir canais para a compreensão verdadeira de
campo político, mas que podem compartilhar outras experiências preservando (e valorizando)
ideias comuns. Reconhecer diferenças e seme- identidades e autonomias.
lhanças faz parte do método e é um exercício Esse rico processo de pesquisa teve
feito conjuntamente ao longo do dia de diálogo muitos resultados e produtos, terminou no final
por participantes e pesquisadores(as). de 2009 e culmina agora com o lançamento
O diálogo pode ser pensado apenas e tão do “Livro das Juventudes Sul-americanas”,
somente como técnica de pesquisa, encontro buscando fazer uma entre as muitas sínteses
entre diferentes (e em muitos casos desiguais) possíveis em torno das tantas descobertas feitas
em um espaço “criado em laboratório” para ao longo do processo de investigação e seus
conhecer opiniões e verificar as possibilidades muitos resultados.

Grupo de diálogo sul-americano

Na etapa final, cerca de 40 jovens organizados(as), que participaram nos momentos anteriores da in-
vestigação, foram convidados a fazer parte de um Grupo de Diálogo Nacional, em cada um dos países
pesquisados, para conversar sobre possibilidades e entraves para o reconhecimento de seus direitos e
demandas, para sua participação e articulação nacional e regionalmente. Alguns(mas) foram escolhidos(as)
para fazer parte do Grupo de Diálogo Regional, no Rio de Janeiro, em junho de 2009, e conversar sobre
seus problemas e demandas e sobre as possíveis maneiras de as colocarem no espaço público pensando
a temática da Integração Regional.
Durante os dias de encontro, muitas questões foram levantadas e continuam sendo refletidas. Até
que ponto as demandas ditas “juvenis” se fundem com as demandas de outros tantos sujeitos sociais?
Se as demandas juvenis fazem parte de lutas mais amplas, qual o sentido de se fortalecer organizações
de jovens? Como é possível garantir que organizações e movimentos sem recorte etário incorporem as
especificidades juvenis? De que maneira fortalecer diferentes demandas sem hierarquizá-las? E, ainda,
como articular demandas de diferentes movimentos e organizações considerando diferenças ideológicas,
religiosas e morais existentes entre elas? 6 Para ele, a tradução seria o
procedimento que permitiria
O documentário Diálogos, dirigido por Beto Novaes e Cleisson Vidal, e produzido por Ibase e Pólis “a criação de inteligibilidade
em 2009, traz algumas dessas reflexões e é produto da pesquisa Juventudes Sul-americanas: diálogos recíproca entre as diferentes
para a construção da democracia regional. Ele mostra os(as) jovens participantes desse momento de experiências do mundo,
tanto as disponíveis como
diálogo contando suas histórias e debatendo questões que interessam à juventude hoje como educação, as possíveis, (…) sem por
participação, trabalho, militância, relação entre Estado e sociedade civil e violência. Além dele, a partir em perigo a sua identidade
e autonomia (...)”. (texto
de cada um dos diálogos nacionais, um filme foi produzido: uma visão possível de um momento de um
disponível em http://www.
processo marcado por diálogos, aproximações, dificuldades e descobertas. forumsocialmundial.org.
br/noticias_textos.php?cd_
news=432)

Julho 2010 37
r e s e n h a

O livro Time for a Visible Hand (A Hora da Mão


Visível – Lições da Crise Financeira Mundial
De 2008), publicado este ano e ainda sem
tradução em português, não poderia ser mais
atual. Traz um olhar novo e organizado para
o caos da crise financeira iniciada em 2008.
Sua intenção é discutir a crise no que ela tem
de estrutural, ou seja, ressaltar que caracterís-
ticas intrínsecas ao sistema capitalista em sua
forma "financeirizada" levaram ao que todos
acompanhamos nos últimos dois anos. De
forma mais profunda, pretende questionar o
senso comum dominante, hoje aceito de forma
geral, que defende o dinamismo e a prontidão
dos mercados e aponta a atuação do Estado
como “atrasada”, “burocrática”, “antiga”,
Time for a Visible “ineficiente”.

Hand: Lessons from O livro é dividido em quatro partes


cujos títulos são autoexplicativos: I. A crise nos
the 2008 World Estados Unidos (textos de J.Stiglitz, G.Caprio

Financial Crisis Jr. e Jan Kregel); II. Reformando a Regulação


Financeira (textos de P. Turner, j. D'Arista,
(A Hora da Mão Visível: Lições da S. Griffith-Jones, A.Persaud, C.Goodhart, P.
Crise Financeira Mundial de 2008) Mehrling e M.Williams); III. Perspectivas para os
Stephany Griffith-Jones, José Antonio Países em Desenvolvimento (textos de Y.Akyüz,
Ocampo e Joseph Stiglitz (orgs.) Y. Reddy, R.Frenkel, M. Rappetti e F. Cardim de
The Initiative for Policy Dialogue Carvalho) e IV. Reformando o Sistema Monetário
Series – Oxford University Press, 2010 Global (textos de J.A. Ocampo, B. Greenwald
358 págs. e J.Stiglitz).
Sua maior qualidade está, justamente,
na combinação precisa de autores acadêmicos
com especialistas do mercado, o que confere
ao livro um tom raro de discussão de economia
política com base em experiências concretas e
conhecimentos adquiridos na ação cotidiana de
manejo dos instrumentos financeiros.
Além disso, o enfoque decididamente
heterodoxo e de economia política, em um
tempo em que a teoria econômica dominante

38 Democracia Viva Nº 45
há muito deixou o terreno das ciências humanas (P. Mehling), e por fim, governança do sistema
para tornar-se uma ciência mais próxima à física (M.Williams).
teórica, traz algo de fato novo quando compa- A terceira parte do livro foca a perspec-
rado às inúmeras abordagens sobre o tema. tiva dos países em desenvolvimento. Discute a
A introdução escrita pelos editores é um vulnerabilidade financeira na Ásia (Y.Akyüz),
gostinho do que está por vir, contextualizando lições a serem aprendidas pelos países menos
o livro (resultado de um seminário organizado desenvolvidos a partir da crise (Y. Reddy); a
em julho de 2008, pela Initiative for Policy Dialo- influência do sistema financeiro internacional
gues da Universidade de Columbia) e dando um sobre as possibilidades; e os obstáculos ao
rápido panorama do restante da publicação. desenvolvimento encontrados por estes países
Na primeira parte, que trata da crise nos (R.Frenkel e M. Rappetti). E, no último texto,
Estados Unidos, o primeiro artigo de Stiglitz Fernando C. De Carvalho faz uma análise da
destaca os problemas de regulação e informa- efetividade limitada da acumulação de reservas
ção que possibilitaram a crise: problemas de (como se faz no Brasil) como estratégia de defe-
modelagem econômica, de avaliação de riscos sa contra crises, deixando aberta a agenda para
e de comunicação trazem concretude à ideia outras possibilidades mais adequadas.
de que a crise poderia, sim, ter sido evitada. A última parte do livro trata de maneira
O texto de G. Caprio (“Sub-prime Finance: mais ampla da reforma do sistema monetário
yes, we are still in Kansas”) destaca a questão internacional, em textos de J.A. Ocampo, B.
da desregulamentação financeira que levou Greenwald e J.Stiglitz. Sem entrar no detalhe
à bolha. O de Kregel recapitula a história da dessa discussão, deve-se ressaltar que, mais do
regulação financeira pós-New Deal para dis- que as respostas dadas, o que faz desse livro
cutir a premência da re-regulação necessária. uma ferramenta de peso para quem quer ir mais
Por último, o segundo texto de Stiglitz levanta a fundo no entendimento dos mecanismos que
possibilidades de resposta à crise no âmbito das levaram à crise são o enfoque e os questiona-
políticas fiscal e monetária. mentos ali feitos, que não permitem respostas
Na segunda, sobre reformas à regulação rápidas e tranquilizadoras. Ao contrário, o que
financeira, são tocados temas essenciais como tem de orgânico é o fato de que todos os artigos
a questão da liquidez necessária para evitar apontam para a necessidade e para a urgência
crises (texto de P. Turner), os critérios necessá- de reformas substantivas na arquitetura e no
rios à reforma na regulação financeira (texto funcionamento do sistema financeiro mundial.
de J. D'Arista e S. Griffith-Jones), o papel da Caso contrário, afirmam os autores, estamos
supervisão bancária e suas falhas em perceber condenados a viver incessantemente à espera
a chegada da crise, o que impediu medidas da próxima crise.
de prevenção (texto de A. Persaud) e, nos três
últimos, questões sobre como deveriam ser a
regulação das todas poderosas agências de
rating (C. Goodhart), a dos mecanismos que Renata Lins
permitiram a transmissão em cadeia da crise Economista, coordenadora do Ibase

Julho 2010 39
c u lt c u lt u r a
Aroeira
Chargista

Crise?
Que crise?
Quando o pessoal da Democracia Viva me pediu para escrever um artiguinho sobre a

crise, coisa pouca, seis mil caracteres, por aí... gelei. Demorei vinte minutos no Word só

pra descobrir como contar os tais caracteres. E esse preâmbulo foi só pra mostrar quão

pequena é a minha intimidade com editores de texto.

É que não tenho escrito nada na mídia por mais de vinte anos. Estou enferruja-

do. Ouço as minhas circunvoluções cerebrais rangendo e estalando. Receio até quebrar

alguma coisa, danificar alguma sinapse, sei lá...

Pra meu alívio, me explicaram que este é apenas um texto introdutório para um

montão de charges sobre a dita crise. Gostaria de colocar cartuns de vários colegas, mas

a logística disso não é mole. Portanto, peguei os desenhos do chargista mais próximo e

mais à mão, eu mesmo. Então... a crise? Não preciso explicá-la, não preciso pesquisá-la,

não preciso sequer compreendê-la... Só preciso rir dela. E, se possível, fazer com que

vocês também riam.

40 Democracia
DemocraciaViva
VivaNºNº
4545
ura

Julho
Julho2010
2010 41
C u lt u r a

Mesmo que seja apenas um “rir de


nervoso”, como dizemos lá em Minas... Hoje,
olhando pra trás, o monstro pode até parecer
menor, se você mora por aqui. Ainda que tam-
bém apanhássemos “cá o nosso talhão”, coisa
do idioma luso, ficamos com uma fatia bem
menor. Dizem que na Espanha, na Grécia ou na
Califórnia todo mundo quer migrar pra cá... O
Brasil ganhou um certo respeito lá fora, na base
do “last man standing”, o último de pé. Foi um
Halloween gigante (estourou, pra quem não é
economista, em outubro de 2008!), um tsunami
econômico que passou em nossas vidas, o fim
do mundo “tal como o conhecíamos”...
E etc. Repetido ad nauseum. Imprensa
é um negócio bem divertido: em 15 minutos,
todos os jornais acharam especialistas e econo-
mistas dispostos a compartilhar sua sapiência.
Todos em pânico. Todos com razão e com ra-
zões... muitas e contraditórias. Todos sabiam,
todos ensinaram e todos os brasileiros se torna-
ram economistas da noite pro dia, entendendo
de “spread” e “commodities”, acumulando isso
com o cargo vitalício de técnico de futebol,
que temos desde criancinhas. Analisávamos as
quedas abissais da bolsa com o mesmo interesse
com que analisávamos a seleção do Dunga. E
com o mesmo pessimismo, claro. É da nossa
alma. Coisa muito nossa.

42 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?

Julho 2010 43
C u lt u r a

Ah, e o(s) governo(s)? Aqui, o governo


dizia “Marolinha”, e a oposição respondia
“Tsunami” e “Fim do Mundo”. As empresas
demitiram preventivamente, os clientes se-
caram, e tudo virou uma enorme crônica de
uma morte anunciada. O mundo acabou,
gente... Corram em círculos e gritem socorro!
Governo corre daqui e dali, corta IPI disso e
daquilo, oposição acusa governo de esconder
a gravidade do Apocalipse, governo responde
com um clássico “pessimistas, incentivadores
do pânico”, oposição rebate com “escamote-
adores, pilantras mentirosos”, governo retruca
com “fomentadores do caos”, e daí pra um
xingar a mãe do outro foi um fio de cabelo.
Todo mundo em pânico! Algum tempo depois,
recontrataram, recuperaram os clientes, passou
o susto e, ressabiadamente, nossos “agentes
econômicos” saem debaixo das camas e voltam
a fazer o que faziam... Ou seja, sugar o sangue
dos trabalhadores, para uns, ou fomentar o
progresso e o desenvolvimento, para outros.
Ou alguma coisa mais no meio...

44 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?

Julho 2010 45
C u lt u r a

Lá fora não foi diferente, se falamos só


do pânico. Acusações mútuas entre posições
políticas e visões econômicas em doze línguas
diferentes fazem um barulho e tanto! Já ouvi
falar de perdas de até 10 trilhões de dólares.
Mais. Isso é possível? Havia tanto dinheiro
assim no mundo financeiro, correndo essa
“rat race”, nas sábias palavras de Bob Marley?
Ou era igual ao dinheirinho do
Banco Imobiliário, de men-
tirinha? Sempre desconfiei.
Eu, cartesiano naïf que sou,
vivia me perguntando como
era possível todo mundo
ganhar aquela dinheirama
toda, como prosseguir com
aquela espiral de lucro inces-
sante sem coisa nenhuma sair de
lugar algum. Principiozinho básico
da Física... A lei da conservação da energia.
Mas, se falamos de resultado final, os
gringos se saíram bem pior do que nós. Será
por causa das dezenas de planos econômicos,
desvalorizações e renomeações de moedas,
confisco de poupança, o escambau a quatro
que temos na nossa história? Será porque,
após tantas décadas de malucos de carteirinha
gerenciando nossos destinos (desenhei vários
deles, pombas!), estamos imunes à “economia
enquanto tal”, “em bloco e dentro do contex-

46 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?

Julho 2010 47
C u lt u r a

48 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?

to”? Ai, que saudade do Paulo Francis... Ou e diga “Mas que grande besta, esse cara!”.
simplesmente acertamos, ultimamente? Não seria a primeira vez.
Alguns dizem que escapamos por causa Mas em outros cantos o desastre foi
do consumo interno, graças à distribuição de feio pra burro. Existem lugares aí fora onde o
renda promovida por esse governo. Simplista, mundo caiu de verdade. Eu até achava que a
eu sei, mas é só pra resumir. Outros dizem que Islândia tinha sumido do mapa, mas pelo visto,
foi o Programa de Estímulo à Reestruturação e não. Sobrou pelo menos um vulcão, que fechou
ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacio- o espaço aéreo da Europa por uma semana. Se
nal (Proer), que saneou os bancos brasileiros, eu fosse o presidente da Comunidade Europeia,
explicação também simplista (não assino nem mandava benzer aquele lugar...
uma das duas visões, nem nada que tenha a ver Europeus e americanos não estão tão
com economia – vocês precisam ver as MINHAS acostumados à miséria como nós, me dizem.
contas). Provavelmente uma combinação de Por isso, gente no sinal lavando para-brisa em
ambas as ações. Paris, Londres, Madri e Los Angeles poderia
Sempre achei que os governos FHC e ensinar uma lição ao planeta. Bobagem. Paris
Lula fizeram algumas das tarefas essenciais nem está notando as favelas de migrantes cres-
pra esse país, só que em pontas diferentes cendo em sua periferia, a não ser pra votar leis
da sociedade. Pontas opostas, pra ser bem de exclusão e expulsão. O mesmo para essas
claro... mas fizeram. Bancos com carteiras outras cidades. Tenho muitas dúvidas sobre a
relativamente seguras, pouquíssimas hipote- capacidade de entendermos o desastre que
cas, empréstimos mais amarrados (já tentou isso significa e como evitar “más de lo mismo”.
arrancar um empréstimo de um banco se você Assim que a re-acomodação acabar, os novos
não tem carro ou casa? Fiu!), mais Bolsa- donos daquele dinheirinho de Banco Imobili-
família na mão de um bocado de gente, e ário assumirão os dados (já estão a fazer isso
outras formas de “assistencialismo populista e nesse exato instante) e o tabuleiro. E a espiral
eleitoreiro deslavado”, como diria a oposição. volta a rodar, sempre pra cima e além. Mas
Talvez tenha funcionado. O fato é que aqui nós não liguem pra mim, sou só um chargista. Um
passamos e ainda passamos pelas turbulências pessimista profissional...
da crise, mas indiscutivelmente menores...eu Aqui entre nós: Eta pessoalzinho burro,
acho. Pode ser que algum economista leia isso esses meninos ricos... não aprendem mesmo.

Julho 2010 49
Op i n i ã o Ib a s e

50 Democracia Viva Nº 45
caderno especial

Democracia
e governança financeira

Julho 2010 51
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

O déficit democrático
nas instituições
multilaterais
Fernando J. Cardim de Carvalho
Economista, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e um dos coordenadores do projeto
Liberalização financeira e governança global: o papel dos organismos internacionais

Por muito tempo, o funcionamento dos mercados financeiros foi considerado uma ati-

vidade de pouco interesse para as organizações da sociedade civil. Para muitas pessoas,

esses mercados apenas serviam para redistribuir renda entre os grupos de renda mais

alta da população. Alguns ricos ficavam mais ricos, outros, consequentemente, menos,

mas acreditava-se que a sociedade como um todo não tinha por que devotar atenção a

esse jogo. O que interessava era o que acontecia com a economia real, com os setores

produtivos, com o emprego, entre outros.

A crise econômica dos últimos três anos mostrou a validade de uma esquecida

lição de grandes pensadores do capitalismo: nada é mais real em uma economia capi-

talista do que o dinheiro, os lucros e como eles são apropriados. O funcionamento do

sistema financeiro não é indiferente para o restante da sociedade. Por um lado, porque

o principal canal pelo qual as instituições financeiras ganham dinheiro é pela oferta de

52 Democracia Viva Nº 45
O déficit democrático nas instituições multilaterais

crédito, em suas muitas formas. Quando esse ção, nem consumo em economias capitalistas.
crédito é ofertado para os que produzem e ad- O produto despenca, o desemprego cresce, e
quirem bens, ele pode contribuir para acelerar a população, especialmente aqueles grupos de
o crescimento econômico e para conceder à renda mais baixa que não têm onde se apoiar na
população acesso aos bens que deseja - espe- hora de necessidade, paga o preço do aumento
cialmente aqueles de mais alto valor, como bens dramático de pobreza. Isso tudo acontece apesar
de consumo durável, automóveis e residências. da capacidade “real” de produção continuar
Ao contrário, quando esse crédito é dirigido a fundamentalmente a mesma. As fábricas conti-
outras instituições e agentes financeiros, como nuam de pé, as máquinas continuam existindo
aconteceu nos últimos anos nas economias mais - mesmo se paradas -, os trabalhadores que
avançadas, o resultado é sempre a construção poderiam estar utilizando-as continuam vivos,
de castelos de cartas, fadados, cedo ou tarde, mas em suas casas ou perambulando pelas ruas
ao desmoronamento. em busca de oportunidades de emprego. Os
A segunda razão pela qual o funciona- pensadores mais conhecidos que analisaram as
mento do sistema financeiro não pode ser indi- economias capitalistas continuam tendo razão:
ferente para a sociedade é porque quando esses nada é mais real em uma economia assim do
mercados se tornam disfuncionais, novamente que o dinheiro e as finanças.
como aconteceu nos últimos anos, eles acabam A globalização financeira é um processo
entrando em crise. E crises financeiras contagiam pelo qual os mercados financeiros de todo o
rapidamente o resto da economia. Instituições mundo tendem a se unificar. No seu limite, dei-
financeiras cujo capital esteja ameaçado ou te- xam de existir os mercados financeiros nacionais
nha diminuído por causa de perdas não fazem e passa a existir apenas um grande mercado,
empréstimos. Sem empréstimos, não há produ- o mercado mundial, no qual compradores e

Julho 2010 53
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

vendedores de ativos financeiros fazem suas Mundial também impuseram muitos controles
transações, sem que sua nacionalidade ou re- de capitais e os mantiveram em operação até
sidência faça qualquer diferença. Esse processo recentemente, na década de 1980. Grandes
se dá por vários canais. potências emergentes como a China e a Índia
Por um lado, instituições financeiras os mantêm até hoje.
nacionais se tornam multinacionais: bancos Na América Latina, o canto da sereia (ou
americanos se instalam ou se expandem nos o conto do vigário) do neoliberalismo levou a
mercados latino-americanos, europeus e asi- maioria dos países a remover essa forma de
áticos. Bancos europeus e asiáticos fazem o proteção. Argentina, Brasil (de Collor a Lula),
mesmo. Até mesmo casas bancárias latino- Chile, México, todos compraram a propaganda
americanas perseguem o mesmo objetivo, como de que mercados financeiros são eficientes e
é o caso dos grandes bancos não precisam de controles. No Brasil, ainda há
privados brasileiros e, mais poucas semanas, o Banco Central continuava a
recentemente, até mesmo tomar medidas para liquidar os últimos resquí-
Um resultado o Banco do Brasil. Esses
bancos captam recursos nos
cios dos controles (que, a bem da verdade, já
não eram aplicados, pela falta de vontade das

da globalização lugares onde se instalam e


usam esses recursos para
autoridades, há muito tempo).
Um resultado da globalização financei-
comprar ativos na própria ra é a perda de influência de governos locais
financeira é economia para onde vieram sobre variáveis estratégicas, como a oferta
ou, quando as leis assim de crédito e seu custo. Se governos almejam
a perda de permitem, em outras. acelerar o crescimento econômico por meio
O segundo canal de da redução de juros, terão de enfrentar a
influência de globalização resulta da des- possibilidade de fuga de capitais. Uma fuga
montagem dos controles de de capitais se dá, precisamente, quando os
governos locais capitais. Durante a maior
parte do século XX, pratica-
detentores de capitais julgam que podem
conseguir melhores ganhos em outro lugar.
sobre variáveis mente todas as economias
impunham controles sobre
Fugas de capitais podem resultar não apenas
de tentativas de redução de juros, mas tam-

estratégicas, a circulação de capitais, seja


de estrangeiros que querem
bém porque os detentores de riqueza podem
não concordar com a orientação política de
vir fazer aplicações no país, um dado governo, ou de medidas específicas,
como a oferta seja de residentes desse como a criação de impostos sobre fortunas
país que querem fazer suas e outras iniciativas similares. Governos são
de crédito e aplicações no exterior. Esses intimidados pela operação de mercados finan-
controles variavam desde ceiros e a simples ameaça de crise pode reduzir
seu custo a proibição de fazer certas muito as ambições de mudança, especialmente
operações (como jogar em aquelas que impliquem redução de privilégios
bolsas de outros países) até que os agentes financeiros vejam como direitos
a criação de barreiras, como adquiridos (sempre auxiliados, naturalmente,
a taxação desses investimen- por grupos de economistas prontos a escrever
tos de modo a torná-los menos atrativos aos trabalhos destinados a mostrar como o aten-
agentes privados. dimento desses interesses é bom para todos
A razão pela qual se aplicavam esses e para o país).
controles era a de que moeda estrangeira Crises financeiras marcam o funciona-
é um insumo precioso, especialmente para mento de economias capitalistas há mais de
economias que dependam de bens e serviços dois séculos. Nada há de surpreendente na
importados, e, por isso, seu uso tinha de ser sua ocorrência (exceto para os que realmente
administrado pelo governo. Países em desen- compram a ideia de que esses mercados são
volvimento apelaram em maior ou menor grau eficientes), embora sua violência, às vezes,
para esses controles durante seu processo de como agora, possa escapar dos padrões co-
industrialização (no Brasil, por exemplo, esses nhecidos. Na verdade, quando da ocorrência
controles datavam da década de 1930). Os da última crise financeira com impacto com-
países europeus que tiveram de reconstruir parável (pior sob alguns ângulos, melhor sob
suas economias depois da Segunda Guerra outros), a da década de 1930, a percepção de

54 Democracia Viva Nº 45
O déficit democrático nas instituições multilaterais

que essas atividades podem mesmo se tornar cidade de intervenção e contenção de crises
armas de destruição em massa – como George de governos foram corroídas, portanto, tanto
Soros usou a expressão para se referir a deri- domesticamente quanto internacionalmente,
vativos –, levou os países mais avançados, sob ainda que não inteiramente destruídas.
a liderança dos Estados Unidos do presidente
Franklin Roosevelt, a criar um grande conjunto
Déficit democrático
de instrumentos de controle do funcionamento
de mercados financeiros capazes de evitar novas No entanto, já desde a década de 1970 alguns
crises catastróficas, ou pelo menos amenizar os sinais de perigo começaram a ser visíveis. Em
seus impactos. meados daquela década, a quebra de um ou
Na era pré-globalização financeira, que outro banco nos Estados Unidos e na Europa
durou até os anos 1970 e 1980, o aparato de começavam a indicar que a globalização estava
regulação financeira criado pôde ser manejado criando um tipo novo de risco, gerado fora das
com eficácia e crises financeiras de vulto não fronteiras de um país.
voltaram a ocorrer por cerca de cinquenta anos. O primeiro desses sustos foi dado quando
As instituições criadas pelo governo Roosevelt um banco alemão, relativamente pequeno -
foram copiadas e adaptadas pela maioria dos pouco relevante em si, mas bastante integrado
países do mundo, desenvolvidos e em desen- no mercado financeiro mundial -, faliu por
volvimento. A competência na definição das causa de uma descoordenação entre seus ne-
regras (que, estrito senso, é o que se chama de gócios nos mercados japonês e americano. O
regulação financeira) e na sua implementação banco Herstatt captava em um país e aplicava
(atividade chamada de supervisão financeira, em outro e quando teve de interromper suas
exercida em muitos países pelo Banco Central) atividades acabou criando problemas na Ásia
ajudou a criar mercados financeiros mais ou e nos Estados Unidos além, naturalmente, na
menos sólidos, capazes de apoiar a atividade Europa. O resultado mais importante desse e de
produtiva sem criar riscos excessivos para a outros episódios ocorridos à mesma época foi a
sociedade como um todo. percepção de que, tendo instituições financeiras
Um economista americano que a crise operando em vários mercados nacionais, cada
atual tornou célebre, Hyman Minsky, adver- país acabava se expondo ao risco de ter de en-
tiu, há décadas, que a segurança pode gerar frentar uma crise gerada fora da jurisdição de seu
a complacência. Nas palavras que usava, a governo. Naturalmente, se um choque é gerado
estabilidade pode se tornar desestabilizante, por uma instituição financeira operando fora das
porque a experiência da ausência de crises fronteiras nacionais, o Estado não tem como
leva muitos a acreditar que crises são coisa do intervir para exigir que instituições estrangeiras
passado, já não são mais ameaças e, por isso, se comportem da maneira como gostaria.
não é necessário que os cuidados e precauções Desse modo, enraizou-se a crença de
tomados no passado continuem sendo aplica- que era necessário definir instâncias interna-
dos. Foi isso exatamente que caracterizou o cionais de regulação e supervisão financeira
que se tornou conhecido como desregulação para garantir que instituições operando em
financeira, processo que foi acelerado na era mercados sobre os quais um dado país não
Reagan/Thatcher. tem controle não venham a criar dificuldades
Fundamentalmente, o processo consis- para esse país. Foi nesse contexto que nasceu o
tiu na desmontagem de restrições à atividade Comitê da Basiléia para a Supervisão Bancária,
dos agentes e instituições financeiros, sob o ou Comitê da Basiléia, como é conhecido. O
pressuposto de que os mercados sabiam o comitê serve para que supervisores financeiros
que é melhor e dispensavam a intervenção nacionais possam discutir métodos e padrões
do governo, que críticos liberais sempre de regulação e supervisão comuns, de modo
caracterizam como pesada, desengonçada a garantir que um nível mínimo de seguran-
e poluída pela corrupção, o que consideram ça seja alcançado por todos, evitando com
monopólio estatal. isso que membros de comportamento mais
Ao mesmo tempo que as instituições duvidoso possam causar crises e prejuízos a
nacionais de proteção eram desmontadas, outros países.
dando mais liberdade (e poder) a mercados A iniciativa em si não foi uma má ideia,
financeiros, a globalização projetava processo especialmente se há a crença de que a globali-
semelhante para a economia mundial. A capa- zação veio para ficar - já houve outros períodos

Julho 2010 55
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

de globalização no passado, mas que foram Por outro lado, esperava-se que as
interrompidos por grandes crises. Se mercados orientações do Comitê fossem seguidas por
se tornaram maiores que governos, o que se todos os países que não quisessem ser conside-
buscava era criar uma espécie de “governo rados como párias pelos mercados financeiros,
internacional”, pelo menos na esfera da regu- fortalecidas pela adesão de instituições como o
lação financeira. Se os reguladores nacionais se FMI e o Banco Mundial, que as transformaram
articulam para perseguir políticas semelhantes, em paradigma de modernidade. Assim, as
os agentes privados não terão para onde fugir orientações eram decididas por um grupo de
e não poderão, assim, corroer o poder de in- reguladores de dez países e sua aplicação era
tervenção dos Estados. garantida por outras instituições que, como se
O problema dessa iniciativa foi que ela sabe, são mais representativas, mas nas quais
envolveu apenas os países mais desenvolvidos as vozes dos diversos países são ouvidas de
e, mesmo assim, nem todos. O Comitê da modo extremamente desigual.
Basiléia reunia supervisores financeiros do O Comitê da Basiléia exclui, o FMI e o
G10 (teoricamente os supervisores das sete Banco Mundial controlam o tempo de microfone.
maiores economias do mundo, mas que po- Esse é o chamado déficit democrático caracterís-
dia ter um pouco mais ou um pouco menos tico das instituições financeiras multilaterais. De
que dez membros realmente). Não foi criado fato, apenas a ONU, a organização internacional
como uma instância oficial, mas como um que menos influência tem sobre essas matérias,
clube informal de reguladores, um espaço dá voz e voto igual a cada país. Nas outras, ou
de, digamos, socialização, que lhes permitisse a voz não existe e voto ainda menos, ou a voz
conversar sobre problemas regulatórios. A existe, mas o voto dos mais fracos é repartido
natureza informal da associação serviu como por um grande número de países.
instrumento de exclusão, deixando de fora os Foi exatamente para denunciar e pro-
pouco mais de 170 países que não compõem por alternativas de governança para essas
o G10. Dentre esses pouco mais de 170 países instituições que o Ibase iniciou em 2006 um
incluía-se todo o mundo em desenvolvimento, projeto, patrocinado pela Ford Foundation, em
além de países da periferia do grupo de países Nova York, intitulado Liberalização financeira
chamados de “avançados”. e governança global: o papel dos organismos
A exclusão era justificada por razões internacionais. Esse projeto, co-coordenado
de eficiência: com poucos membros, o Comitê por Jan Kregel e pelo autor deste artigo, reúne
poderia analisar e examinar em profundidade cerca de quinze participantes de quase todos
as alternativas mais eficientes de regulação e os continentes, acadêmicos e militantes de or-
propor métodos que incorporassem as téc- ganizações de sociedade civil. Da sua atividade
nicas mais avançadas de supervisão. Nesse já resultaram quatro seminários de debate,
comitê nasceram as estratégias de regulação com a presença de representantes de outras
financeira conhecidas como Acordo da Basi- organizações da sociedade civil, e um número
léia de 1988 e, mais recentemente, o Basiléia significativo de textos e outros materiais sobre
II, de 2004. Além de um grande número de o tema, todos disponíveis no site <www.de-
orientações sobre todos os aspectos da re- mocraciaefinancas.org.br>.
gulação financeira, vista, claro, do ponto de Dentre os trabalhos realizados no âm-
vista liberal que dominou ideologicamente bito do projeto, selecionamos três textos, que
essa discussão nas últimas duas décadas, até ocupam as páginas seguintes. Cada um explora
a eclosão da crise. um ângulo particular e apresenta as conclusões
O argumento da superior eficiência per- a que chega cada autor individualmente. A
mitida pela exclusão de todos os países que não diversidade das posições apresentadas reflete a
fossem os mais ricos desmoronou rapidamente riqueza dos debates e do material acumulado
quando a crise começou. Na verdade, instâncias pelo projeto, podendo servir de instrumentos
de decisão como o Comitê da Basiléia apenas de capacitação de movimentos ou mesmo de
veicularam a mesma ideologia liberal que levou indivíduos que, percebendo a essencialidade
à desregulação e ao desmonte de controles assumida por mercados financeiros nas eco-
de capital que estão na raíz da crise que já se nomias modernas, se decida a participar dos
prolonga há três anos, e que se traduz, entre debates e pressionar por uma governança mais
outros, pelos 10% de desempregados da eco- democrática das instituições responsáveis pela
nomia norte-americana. ação regulatória.

56 Democracia Viva Nº 45
Finanças internacionais. É hora de radicalizar

Finanças internacionais
É hora de radicalizar
Bruno Jetin1
Economista do Centre d'Economie, Université de Paris Nord, França

Em 1998, durante a crise financeira no Leste Asiático, Paul Krugman publicou um famoso

artigo expressando a consternação dos que creem em uma economia de livre mercado:

“Salvando a Ásia: É hora de radicalizar”2.

Dez anos depois, uma nova crise financeira entrou em erupção, desta vez, no centro

do capitalismo, os Estados Unidos. De acordo com o The Economist, agora “o capitalismo

está acuado”.3 Uma janela de oportunidade se abriu novamente para os que apoiam a

reconstrução de uma nova ordem financeira. Os altermundialistas devem aproveitar o

momento para expor seus argumentos em favor de um sistema financeiro e monetário

radicalmente novo e centrado nas necessidades das pessoas.

Financiar uma economia capaz de fornecer empregos dignos, educação, saúde e 1Como membro do comitê
científico da Attac França, me
beneficiei de seus debates
habitação, respeitando a natureza e as culturas, deve ser a “raison d'etre” de um novo internos. No entanto, sou
o único responsável pelas
opiniões expressas neste
documento.
sistema financeiro, baseado na maior descentralização possível, pois é assim que o con-
2 Paul Krugman, “Saving
Asia: It’s time to get radical”,
trole democrático dos cidadãos pode ser melhor exercido. Fortune, Nova York, 7 de
setembro de 1998.

3 "The Economist", 18 a 24
[Traduzido por Mariana Dias] de outubro de 2008.

Julho 2010 57
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

Em âmbito nacional, o Banco Central Se concordarmos com esses objetivos e


e as autoridades financeiras e monetárias de- princípios, podemos imaginar um novo sistema
vem ser submetidos à autoridade política de financeiro, com as seguintes características.
parlamentos e governos. Representantes dos
sindicatos dos setores bancário e financeiro,
Âmbito nacional: um sistema
juntamente com representantes de organiza-
baseado em bancos públicos
ções da sociedade civil (OSCs), devem tornar-se
membros de conselhos executivos de bancos e O financiamento da economia deve se basear
do Banco Central. A total transparência seria em bancos e não em mercados financeiros. Os
baseada no princípio do livre acesso à contabili- mercados financeiros não estão preocupados
dade, possibilitando o controle democrático. em financiar investimentos produtivos – ainda
A cooperação internacional financeira e mais se esses projetos forem investimentos de
monetária entre países deve seguir os mesmos longo prazo com lucros incertos. Tampouco
princípios. Essa cooperação pode ser construída estão interessados em financiar investimentos
com o princípio da proximidade, para facilitar voltados para as necessidades das pessoas, a
o controle democrático – até porque pessoas não ser que sejam altamente rentáveis a curto
pertencentes a uma mesma área geográfica prazo, o que nunca acontece. E quando os
tendem a ter mais interesses em comum que po- mercados financeiros financiam ondas de ino-
dem ser satisfeitos por meio de cooperação. vações e ciclos de crescimento, isso se dá a um
O princípio da subsidiariedade significa custo muito alto.
que a cooperação internacional e as instituições A especulação infla bolhas seguidas por
que a tornam possível devem ser estabelecidas, estouros que desestabilizam as economias. A
primeiramente, em âmbito regional. Uma are- lição é clara: a maior parte do financiamen-
na democrática regional deve ser criada para to deve vir de bancos e não dos mercados
possibilitar o debate público sobre o que deve de ações. E mais: bancos podem ser mais
ser financiado e sobre como gerir democratica- facilmente controlados e organizados para
mente as instituições financeiras e monetárias financiar produção e serviços socialmente
regionais. Duas novas instituições regionais necessários do que mercados financeiros, cujo
seriam criadas: um banco de desenvolvimento grande número de investidores anônimos pode
para financiar a economia solidária, e uma fugir do controle e investir em qualquer coisa
instituição monetária, para administrar a co- que seja rentável, ainda que seja totalmente
operação monetária, e, possivelmente, uma inútil e poluente.
moeda regional. Como normalmente não existe Nacionalizar todo o setor bancário é a
parlamento regional4, os parlamentos nacionais única maneira de garantir que bancos retomem
dos países-membros exerceriam controle direto sua função básica: fornecer crédito à economia.
sobre essas instituições, juntamente com repre- Há muita confusão sobre a re-regulação do
sentantes de sindicatos e OSCs. setor bancário e financeiro hoje. Muitos dos
No âmbito mundial, duas novas institui- que antes culpavam o excesso de regulação,
ções financeiras, completamente democratiza- hoje estão pedindo uma regulação sensata e
das, seriam criadas sob a autoridade das Nações ética. Mas a ética desaparece assim que uma
Unidas. Um novo “banco de desenvolvimento nova bolha começa a crescer. A única maneira
mundial” e uma nova “instituição monetária de garantir que a regulação será respeitada é
mundial” poderiam substituir o Banco Mundial com o controle de todo o setor bancário, por
e o FMI. Se novas instituições mundiais deveriam meio de uma nacionalização completa.
ser criadas do zero ou se seriam o produto final A nacionalização do setor bancário não
de uma profunda reforma é uma questão em deve, porém, reproduzir os erros do passado.
aberto. Essas novas instituições seriam para a A governança democrática do setor bancário
resolução de problemas que não podem ser público deveria ser garantida pela eleição de
solucionados regionalmente, seja porque são conselhos executivos dos bancos, com membros
globais, ou porque as instituições regionais não do parlamento, representantes de sindicatos do
possuem recursos suficientes para resolvê-los. setor bancário e de OSCs dos setores popula-
Esse é o caso da África, onde a maioria dos pa- res que utilizam serviços bancários: pequenos
íses é tão pobre que a mutualização de seus re- produtores agrícolas e pequenas empresas,
cursos fiscais não seria suficiente para financiar trabalhadores autônomos e cooperativas e
4 Com exceção do Parlamento
Europeu. os investimentos necessários nas áreas sociais. clientes comuns.

58 Democracia Viva Nº 45
Finanças internacionais. É hora de radicalizar

Por que precisamos de mercados financeiros?

Não há nada que bancos não possam financiar. A história mostra que muitas inovações foram financiadas
por bancos. E bancos de investimentos especializados podem perfeitamente investir em novos serviços
e bens intangíveis se os riscos forem claramente assumidos.
Mais precisamente, a história mostra que países em desenvolvimento bem-sucedidos, como o Brasil
ou Coreia do Sul, para citar apenas dois exemplos, contam amplamente com bancos públicos para
financiar sua industrialização. Na Coreia do Sul, todo o setor bancário esteve, por vezes, sob controle
estatal. Vários países desenvolvidos, como a França, tinham até a década de 1990, e ainda têm, pode-
rosos bancos estatais que financiam capital e diversos setores de tecnologia, como a energia nuclear,
telecomunicações e indústrias de trens de alta velocidade, juntamente com o financiamento de habitação
social. Não há nenhum argumento definitivo em favor da superioridade dos mercados financeiros, mesmo
em fases posteriores de desenvolvimento. Economias, mesmo as capitalistas, podem perfeitamente viver
sem mercados financeiros.
Se os mercados financeiros fossem fechados, empresas privadas seriam completamente financiadas
por crédito e os gastos públicos seriam financiados por impostos progressivos e corporativos. A lógica é
que é socialmente mais justificável que o Estado seja financiado por impostos e não pela dívida pública.
Caixas de poupanças públicas recolheriam mais dinheiro para financiar gastos públicos, em troca de
uma taxa fixa de juros.
Se o mercado financeiro precisasse ser mantido, no caso de as receitas fiscais e poupanças não serem
suficientes para o total de gastos públicos, seria estritamente regulado. Derivativos5 de todos os tipos se-
riam proibidos e impostos sobre as transações garantiriam que investidores focassem no longo prazo.
Essas propostas podem parecer distantes da realidade, mas até pouco tempo atrás, a nacionalização
do sistema bancário também parecia. Os pacotes de resgate nos EUA e Europa - que de certa forma
“nacionalizaram” bancos privados - trouxeram o tema de volta às manchetes. Esses pacotes de resgate
provam que nacionalizar grandes bancos não é apenas possível: é também desejável.

Esses representantes da sociedade civil ser responsável por essas três metas – e não
garantiriam que os bancos não participassem de apenas pela inflação.
atividades especulativas ou outras aventuras dos • O Banco Central não deve ser independente.
chamados “produtos financeiros inovadores”. O papel e o poder do Banco Central são
Eles também garantiriam que empréstimos grandes demais para serem deixados nas
fossem oferecidos prioritariamente a projetos mãos de auto-proclamados “gestores in-
sociais e ecológicos, debatidos e incluídos em dependentes”, à margem de qualquer tipo
um planejamento democrático. de controle democrático.
Essa governança democrática do novo • A regulamentação dos bancos de desenvol-
sistema bancário nacionalizado seria complemen- vimento também deve ser revista, de modo a 5 Derivativo é um contrato no
qual se definem pagamentos
tada por outras medidas de democratização do incluir todos os aspectos do desenvolvimen- futuros baseados no
comportamento dos preços
Banco Central e outras autoridades públicas. to social: redução da pobreza e desigualda- de um ativo de mercado
• Audiências com o presidente do Banco de de renda, redução da desigualdade de (chamados commodities).
Pode-se dizer que derivativo é
Central no parlamento para que sua política gênero, da discriminação contra pessoas um contrato cujo valor deriva
de um outro ativo.
seja explicada e suas decisões justificadas. com deficiência, da desigualdade étnica,
Isso já existe em alguns países, como nos das desigualdades regionais e proteção do 6 Pleno emprego e
crescimento sustentável
EUA e na União Europeia. Representantes meio ambiente. não são contraditórios, mas
objetivos complementares.
de sindicatos e OSCs também poderiam Pleno emprego não
questionar a política do Banco Central. implica maior quantidade
Instituições e governança possível de produção com
• Audiências públicas com gerências de outros ônus ao meio ambiente.
financeira regionais Reduzir horas de trabalho
bancos públicos, especialmente com bancos por indivíduo permitiria
de desenvolvimento, devem ser organizadas A integração regional pode oferecer uma alter- compartilhar trabalho entre
todos os trabalhadores, sem
no parlamento com mecanismos que per- nativa à globalização neoliberal em comércio, necessariamente aumentar
demais a taxa de crescimento
mitam membros do parlamento e represen- investimentos, finanças, políticas monetária e do PIB e da destruição da
tantes do movimento social interrogá-los. cambial. Mas a integração regional não é pro- natureza, como acontece
na China. Nos países ricos,
• A regulamentação do Banco Central deve gressiva por si só. Um regionalismo com foco nas a taxa de crescimento zero
ou mesmo a diminuição do
incluir o pleno emprego e crescimento pessoas estabeleceria duas novas instituições: um PIB devem ser discutidas. A
sustentável6 como metas oficiais, além do novo tipo de banco de desenvolvimento regional produção de bens e serviços
é suficiente, mas distribuída
controle da inflação. O Banco Central deve e um novo fundo monetário regional. desigualmente.

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O mundo Um “Banco do Sul” interior do G-20. Do lado das OSCs, esse debate
latino-americano poderia ser- é obscurecido pela posição a ser adotada vis-à-
precisa de vir de modelo para a criação vis as instituições financeiras internacionais8 já
de outros na Ásia e África. existentes: devemos fechá-las ou reformá-las?
multilateralismo Um “Fundo Monetário do
Sul”, regional e totalmen-
Fechá-las abre o caminho para a constru-
ção de uma nova arquitetura financeira mundial,

para resolver te independente, poderia


ser financiado por reservas
com governabilidade democrática e um novo
mandato. Mas todo mundo sabe como isso é

problemas cambiais, swaps multilaterais


entre os países-membros e
difícil. Reformar as instituições existentes a partir
de dentro, para democratizá-las, mudar seus obje-
parte dos impostos sobre tivos e sua organização verticalizada pode parecer
globais, chegar transações financeiras regio- mais factível: é, na verdade, tão difícil quanto
nais. Um dos seus objetivos fechá-las, pois essas instituições são fortemente
a acordos seria administrar a criação controladas pelos países desenvolvidos, que não
de uma moeda regional, aceitarão ceder o poder sem discussão.
e organizar reduzindo a dependência em A origem da última crise financeira não
relação ao dólar americano. é financeira, mas social. Em muitos países de-
solidariedade senvolvidos e em desenvolvimento, os salários
estagnaram ou caíram, enquanto os lucros dis-
Novas instituições
pararam, com uma pequena parte deles sendo
financeiras globais
transformado em investimentos. Por essa razão,
Quatro medidas básicas po- a solução para a crise financeira não pode ser
deriam ser tomadas para puramente financeira. Melhorar a situação de
democratizar o FMI e o Banco trabalhadores e desempregados, reduzindo a
Mundial7: reforma do sistema de voto; reforma pobreza, é a melhor maneira de resolver a crise.
do processo de escolha do diretor geral; reforma É necessário um pacote de resgate social.
da formação de conselhos tomadores de decisão; As seguintes medidas sociais poderiam
e a mudança do local das Instituições Financeiras ser adotadas.
Internacionais (IFIs) para os países em desenvol- • Redistribuição de riqueza a favor de traba-
vimento, o que reforçaria o multilateralismo. lhadores. Particularmente importante em
O mundo precisa de multilateralismo países como o Brasil, onde as diferenças
7 Woods, Ngaire 2008. para resolver problemas globais, chegar a acor- sociais são extremas, mas também em países
8 FMI, Banco Mundial, OMC dos e organizar solidariedade. Há um debate ricos, onde a desigualdade de renda cresceu
e o Banco de Compensações
Internacionais (BIS). em curso sobre a reforma das IFIs, inclusive no nas últimas décadas.

60 Democracia Viva Nº 45
Finanças internacionais. É hora de radicalizar

• Os credores precisam manter uma exposição


clara dos empréstimos que fazem e assumir
pelo menos parte do risco.
• Securitização deve ser, na maioria dos ca-
sos, proibida. Fundos de hedge10 devem ser
abolidos.
• As agências de rating devem perder seu pa-
pel no quadro da regulação e uma agência
estatal deve ser criada.
• Empréstimos sobre hipotecas devem ser
abolidos, pois levam ao “sobre-endivida-
• Promoção do trabalho digno por meio da mento” das famílias.
redução de todas as formas de flexibilização Finalmente, para evitar a próxima crise, é
das normas trabalhistas, levando à diminui- necessário se livrar da dominância das finanças
ção da precarização dos direitos sociais e sobre a economia real. 9 É devidamente reconhecido
que algumas dessas propostas
da pobreza. • Tributação adequada dos acionistas para coincidem com as propostas
feitas em outros lugares,
• O aumento dos déficits orçamentários e das que não tenham incentivos para aumentar especialmente pela Attac-
dívidas públicas deve ser pago com aumento a exploração dos trabalhadores11. Europa. Ver “The time is
ripe: Democratic control over
dos impostos sobre a renda das famílias • Tributações de todos os tipos de transfe- financial markets!”. Attac
Europe: Berlin, 2008.
mais ricas e sobre o lucro das empresas. rências de capital, incluindo operações em
10 São fundos comuns de
Assim como pela tributação de todos os moeda, a fim de reduzir a hipertrofia do recursos privados que investem
lucros não investidos das empresas, o que setor financeiro e reduzir a velocidade da em instrumentos negociáveis
(títulos e derivativos),
aumentaria a receita fiscal do Estado para lógica do curto prazo (Attac 2008). que podem empregar
alavancagem por vários
financiar o pacote de resgate social ou leva- • Um fundo especial para crises deve ser meios, inclusive por posições
ria ao aumento da produção e, em seguida, criado a fim de amortecer as consequências a descoberto, e, geralmente,
não são regulamentados
do número de empregos. da crise na economia real. Seria alimentado (ver Crise financeira e déficit
democrático. Ibase, 2009,
Algumas outras propostas para a ques- por meio de um desconto extra de impostos p. 16. Disponível em
tão financeira9. sobre os rendimentos de capital acima de <www.democraciaefinancas.
org.br )>.
• Definição dos limites de alavancagem e 50 mil euros e um imposto de 1% extra em
11 Frederic Lordon, um
ampliação de sua abrangência para todo todos os lucros das empresas (Attac 2008). economista francês, propôs
Isso evitaria a socialização das perdas do um dispositivo especial de
tipo de fundos de investimentos, limitando tributação de acionistas
riscos e especulações. setor financeiro. O princípio “quem polui que ele chama de “Margem
limitada autorizada de
• Extensão da regulação bancária e da regu- paga” seria aplicado a todos os atores do acionista“ (SLAM). Para
setor financeiro. mais detalhes, veja: <www.
lação prudencial a todas as instituições que mondediplomatique.
fazem empréstimos. • Proibição de paraísos fiscais. fr/2007/02/LORDON/14458>.

• Os bancos centrais não devem refinanciar Apresentei aqui um breve sumário de 12 Para análises mais
compreensivas, veja: Jetin,
bancos indiscriminadamente, com as mesmas alguns princípios e medidas que podem ser Bruno. “Reconstruindo as
taxas de juros para todos os bancos comerciais considerados quando pensamos em um siste- finanças internacionais: É
hora de radicalizar“. Ibase,
e de investimentos, pois valida, a posteriori, ma financeiro e monetário radicalmente novo, Rio de Janeiro, 2008 (versão
integral). Jetin, Bruno."The
suas atividades especulativas e cria um risco democrático e centrado nas necessidades das Basel II accord and the
moral. Os bancos centrais devem refinanciar pessoas. Uma apresentação mais detalhada development of market-based
finance in Asia." Ibase, Rio de
bancos caso a caso, alocando montantes pré- pode ser encontrada em meus escritos ante- Janeiro, 2007a. Jetin, Bruno.
"The Basel II accord and the
definidos que, ultrapassados, implicariam em riores produzidos para a iniciativa Liberalização development of market-based
refinanciamentos com taxas de juros maiores. financeira e governança global: o papel das finance in Asia." 2007b.
Disponíveis em <www.
Isso ajudaria a evitar bolhas. entidades internacionais.12 democraciaefinancas.org.br>.

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Finanças a serviço das


pessoas ou tornar o
cassino mais seguro
para os jogadores?1
Peter Wahl
Diretor da organização Weed (Economia Mundial, Ecologia e Desenvolvimento) sediada em Berlim,
fundador e membro da direção nacional da rede Attac Alemanha.

Esta é a mais séria crise financeira internacional desde a Segunda Guerra Mundial. O

foco da crise foi o centro do próprio sistema mais avançado e sofisticado do mundo. É

uma crise do tipo “salame”: seu conteúdo aparece fatia por fatia e seu final ainda não

se divisa no horizonte. Os EUA entraram em recessão e haverá uma redução clara do

crescimento global. Muitos países em desenvolvimento serão indiretamente atingidos

pela recessão nos EUA e pela diminuição da demanda e do crescimento global. Os países

mais pobres são afetados duplamente pela crise dos mercados financeiros e dos preços

dos alimentos.

1 Este artigo foi escrito


antes da crise do euro que
atingiu a Grécia e ameaça se
espalhar por outros países do
continente europeu. [Traduzido por Jones de Freitas]

62 Democracia Viva Nº 45
Finanças a serviço das pessoas ou tornar o cassino mais seguro para os jogadores?

Sob a pressão da crise, mesmo as corren- O volume, escopo e variedade dos


tes dominantes da comunidade financeira defen- negócios financeiros cresceram rapidamente.
dem algumas mudanças. O FMI, o Comitê de Por meio de arbitragens e especulação com
Estabilidade Financeira (FSB – Financial Stability moedas, títulos, diferenciais de taxas de juros
Board) e outros buscam caminhos para a estabi- etc., surgiram novas fontes de renda, que pro-
lidade sistêmica. Centenas de propostas, algumas duziam lucros maiores do que investimentos
muito controversas, estão sendo apresentadas na economia real.
e seus escopos e direções dependerão dos inte- Nesse sistema, que Keynes chamou de
resses que as moldarem. Os banqueiros pedem cassino, a busca do lucro máximo no menor
intervenção do Estado porque os mercados tempo possível torna-se cada vez mais a razão
falharam, mas o que visam é a socialização dos básica da atividade econômica. Outras metas,
prejuízos e a manutenção dos lucros em mãos como a competitividade a longo prazo, a inova-
privadas. Quando os gerentes de fundos pedem ção tecnológica e a geração de emprego ficam
estabilidade financeira, referem-se à estabilidade para trás. Como resultado, há um baixo inves-
de seus rendimentos e de seus bônus. timento estrutural na economia real, com suas
O papel da sociedade civil é não aceitar deletérias consequências para o crescimento,
esses termos para o debate. O fracasso do trabalho e bem-estar social.
modelo dominante nunca foi tão óbvio. Desa-
creditado, abre-se uma oportunidade histórica
para mudanças substanciais.

O que está em jogo?


A estabilidade sistêmica é uma questão im-
portante e a sociedade civil enfrenta o desafio
de apresentar propostas e avaliar criticamente
as propostas governamentais e privadas. En-
tretanto, elas precisam ser sistêmicas e não
tratar somente de elementos superficiais da
atual crise. Esta não resulta de circunstâncias
infelizes, nem pode ser reduzida a um fracasso
da supervisão das agências de classificação de
risco ou ao mau comportamento de bancos e
fundos de hedge.2 A crise tem raízes sistêmicas
A financeirização aumentando a
e, portanto, a estrutura e os mecanismos do
desigualdade
sistema estão em jogo. Nas finanças, o crescimento da renda e dos
Além dos riscos que afetam a estabilida- ativos é extraordinariamente dinâmico e tanto
de do atual sistema financeiro, outros aspectos maior quanto maior for a renda dos aplicadores.
devem ser colocados na pauta, como o domí- O “bolo” cresce e a fatia dos mais poderosos e
nio dos mercados financeiros sobre a economia ricos fica maior. Ao mesmo tempo, os salários
real e seus efeitos sobre a distribuição de renda reais estagnaram ou declinaram na maioria
e riqueza e a igualdade social. dos países.
A introdução do câmbio flutuante, o As políticas fiscais conservadoras tam-
fim dos controles de capitais e a liberalização bém têm contribuído para a concentração de
e desregulamentação dos mercados financei- renda. Com o objetivo de aumentar a atrativida-
ros levaram ao estabelecimento de um novo de de um país, os investidores e especuladores
modelo econômico, chamado por alguns de recebem vantagens fiscais e outros privilégios. 2 São fundos comuns de
capitalismo financeiro. Foi uma virada históri- Os mercados financeiros utilizam sua influência recursos privados que investem
em instrumentos negociáveis
ca, pois enquanto nas três primeiras décadas para diminuir os impostos diretos e aumen- (títulos e derivativos),
que podem empregar
que se seguiram à Segunda Guerra Mundial tar os indiretos (impostos sobre o consumo, alavancagem por vários
os mercados financeiros cumpriam um papel imposto sobre o valor agregado etc.), penali- meios, inclusive por posições
a descoberto, e, geralmente,
subordinado e instrumental em relação à eco- zando os mais pobres. Além disso, a dinâmica não são regulamentados
(ver Crise financeira e déficit
nomia real, após os anos 1980, as finanças dos mercados financeiros produz uma pressão democrático. Ibase, 2009,
passaram a ser o centro dominante das eco- permanente pela privatização dos sistemas de p. 16. Disponível em
<www.democraciaefinancas.
nomias avançadas. seguridade social e dos serviços públicos, o que org.br )>.

Julho 2010 63
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

não somente cria uma tendência para que esses é papel da sociedade civil pensar unicamente
sistemas se tornem voláteis e instáveis, como em termos pragmáticos. É preciso ir além. A
também aprofunda a desigualdade social. própria apresentação de alternativas é uma
Os países em desenvolvimento e os gru- força política produtiva. A atual crise abre uma
pos sociais mais vulneráveis são especialmente oportunidade para a sociedade civil apresentar
atingidos. Estima-se que, no mundo em de- perspectivas de mudança amplas, profundas
senvolvimento, as perdas causadas pelas crises e de longo prazo.
dos últimos 25 anos alcancem um quarto do Ao mesmo tempo, é necessário desen-
Produto Nacional Bruto (PNB). Porém, mesmo volver propostas de acordo com estratégias de
quando não existe uma crise à vista e os merca- ação. É preciso estabelecer metas que possam
dos financeiros funcionam de forma adequada, ser atingidas no curto prazo, mas que tam-
a volatilidade dos mercados representa uma bém preparem o terreno para uma mudança
tensão econômica permanente e custos para os no equilíbrio de poder e para reformas de
países em desenvolvimento. As flutuações das maior alcance.
taxas de câmbio são responsáveis pela constante
volatilidade das receitas de comércio exterior e
Crise e estabilização de curto prazo
de serviço da dívida.
Necessitamos de mu- O FMI, o Comitê de Estabilidade Financeira e
danças substanciais de pa- alguns governos e bancos centrais adotaram
radigma: a meta não pode medidas como injeções de liquidez, exigências
A transparência ser tornar o cassino mais de transparência, aumento dos investimentos
seguro para os jogadores, e públicos e até mesmo a nacionalização como
é uma sim colocar as finanças a ser-
viço de uma economia que
forma de gestão da crise. Mas essas medidas
não enfrentam suas causas fundamentais.

precondição priorize a equidade social,


a estabilidade econômica e
Tanto por razões de justiça como para man-
ter a disciplina no mercado, aqueles que se

para qualquer o desenvolvimento humano


sustentável sobre a maximi-
beneficiaram do sistema no passado precisam
pagar a conta. Assim, o princípio de que o
zação dos lucros. especulador paga deve ser observado em
supervisão e termos estritos.
Cada país afetado pela crise deve criar
regulamentação Nova arquitetura
financeira
um fundo de emergência especial para prover
liquidez se o funcionamento do sistema estiver
eficientes A complexidade do atual em perigo; amortecer as consequências sobre
sistema financeiro exige a a economia real; e prover um fundo de emer-
articulação de vários ins- gência para os países pobres.
trumentos para a resolução A transparência é uma precondição
dos problemas, sendo, além para qualquer supervisão e regulamentação
disso, necessário diferenciar as medidas de curto, eficientes. Portanto países que se recusam a
médio e longo prazos e suas diferentes abran- suspender o sigilo bancário quando solicitados
gências e metas. Classificamos essas medidas pela instituição supervisora de outro país devem
em quatro níveis: medidas de gestão de crise e ser pressionados por tarifas extras e até por
de estabilização de curto prazo; soluções para embargo, se necessário. Operações financeiras
problemas de estabilidade de médio e longo não contabilizadas no balanço das instituições
prazos; superação da dinâmica da desigualdade financeiras tiveram um papel importante na
no sistema financeiro; e rompimento do domínio crise e devem ser imediatamente proibidas. Os
das finanças sobre a economia real. padrões contábeis devem ser reformulados,
Algumas das propostas serão mais fá- criando-se um sistema internacional que acabe
ceis de serem implementadas, pois convergem com as brechas legais.
para os interesses da comunidade financeira Todos os países devem ser autorizados
e/ou das pessoas que tomam as decisões e estimulados a usar controles de capitais para
políticas. Outras medidas só poderão ser im- evitar o contágio da crise. Exigências de capital
plementadas caso haja um deslocamento con- e práticas prudenciais no setor bancário devem
siderável do equilíbrio de poderes na direção ser reformuladas. Os requisitos de capital para
do desenvolvimento humano. No entanto, não os bancos e a divulgação da sua exposição

64 Democracia Viva Nº 45
Finanças a serviço das pessoas ou tornar o cassino mais seguro para os jogadores?

ao risco precisam ser melhorados. É também As taxas de câmbio flutuantes estão na


essencial separar os serviços bancários de inves- origem de muitos dos problemas do sistema
timentos dos demais serviços financeiros. Além financeiro. Elas produzem riscos e, portanto,
dessas, outras medidas devem ser tomadas tais acarretam custos para o comércio e abrem
como o fortalecimento da supervisão e impedir caminho para especulação e levam a um siste-
que fundos de hedge e outras instituições alta- ma volátil e instável. Assim, primeiro devemos
mente alavancadas especulem com alimentos considerar a estabilização das taxas de câmbio
e matérias-primas. e, a longo prazo, sua substituição por taxas fixas
Para combater a queda no crescimento ou a fusão de moedas, com o estabelecimento
e no emprego devem ser implementados pro- de moedas regionais como o euro.
gramas de investimentos públicos em infraes- Os problemas de administração do
trutura social e meio ambiente. Eles podem câmbio podem ser solucionados pela adoção
ser financiados de acordo com o princípio de de um imposto sobre transações cambiais em
que o especulador paga, isto é, taxando-se os dois níveis, vinculado a uma banda cambial
ganhos dos especuladores e das instituições variável. Enquanto a taxa de câmbio real ficar
financeiras. dentro da banda, o imposto será baixo. Tão
logo os limites sejam ultrapassados, uma se-
gunda alíquota de imposto, de valor proibitivo,
Estabilidade de médio e longo prazos
entra em vigor, trazendo a taxa de câmbio de
A cooperação política deve ser o principal volta à banda.
modo de regulação no lugar da “autocorreção Enquanto houver certos riscos globais
das forças do mercado”. É preciso estabelecer na economia real (como a volatilidade das
o controle democrático, assim como a coope- taxas de câmbio), os derivativos podem cum-
ração entre economias nacionais. No processo prir um papel positivo se servirem de seguro
de tomada de decisões econômicas, devem ser contra riscos. Com esse objetivo, devem ser
priorizados o desenvolvimento sustentável e os negociados nas bolsas de valores, padroniza-
direitos humanos. dos e autorizados pela autoridade supervisora.
Precisamos chegar a um acordo sobre Entretanto, as operações de balcão devem ser
um novo Bretton Woods, desenvolvendo um banidas. Nenhum ator sujeito à supervisão deve
marco institucional adequado, no âmbito da ter permissão para emitir e negociar produtos
ONU, e adaptado ao mundo de hoje. Um ele- fora desse marco.
mento importante de um novo acordo seria a Os fundos de hedge não trazem nenhum
descentralização e a subsidiariedade, ou seja, beneficio para a economia e precisam ficar sob
o FMI, o Banco Mundial e a OMC deveriam ser supervisão, sendo submetidos às mesmas exi-
complementados por fortes fundos regionais, gências de capital e outros requisitos a que os
bancos de desenvolvimento e acordos comer- bancos. Assim, a sua alavancagem será reduzida
ciais regionais. Os mandatos dessas instituições a um limite sustentável. A supervisão deve ser
devem ser redefinidos, passando a ser suas aplicada de acordo com os países onde operam,
prioridades máximas a redução da pobreza, a e não onde estão sediados legalmente – em
igualdade global e o bem-estar geral. geral, um centro extraterritorial (offshore).3 É
O Banco Mundial e o FMI devem ainda necessário impedir que bancos façam
ser democratizados por meio de sistemas negócios com os fundos de hedge.
de votação equilibrados. A sua governança A maior parte dos países emergentes se
deve estar baseada no interesse de todos desvinculou do FMI, pois puderam pagar suas
que são afetados por sua ação, incluindo dívidas com o Fundo. No entanto, para o grupo
a sociedade civil, consumidores, sindicatos, de países pobres altamente endividados (HIPCs,
indígenas etc. O BM, o FMI e a OMC devem na sigla em inglês) a crise da dívida não chegou
ficar sob o controle da ONU. Como inicial- ao fim. Um regime de dívida sustentável para
mente planejado, o Conselho Econômico e os países em desenvolvimento incluiria o can-
Social da ONU (Ecosoc, na sigla em inglês) celamento imediato e incondicional das dívidas
precisa ter o mesmo status que o Conselho externas insustentáveis dos HIPCs. 3 Provavelmente, isso será o
fim dos fundos de hedge, pois
de Segurança, mas sem o direito de veto das Deve-se estabelecer um regime de insol- todo o seu modelo de negócio
está baseado em escapar
grandes potências. A supervisão nacional e vência para devedores soberanos e novos países de regras e supervisão. Se
a cooperação internacional entre os órgãos credores, como a China e a Índia, devem ser in- forem tratados como bancos,
perderão sua vantagem
regulatórios devem ser fortalecidas. cluídos num regime de dívida multilateral. Este competitiva e interesse.

Julho 2010 65
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

regime não deve mais ser determinado de forma A regulação dos fundos “private equity”,
unilateral pelos credores e seus interesses. se feita de forma adequada, dirigindo-os para o
Os paraísos fiscais e centros bancários financiamento de investimentos, pode aumen-
extraterritoriais (offshore) são um risco à esta- tar a eficiência da economia real e ser fonte de
bilidade: servem somente a indivíduos ricos e capital. As exigências de capital precisam ser
especuladores institucionais que desejam escon- aumentadas e a alavancagem limitada a um
der seus ativos das autoridades fiscais, máfia, nível sustentável. São necessárias reformas na
terroristas, traficantes de armas e outras forças governança corporativa e os sindicatos, consu-
criminosas que desejam lavar dinheiro. Por isso, midores e outras partes interessadas devem ter
a atual função econômica desses centros deve participação obrigatória nas decisões.
ser totalmente interrompida. Deve haver limites regulatórios para o en-
dividamento das famílias. Moradia para as cama-
das sociais com o menor poder de compra assim
Enfrentar a concentração de renda
como o acesso à propriedade residencial devem
A tributação progressiva da renda do capital é ser parte dos programas sociais governamentais.
um instrumento fundamental para a supera- Para que haja uma mudança real, a
ção da dinâmica da desigualdade no sistema orientação básica é ter como objetivo romper
financeiro. Enquanto os lucros com transações o domínio dos mercados financeiros sobre a
financeiras e as recompensas para banqueiros economia real. Muitas das medidas acima men-
e altos executivos forem muito maiores do cionadas contribuiriam para uma reorientação
que na economia real, haverá incentivo para das atividades econômicas como, por exemplo,
a especulação e riscos excessivos. Assim, os o imposto sobre transações com moedas, con-
incentivos para lucros excessivos (não lucros troles de capitais, regulamentação de taxas de
per se) precisam ser eliminados, tanto no caso câmbio, imposto de renda progressivo etc.
de indivíduos quanto de instituições. Para fechar as muitas brechas legais
A privatização dos sistemas sociais e que ainda permanecem, outros instrumentos
de infraestrutura importante, como energia poderiam ser utilizados. Alguns deles são a
e transporte, precisa parar e ser revertida. As tributação de todos os tipos de transferência de
questões sociais subjacentes a esses sistemas, capital (para reduzir a hipertrofia e o poder do
como envelhecimento da população, saúde, setor financeiro), diminuindo sua velocidade de
sociedade baseada no conhecimento, mobili- operação e visão de curto prazo; a criação de
dade, proteção do meio ambiente etc, são tão incentivos para que os bancos voltem a financiar
ligadas à própria existência que não podem ser as empresas; e fortalecer e privilegiar, por meio
deixadas à tirania comercial. Como envolvem de tributação, por exemplo, o setor público e
bens comuns, requerem gestão pública. cooperativo da indústria financeira.

66 Democracia Viva Nº 45
Reforma do FMI Pensamentos e reflexões de um militante em Washington

Reforma do FMI
Pensamentos e reflexões
de um militante em Washington
Rick Rowden1
Ativista, especialista em relações Norte-Sul e em instituições financeiras internacionais.

Nos últimos anos, várias tendências fizeram com que a disparidade de poder entre os países

na Diretoria Executiva do FMI ficasse cada vez mais fora de sincronia com a evolução das

normas contemporâneas. Primeiramente, embora o FMI tenha sido concebido para pro-

porcionar apoio de curto prazo para o equilíbrio de balanço de pagamentos – direcionado

a outros países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

e não a países de baixa renda –, tal propósito se inverteu nas últimas décadas, criando

uma situação na qual os países ricos, com maior poder de decisão, não ficavam expostos

às condicionalidades exigidas dos países mais pobres e tomadores de empréstimos. Esse

desequilíbrio político nunca foi o propósito inicial ou intenção do Fundo, nem de sua

estrutura de governança original, e essa desigualdade de poder se tornou importante alvo

de críticas a sua legitimidade. Em segundo lugar, muitas economias emergentes e grandes

países de renda média já não tinham representação proporcional na Diretoria Executiva

do FMI compatível com o tamanho de suas economias, o que estimulou a demanda por

reformas na divisão de votos e cotas na Diretoria. Em terceiro lugar, a alteração de normas

e expectativas sobre representatividade, transparência e accountability2 das instituições

públicas nas últimas décadas tornou a estrutura de governança do FMI cada vez mais 1 Rick Rowden trabalhou em
Washington com ONGs de
incidência e foi analista sênior
para o escritório da Action Aid
fora de sintonia com os padrões contemporâneos, levando à demandas de modernização nos EUA. Trabalhou também
como consultor da UNCTAD
em Genebra. Atualmente,
da governança do FMI para a manutenção de sua legitimidade. está fazendo doutorado em
Economia na Índia.

Além disso, muitos insiders do FMI lamentaram a redução dos processos de toma- 2 Accountability é um
termo sem tradução exata,
que se refere à necessidade
de prestação de contas
da de decisões por consenso na última década. Embora a Diretoria Executiva continue por parte dos governos e
administrações. Usa-se, por
vezes, “responsabilização”, em
[Traduzido por Mariana Dias] tradução aproximada.

Julho 2010 67
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

a tomar decisões baseadas em “consenso”, a diferença cada vez maior no âmbito da trans-
determinação desse consenso é feita pela Presi- parência entre países desenvolvidos e em desen-
dência, pelo diretor-geral ou diretor-adjunto. A volvimento, já que as economias industrializadas
decisão é tomada em um processo totalmente publicam mais documentos do que as nações em
fechado e sem accountability. A progressiva re- desenvolvimento. Em resposta às exigências de
dução na duração das discussões e a diminuição maior transparência, governos dos países desen-
da ênfase em decisões consensuais e construção volvidos acusaram países em desenvolvimento de
de compromissos fizeram com que os países serem os obstáculos à transparência.
em desenvolvimento se sentissem ainda mais A preocupação com a falta de transpa-
alienados da instituição. rência do FMI e sua instituição parceira, o Banco
Os membros do Fundo vêm debatendo Mundial, levou à formação da Iniciativa Global
como renovar a fórmula que define os direitos pela Transparência (GTI, na sigla em inglês), que
de voto dentro da instituição. Após mais de dois procura romper o segredo que cerca as opera-
anos de negociação para a reorganização das ções das instituições financeiras internacionais.
fórmulas utilizadas para calcular votos básicos Como uma ferramenta para alcançar esse obje-
e a divisão de cotas entre membros, algumas tivo, foi esboçada uma Carta de Transparência,
mudanças foram feitas. Mas os países ricos, um documento que descreve nove princípios que
que representam cerca de 15% dos membros devem reger o acesso à informação de institui-
do FMI, continuaram a exercer quase 60% dos ções financeiras internacionais (IFIs)4.
direitos de voto na instituição3. Os documentos que detalham os progra-
O processo oficial de reforma da governan- mas de empréstimo do FMI para países de média
ça do FMI até agora incluiu somente negociações e baixa renda contêm mudanças extremamente
sobre a proporção de direito de voto entre seus controversas de política econômica e que, muitas
membros. Mas para que qualquer mudança real vezes, são condicionalidades para acesso a crédito.
sobre o controle do poder ocorra, uma série de Entre essas condicionalidades estão a liberalização
outras questões deve ser abordada, incluindo o comercial, privatizações, liberalização das contas
aumento da transparência nos processos de de- de capital e bancário, bem como metas de políticas
cisão e nos documentos oficiais. A publicação dos fiscal e monetária que podem restringir, e muito, as
votos para todas as decisões da diretoria é vital. taxas de crescimento, o tamanho de orçamentos
Espaços de participação envolvendo todas as par- e salários de funcionários públicos. No entanto,
tes interessadas precisam ser criados, assim como apesar de sua importância, as informações con-
métodos para aumentar a capacidade dos países tidas no documento são pouco compreendidas
em desenvolvimento se pronunciarem a uma só pela sociedade civil globalmente.
voz bem como de realizarem ações coletivas. Apesar do progresso recente em matéria
O processo oficial de reforma da gover- de transparência, o FMI, infelizmente, regrediu
nança do FMI continua aquém do necessário em um dos princípios mais importantes da Carta
para aumentar a legitimidade da instituição. de Transparência: a divulgação automática. A
Existe um acordo tácito oficial de que o tamanho primeira política de publicação do FMI, criada
de uma economia e seu peso na economia global em 2001, continha intenção de divulgação para
3 Nota da editora: na reunião
anual de primavera entre são as medidas que contam no FMI. As ideias de quatro tipos de documentos, incluindo as Cartas
o Banco Mundial e o FMI, um país/um voto, de maiorias duplas, que con- de Intenções e Memorandos de Políticas Econô-
em 25 de abril de 2010,
foi decidido o aumento no siderem o peso da população, ou de algum tipo micas e Financeiras. No entanto, em 2003, o FMI
direito de voto de alguns
países em desenvolvimento, de “ação afirmativa”, visando aumentar o poder reviu essa política e passou a requerer permissão
tais como Brasil, Índia e dos países mais pobres, não estão colocados para por escrito das autoridades de cada país antes
China. Sendo que a China
teve o aumento mais discussão. Dada essa situação, pode-se esperar de publicar um documento. Tal fato constitui, na
significativo, quase dobrando
sua participação anterior – de que a influência de algumas das principais eco- verdade, a intenção de não divulgação. A nova
2,77% para 4,42%. Com nomias emergentes seja relativamente fortaleci- definição permanece em vigor.
essa mudança, os países em
desenvolvimento passaram a da. Mas, apesar disso, nenhuma democratização
deter 47% dos votos.
significativa da estrutura de poder no FMI parece
4 V. “Transparency at Limites das reformas de políticas
IMF: guide for civil society
provável em um futuro próximo.
on getting access to A mais nova versão da política de divulgação de A única reforma importante de política ocorrida
information from IMF”,
Global Transparency informações do FMI demonstra a tendência de nesses anos de neoliberalismo foi o cancelamento
Initiative, 2007. <http:www.
brettonwoodsproject.org/
aumento de transparência. Hoje, os documentos de dívidas bilaterais com os países doadores do
art-557777>. são publicados em maior quantidade do que Norte, concedido pela Iniciativa dos Países Pobres
5 HIPCs, sigla em inglês. em qualquer outro momento. Há também uma Altamente Endividados (HIPCs5), e, em seguida,

68 Democracia Viva Nº 45
Reforma do FMI Pensamentos e reflexões de um militante em Washington

pela Iniciativa de Alívio da Dívida Multilateral civil que continuam participando. Se políticas de
(MDRI). Apesar de pouquíssimas nações terem se ajuste estrutural e alternativas possíveis não podem
beneficiado desses acordos, tais transformações ser discutidas nas consultas realizadas por governos
representam as mudanças mais significativas nas no âmbito do PRSP, as organizações da sociedade
políticas do FMI nos últimos anos. É essencial notar civil deveriam avaliar se a participação em outro
que foram fruto da pressão política interna e exter- tipo de consulta pública, liderada pela sociedade
na sobre os governos do G7 que dominam a dire- civil, constituiria uma estratégia mais útil na defesa
toria do FMI e do Clube de Paris, assim como sobre de políticas alternativas de desenvolvimento e na
os doadores de recursos para a ajuda oficial. mobilização de apoio político interno.
Além da anulação das dívidas, houve
oportunidades para avançar em outras frentes
Dominância da ideologia
de transformação política, mas não foram leva-
neoliberal e monetarista
das adiante. Por exemplo, no que se refere às
conservadoras políticas fiscal e monetária do É provável que a principal restrição de mudança
Fundo, quase nada foi alcançado. Embora, em das políticas do FMI seja o domínio do neolibe-
anos mais recentes, possa ter havido acordo de ralismo em muitas áreas de influência. Como
liberação de países devedores para empregar po- Susan George bem explicou, os neoliberais
líticas fiscal e monetária mais expansivas, a fim de passaram grande parte da década de 1970
capacitá-los a absorver mais ajuda estrangeira e investindo em instituições e estabelecendo as
aumentar gastos públicos para alcançar as metas bases ideológicas para a rápida decolagem de
do milênio – pelo menos em termos de gastos suas ideias com a ascensão dos regimes Reagan/
sociais –, os últimos anos foram caracterizados Thatcher, no começo dos anos 19807.
pelas mesmas políticas restritivas, com foco único Nos 30 anos seguintes, essas ideias foram
na estabilidade macroeconômica. totalmente incorporadas às estruturas de pensa-
O The New York Times resumiu correta- mento dominante, de ministérios a “think tanks” e
mente em editorial a desconexão atual das polí- à mídia corporativa, para não mencionar editoras
ticas dos países doadores: “Há a necessidade de- e departamentos universitários que ensinaram a
sesperada por uma política de maior coerência em duas ou três gerações de estudantes de Economia
um período em que muitos governos nacionais, o pensamento pura e exclusivamente neoliberal.
incluindo o de Washington, estimulam governos Assim como ilustra o excelente trabalho de Ha-
africanos a gastar mais em saúde e educação, ao Joon Chang, as ideias neoliberais que, quando
mesmo tempo em que as instituições financeiras introduzidas nos anos 1980, eram vistas como um
internacionais, em grande parte controladas por conjunto conservador de opções políticas, entre
esses mesmos governos ocidentais, têm pressio- uma série de outras escolhas, posteriormente pas-
nado os países africanos a encolher suas folhas de saram a ser entendidas como o único conjunto de 6 Documentos de
planejamento que os países
pagamento, inclusive o pagamento de professores opções políticas disponível para “policy makers”. de baixa renda e altamente
endividados apresentam ao
e profissionais de saúde.” As referências a políticas heterodoxas, tais como FMI e ao Banco Mundial,
O processo de produção de Documentos barreiras alfandegárias, políticas industriais ou nos quais se comprometem
a reduzir a pobreza,
de Estratégia para a Redução da Pobreza6 (PRSP, políticas fiscais e monetárias expansionistas, foram descrevendo as políticas
macroeconômicas e sociais
em inglês) foi iniciado. Nesse processo, “ouvir os totalmente retiradas do currículo dominante dos a serem desenvolvidas
pobres”, “aumentar a participação da comunida- departamentos universitários de Economia e das durante um período. A
partir da apresentação
de" e “comprometer-se com a redução da pobre- editoras de livros universitários8. desse documento, o país
em questão pode pedir o
za” nos países mais pobres do mundo estão entre A Action Aid apresentou à diretora-exe- abatimento de sua dívida
os mantras repetidos por altos líderes do Banco cutiva americana do FMI, Meg Lundsager, cópias perante o Banco Mundial,
o FMI e demais países
Mundial e do FMI. Faz parte da composição da impressas de cerca de uma dúzia de artigos exis- doadores, tendo acesso a
novos créditos, empréstimos
“carinha feliz” que as instituições financeiras glo- tentes na literatura econômica acadêmica sobre a e recursos a fundo perdido.
bais esperavam poder pintar em seus próprios ros- localização do nó na relação crescimento-inflação. O PRSP deve, em tese, ser
construído com a participação
tos, já que muitas organizações da sociedade civil Tais artigos mostram que há pouca evidência da sociedade civil (N.E.).
haviam rejeitado completamente os programas de empírica para justificar a manutenção de níveis 7 “How to win the war
of ideas: lessons from the
reajuste estrutural e as outras reformas de política de inflação tão baixos quanto os que o FMI vêm gramscian right,” por Susan
econômica que acompanham as condições de determinando há mais de 25 anos. No entanto, George. Dissent Magazine.
Verão 1997. <http://plec.
empréstimos para o desenvolvimento. ela, literalmente, empurrou a pilha de papéis para blogspot.com/Dissent%20
-%20Gramscian%20right>.
No entanto, esse processo não foi bem o lado e disse: “Eu não me importo com o que
sucedido até o momento, o que levanta uma dis- está na literatura. Os Estados Unidos simplesmente 8 “Kicking away the ladder,”
by Ha-Joon Chang. London:
cussão essencial para as organizações da sociedade acreditam que a inflação deve ser baixa!” Anthem Press, 2002.

Julho 2010 69
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a

O domínio do neoliberalismo nos fóruns 2008, um funcionário da Action Aid pediu a um


e espaços públicos de discussão e negociação representante do FMI para definir o que o Fundo
significa que o modelo econômico em si não é entende por “desenvolvimento econômico”. Este
sequer questionado, e que suas falhas não são incluiria mais empregos, diversificação econômica,
mencionadas. Tal fato apresenta restrições às mais empresas nacionais? O funcionário do FMI
mudanças políticas do FMI. Sem alternativas a disse que “não iria responder a essa pergunta”.
maior liberalização comercial, privatização e des- O problema é que praticamente nenhuma
regulamentação, o que resta à “ajuda oficial inter- dessas organizações sequer pensa sobre o FMI e
nacional” é polvilhar um pouco mais de dinheiro muito menos sobre suas políticas. Isso representa
para saúde, educação, agroexportação e, talvez, grande obstáculo no sentido de mudar as políticas
microcrédito. E, assim, pressupõe-se acriticamente do FMI ou propor algum tipo de reforma.
que tudo isso constitui “desenvolvimento”. A maioria dessas organizações não in-
vestiu adequadamente em treinamentos básicos
de “alfabetização econômica” e, assim, não têm
Desafios às organizações da
conhecimento de conceitos básicos de teoria do
sociedade civil
comércio, nem de política fiscal e monetária.
Devemos reconhecer que a maioria dos grupos Esse é um problema de extrema importância:
da sociedade civil também não faz perguntas crí- o excesso de especialização de muitas OSCs
ticas nos fóruns internacionais sobre o que deve em assuntos específicos, como meio ambiente,
constituir o “desenvolvimento econômico”. direitos humanos, direitos trabalhistas, questões
De muitas maneiras, as principais orga- relativas à água, educação e saúde etc, tem
nizações de desenvolvimento foram seduzidas contribuído para esse fenômeno.
durante os últimos 10 anos pelo discurso da O fato de que muitas tiveram grande
“redução da pobreza” e, agora, podem ter difi- sucesso ao estabelecer ligações com instituições
culdade de distinguir “ajuda externa”, “redução internacionais que compartilham das mesmas
da pobreza” e “desenvolvimento”. Muitas, mas opiniões e que estão lutando por essas questões
não todas, foram carregadas para uma espécie em fóruns regionais ou internacionais é digno de
de “gueto da redução da pobreza", onde estão nota. Mas o fato de que, simultaneamente, es-
presas. “Desenvolvimento” como conceito se con- queceram de investir em “alfabetização econômi-
funde com auxílio à saúde e à educação, esforços ca” ou de analisar o modelo de desenvolvimento
para microfinanças e ajuda de emergência para se- dominante e seus fracassos é desanimador.
cas e inundações, com centenas de organizações Além disso, muitas organizações tam-
da sociedade civil (OSCs) contratadas à disposição. bém sofrem as consequências do domínio do
Nos Estados Unidos, isso se manifesta ao longo neoliberalismo durante os últimos 30 anos
do processo para a aprovação do Foreign Aid Bill em que liberalização comercial, privatização
(que regulamenta os recursos para ajuda a países e desregulamentação são as únicas políticas
estrangeiros) no Congresso, e a mobilização para conhecidas. Simplesmente não sabem da exis-
que seja aprovado. tência de alternativas.
Nesse contexto, os termos “redução da Atualmente, articulações da sociedade
pobreza”, “desenvolvimento” e “ajuda externa” civil norte-americana estão tentando aproveitar
são utilizados alternadamente e se tornaram a crise no sistema financeiro para pressionar
indistinguíveis no discurso popular, praticamente por uma mudança política real no FMI e pelo
sem qualquer pensamento analítico crítico. O o fim de suas políticas nocivas à promoção dos
mesmo se desdobra em muitas OSCs com sede direitos humanos e da justiça social.
em Washington, em “think tanks”, entre membros O desenrolar da crise financeira global
do Congresso Nacional e ex-embaixadores etc, e de seus impactos sobre a economia real – em
que gostariam de criar um novo Departamento particular a importante perda de empregos e
de Desenvolvimento Global, que ultrapassaria a precarização das condições de trabalho e de
a Usaid9 e elevaria seu novo formato ao nível moradia de um número significativo de pessoas –
de ministério. Assim, mais uma vez, os termos tornou clara a necessidade de cidadãos e cidadãs
“redução da pobreza”, “desenvolvimento” e se engajarem na luta por outra regulação do sis-
“ajuda externa” seriam utilizados alternadamente tema financeiro global. Dessa forma, poderemos
9 Agência Americana e tornar-se-iam sinônimos. atuar no sentido da superação do atual “déficit
para o Desenvolvimento Em uma reunião de OSCs, durante en- democrático” e levar o foco para onde deve estar:
Internacional, na sigla em
inglês (N.R.) contros do FMI e Banco Mundial, em abril de nas condições de vida dos cidadãos.

70 Democracia Viva Nº 45
Julho 2010 71
RE P ORTA G EM
Flávia Mattar, Jamile Chequer e Mariana Dias

UPP:
tecendo
discursos

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), um dos braços da política de segurança

pública do governo do estado do Rio de Janeiro, estão sendo retratadas como a

solução dos problemas de violência na cidade. As UPPs são a luz no fim do túnel?

De que forma dialogam com um projeto maior de segurança pública para o Rio?

Como aliar o combate à violência com garantia de direitos e cidadania?

A revista Democracia Viva escolheu três favelas – Providência, a primeira

do país, Santa Marta, vitrine do projeto UPP, e Borel, a mais recente a receber

uma unidade – e escutou moradores(as), associações, especialistas e autoridades

do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), das UPPs e da Secretaria de

Estado de Segurança do Rio de Janeiro.

72 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos

fotos flávia mattar

Julho 2010 73
reportagem

Já em 1900, a Providência, a primeira civilizada, humana e tecnicamente viável: o


favela do Brasil, era considerada local perigoso, policiamento comunitário”, alegra-se.
habitado por “vagabundos” e “criminosos”. Apesar dos aplausos à polícia pacifica-
Dada a sua logística de ocupação, tratava-se dora, existem questionamentos. Um deles seria
de espaço difícil de ser policiado. Essa narrativa a não implementação das UPPs em todas as
está em carta do delegado da 10ª circunscrição favelas do Rio. A impressão é que não há uma
ao chefe de polícia, Dr. Enéas Galvão, escrita política de segurança homogênea para esses
no início do século passado. territórios. Por que algumas comunidades serão
Mais de cem anos depois, ao que “pacificadas” e outras não?
parece, algumas favelas serão ocupadas de Segundo Roberto Sá, não é a intenção
forma permanente pela polícia. Segundo in- universalizar o projeto UPP. Ele é destinado a
formações do subsecretário de Planejamento locais com características específicas. A priori-
e Integração Operacional dade, segundo ele, são favelas que estão, atu-
do Rio de Janeiro, Roberto almente, sob forte influência da criminalidade
Sá, as UPPs são apenas uma ou de grupos ostensivamente armados. “Ou
Sou uma das ações que estão sendo seja, se não tiver forte influência de crimina-
implementadas no estado. lidade, já não tem que ter UPP. Nesses casos,
entusiasta não Segundo ele, o projeto vamos agir com investigação, com polícia de
de segurança pública do bairro. Para ter UPP, tem que ter ostensividade
só das UPPs, Rio é “extenso, complexo da arma, ditadura do fuzil”, afirma.
e flexível” e está fincado Comunidades que ainda não contam
mas da única sobre eixos: integração,
planejamento, inteligência
com policiamento comunitário ou nunca con-
tarão continuam vivenciando a mesma política
solução possível, e correição.
Desde o governo
de enfrentamento que, muitas vezes, assistimos
nos noticiários – PMs armados subindo os mor-

civilizada, Marcello Alencar no es-


tado do Rio, o projeto de
ros atrás de traficantes, troca de tiros, caveirão,
mortes de civis e policiais.
segurança parece ser de Na mesma semana que a revista De-
humana e uma nota só. A concepção mocracia Viva visitava favelas “pacificadas”,
bélica, de guerra, sempre jornais noticiavam, em um único dia, opera-
tecnicamente foi o tom. Durante os pri- ções com 200 policiais militares e seis carros
meiros anos do governo blindados nas favelas da Coreia, Vila Aliança,
viável: o Sérgio Cabral, tal concepção Rebu, Sapo e Taquaral, em Senador Camará,
também foi levada à risca, na Zona Oeste do Rio. Cinco pessoas mor-
policiamento como relembra o cientista
social Paulo Jorge Ribeiro,
reram. A Core, com dois helicópteros e dois
blindados, realizou uma operação nos morros
comunitário professor da PUC-Rio: “Os
casos do Alemão e da Coreia
de São Carlos e Mineira, na Zona Norte. No
mesmo dia 25 de maio, a PM fez incursão no
são exemplos dramáticos de Complexo da Maré e no Jacarezinho.
Silvia Ramos como essa política foi posta “A regra tem que ser um estado civiliza-
em prática”. Roberto Sá res- do. Quem determina se vai haver confronto é
ponde: “Naquele momento, quem é abordado. Se a pessoa levanta as mãos
precisávamos de ações enérgicas, com resgate e entrega as armas, vai ser presa e conduzida
de autoridade”. para delegacia. Se ela atira, o policial tem
Silvia Ramos, pesquisadora do Centro direito e dever de reagir para proteger a sua
de Estudos de Segurança e Cidadania da própria vida e a de terceiros. Não existe uma
Universidade Cândido Mendes (Cesec/Ucam), ordem deliberada para matar. A lei não nos
ressalta a importância da busca de alternativas permite fazer isso”, diz Roberto Sá.
à concepção bélica até então aplicada. “Estava O professor da PUC-Rio, Pedro Cunca
na cara que era só a UPP que iria funcionar. Bocaiúva, chama a atenção: “Não dá para
No entanto, foram décadas batendo cabeça separar o PAC [Programa de Aceleração do
com Bope, Core [Coordenadoria de Recursos Crescimento], o Pronasci [Programa Nacional
Especiais], caveirões e soluções bélicas que de Segurança Pública com Cidadania] e a
alimentavam o horror. Sou uma entusiasta não UPP do contexto geral. Não dá para pensar
só das UPPs, mas da única solução possível, política de cidade só à luz de programas e

74 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos

Favela Santa Marta, na zona sul do Rio.

projetos fragmentados. Não há política pública conjunto para a redução da criminalidade.


de cidade. É preciso romper com a ideia de- Para isso, o estado foi dividido em sete regi-
monstrativa. A vitrine é o Santa Marta. Então, ões (Sul, Centro e Norte; Zona Oeste; Baixada
a gente faz a guerra em Senador Camará. No Fluminense; Niterói e Região dos Lagos; Sul
Alemão, a gente pratica uma trégua relativa. Fluminense; Norte Fluminense; e Região Ser-
O Pronasci, a gente desenvolve na Maré. Há rana). Em cada uma delas há a presença de
uma análise de conjuntura na cidade, de seus um Batalhão de Polícia Militar com no mínimo
atores e processos, que precisa ser pensada no duas e no máximo seis delegacias.
conjunto em função dos desequilíbrios”. Contando com o fato de que todas as
delegacias legais são informatizadas, foi desen-
volvido um sistema virtual integrado, baseado
Metas para integração
em metas e acompanhamento de resultados,
A reação do professor Cunca traz outros ques- monitorado pela Secretaria de Estado de Se-
tionamentos presentes em setores da socieda- gurança. Esse sistema conta com indicadores
de. Há uma política de segurança pensada para de homicídios dolosos, latrocínios, roubo de
o estado do Rio que vai além das UPPs? Como veículos e roubos de rua, formando um ranking
o que está sendo implementado em favelas se de melhores e piores desempenhos de atuação
relaciona com os demais territórios? Há uma policial em todo o estado. A partir do ranking,
política de segurança pública voltada para são realizados pagamentos de bônus como pre-
transformações nas condições estruturais da miação a profissionais de segurança pública.
polícia, por exemplo? A secretaria defende que essa estratégia
A Secretaria de Planejamento e Integra- é totalmente inovadora no estado, uma vez
ção Operacional do Rio de Janeiro implemen- que, em gestões anteriores, índices de crimi-
tou, em 2009, um novo modelo cujo objetivo nalidade eram vistos sem o real conhecimento
é a integração das polícias Militar e Civil e o das áreas mais críticas, que deveriam receber
estabelecimento de estratégias de trabalho maior atenção.

Julho 2010 75
reportagem

Em maio deste ano, o Instituto de polícia tende a ser proporcional à distância


Segurança Pública (ISP) divulgou dados sobre construída entre a corporação e as pessoas. Os
incidências criminais de segurança. O que mais cidadãos não devem “cumprir um papel com-
chama a atenção é a diminuição de homicídios plementar ou secundário” à polícia, é a polícia
dolosos em março. Segundo o ISP, a redução que “deve ser percebida como suplementar ao
foi de 16,2% em relação ao ano anterior. Em papel desempenhado pelos cidadãos.”
Copacabana e Tijuca, nenhum crime dessa Policiamento comunitário depende de
natureza foi registrado. confiança. Mas, no caso das UPPs, trata-se de
confiar em instituições que já decepcionaram a
sociedade incontáveis vezes. Somente no âmbi-
Policiamento comunitário
to do policiamento comunitário, a população
A filosofia das UPPs é baseada na prática do já assistiu algumas iniciativas darem errado:
policiamento comunitário, método que vem o Posto de Policiamento Comunitário (PPC),
ganhando espaço em todo o mundo e que já o Destacamento do Policiamento Ostensivo
se tornou a doutrina oficial de policiamento (DPO) e, mais recentemente, o Grupamento de
em diversos países, como Canadá, Noruega e Policiamento em Áreas Especiais (GPAE).
Cingapura. O projeto das UPPs, no entanto, conta
Diversos estudos apontam que o ponto com diferenciais. Segundo a Secretaria de
de partida para o policiamento comunitário é o Segurança, um deles é o fato de que elas só
trabalho compartilhado entre Estado e sociedade são implantadas após a retomada do território
para a manutenção da paz. O objetivo principal pelo estado (por meio do Bope). As experiên-
da polícia deve ser a proteção e a redução da cias de policiamento comunitário do passado
sensação de insegurança e não a simples repres- não retomaram o território, passando a con-
são. Como o especialista em Segurança Pública viver com o domínio de bandidos em regiões
Marcos Rolim aponta em seu livro “A Síndrome conflagradas, sem ter poder para controlar o
da Rainha Vermelha”, a presença ostensiva da local e impor a lei.
Uma outra característica particular do
projeto é contar com policiais recém-formados,
livres dos chamados “vícios da corporação”.
Uma vez que, segundo pesquisa do Instituto
Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), apenas
34% da população do estado do Rio de Ja-
neiro confia na Polícia Militar, a Secretaria
de Segurança tem, dessa forma, a chance
de estabelecer a confiança que até hoje não
conseguiu conquistar.
O sargento do Bope Max Coelho que
durante apuração da matéria atuava na pre-
paração para a chegada da UPP no Borel,
exemplificou, durante entrega de donativos
no local, uma outra estratégia: “Sábado nós
teremos aqui um culto que vai ser organizado
pela congregação evangélica do Bope. A ban-
da que vai tocar se chama 'Tropa de Louvor' e
tem policiais fardados, membros dos 'Caveiras
de Cristo'. Isso também é para desmistificar a
desumanização da polícia.”
Mais um diferencial é o fato de que as
UPPs possuem, de certa forma, um comando
descentralizado dos batalhões, focado na
presença constante de capitães, normalmente
jovens e carismáticos, na unidade pela qual são
responsáveis. A capitã Pricilla de Oliveira Azeve-
do, responsável pelo Santa Marta, conta que,
Doações do Bope para moradores(as) do Borel, na Zona Norte. em um batalhão normal, cada dia um oficial

76 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos

comanda um local. “Aqui eu sou a responsável.


Tenho um comprometimento tão grande que
influencia até no meu comportamento sem a
farda. Eu tenho uma satisfação a dar.”

Tráfico sem armas


Apesar de largamente difundido pela imprensa
que as UPPs acabam com o tráfico de drogas
nas favelas onde se instalam, a Secretaria de
Segurança e capitães responsáveis pelas uni-
dades têm clareza de que almejar o fim do
tráfico de drogas nas favelas seria utópico.
“Não é atividade fim da UPP acabar com o
tráfico de drogas, mas minimizar ou levar
para níveis civilizados. Se tem na Vieira Souto,
não vai ter no morro? Mas isso não significa
que não vamos combater o tráfico”, explica
Roberto Sá.
O capitão Glauco Schorcht, responsável
pela UPP do Morro da Providência, reforça a
informação: “Se vende a ideia de que a UPP
vai acabar com o tráfico. Existe tráfico em
vários países do mundo, onde a polícia ganha
bem, é totalmente aparelhada e tem apoio da
sociedade.”
Para a capitã Pricilla, o objetivo é o fim
das armas. “O que a gente tem aqui hoje é
algo que pode ter no seu prédio, na sua rua.
O objetivo é retomar o território para que as
pessoas vivam em paz. Não passamos a mão
na cabeça de crime, não sou conivente, mas o
principal é morar aqui e viver como qualquer Morro da Providência, no Centro do Rio de Janeiro.
pessoa vive”, diz.
Sobre a ideia difundida de que trafican-
Garantia de direitos
tes estariam migrando para outras favelas da
cidade e da Baixada Fluminense, Silvia Ramos Um ponto que parece não gerar discordância
defende que, apesar de não haver pesquisas entre diferentes atores ligados ao debate e
divulgadas, o deslocamento seria mínimo. “De implementação das UPPs é o fato de que não
uma 'boca' grande, talvez saiam dez. Na verda- é possível falar apenas em segurança. É preciso
de, os que saem são os chefões e aqueles que que o estado esteja atento ao desenvolvimento
têm mandados de prisão”, acredita. de outras ações, que garantam direitos aos
Ela chama a atenção para o fato de cidadãos e cidadãs de favelas.
ainda não haver programas sociais pensados “A UPP não é suficiente. Outros direitos
para a requalificação dos jovens do tráfico que têm que ser assegurados. E cada lugar é um
ficam nas comunidades. “Os lugares que tive- lugar, não seria possível padronizar a ação.
ram DDR [Desmobilização, Desarmamento e Existem comunidades onde primeiro entrou a
Reintegração] previram o que fazer com aquele segurança, para depois virem os outros servi-
que estava segurando uma arma e não era o ços. No Complexo do Alemão, por exemplo,
chefão. Utilizaram isso no mundo inteiro. Nós primeiro estão sendo levados serviços, para
temos na favela bandidos profissionais, mas depois entrar a segurança”, diz o cientista
também aquele garoto que entrou ontem na social Paulo Jorge.
boca-de-fumo. Em vários lugares do mundo, Silvia Ramos, recém-nomeada subsecre-
ele entrega a arma e recebe uma ajuda mensal tária de Ação Social para UPPs, acredita que
e educação”, ressalta. as Unidades Pacificadoras foram um modelo

Julho 2010 77
reportagem

pensado exclusivamente para combater o pro- de judô, com mais de 60 alunos. Por exem-
blema do controle do território por gangues plo, no Dia do Meio Ambiente recebemos o
armadas. “Infelizmente, não foi pensado como Batalhão Florestal. Fora isso, damos apoios a
projeto integrado, social, ambiental, cultural eventos que empresários querem organizar na
e urbanístico. Mas, à medida que você tira o comunidade”, cita.
controle de território, você autoriza a entra-
da não só de outros órgãos do estado, mas
Favela é cidade
também da vida privada.” E complementa: “O
próprio governador está reconhecendo que É importante analisar as UPPs a partir da noção
não dá para entrar apenas com polícia nas base de que favela é cidade. Tal afirmação cha-
favelas. É preciso entrar com polícia e pro- ma a atenção para as injustiças e desigualdades
grama integrado. O desafio é criar programas presentes nos ambientes urbanos, nos quais,
sociais nas UPPs, criar indicadores, sair desse muitas vezes, uma parte da população tem
oba oba que é a cultura do acesso a direitos e outra não. Uma questão
assistencialismo.” que ameaça moradores(as) de comunidades e
Segundo a moradora que é objeto de luta por parte de movimentos
Não dá para do Morro da Providência,
Elisete da Costa Moreira
e organizações é a luta contra a remoção, já
que muitas vezes o discurso a favor vai além
pensar política Silva, a UPP trouxe o fim de
tiroteios e tráfico armado.
do risco e cai em preconceitos, especulação
imobiliária etc.

de cidade “Mas tinham que trazer cur-


sos para cá, principalmente
Com a implementação das UPPs em
algumas favelas, o risco de uma remoção ca-
escola primária para adulto. muflada, que vem sendo chamada “remoção
só à luz de Há uma demanda grande branca”, preocupa moradores(as) desses locais.
por educação”, afirma. Além Uma comunidade como Santa Marta, localiza-
programas da demanda por serviços, da em Botafogo, Zona Sul do Rio, com uma
moradores(as) ressaltam a linda vista, um plano inclinado que favorece o
e projetos importância da participação acesso a qualquer parte do morro, sem tráfíco
na elaboração das iniciativas armado, pode, facilmente, chamar a atenção
fragmentados. que serão ofertadas. Segun-
do a Associação de Mora-
de especuladores. Por que não transformar esse
território em um local de classe média?
Não há política dores do Santa Marta, não
há participação na elabora-
Ao que parece, com as UPPs, uma mi-
gração do Santa Marta não se daria de forma

pública de ção de projetos. “A minha


participação é a cobrança
violenta, impositiva, mas por pressão do merca-
do. Ativistas da comunidade, como Itamar Silva,
daquilo que foi prometido coordenador do Ibase, ressaltam a importância
cidade pelo governo”, diz o presi- da articulação e conscientização sobre as possi-
dente da associação, José bilidades de deslocamento. A possível tentativa,
Cunca Mário Hilário. por exemplo, de compra de imóveis por preços
Enquanto um plane- abaixo do mercado, acarretando o deslocamento
jamento que garanta direitos de famílias para locais precários, tem sido am-
como saúde, educação, cul- plamente debatida na comunidade.
tura não é desenvolvido pelo estado, capitães “A maior preocupação que moradores e
responsáveis por UPPs têm criado iniciativas moradoras do Santa Marta precisam ter hoje é
pontuais. No Morro da Providência, há curso como garantir a sua permanência na chamada
de caratê, cujo professor é um dos policiais. 'favela modelo'. Pois o controle social feito pela
Segundo o capitão Glauco, “já participamos polícia, a intervenção urbanística feita pelo Es-
de competição em São Paulo. Conseguimos tado sem discussão com moradores, o aumento
patrocínio para quimono, ônibus, alimentação, constante da conta de energia elétrica, as várias
estadia e inscrições. E trouxemos 122 medalhas. taxas que estão para chegar: água, IPTU etc. e
Então, é bom porque mostra para população o assédio de pessoas querendo comprar uma
que é possível. E é possível também tentar casa na favela podem, em médio prazo, mudar
vender a ideia para a iniciativa privada.” a composição do Santa Marta”, avalia Itamar.
A capitã Pricilla também utiliza a mesma Segundo José Mário, a comunidade é
estratégia: “Tenho um policial que é professor bem politizada, são realizadas reuniões internas

78 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos

e as preocupações são compartilhadas entre


os(as) moradores(as). Porém, ainda assim,
houve desmobilização no período de implemen-
tação do sistema de energia na comunidade.
“Fizemos assembleia e discutimos como seria
a forma de cobrança e os moradores, naquela
época, não quiseram participar. Agora, está
doendo no bolso. Então, temos que apanhar
para aprender”, complementa.
O aumento no valor de serviços como
água e TV a cabo também é visto como
um fator de pressão para a saída dos atuais
moradores(as). Assim que policiais da UPP
chegaram ao Santa Marta, foram retiradas as
ligações clandestinas de ambos os serviços. A
entrada da Light em favelas “pacificadas” vem
gerando lucros. No Santa Marta, por exemplo,
a empresa possuía apenas 80 clientes cadas-
trados, dos quais apenas 50% pagava conta
de luz. Após a chegada da UPP, passou a ter
1.543 clientes. Apesar da preocupação com as
tarifas, que no Santa Marta ainda estão redu- Plano inclinado na favela Santa Marta, no Rio.
zidas devido a acordo estabelecido, a empresa
aponta que a inadimplência, até o momento, estiverem conscientizados, escutando música
é de apenas 2%. clássica, música popular brasileira, conhecendo
Silvia Ramos chama a atenção para outros ritmos, outras culturas, a gente até pode
o fato de que o que era barato nas favelas autorizar, mas hoje não”, argumenta.
não eram exatamente os aluguéis, mas sim o A capitã Pricilla corrobora com a afirma-
não pagamento de muitos serviços. Isso tinha ção e lembra da associação simbólica do baile
como contrapartida “coisas terríveis: não ha- funk com o tráfico. “Para os trabalhadores, para
via esgoto, coleta de lixo, correio. A chamada as comunidades, ter um baile funk aqui hoje
urbanização traz com ela o encarecimento da significa que a polícia perdeu. É o simbolismo.
vida. Transformar as favelas em bairros faz com Vai ter um dia? Vai, mas não agora”, conta.
que haja mudanças no estatuto do morador. Ele Muitos dos discursos sobre as UPPs
não é mais o coitadinho que precisa de tudo falam do processo “civilizatório” ou de “reedu-
de graça. É aquele que começa a pagar tarifas cação” dos moradores de favelas, lembrando
e, os que não podem, com certeza irão para a proposta dos Parques Proletários construídos
mais longe”, acredita. na década de 1940. Na época, o plano oficial
da prefeitura sugeria, entre outras medidas,
“a promoção de forte campanha de reedu-
Processo civilizatório
cação social entre moradores das favelas, de
Em entrevista à revista Veja, de 21 de abril modo a corrigir hábitos pessoais e incentivar
de 2010, o economista e ex-presidente do a escolha de melhor moradia”1. O contexto
IBGE Sérgio Besserman declarou que a expe- era dominado pela “cidadania regulada”, na
riências das UPPs é “o primeiro passo de um qual moradores(as) de favelas não eram vistos
processo civilizatório que precisa continuar”. como possuidores de direitos, mas como “almas
Capitães responsáveis pelas UPPs confirma- necessitadas de uma pedagogia civilizatória”,
ram essa visão, por exemplo, em relação à como afirma o sociólogo Marcelo Burgos, no
polêmica proibição de bailes funk em favelas livro “Cem anos de favela”.
“pacificadas”. Para Itamar Silva, o problema da UPP é
Segundo o capitão Glauco, o baile está parecido com esse. “O problema não é a polícia
proibido. “Eu sou contra. Todo o baile funk pacificadora em si, porque nós queremos uma
tem envolvimento com tráfico. Apesar de ser polícia decente que respeite o morador. Mas
1 Relatório do Dr. Victor
uma cultura popular, a população ainda não quando a polícia ultrapassa seus limites e passa Tavares de Moura, disponível
está preparada para isso. No futuro, quando a controlar a vida cotidiana dos moradores. no acervo DAD/COC/Fiocruz.

Julho 2010 79
reportagem

Está cada vez mais claro que o objetivo é o agora tem que passar pela capitã”. Não existe
controle territorial das favelas e a imposição vácuo de poder. Enquanto os projetos sociais
de um padrão comportamental definido como prometidos pelo estado não chegam, capitães
ideal pela polícia”, alerta. responsáveis pelas UPPs vêm se envolvendo
Para a capitã Pricilla, o retorno de crimi- em questões muito particulares do cotidiano
nosos ao Santa Marta poderia ser evitado por da favela.
meio da “educação”. “A partir do momento
que os moradores tomarem consciência de que
Sustentabilidade
isso não presta, de que eles são usados pelo
tráfico, a polícia vai ser o menos importante no Um questionamento que fica é em relação
lugar”, aposta. à sustentabilidade das UPPs. O projeto tem
morte anunciada: 2016, quando ocorrem as
Olimpíadas? Para o capitão Glauco, a UPP veio
“Policização” do cotidiano
para ficar. “Tem apoio do governo, da iniciativa
O sucesso conseguido até privada, da Secretaria de Segurança, da PM e
agora com as UPPs e sua da sociedade civil como um todo. Se um deles
lua-de-mel com os meios de falhar, os outros vão cobrar”, justifica.
Uma questão comunicação acaba enfra- A aposta de Roberto Sá segue na mesma
quecendo a crítica. Apesar linha. Segundo ele, serão realizados concursos
que ameaça de o cerne do policiamento
comunitário ser a participa-
para, no mínimo, 4 mil PMs por ano. “A gente
tem compromissos com o caderno olímpico de
moradores(as) de ção, lideranças das favelas
onde as UPPs estão sendo
encargos do Comitê Internacional de aumentar
o efetivo da Polícia Militar para patrulhar as ruas

comunidades e instaladas falam da falta


de espaços de diálogo com
e recuperar esses territórios”, conta.
Silvia Ramos aponta que essa polícia co-
moradores(as). munitária representa uma grande possibilidade
que é objeto de “Desde o início, meu de reforma nas polícias carioca e fluminense.
ponto foi resistir a essa 'po- “O único jeito de as UPPs não fracassarem em
luta por parte licização' da nossa vida, do médio e longo prazo, ou seja, daqui a cinco
nosso cotidiano. Uma vez anos, é a extensão do modelo de policiamen-
de movimentos que está 'pacificado', não to comunitário para todas as favelas. Isso
tem sentido eu ficar conver- vai custar caro? Parece que cerca de R$ 400
e organizações é sando com a polícia. Agora
quero ampliar a cidadania,
milhões por ano. Não é tanto, cerca de 10 %
do que se gasta em segurança pública e 1%
a luta contra a quero exercer meu direito
diante de um estado que
do PIB carioca”.
Tramita na Assembleia Legislativa do

remoção não cria espaço para partici-


pação efetiva”, posiciona-se
Rio projeto de lei que estabelece critérios para
a implementação das UPPs, do deputado Ales-
Itamar Silva. sandro Molon (PT/RJ). Segundo ele, a proposta
Quando confronta- é transformar a iniciativa em política de estado
dos com raros questionamentos, a resposta e não de governo. O projeto estabelece a per-
comum dada pela polícia, imprensa ou até manência das UPPs por, no mínimo, 25 anos
mesmo pela sociedade tem sido: “Mas você e valeria tanto para os locais já “pacificados”
prefere o tráfico ou a polícia? Eu não prefiro quanto para aqueles onde as unidades ainda
nenhum. Não precisamos nem do tráfico nem seriam instaladas.
da polícia. O tráfico é uma força e a polícia As expectativas sobre as UPPs são gran-
é outra, mas as pessoas não entendem que des. Apesar das discordâncias em relação a
podem viver sem os dois”, responde Emerson alguns aspectos do projeto, pode-se dizer que
Nascimento, o rapper MC Fiell, morador do a sociedade como um todo espera que a ini-
Santa Marta. ciativa vá além do braço de segurança, sendo
Paulo Jorge Ribeiro concorda que “a capaz de, integrada a outras ações, contribuir
UPP é para promover segurança e não pode para uma transformação social no Rio de Ja-
criar regras”. Segundo Fiell, no entanto, “a neiro. A participação cidadã para transformar
polícia faz a nova gestão da favela e tudo esse anseio em realidade é fundamental.

80 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos

Histórico das ocupações

Sob o conceito de “polícia da paz”, o projeto das UPPs recebeu R$ 15 milhões destinados à qualificação
da Academia de Polícia, que deve formar cerca de 60 mil policiais até 2016. Em 2010, pelo menos 3,5
mil novos policiais serão destinados às Unidades Pacificadoras.
A primeira comunidade a ser ocupada foi o Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio. A ocupação
foi realizada em 19 de dezembro de 2008 e conta com 120 policiais, liderados pela capitã Pricilla de
Oliveira Azevedo. Segundo o subsecretário de Planejamento e Integração Operacional do Rio de Janeiro
Roberto Sá, a quantidade de fuzis utilizados está diminuindo: “Vamos manter um grupo tático com fuzil
para uma eventual resposta, mas vamos diminuir bastante.”
A ocupação da Providência ocorreu em 26 de abril de 2010. A UPP abrange as áreas Pedra Lisa e
Moreira Pinto e tem 200 policiais sob comando do capitão Glauco Schorcht. A Providência está locali-
zada atrás da Central do Brasil e a alguns metros da Zona Portuária, que tem projeto de revitalização
planejada. Cerca de 9 mil pessoas moram na Providência e no seu entorno.
O Borel, comunidade localizada na Tijuca, Zona Norte do Rio, foi ocupado em 28 de abril de 2010.
Uma diferença em relação à Providência e ao Santa Marta é o fato de o Borel estar próximo de grandes
favelas, como Casa Branca, da Cruz e Formiga. Durante a apuração desta reportagem, a comunidade
ainda estava na primeira fase de ocupação, realizada pelo Bope. A UPP foi instalada oficialmente em
6 de junho, com previsão de abranger cerca de 120 mil pessoas e possibilidade de instalação de outra
unidade em área próxima.
Também estão ocupadas pelas UPPs as comunidades Babilônia/Chapéu Mangueira (Leme), Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo e Tabajaras/Cabritos (Copacabana), na Zona Sul; Cidade de Deus (Jacarepaguá)
e Jardim Batam (Realengo), na Zona Oeste. A estimativa é que cerca de 140 mil pessoas estejam sob a
guarda dessa polícia comunitária.
Durante as ocupações não foram registrados grandes confrontos com traficantes locais. Para cada
lugar é criada estratégia específica de ocupação. No Santa Marta, por exemplo, a entrada dos policiais do
Bope foi “uma surpresa”, como relatam moradores. Já para o Borel, foi divulgada previsão de ocupação
antes do carnaval. Uma “guerra avisada para evitar balas perdidas”, segundo Roberto Sá. Porém, todas
as operações da polícia pacificadora seguem um roteiro comum.

1. Retomada: O Bope entra na comunidade. É o momento em que a inteligência da polícia é


fortemente utilizada e pode haver repressão. As prisões não são, necessariamente, o objetivo. A
entrada é efetiva e dura de acordo com características locais.
2. Estabilização: Etapa de manutenção do controle, eliminação de focos de resistência e de “entrega
do espaço pelo Bope à UPP.
3. Ocupação definitiva: Um efetivo novo, recém-formado e especializado, vinculado ao batalhão e
subordinado a um comando de polícia comunitária, passa a fazer parte do cenário da comunidade.
É o momento do foco preventivo.
4.Pós-ocupação: Essa etapa é baseada no acompanhamento dos resultados com padrões e objetivos
medidos pelo ISP. Faz-se monitoramento e pesquisa. Aprofunda-se o vínculo com a comunidade
e busca-se estabelecer articulações institucionais.

Julho 2010 81
s u a o p i n i ã o
Amigos de longa data bancários de São Paulo. Nos velhos tempos
trouxemos também Prestes, assim que ele vol-
Queridos amigos,
tou do exílio, e muitos outros.

Sou Fátima, volta e meia estava aí na Rio Branco. Abraços e parabéns pelo importante e bonito
Sou a mãe do Marcus Vinícius, que um dia che- trabalho,
gou na sala e disse: “Já sei o que quero estudar, Gilmar Carneiro
quero ser como o Betinho”. Sabemos que Betinho
“não se aprende na escola”, mas hoje o sociólogo
Marcus Vinicius está em Florianópolis há 12 anos, Contribuir com a revista
professor de sociologia, concursado e, todos os Gostaria de parabenizar a todos os envolvidos
anos, pelo menos uma de suas 40 turmas o chama com a produção, divulgação e qualidade com
para ser o “padrinho”. Alguns aí nos conhecem, que é feita a revista e difundida a democracia
tivemos a honra de contar o feito acima ao próprio em nosso país.
Betinho. Precisamos muito da nossa revista, que
aliás, vocês nunca nos deixaram sem ela. Grato pela atenção,

Fátima Rômulo

RESPOSTA Ações afirmativas


Olá,
Querida Fátima e Marcus Vinícius,
Sou advogada no Rio Grande do Norte e estu-
Adoramos conhecer um pouco mais sobre vocês
dante de Direito Constitucional (especialização)
e ficamos felizes por serem leitores da Democracia
e de Direitos Humanos, tendo pesquisado
Viva e amigos do Ibase há tanto tempo. A foto
bastante a questão das ações afirmativas,
que nos enviaram será guardada com carinho.
especificamente as voltadas para as pessoas
Esperamos conversar com vocês mais vezes.
com deficiência.
Abraços A revista Democracia Viva desenvolve um
Equipe da DV trabalho bastante firme nesse sentido da con-
cretização e afirmação de direitos. Nesse sentido
é que gostaria de poder recebê-la, fomentando,
assim, os estudos a que me dedico. Agradeço
Entrevista com Joel Rufino a atenção e aguardo contatos.
Queridos amigos do Ibase, Saudações
Camila Pinto Gadelha
Sou assinante e divulgador da revista Demo-
cracia Viva e fiquei muito contente em ver a
entrevista de Joel. Eu fui aluno dele no início Nota da redação
de 74, no cursinho CPV pré-vestibular para a
Contamos com a sua colaboração para fazer
Fundação Getúlio Vargas. Eu, Osmar Santos e uma revista cada vez mais interessante. Envie
outros colegas interessantes. Naquela época sugestões e críticas, assuntos que gostaria de
ele foi preso e nunca mais tive notícias. Tantos ler e artigos que serão avaliados e, se possível,
anos depois, através de vocês, revejo Joel e publicados.
Agradecemos por todas as mensagens
suas histórias. Ainda não sou avô, mas poderia
e todos os artigos recebidos no endereço
ser. Minha filha tem 24 anos e faz o curso de eletrônico da revista e no portal do Ibase.
Medicina na Unesp-Botucatu. Agradecemos, também, por todas as cartas
Da mesma forma que, quando eu estava enviadas, informando que, de acordo com a
na Secretaria Geral da CUT, fomos eu e nosso necessidade editorial, essas serão publicadas
de forma resumida.
saudoso Ferreirinha convidar Betinho para
Esperamos que você continue colaborando
falar sobre a campanha da fome na Executiva com a revista Democracia Viva: escreva, opine,
Nacional de CUT, vou conversar com o pessoal critique, mantenha contato!
do Sindicato dos Bancários para convidar Joel
para fazer um depoimento para a diretoria dos <democraciaviva@cidadania.org.br>

82 Democracia Viva Nº 45
s u a o p i n i ã o

Julho 2010 83
última página
Nani
45
A agenda da revista Democracia Viva é ampla

VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com

DEMOCRACIA
a cidadania e com a democracia.

Democracia Viva não se alinha com partidos

nem religiões, mas toma partido desde que

esteja em jogo a possibilidade de aprofundar

a democracia. Não disputa poder, mas quer

exercer um papel de vigilância, monitoramento

e avaliação; com toda autonomia e independência,

das políticas públicas e das ações governamentais,

bem como das práticas empresariais e das

relações econômico-financeiras. Quer ser ativa

como interpeladora de consciências e vontades,

questionando práticas e valores que limitam

a democracia, estimulando a participação cidadã.

Sua qualidade é a força das reflexões, análises,

propostas e dos argumentos.

Julho 2010

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