Professional Documents
Culture Documents
JUlHO 2010
UPPs
Olhares sobre as unidades
de polícia pacificadora
Entrevista
Tânia Bacelar
apoio a esta edição
e d i t o r i a l
Dulce Chaves Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do Cpdoc/FGV
O recente drama provocado pelas chuvas no Rio de Janeiro foi o pretexto para que o
tema das remoções das favelas voltasse com força total. Em contundente artigo, Luiz Antônio Ma-
chado entra no debate e rebate de forma qualificada os argumentos que, a pretexto de salvar a vida
da população favelada, só contribuem para reforçar o apartheid social existente em nossa cidade.
Além de reportagem, trazendo diversas vozes sobre a experiência das Unidades de Polícia
Pacificadoras, as UPPs, a Democracia Viva examinou os principais resultados da pesquisa Juventudes
sul-americanas, recém-concluída, coordenada por Ibase e Instituto Pólis, com o apoio do Centro Inter-
nacional de Desenvolvimento e Pesquisa do Canadá (IDRC). A revista também mostra a importância
do sistema de gestão da informação da economia solidária, o Cirandas, criado a partir de mapeamento
realizado com cerca de 22 mil empreendimentos no país.
Por último, mas não menos importante, gostaria de chamar a atenção para a entrevista
com a socióloga e economista Tânia Bacelar. Ela nos fala sobre nosso processo de desenvolvimento, a
viabilidade do Nordeste, as tensões e os embates que ocorrem entre governo e movimentos sociais, a
diferença entre ganhar o governo e ganhar o poder e o significado das mudanças que estão ocorrendo
no Brasil de hoje. Enfim, como mostra Tânia, governar é administrar conflitos de interesses, e, como
não existe espaço vazio na política, tensionar e disputar são as armas fundamentais para quem quer
fazer avançar o jogo político.
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas
3 ARTIGO Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
O Rio depois da tempestade 20040-916 Rio de Janeiro/RJ
Há culpados? O que fazer? Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
Luiz Antonio Machado da Silva <ibase@ibase.br><www.ibase.br>
Conselho Curador
10 OPINIÃO IBASE Sebastião Soares
João Guerra
Remoções: as palavras e as coisas Carlos Alberto Afonso
Itamar Silva e Renata Lins Nádia Rebouças
Sonia Carvalho
12 NACIONAL Direção Executiva
Eleições de 2010 em Cândido Grzybowski
perspectiva histórica Dulce Pandolfi
entrevista Alexandre Fortes Francisco Menezes
Tânia Bacelar Moema Miranda
16 ARTIGO Coordenadores(as)
Nova forma de gerir informação Antônia Rodrigues
Carlos Aguilar
para uma nova economia Fernanda Carvalho
Eugênia Motta e Daniel Tygel Itamar Silva
João Roberto Lopes Pinto
Luzmere Demoner
20 ENTREVISTA
Renata Lins
Tânia Bacelar
DEMO C RA C IA V I V A
32 CRÔNICA
Alcione Araújo ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral
Diretora Responsável
34 OPINIÃO IBASE Dulce Pandolfi
Por onde caminham os(as) jovens
Conselho Editorial
CULTURA
sul-americanos? Os diálogos de Alcione Araújo
uma pesquisa em rede Cândido Grzybowski
Patrícia Lanes Charles Pessanha
Cleonice Dias
Jane Souto de Oliveira
38 RESENHA João Roberto Lopes Pinto
Márcia Florêncio
40 CULTURA Mário Osava
Moema Miranda
Crise? Que crise? Regina Novaes
Aroeira Rosana Heringer
Sérgio Leite
50 Caderno Especial
Edição
Democracia e governança Flávia Mattar
financeira Jamile Chequer
Revisão
Finanças internacionais Paulo Ferreira
É hora de radicalizar
Bruno Jetin Assessoria de imprensa
Rogério Jordão
Finanças a serviço das pessoas ou
tornar o cassino mais seguro para Produção
os jogadores? Geni Macedo
2 Democracia Viva Nº 45
artigo
Luiz Antonio Machado da Silva*
Há culpados?
O que fazer?
1. Abaixo da linha d’água: O que não costuma ser considerado
Em 2010, o Rio sofreu a mais forte tempestade desde 1916 - ano em que o índice pluvio-
métrico começou a ser medido no Brasil. Era de se esperar que seus resultados devasta-
pelas trágicas consequências sociais. E, como naquela brincadeira infantil em que se vai
retirando cadeira por cadeira até que alguém termine sendo obrigado a ficar em pé, a
responsabilidade sempre acaba sendo atribuída aos favelados, ora vistos como espertos
“invasores ilegais”, ora como incapazes objetos da “politicagem clientelista”, outra maneira
de falar de ilegalidade em relação às favelas. Como quem está na ilegalidade tem um status
público muito restrito e, a rigor, não precisa ser ouvido, sempre que o processo é deflagra-
do, segue-se uma veemente defesa unilateral da remoção das favelas, sempre apresentada
como uma política habitacional objetiva, racional e até benevolente, “em favor da vida e
da dignidade dos favelados”. Tudo isso é tão previsível que seria monótono se não fosse
Julho 2010 3
artigo
Culpas podem e devem ser avaliadas, hierarquia entre os participantes), não são a so-
claro. Os americanos têm um termo, accounta- ciedade civil, isto é, o outro lado do Estado?
bility, para referir-se ao fato de que todos, cada A construção do argumento que
organização e cada pessoa, devem responder sempre desemboca na demanda por mais
– inclusive criminalmente, se for o caso – pelo Estado e menos “favelização”, eterna con-
que ocorre em sua esfera de atribuições. Mas é sequência dos desastres “naturais”, ignora
interessante aprofundar o olhar e expor o que completamente que fala da excepcionalidade
está subjacente as culpas individuais, e o que do Estado nas favelas, e não da falta dele.
desastres como a última tempestade deixam en- Faço uma aposta: não possuo bola de cristal,
trever: a natureza da soberania estatal no Brasil. mas antevejo que nos próximos meses haverá
Creio que seria muito útil começar a discutir intensa intervenção (por sorte, uma boa parte
responsabilidades e soluções neste nível. apenas retórica) nas favelas, e serão intensi-
Em nosso país, o Estado, em todas as ficadas as remoções que, aliás, já estavam
esferas e formas de atuação, administra as dis- mesmo voltando a ocorrer sob a forma de
putas e conflitos entre os vários segmentos que práticas isoladas e não tanto como política
compõem a população pela excepcionalidade. governamental. Mas em pouco tempo tudo
Estranho paradoxo, que só se manifesta com vai se “acalmar” – menos, é claro, para as
alguma nitidez com a interferência do “extraor- famílias removidas nesse ínterim.
dinário natural”, como a tragédia dos dilúvios Continuemos por mais um parágrafo
anunciados (nas chacinas e “abaixo da linha d’água”, isso é, dos termos
nos escândalos financeiros explícitos do debate sobre o que fazer depois da
também, porém com menor trágica enchente. A excepcionalidade não é ape-
Desastres clareza), porque o Estado de nas política, ela também tem lastro econômico.
exceção não é ocasional nem No capitalismo, os trabalhadores ven-
como a última ligado a momentos de crise, dem sua força de trabalho aos donos dos
faz parte da nossa (de todos meios de produção e destes recebem o que
tempestade os moradores da cidade)
vida cotidiana.
Marx chamava de “capital variável”: o equi-
valente, sob a forma de salário, do “trabalho
deixam entrever Tome-se o caso dos
culpados de sempre pelo
socialmente necessário” (outro conceito) para
se reproduzirem e serem capazes de voltar a
4 Democracia Viva Nº 45
O R i o d e p o i s da t e m p e s ta d e . H á c u l pa d o s ? O q u e fa z e r ?
gral do capitalismo, mas é precária por, pelo é uma relação social da qual ninguém escapa,
menos, dois motivos. Primeiro, os recursos todos somos culpados. Porém, na hierarquia
produtivos à disposição dos trabalhadores são das responsabilidades pela tragédia, os menos
escassos, de modo que as habitações resul- culpados, ou seja, os contingentes com mais
tantes são de baixa qualidade ou inacabadas, precário acesso à cidade, são justamente os
e, durante muito tempo, os serviços urbanos, que têm sido desde sempre apresentados
que complementam a habitação e são cole- não como vítimas, mas como autores de sua
tivos por definição ficam faltando. Segundo, própria desgraça. Sua ilegalidade, que no mais
os trabalhadores não dispõem de um meio das vezes é real, mas imposta, é convertida
de produção fundamental: a propriedade da em falha de caráter, ou seja, em esperteza
terra. Daí que, além da escassez de meios de ou ignorância.
produção, só é possível aplicá-los nos interstí-
cios da propriedade urbana. No máximo, boa
2. Ao nível da água: O que todos
parte dos trabalhadores obtém acesso apenas
sabem, mas fica entre parênteses
às piores parcelas da cidade.
Nesse ponto, é interessante um co- Não sejamos ingênuos. Há muita exploração e
mentário adicional. No início da urbanização, dominação entre a massa de trabalhadores, que
a terra não era uma mercadoria, e havia pode ser até mais virulenta que a do “sóbrio
pouquíssimos proprietários. A criação de um capitalismo burguês” ao qual se referia Max
mercado de terras, essencial para a produção Weber. No primeiro artigo que escrevi sobre
imobiliária tal como a conhecemos hoje, foi favelas (em 1967), já usava a metáfora de uma
um longo, difícil e conflitivo processo históri- “burguesia favelada”, para me referir a essas
co que não cabe analisar neste artigo. Aqui, formas menores de capitalismo e política. Atu-
basta indicar algo que tem sido muito pouco almente, o capitalismo nas favelas é muito mais
reconhecido: a tão falada “favelização” foi uma pujante, como todo mundo reconhece, embora
das formas de parcelamento do solo no Rio de continue intersticial e não decisivo. Mesmo um
Janeiro, agregando vastas áreas ao mercado grande proprietário ou “incorporador” nas
de terras urbano, o que só foi possível por favelas do Rio atual, embora integre sua elite,
sua irregularidade do ponto de vista jurídico não é comparável, em termos de disponibilidade
e urbanístico. Nesse sentido, os comentários de capital ou influência política, às grandes
acima sobre a excepcionalidade do Estado empresas do setor. O mesmo pode ser dito
devem ser tomados como contemporâneos a respeito das demais atividades econômicas
da própria formação da cidade, e não como nessas localidades.
algum desvio pouco ortodoxo de seu desen- Também é fato que a grilagem de
volvimento recente. terras urbanas sempre foi bastante difundida,
Essa brevíssima descrição não se refere enquanto isso era viável, pois hoje há pouca
apenas às características da exploração econô- terra passível de ser grilada no Rio de Janeiro.
mica vinculada à produção física da cidade, que Nesse quesito, porém, os favelados não estão
está por baixo da série de catástrofes anuncia- sozinhos. Muito mais importantes do que eles
das das cidades brasileiras como um todo e do são os proprietários de loteamentos (pessoas
Rio de Janeiro em particular. Ela diz respeito individuais ou empresas), responsáveis pelo
também ao que me parece ser o fundamento parcelamento de enormes glebas da cidade,
da dominação política. Regulando certas partes quase sempre com inúmeras irregularidades.
da cidade e certas atividades urbanas, e não Isso, porém, não altera a característica básica
outras, o Estado não está se omitindo destas do desenvolvimento urbanístico segundo a
últimas: está controlando o acesso à cidade produção conjugada do Estado de exceção e
e, dessa forma, dificultando e canalizando boa de suas margens: favelas e loteamentos crescem
parte do esforço reivindicatório dos trabalha- em área e população como uma cebola que se
dores. Em síntese: o Estado cria suas margens descasca: dentro das favelas, regiões cada vez
e delas retira sua força. mais precárias, progressivamente melhoradas
Primeira conclusão: o culpado, não com muito esforço para darem lugar a novas
pelo fenômeno da natureza, mas pela exten- sub-regiões. Variáveis ilicitudes na incorpora-
são de suas consequências, é nosso Estado de ção de loteamentos, criação de favelas nos
exceção. E, como o Estado, pelo menos em loteamentos, “sub-loteamentos” dentro de
todas as sociedades ocidentais como a nossa, loteamentos etc.
Julho 2010 5
artigo
6 Democracia Viva Nº 45
O R i o d e p o i s da t e m p e s ta d e . H á c u l pa d o s ? O q u e fa z e r ?
Julho 2010 7
artigo
* Luiz Antonio Para terminar o diálogo, eu gostaria de de que os removidos tenham se beneficiado com
Machado da Silva fazer um último comentário. consequências indiretas da remoção. De minha
Iuperj/Ucam e IFCS/UFRJ parte, acredito que as condições materiais (para
lmachado@iuperj.br Sérgio Besserman: "A Lagoa Rodrigo de Frei- não falar das sociais, culturais etc.) de vida desse
tas, cartão-postal da Zona Sul carioca, é um contingente provavelmente terão piorado. Desse
caso emblemático dos aspectos positivos que modo, ainda que a soma do jogo tenha sido maior
podem se seguir a uma remoção. Quando do que zero, o resultado está longe de indicar que
uma favela foi retirada dali, em 1970, os imó- todos os jogadores se beneficiaram.
veis da região, cujos valores vinham sendo Mas há outro aspecto das remoções na
depreciados, inverteram a curva e passaram a Lagoa que eu gostaria de comentar. Sergio Bes-
se valorizar, aumentando a riqueza do bairro serman refere-se à Catacumba, sem nomeá-la.
e da cidade, em benefício de todos." Mas algo semelhante ocorreu com a Praia do
Pinto. Esta também valorizou o entorno após a
Não conheço estimativas a respeito, mas “retirada” que se seguiu à quebra da resistên-
admitamos que a destruição dos “ativos” (os cia dos moradores, decorrente da mais explícita
barracos) dos favelados tenha sido mais do que violência: a prisão dos líderes e o incêndio do
compensada pela valorização dos “ativos” do local (que foi sabidamente criminoso, embora
entorno. Em primeiro lugar, para continuar nessa isso nunca tenha sido provado). Considero que
linha de reflexão, é mais do que evidente que tal uma análise que se pretenda livre de ideologia,
processo embute, na prática, uma transferência objetiva e racional das remoções não deveria
financeira dos favelados para os moradores do ter omitido um comentário sobre o caso da
bairro, até porque não há nenhuma indicação Praia do Pinto.
..
sol vido.
le m a re
Prob
8 Democracia Viva Nº 45
Julho 2010 9
ibase
opinião
Itamar Silva e Renata Lins *
Remoções:
as palavras
e as coisas
É preciso deixar claro, sem delongas nem tergiversações, que somos contra a remoção
questão das remoções volta a ser discutida. Urbanização implica necessariamente inves-
timento no território: mas a urbanização capitalista não tem como fim o uso do solo por
seus moradores, e sim a especulação com a terra e a os imóveis. Por isso, as Olimpíadas são
um momento perfeito para que se traga de novo à tona a antes maldita ideia da remoção.
Fala-se sem pejo que “as favelas são lugares em condições subumanas. Por isso, vai ser bom
para todo mundo que elas sejam removidas”. Quem é todo mundo, cara pálida?
É bom que se diga que a palavra remoção não mete medo: palavras não metem
10 Democracia Viva Nº 45
Remoção de quantos? Do que é que se tanto direito à cidade quanto os da Barra - que * Itamar Silva e
está falando? Qual é a população envolvida, (será que alguém lembra?) também não estava Renata Lins
cujas vidas vão ser mudadas ao sabor dos tra- urbanizada na década de 70, quando houve a Coordenadores do Ibase
çados do Comitê Olímpico Internacional, com expansão da cidade para lá. Aliás, não está até
a justificativa de que São Pedro, que enviou as hoje. Nem por isso se fala em remover a Barra.
grandes chuvas, não está ajudando? E aqui se chega à questão central que queremos
Vamos pensar juntos. 119. Imaginem um destacar: o problema é de cidadania e não de
conjunto de 119 pessoas em pé. Ocupa espaço, “área de risco”. As áreas de risco são definidas
né? Agora imaginem que não são pessoas, são e redefinidas ao bel-prazer dos governantes.
famílias. Mais espaço. Vamos adiante, imagi- Com propósitos diversos e distantes daquela que
nando ainda: não são famílias, são favelas. 119 deveria ser a prioridade máxima: o bem-estar dos
favelas. Cuja opinião não foi ouvida. Ou não foi cidadãos do Rio de Janeiro.
considerada. Nada se aprendeu com o malfa- E, com foco no bem-estar e no resgate
dado legado do PAN, que nada deixou senão da cidadania plena, podemos nos permitir so-
prédios em terrenos pouco seguros (vejam a nhar. Com governantes que façam uma ação
ironia... os prédios construídos pelas empreiteiras única e continuada para todas as favelas e
do PAN estão em terreno que não é próprio!). E bairros de periferia do Rio: uma ação integra-
os nossos atuais governantes, nascidos e criados dora, que contemple urbanização, transporte,
na lógica da Barra - compartimentada, dividida, instrumentos de geração de trabalho e renda
onde não há espaços públicos, onde se sai de locais, escolas, postos de saúde, médicos, pro-
carro de condomínio para condomínio -, não fessores, serviços culturais. Segurança, sim. Se-
conseguem nem conceber que alguém queira gurança treinada para trabalhar com cidadãos,
morar em uma favela. Não conseguem conceber que somos todos, no morro ou no asfalto. Uma
o que é uma favela. ação realizada em conjunto e com consulta à
Favela: uma palavra maldita na década população. Aí sim, estaremos construindo uma
de 90, quando foi substituída pelo eufemismo cidade digna. De Copa, de Olimpíadas. Mas,
“comunidade”. Substituída e depois recuperada. sobretudo, de seus moradores.
Por seus moradores, pelo movimento de favelas,
porque deram-se conta de que as palavras têm
peso. E essa palavra conta uma história. Conta
de Canudos e do Morro da Favela. Conta de
migrantes e de falta de poder público. Conta
de sonhos de cidade grande, de redes de solida-
riedade, de Joões, Franciscos, Antonios, Marias,
tantos que vieram, que construíram, que foram
deslocados e deslocados de novo para novos
territórios que, de novo, foram abandonados
pelo poder público. Favelizaram-se.
E agora? Dada a situação de fato (as
favelas estão aí, existem, fazem parte da trama
urbana do Rio de Janeiro), o que se faz? A pro-
posta dos governantes é uma só: remover. Para
onde, para que, ninguém diz. Quando e como,
ninguém sabe. O que se quer é “fazer limpeza”.
Tirar os favelados do caminho da Copa, das
Olimpíadas. Fica feio. Fica bagunçado.
E, no entanto, há outras soluções. Caso
se considere que os moradores da favela têm o
mesmo direito ao território que os do asfalto,
há meios e maneiras. Se há risco, e for neces-
sário reorganizar o espaço, por que não? Com
obras, com contenções, dá para preparar o
território para os moradores. Que, mais uma vez
( para reforçar uma idéia que parece boba de
tão óbvia, mas não está na ordem do dia), têm
Julho 2010 11
nacio
nacional
Alexandre Fortes*
Eleições de 2010
em perspectiva
histórica
A indicação mais óbvia de que a eleição presidencial de 2010 marca o fim de uma era
é que, pela primeira vez em duas décadas, os brasileiros não terão a opção de votar no
ex-sindicalista metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Paradoxalmente, essa retirada de cena
Evidentemente, a popularidade de um líder, por si só, nos diz pouco sobre o seu
Obama, indicando Lula como “o político mais popular da Terra”, não são, em hipótese
medíocre aprovação obtida por Fernando Henrique Cardoso – primeiro presidente reeleito
12 Democracia Viva Nº 45
onal
em toda a nossa história – ao final do seu se- qualquer alteração das regras do jogo político,
gundo governo. A comparação mais adequada como ocorrera com seu antecessor e continuava
seria, de fato, com o único outro líder político a ocorrer em vários dos países vizinhos ao longo
que se tornou a referência central da política do seu próprio mandato.
nacional por várias décadas, polarizando-a entre Deve-se lembrar ainda que a popularida-
seus apoiadores e opositores: Getúlio Vargas. de de Getúlio entre as massas não estava dada
Em termos cronológicos, os 21 anos quando da sua chegada ao poder. Ela começou
transcorridos entre a façanha realizada por Lula a ser construída, de fato, mais de uma década
ao chegar no segundo turno das eleições de depois. A máquina do Estado Novo realizou bem
1989 e o final do seu segundo mandato já se sucedida combinação entre, de um lado, bene-
aproximam dos 25 anos que separam a primei- fícios concretos e simbólicos proporcionados
ra candidatura de Vargas do seu suicídio, em aos trabalhadores e, de outro, a introdução de
1954. E a extensão da trajetória política do atual técnicas de propaganda estatal até então inéditas
presidente continua em aberto, já que ele não no país. A consolidação de sua imagem de “pai
demonstra nenhuma pressa em “sair da vida dos pobres” se deveu muito ao silenciamento
para entrar na História”. Mas, evidentemente, da oposição, com amplo uso da censura e da
em termos de origem social e dos caminhos repressão política, e foi fortalecida posteriormen-
de construção de liderança política, nada mais te pelo contraste com o governo abertamente
distante de Lula do que Vargas. antipopular do general Eurico Gaspar Dutra.
Antes de 1930, o latifundiário gaúcho Voltando ao poder “nos braços do
fizera uma bem sucedida carreira política con- povo” em 1950, Vargas enfraqueceu-se drama-
vencional para os padrões de uma República ticamente pela incapacidade de equacionar as
oligárquica (deputado, ministro, governador). ambiguidades constitutivas de sua base de sus-
Fracassou na sua primeira tentativa de eleição tentação política num ambiente democrático,
à Presidência, chegando a ela pela articula- tal como fizera anteriormente ao governar por
ção de um movimento de elites dissidentes quinze anos sem passar por eleições nacionais.
com apoio de importantes setores das Forças Seu legado só foi salvo por um gesto extremo
Armadas. Uma vez no poder, manobrou com de sacrifício pessoal que o transformou, de
maestria para nele permanecer, explorando as um dia para o outro, de um líder encurralado
contradições entre seus opositores nas classes e desgastado em objeto de culto, e projetou
dominantes, enquanto reprimia sistematica- sua sombra no cenário político nacional por
mente as tentativas de organização autônoma mais dez anos. Ainda assim, o herdeiro político
dos trabalhadores. Não titubeou em se lançar por ele escolhido, João Goulart, jamais sequer
no caminho da ditadura aberta quando lhe ousou concorrer à Presidência, pois tinha cons-
foi conveniente. ciência de que o legado de Vargas não fazia dele
Já o retirante nordestino trilhou os cami- automaticamente um candidato viável.
nhos do sindicato, das greves, da fundação de Portanto, voltando ao contexto atual,
um partido político organizado com base em podemos concluir que, independente do resul-
lideranças de movimentos sociais, das caravanas tado eleitoral, o Brasil se prepara para conviver
pelo interior do país e das sucessivas derrotas com uma situação historicamente inédita.
eleitorais até chegar à Presidência e nela per- Um presidente democraticamente eleito deixa
manecer pela força das urnas, sem promover o poder após oito anos e tudo indica que,
Julho 2010 13
nacional
14 Democracia Viva Nº 45
e l e i ç õ e s d e 2 0 1 0 e m p e r s p e c t i va h i s t ó r i ca
2002 e como governador de São Paulo desde e melhor remuneração do funcionalismo) será * Alexandre Fortes
2007. Consequentemente, possui muito mais rompida ou, na melhor das hipóteses, conge- Doutor em História
experiência para lidar com os riscos da exposição lada, caso ele seja vitorioso. pela Unicamp e
em uma campanha presidencial. Outro aspecto que diferencia fortemente professor da UFRRJ
Em termos da construção de uma linha as duas principais candidaturas diz respeito às (Campus Nova Iguaçu)
de campanha, o principal desafio dos dois can- perspectivas de continuidade do processo de
didatos será credenciar-se junto ao eleitorado distribuição de renda que fez emergir no Brasil
como a alternativa mais segura para a continui- o embrião de um mercado interno de massas.
dade e aprofundamento das conquistas sociais Juntamente com o resgate do papel do Estado,
obtidas sob o governo Lula. Para isso, Dilma comentado acima, a distribuição de renda pos-
precisará não apenas ampliar o conhecimento sibilitou ao país atravessar suavemente a maior
público de que ela é a sucessora escolhida pelo tempestade econômica mundial em oitenta
presidente, mas também demonstrar a capaci- anos. Novamente, não se trata de um problema
dade de liderança e a autonomia esperadas de ideológico abstrato. Trata-se sim de estabelecer
um(a) presidente da República. uma relação entre a base social de apoio de
Já Serra enfrentará tarefas ainda mais cada candidato e as condições políticas necessá-
difíceis. Uma delas é desvencilhar sua imagem rias à viabilização dessas políticas distributivas.
do saldo social e econômico negativo registra- Apenas para servir de exemplo, é razoável supor
do particularmente no segundo mandato de que, sem o fortalecimento do poder de pressão
Fernando Henrique Cardoso, que pavimentou o das centrais sindicais e a disposição para a ne-
caminho para a eleição de Lula. Outra é furtar-se gociação do governo federal, o aumento real
à comparação, amplamente desfavorável, entre continuado do salário mínimo, apontado como
as suas realizações como governador e as de a medida redistributiva de maior impacto nos
Lula como presidente. Obviamente, o candidato últimos anos, não teria ocorrido e que, por isso
tucano conta com a complacência e o apoio mesmo, esse fato, provavelmente, deixaria de
da grande mídia nacional, mas na reta final ocorrer num eventual governo Serra.
da campanha os governistas terão um tempo O Brasil ainda está longe de consolidar as
de televisão que lhes permitirá explorar essas mudanças estruturais necessárias à superação do
questões de forma detalhada e abrangente. seu longo histórico de profundas desigualdades
Do ponto de vista programático, haverá sociais e o nosso sistema político permanece afe-
certamente muitos pontos de convergência en- tado por sérios vícios e distorções. Mesmo assim,
tre os discursos dos dois favoritos. Serra jamais podemos dizer que a atual corrida sucessória
abraçou o fundamentalismo neoliberal e defen- ocorre num cenário em que podemos vislumbrar
de a importância da intervenção do Estado na diversos elementos positivos, especialmente se
gestão da economia. A ênfase na necessidade tivermos em mente a comparação com outros
de um “choque de gestão”, entretanto, traz momentos vividos na curta e acidentada expe-
embutida a defesa da crescente introdução riência democrática nacional.
de mecanismos e padrões administrativos da Em primeiro lugar, a chegada do pri-
iniciativa privada nas instituições públicas. Do meiro líder popular à Presidência da República
mesmo modo, a ideia de que a competição e a sua consolidação como novo referencial
é a principal geradora de eficácia certamente da história política nacional não implicou no
levaria, num eventual governo Serra, ao forta- enfraquecimento do sistema partidário, nem
lecimento dos setores privados em áreas como alimentou qualquer tentação de continuísmo
educação e saúde. personalizado no poder.
A introdução de parâmetros de “produ- Em segundo, o país apresenta, nos úl-
tividade” exógenos no setor público pode levar timos anos, indicadores econômicos e sociais
à sua descaracterização e à perda de qualidade expressivos, que fortalecem a convicção de
nos serviços prestados, como já se verificou em que há bases consistentes para a geração de
governos tucanos nas diversas esferas. Portanto, avanços muitos maiores no que diz respeito à
malgrado o fato de Serra defender em teoria um garantia de condições dignas de existência para
Estado “robusto”, na prática a recomposição da a população brasileira. Resta aos cidadãos e
capacidade reguladora do Estado gradualmente cidadãs do país escolher, dentre as coalizões e
iniciada sob Lula (com o fim das privatizações, a candidaturas apresentadas, a que demonstra
ampliação da capacidade de investimento públi- maiores compromissos e condições de avançar
co, o fortalecimento da área social, a renovação nesse sentido.
Julho 2010 15
artigo
Eugênia Motta e Daniel Tygel*
Nova forma de
gerir informação
para uma
nova economia
A economia solidária é um campo social de inovação no que diz respeito a arranjos eco-
nômicos baseados na autogestão. Uma nova forma de fazer economia precisa fortalecer
que pretende ser um instrumento de gestão de informação que esteja de acordo com os
serviços, geralmente mediados pelo dinheiro. Mas para que ocorram as transações que
16 Democracia Viva Nº 45
Um dos circuitos invisíveis da economia constituição de políticas públicas e possibilitar que
é o da informação. Possivelmente, qualquer o levantamento de dados fosse um momento de
um de nós reconheceria que a informação é mobilização e divulgação. O resultado de dois mo-
importante para a economia, mas dificilmen- mentos distintos – em 2005 e 2007 – de trabalho
te consideramos e percebemos isso na vida de campo de abrangência nacional para aplicação
cotidiana. Se admitimos que a circulação de de questionários é um banco de dados inédito no
informação é uma parte central daquilo que mundo, que contém informações sobre cerca de
reconhecemos como economia, podemos per- 22 mil empreendimentos em todo país.
ceber também que existem formas específicas Os desafios da produção de conheci-
associadas a tipos específicos de negócios. mento coerente com os princípios de partici-
Na produção voltada para o lucro, a pação da economia solidária não terminaram
informação é tanto mais relevante e valiosa com a construção de uma base de dados. A
quanto mais exclusiva. Aquilo que se sabe sobre utilidade das informações para pesquisadores,
como funcionam os governos, os gostos dos e para o desenvolvimento de políticas públicas,
consumidores e consumidoras e os concorren- era inegável e, certamente, se reverteria no
tes é valioso instrumento para quem planeja a fortalecimento da economia solidária. Mas, o
execução de ganhos no mercado capitalista. A segundo desafio colocado, desde as primeiras
espionagem, as garantias de segredo industrial, formulações sobre uma pesquisa nacional, era
o valor das patentes e a propriedade intelectual fazer com que essas informações pudessem ser
são a outra face da informação como objeto de utilizadas pelos seus próprios protagonistas.
apropriação de poucos. Um sistema que pudesse ser utilizado
Hoje, para além de explicitar que a pelos empreendimentos seria uma forma de
informação, da forma como está organizada utilizar a internet, um espaço por definição
usualmente na economia capitalista, é parte livre e horizontal, para apoiar a construção de
fundamental do funcionamento dos circuitos conexões entre empreendimentos solidários do
concentradores de riquezas (materiais e imate- país. Assim, as informações do mapeamento
riais), devemos apontar para uma gestão que começaram a ser usadas no que foi chamado
se alie aos objetivos da Economia Solidária. Sistema FBES, hoje conhecido como Cirandas.
Um sistema de gestão de informação voltado
para esse campo deve ter como princípio que
O que é o cirandas.net?
quanto mais descentralizadas as informações,
mais vantajoso deve ser para todas as pessoas. O Cirandas representa o casamento entre a
Isso significa colocar em prática e potencializar virtualidade da internet e a territorialidade da
as vantagens do princípio da cooperação e da realidade da economia solidária, possibilitando
inteligência coletiva sobre o da concorrência. a conformação de um novo tipo de espaço, no
qual a informação compartilhada pode diminuir
distâncias. Uma iniciativa na qual a inteligência
Construção participativa de
gerada pelo compartilhamento irrestrito entre
conhecimento
os atores, mas organizado de acordo com as
A necessidade de conhecer os empreendi- práticas concretas, é capaz de desafiar as bar-
mentos solidários pôde se transformar numa reiras do espaço físico.
política efetiva e nacional a partir da institucio- O sistema é uma iniciativa do FBES e
nalização dos dois principais atores nacionais tem como principais objetivos potencializar
da economia solidária, em 2003. O Fórum Bra- o fluxo de saberes, produtos e serviços da
sileiro de Economia Solidária (FBES) e a Secre- economia solidária; oferecer ferramentas para
taria Nacional de Economia Solidária (Senaes) consolidação de redes e cadeias solidárias;
estabeleceram uma parceria para realização do ser um espaço de divulgação da economia
chamado Mapeamento, que veio a constituir o solidária e de busca de seus produtos e servi-
Sistema de Informações em Economia Solidária ços para consumidores individuais e coletivos
(Sies). Com o compromisso de que fosse um (públicos, privados e grupos de consumidores)
processo coletivo, a pesquisa foi organizada e permitir a interação entre vários atores em
de forma que houvesse participação de todos comunidades virtuais e espaços territoriais,
os atores da economia solidária. temáticos e econômicos.
O mapeamento tinha como objetivos ser O Cirandas está baseado em quatro
confiável tecnicamente, servir como base para a pilares fundamentais.
Julho 2010 17
artigo
18 Democracia Viva Nº 45
N o va f o r m a d e g e r i r i n f o r m a ç ã o pa r a u m a n o va e c o n o m i a
pessoas fazerem gestão de listas coletivas empreendimentos solidários de produção, * Eugênia Motta
de compras, encontrando fornecedores de comercialização, de serviços e de con- Antropóloga,
no Cirandas, além de instituições públicas sumidores, além de funcionalidades para pesquisadora do Ibase
ou privadas poderem lançar na forma de fóruns, redes e entidades poderem organizar
Daniel Tygel
“pregão solidário” suas necessidades de planejamento e logística solidária.
Físico, membro da
compras que serão divulgadas ao conjunto
Secretaria Executiva
de empreendimentos no sistema); a dispo- • Interoperabilidade e protocolos de co-
do Fórum Brasileiro de
nibilização de informações relacionadas municação com outros sistemas Economia Solidária
aos critérios do comércio justo e solidário O Cirandas não é concebido como único e
(apresentação da composição do preço, exclusivo no oferecimento de ferramentas
origem dos insumos e matérias-primas, para empreendimentos de economia soli-
certificações etc). dária e para as redes, fóruns e conselhos
O pilar econômico é a inteligência mais existentes nos territórios. Desde o início, tem
profunda do sistema, que marca seu grande como base a interoperabilidade, ou seja,
diferencial como um sistema da economia a capacidade de dialogar e interagir com
solidária, e contempla funcionalidades para outros sistemas, portais, sites e softwares
existentes e em uso, tanto via web como
softwares desktop .
O Cirandas é uma experiência em
andamento que procura aliar o que há de
mais avançado no que diz respeito à ges-
tão de informação em espaços na internet
à construção de uma nova concepção
sobre a gestão de informação que atenda
à necessidade de uma economia justa. É
um sistema construído para e pela nova
economia possível e necessária, solidária
e democrática.
Sistemas avançados de informação,
logística e organização das redes e cadeias
solidárias podem e devem ser desenvolvidos
pela e para a economia solidária como
parte da estratégia de consolidação das
bases para um desenvolvimento sustentá-
O "Farejador" permite identificar empreendimentos vel, solidário, democrático e diverso a partir
pelo que produzem dos territórios.
Responsabilidade compartida
A proposta política da economia solidária se baseia na necessidade de tornar visível aquilo que está
envolvido na economia e que foi tornado invisível pelo capitalismo, na construção do consumo como
forma privilegiada de expressão das pessoas e do trabalho subordinado como obrigação inescapável de
(quase) todas as pessoas. Apagar a relação entre a forma de produzir e consumir e, por exemplo, o lixo,
a ocupação das cidades, a violência e até as guerras nos faz acreditar que não temos responsabilidade
sobre o que ocorre a nossa volta, fora da nossa própria casa, e da relação com os que nos são mais
próximos. Mais do que isso, faz com que as responsabilidades sejam atribuídas de forma injusta.
A economia solidária está baseada na democracia e na horizontalidade com valores éticos, mas
também como formas de gestão, em todos os âmbitos e esferas que envolvem as trocas econômicas. A
distribuição equitativa dos ganhos, o consumo responsável, a transparência e o conhecimento livre são
modalidades de relação presentes na proposta da economia solidária. Da mesma forma, como perspectiva
transformadora, a circulação de informação e a forma como está organizada devem estar de acordo com
os propósitos de uma economia que não seja concentradora. Os bens comuns não podem ser objeto de
apropriação privada, mas permanecer como riqueza coletiva.
Julho 2010 19
ENTRE En t r e v i s t a
VISTA
Tânia Bacelar de Araújo
Democracia Viva (DV) – Onde você
nasceu e como era a dinâmica da
sua família?
Tânia Bacelar – Nasci em 1944, no Recife, no
mesmo local onde moro hoje. Era a casa de meu
A socióloga e economista construiu uma avô que eu e meus irmãos depois transformamos
trajetória profissional recheada de momentos em um prédio. Vivemos todos lá. Minha mãe não
trabalhava. Meu pai, Tércio Bacelar, era médico
marcantes para a história do Brasil. Um
da Polícia Militar, foi diretor do Hospital da PM.
aspecto relevante na sua carreira foi a atuação Era daqueles médicos, clínico geral, que conhe-
na Superintendência do Desenvolvimento ciam o pai, a mãe, o filho, receitava por telefone,
do Nordeste (Sudene), onde começou passava duas horas em uma consulta. O pai dele
a trabalhar em 1966, quando ainda era era comerciante e tinha dois engenhos. Ele era
estudante universitária, tendo chegado à de Vitória de Santo Antão e minha mãe, de Mata
Grande. Isso era interessante porque Vitória de
diretora de Planejamento Global (1985/86).
Santo Antão é da Zona da Mata e Mata Grande é
Sua histórica ligação com a Sudene não a o sertão brabo. Os dois tinham formações muito
afastou de outras experiências. Em paralelo, diferentes, hábitos muito diferentes.
lecionava na academia, onde está até hoje. DV – Você tinha a fama de ser
Tânia também ocupou cargos públicos. Foi a melhor aluna do colégio. Era
secretária de Planejamento (1987-88) e da mesmo?
Tânia Bacelar – Gostava muito de estudar.
Fazenda de Pernambuco (1988-90), secretária
Estudei no Colégio Regina Pacis, de freiras, em
de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente Pernambuco. Tive um bom lastro na formação
do Recife (2001-02) e secretária Nacional de fundamental. Depois, no Colégio Vera Cruz, mais
Políticas Regionais do Ministério da Integração aberto. Tenho esse lado da formação católica,
Nacional (2003). “Foi um aprendizado enorme, mas não sou católica praticante, apesar de, na
tive uma leitura da política que não tinha. Fui minha formação, esse lado pesar. Desde criança,
dizia que ia ser advogada. Fiz o curso Clássico
três vezes secretária em governos de ruptura”, pensando nisso. Fiz teste vocacional no terceiro
avalia. Tânia também foi convidada, e integra ano e a psicóloga falou: “Olha, você dá para
até hoje, o Conselho de Desenvolvimento tudo, menos para advogada. Se quiser ir para a
Econômico e Social da Presidência da área de Exatas, dá. Se quiser fazer Arquitetura,
República, o Conselhão, formado por 13 dá. Se quiser fazer área de Ciências Sociais, dá.
ministros e 90 representantes da sociedade Mas não lhe recomendo fazer Direito”.
DV – E aí você desanimou?
civil. Na entrevista, nos conta sobre sua Tânia Bacelar – Eu pirei. Eu queria ser
trajetória de vida, fala sobre crise financeira e criminalista e ela disse: “Você dá para tudo,
reforça o potencial do Nordeste: “O Nordeste menos para criminalista, porque tem
é viável, gente!” que ser uma pessoa com perfil frio,
20 Democracia
Democracia Viva
Viva Nº
Nº 44
45
agressivo. Você vai ser um fracasso se escolher
essa profissão”. Fiz vestibular na Faculdade de
Filosofia de Recife para Ciências Sociais. Comecei
a cursar e, no primeiro ano, tive a disciplina
Economia. O professor era Roberto Cavalcanti,
uma pessoa muito bem formada. Ainda hoje o
admiro, apesar de ele defender ideias bastante
conservadoras. Naquela disciplina, pensei: “Isso
tem a ver comigo”. Fiz os dois cursos ao mesmo
tempo. Quando estava no terceiro ano de Ciên-
cias Sociais e no segundo
de Economia, comecei a
trabalhar na Sudene. Foi
o começo da minha
vida profissional.
Julho 2010 21
entrevista
22 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar
um curso multidisciplinar, com área de domínio Existia na legislação brasileira uma taxa de 3%
conexo em economia. Nossa especialidade vai do Imposto de Renda e do IPI para o Nordeste.
ser Geografia Humana e Regional, então eu Era como se fosse um fundo que servia como
queria que você viesse para cá”. Eu fui para lá, orçamento do órgão. Ela não disputava dinheiro
fiz concurso e fiquei. Então, ensino Geografia no orçamento anual. Eram feitos planos diretores
desde 1979. Sempre agradeci a ele. Eu fui para plurianuais para usar esse dinheiro.
Geografia e achei uma maravilha. O lado reformista da proposta foi morrendo
DV – Por que os militares tinham e o dinheiro estável foi tirado. A Sudene foi
medo da Sudene? ocupada por militares, a direção comandada por
Tânia Bacelar – Porque a elite nordestina Furtado toda foi decapitada e ela levou um golpe
tinha medo. A Sudene tinha feito um trabalho forte na reforma tributária, na Constituição que
bom e os militares tinham medo dela. A equipe fizeram depois na ditadura, em 1966. Passou a
toda era muito politizada, antenada com a vida disputar o orçamento anual, não sabia quanto
do país. O projeto não era revolucionário, mas teria no ano seguinte, gerando uma fragilidade
reformista. Tinha a proposta de mudar a Zona estrutural. Ela não morreu ali porque perdeu o
da Mata, produzindo alimento lá. E mudar dinheiro orçamentário, fixo, estável, mas ganhou
a estrutura fundiária do agreste e do sertão. a dinâmica do sistema de incentivo. Foi quando
A lei de criação da Sudene passou um ano surge a segunda Sudene, a dos incentivos. Ela
no Congresso e foi aprovada, em 1959, pela perdeu força no projeto reformista porque com
bancada progressista do Nordeste com o apoio o dinheiro fixo é que se fazia pesquisa, formava
da bancada progressista do Sudeste, contra a gente. Mas os incentivos ganharam dimensão
bancada oligárquica do Nordeste. e ela virou uma agência de administração dos
DV – O que ocorreu com a chegada incentivos. E como era dinheiro significativo,
dos militares? mudou a indústria da Bahia, de Pernambuco, do
Tânia Bacelar – Podemos dizer, para sim- Ceará, mas não era esse o projeto inicial.
plificar, que existiram duas Sudenes. A de Celso DV – O governo militar então
Furtado, em um Brasil saindo de Juscelino e ainda esvaziou a Sudene?
sem ditadura. Era reformista, desembarcou no Tânia Bacelar – Esvaziou, botou um general
Nordeste com uma proposta de mudar a reali- na direção cuja esposa era, por coincidência,
dade da região. A Sudene nasceu muito forte, cliente do meu pai. Veja que mundo pequeno:
ligada diretamente ao presidente da República, um belo dia, chega esse cidadão na minha casa,
com status político e orçamento garantido. eu ainda era solteira, e ele foi buscar meu pai de
Julho 2010 23
entrevista
24 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar
A massa da população era produtora, mas ção teve que fazer? Vender o milho e o feijão
não tinha terra, entrava na terra pela meação. que antes usava para comer. Assim, começou
Isso era bom para o proprietário do latifúndio a haver problema de desnutrição grave no
porque ele fazia um sistema de rotação com o semiárido. Quem salvou a população? A trans-
gado que permitia plantar o milho e o feijão, e ferência da Previdência.
depois o algodão do trabalhador sem terra, que DV - E agora, o Bolsa-família?
adentrava na terra pela relação de parceria. Essa Tânia Bacelar - Sim. A Constituição de
parceria era tranquila. Ele produzia no ano bom, 1988 segurou os velhos, e o Bolsa-família se-
o proprietário financiava, na hora da colheita gura as mulheres. O volume de transferência da
era feita a conta, sempre desfavorável a quem Previdência ainda é maior do que o do Bolsa-
produzia. Segundo Furtado, o problema do família. E evitou a migração em massa. Hoje,
semiárido não é o ano seco, mas sim o ano bom tem uma disputa de duas tendências: uma é
porque é quando as pessoas produzem, mas a da elite, de fazer os grandes perímetros de
não acumulam. Era uma estrutura consolidada irrigação, que é um dos eixos da transposição,
que levou 400 anos e só reproduzia miséria. O levar água para onde tem terra boa, mas não
problema não é o ano ruim que vai haver de tem água. Mas isso é o modelo de quem pode.
tempos em tempos porque é uma região que Quem não pode, convive com o semiárido. E
tem chuva irregular. O problema são as relações aí têm coisas muito interessantes ocorrendo no
sociais que estão montadas nesse modelo que é Nordeste para esses que ficaram sem algodão,
inviável. Tinha que quebrar o modelo. E ele não que não têm terra porque a estrutura fundiária
conseguiu quebrar. não foi tocada.
DV - E veio a crise do algodão. DV – E há uma série de projetos
Tânia Bacelar – Nos anos 1980, acabou de convivência com o semiárido.
o algodão. E o algodão levou de arrasto a Como você analisa isso?
pecuária. Quando terminava a colheita, sol- Tânia Bacelar - As alternativas são
tavam o rebanho em cima do algodoal, para buscadas a partir da convivência, e isso é
parte da alimentação do gado. Quando tiravam interessante. A preocupação com a ecologia
a pluma do algodão para ir para a indústria está na agenda como nunca. Por exemplo,
têxtil, o caroço era triturado e transformado em quando entrei na Sudene, não se discutia
ração para o animal. Então havia alimentação ovino e caprinocultura. Existia um preconceito
a custo zero, importante para a pecuária. O contra o comércio de bode. Só que a carne
cara que produzia não recebia nada por isso dele é mais saudável que a do gado. O leite é
e, quando fazia a conta do que tinha sido mais caro, o queijo é maravilhoso. Na França,
financiado, ficava com quase nada. A política queijo de cabra é tratado como especiaria e
de açudagem foi uma política que reforçou esse no Nordeste era considerado coisa de pobre.
modelo. Quando teve a primeira grande seca Uma das grandes dificuldades de se criar bode
do Nordeste, em 1877, morreu muito gado. é conhecer o manejo do rebanho, porque é
Depois que eles fizeram a política de açuda- criado solto. O bode está sendo visto como
gem, não morria mais. Na verdade, a política alternativa econômica, um animal menor, que
de açudagem foi importante, mas fortaleceu come menos e que tem uma cadeia produtiva
um modelão que estava lá estruturado. E a que pode ser tão boa quanto a outra. Hoje,
Sudene criticava esse modelo porque refor- também existe uma produção de mel no Piauí.
çava o poder do pecuarista. Não melhorava É um dos tais arranjos produtivos locais exitosos
o poder da maioria, não chegava ao pequeno do Nordeste. Há, entre outras, experiências com
produtor, além do que tinha a luta pela água. flores tropicais na Paraíba e no Ceará.
Os açudes ficavam nas grandes propriedades. DV – E isso é uma novidade?
A água era um elemento de dominação forte Tânia Bacelar – Sim, é uma novidade. E
sobre as pessoas. hoje muitos deles produzem para exportação.
DV – Como ficou a geração de No Rio Grande do Norte, por exemplo, na Serra
renda das famílias, sem o algodão? do Mel, tem-se uma produção muito boa de
Tânia Bacelar – As pessoas foram salvas castanha para exportação. Mas aí foi preciso
pela redemocratização, pela transferência da fazer a reforma agrária, o governo foi lá e de-
Previdência rural na Constituinte de 1988. sapropriou, criou o assentamento, que vende
Quando acabou o algodão – embora modesta castanha orgânica para Suíça. O que eles pro-
– era a única fonte de renda, o que a popula- duzirem, a Suíça compra. O fim do algodão fez
Julho 2010 25
entrevista
26 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar
isso que eu resolvi ser e gastei todas as minhas familiar está na base da Contag. Eles têm um
fichas, e como atender a essa nova janela de projeto claro de Brasil rural com gente, de de-
oportunidades que está aí, que vem da política fesa da agricultura familiar. O movimento da
energética e da demanda de alimentos. E as reforma urbana também defende teses muito
duas estão no mundo rural. importantes para um Brasil melhor.
DV – Isso também volta para DV – Parece a sua visão sobre
a produção ovino-caprina no desenvolvimento. Você valoriza o
Nordeste, certo? Em vez de soja, desenvolvimento local, mas, por
poderíamos exportar queijo outro lado, acha que tem que estar
de cabra? integrado.
Tânia Bacelar – Parte grande da elite em- Tânia Bacelar – Tem que dialogar com
presarial, política e acadêmica não acredita na a visão nacional se não a gente se perde no
agricultura familiar. Eu já assisti muito debate atomizado. O Brasil ainda é um país em pro-
em que se diz que isso é coisa de pobre, que cesso de construção. O modelo nem deve ser
a cabra não tem viabilidade econômica. Quem o centralizado, que é uma tragédia, nem é o
segurou o tranco foram os movimentos soci- da descentralização atomizada. É preciso um
ais. Eles defendem um Brasil rural com gente. norte único: sabermos com clareza o que temos
E a agricultura familiar tem esse diferencial, em comum.
ela resolve a questão do emprego, que a agri
cultura patronal não resolve. A agricultura
patronal resolve a questão da produtividade e
da capacidade competitiva para exportar. Mas
não emprega, mas sim, maquiniza. Se a gente
quer um Brasil rural sem gente, vamos para
o Brasil rural da CNA (Confederação de Agri-
cultura e Pecuária do Brasil). Agora, sabemos
que as nossas cidades vão ter que aguentar
o tranco. E os movimentos sociais, a Contag
(Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura) e o MST, dizem “não!”. A
agricultura familiar tem vantagens competi-
tivas. Primeiro, arranjar emprego. Segundo,
agricultura biológica é em muitos casos mais
adequada à pequena unidade que à grande
unidade. Se eles vão para o transgênico, a
gente pode ir para a agricultura biológica
com a agricultura familiar. Essa é uma dis-
cussão no Brasil muito importante porque
nós vamos ser pressionados pelo ambiente
mundial para voltar a discutir nosso papel no
mundo como produtores de bens agrícolas e
de energia limpa.
DV – Você tem uma relação muito
forte com os movimentos sociais.
Tânia Bacelar – Tenho admiração pelo
MST, pelo seu papel no Brasil, modelo de
organização, que é tudo o que defendo. Eles
são um exemplo do modelo adequado de
gestão para o Brasil, eles têm um modelo de
organização que é coordenado nacionalmente
e descentralizado regionalmente. Por isso, em
determinados lugares do Brasil, o MST é mais
forte; em outros, menos. Porque o Brasil é
diferente mesmo. Acho que a Contag tem um
papel importante, parte grande da agricultura
Julho 2010 27
entrevista
DV – Você também teve contato que há brechas, mas a gente também precisa
com sindicatos, não é? Há críticas ter a consciência de que não é hegemônica. A
no sentido da necessidade de ideia é que não tenha exploração. Em princípio,
renovação desses espaços, de é boa, mas operar essa ideia não é fácil porque
precisarem repensar as novas toda a ideologia da sociedade está organizada na
formas de trabalho e renda. direção da individualidade, da competição. Acho
Tânia Bacelar – A economia mudou. As que mesmo com o pouco apoio que deram, o
novas tecnologias mais flexíveis mudaram as resultado é muito interessante.
relações de trabalho profundamente. E o mo- DV – E, ao mesmo tempo que
vimento sindical que a gente tem é herdeiro temos essa proposta de economia
do modelo anterior. Essa passagem para eles solidária, entramos cada vez mais
não é fácil. Se pensarmos que hoje no Brasil na era da financeirização.
metade da população ocupada é informal, eles Tânia Bacelar – A crise não está tirando a
só representam, de saída, a metade da popula- gente da era da financeirização, está aprofundan-
ção. O que está fora é heterogêneo. Quem os do. É uma dificuldade discutir a vida das pessoas,
representa? E como eles fazem para entender o desenvolvimento em um mundo onde o capital
o que é isso para também representarem? A se reproduz na esfera financeira, falindo um país.
crise mundial também afeta o mercado de Quando a gente fala em desenvolvimento, está
trabalho. São discussões muito importantes. falando do mundo real, da produção material,
Por outro lado, no Brasil dos anos Lula, ainda da inserção das pessoas na vida produtiva do
teve uma complicação. Como é um governo país. A economia mundial hoje se move em outra
do lado dos movimentos, é mais fácil fazer escala. Os ativos que estão na escala financeira
oposição, confronto, criar tensão quando o são muito maiores do que os ativos que estão na
governo é conservador. Quando o governo é escala produtiva. A dinâmica hegemônica está lá
amigo, é mais difícil construir essa relação de em cima e o próprio debate econômico fica meio
geração de tensão. abstrato. Na mídia, não tem economista falando
DV – Mas depois de oito anos não de desenvolvimento, tem economista falando
deu para aprender um pouquinho? de taxas de juros, de câmbio. Quem fala são os
Tânia Bacelar – Sim, mas houve uma mu- economistas dos bancos, porque é aí que a vida
dança no Brasil sobre a qual precisamos pensar. econômica está se dando para os que podem. E
Nos anos 1990, a taxa de desemprego aumentou, a crise não desmontou isso, a crise está se ret-
informalizamos grande parte das ocupações. roalimentando. O Brasil entrou nisso na década
Nesse período agora, voltou a formalizar. Nós de 1990. O tamanho da dívida pública ainda é
criamos quase 13 milhões de empregos formais muito grande, tinha caído para 36%, voltou para
no Brasil. Ninguém esperava. E quem lidera o 40% com a crise, e aí você pega uma dívida desse
crescimento é o Nordeste. Foi o padrão de cresci- tamanho, sobe um pontinho na taxa de juros e
mento que mudou? O que aconteceu? Ainda incide sobre um bolo enorme. E é isso que vai
falta esse debate. E aí fortaleceu o meio sindical disputar o dinheiro da educação, da saúde, que
porque contrarrestou aquela tendência de perda sempre perdem, porque são importantes, mas são
de espaço que eles tinham. Eu acho que nesses úl- atomizados, não têm a força do outro.
timos anos eles viveram isso: um governo que é do DV – Quando falamos de
lado deles e uma economia que estava voltando desenvolvimento não podemos
a gerar emprego formal e os fortalece. deixar de tocar no BNDES. Como
DV – A economia solidária pode ser você vê a atuação do Banco?
uma potencialidade para o Brasil? Tânia Bacelar – Acho que existem vários
Tânia Bacelar – Tem um povo da esquerda BNDES. O BNDES da era neoliberal era o das
que não acredita, mas acho a proposta interes- privatizações. E agora há a retomada do papel
sante. Não existe palavra mais antagônica ao do BNDES da grande indústria. Eles sabem fazer
capitalismo do que solidariedade. O que ela coloca muito bem o financiamento à grande indústria,
é isso: é possível realizar a produção material com a grandes projetos de infraestrutura. Há com-
outras relações sociais de produção, ou não? O petência para os grandes projetos e dificuldade
que elas estão mostrando é que é possível e é viá de lidar com os pequenos. Por exemplo, o Luciano
vel economicamente. E é possível que as pessoas Coutinho [presidente do BNDES] está fazendo
tenham uma qualidade de vida razoável. Se não um esforço para cuidar dos pequenos projetos e
for assim, não dá. Acho que eles têm mostrado para trabalhar a dimensão regional, que também
28 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar
Julho 2010 29
entrevista
30 Democracia Viva Nº 45
Tânia Bacelar
escolhidas por ele. Isso me incomodou, afinal, “pode cair o mundo, mas não é para mexer nas Participaram
somos representantes de quê? Alguns que estão políticas sociais”. Como era gente que estava desta entrevista
lá são líderes legitimados. Todos estão lá porque convivendo com a crise, trazia para o presidente, Entrevistadores(as)
o presidente convidou. Disseram a mim que era com muita rapidez, o que estava se passando, e Dulce Pandolfi
porque sou nordestina, mulher e da academia. a repercussão das medidas tomadas voltava para Fernanda Carvalho
Flávia Mattar
Só que as mulheres são amplamente minoritárias, ele rapidamente, sem interlocutor. A avaliação
Jamile Chequer
são apenas dez entre quase 90 membros. da experiência foi muito interessante. Raimundo Dumas
DV – Quantos são no grupo da No começo do governo Lula, a primeira pes- Renata Lins
Rogério Jordão
esquerda? quisa que a gente fez entre os membros foi sobre
Tânia Bacelar – Uns 15. No começo, a gente qual seria o principal problema do Brasil. Quase
Decupagem
fazia uma reunião antes da reunião. O pessoal 90% disseram que era a desigualdade social. Ana Bittencourt
mais de esquerda se reunia antes. E o pessoal Então, virou um eixo importante do trabalho
Edição
do empresariado também. Depois, a gente foi que gerou o Observatório da Desigualdade,
Flávia Mattar
vendo que não era assim. Acho uma experiência hoje bastante estruturado. O Ipea ajuda, o IBGE Jamile Chequer
interessante. É uma assessoria ao presidente. também, quer dizer, tem um respaldo técnico
Fotos
Deve ser de grande serventia para ele porque dos órgãos do governo e tem uma comissão que
Marcus Vini
sente a diversidade, que é muito grande, e dá acompanha os indicadores do milênio.
para mapear convergências e divergências. DV – O presidente escuta sempre? Produção
Geni Macedo
DV – Que papel o Conselhão Tânia Bacelar – Tem coisas que ele não
desempenhou durante a crise? ouve. A gente fez uma moção propondo mu-
Tânia Bacelar – Em 2009, se tirou um co- danças do Conselho Monetário, aí não deu.
mitê de dentro do conselho para, com o presi- Mas, de vez em quando, a gente lembra ele
dente, acompanhar a crise. Tinha representante disso. Mas é válido. Tem coisa que não anda
do movimento sindical, do movimento empre- mesmo. Por exemplo, na reforma tributária,
sarial, dos bancos, Dona Zilda Arns representava tem muita discussão, andou pouquíssimo. São
a sociedade civil. E ela, quando falava, o povo os carmas do Brasil: onde tem terra, tributo, os
parava para ouvir. Ela costumava afirmar que embates não são à toa.
Julho 2010 31
C R Ô N I C A
Vozes na lama
Messias desce apressado do trem, cruza a sábado, para acompanhar Trajano. Por causa
estação atulhada de gente e se depara com dele, aliás, passou a ir à academia duas vezes
o temporal: relâmpagos e trovões no céu da na semana. Enquanto ele está no trabalho,
tarde que virou noite. Pessoas assustadas di- ela não tira cremes do rosto, pinta as unhas,
zem que vai piorar. Caxias, Messias não atrasa ajusta roupas. Com saúde e alegria, nem
nem perde aula. Bolsista do quarto período de pensa em melhorar, com medo de piorar. “O
História e filho adotivo, morde com todos os ótimo é o inimigo do bom”, ela diz.
dentes as chances que a vida lhe concede. Mas A euforia não vem do corpo sarado
hesita em avançar, embora tenha prova. nem da pele tratada. A chegada de Trajano
Como faz toda noite, Carmela liga a eletrizou seu coração, que sempre foi ale-
TV e senta na sua poltrona para assistir ao gre, mas andava sem pilha. Há três meses,
jornal. Antes, tirou as porções do jantar do se ligou na eletricidade dele. O corpo vibra
congelador - gosta que degelem antes de com a corrente que magnetiza sua vida. Hoje,
levar ao micro-ondas. E agora não são só as irradia energia, sente-se mais mulher, amada
suas saladinhas: Trajano não dispensa arroz e protegida. Uau!
e feijão nem no jantar. Ela acha pesado para O barulho da chuva cobre a voz da TV,
a noite, mas cede ao prazer dele. ela aumenta o volume. A reportagem fala da
Aos 58 anos, ela tem corpo de 45 e chuva que surpreendeu a cidade no fim do
cabeça de 30. Embora pobre, sabe viver. dia, mostra alagamentos e trânsito parado. De
Antes de se aposentar, já se cuidava. Fazia olho na tela, avalia se deu tempo de Messias
dieta, corria, dormia bem, tratava da pele e chegar à faculdade antes de chuva e fica
do cabelo. Agora, com o dia ao seu dispor, apreensiva porque Trajano pode se atrasar.
anda cinco quilômetros toda manhã e dez no As aflições do amor!
32 Democracia Viva Nº 45
Desde janeiro, Trajano deixara um Escreve com afinco em folhas de almaço, Alcione Araújo
guarda-chuva no trabalho – chuva de verão quando avisam que há ligação para ele. alcionaraujo@uol.com.br
não avisa! Precavido como bom eletricista – Bombeiros e defesa civil se agitam na
choque elétrico não avisa! –, tem 33 anos em montanha de escombros. Feridos gritam na
montagens de alta tensão, sem acidentes. Ao lama. O oficial diz à TV que barracos des-
sair, vai de guarda-chuva até o carro, onde lizaram, cruzaram a rua e soterraram casas
tem outro para eventual surpresa. Viúvo há do outro lado. Messias escava escombros
dez anos, filhos casados, sua solidão ordeira com as mãos. Sangrando, arranca concreto,
findou quando Carmela arrombou as portas pedra, ferro, lama. Súbito, grita: “Silêncio!”
e janelas do seu recato e acendeu sua vida Ouvem-se apenas vozes abafadas de TV. Ele
de energia. Sente na carne o curto-circuito se mete no buraco. Na sala, vê a poltrona de
da paixão. Carmela coberta de lama. Desesperado, tira
Carmela veda frestas da janela, que lama com a mão, até se deparar com o corpo
trepida com a ventania. Olha para o alto, vê da mãe adotiva, sentado, mãos e pés para
clarões iluminarem o morro em frente, no frente, como se tentasse deter a avalanche.
outro lado da rua. Enxurradas despencam aos Limpa o rosto dela com a camisa. Entre as
saltos pelas vielas, barracos balançam. No pé ruínas, acha o corpo de Trajano. Arrasta-o
do morro, a água sobe na rua alagada. Nada até a mãe e acomoda-o entre as pernas e
de Trajano. Volta à poltrona e à reportagem braços rígidos dela. Ajoelha-se diante dos
sobre o vendaval. De repente, ouve um forte dois, e reza. Pelo buraco, entra a luz da TV,
estrondo e sente o mundo estremecer. que filma. De fora vêem gritos abafados,
Messias faz prova na sala da faculda- e vozes continuam falando na TV coberta
de, roupas encharcadas como as dos colegas. pela lama.
Julho 2010 33
ibase
opinião
Patrícia Lanes *
tais demandas e as relações entre elas e as políticas públicas existentes foram importantes
cia regional1, que acaba de ser concluída. A investigação teve o diálogo como norteador,
realizados entrevistas, grupos focais e de diálogo (ver box) e ouvida a opinião de 14 mil
pessoas (jovens e adultos/as). A partir de ampla troca entre equipes de pesquisa e entre
jovens investigados(as) foi possível chegar a dados e análises que ajudam a compreender
A investigação foi feita a muitas mãos, coordenada por Ibase e Pólis, em parceria com
1 A publicação final da
pesquisa, assim como todos
uma rede de organizações - Fundación SES (Argentina), U-Pieb (Bolívia), Cidpa (Chile), Base-IS
os relatórios e publicações
produzidos ao longo do
estudo estão disponíveis (Paraguai), Cotidiano Mujer e FCS Udelar (Uruguai) – e apoio do Centro Internacional de De-
para download em <www.
juventudesulamericanas.org.
br> e <www.ibase.br>. senvolvimento e Pesquisa do Canadá (IDRC). Certamente, quando se realiza uma investigação
34 Democracia Viva Nº 45
em rede, cada parceiro traz uma resposta distin- e organizações exclusivamente de jovens. Os
ta sobre seus principais achados. Neste artigo, grupos de diálogo buscaram expressar em sua
trazemos algumas reflexões sobre análises desen- composição parte da complexidade de atores
volvidas ao longo do processo de pesquisa. de um campo no qual coexistem e dialogam
Em uma análise geral, no século XXI, organizações exclusivamente juvenis (como as
esse(a) jovem está mais conectado à internet, estudantis e alguns grupos culturais, por exem-
é menos católico que a geração anterior e plo), com muitas outras nas quais as principais
mais escolarizado(a) que seus pais - ainda que bandeiras e/ou identidades são permeadas pelas
muitos(as) não consigam completar o ensino realidades e questões trazidas pelos(as) jovens
médio e que “estudar e ter um diploma” per- que delas participam (movimentos e organiza-
maneça como forte anseio em muitos países. ções feministas e de mulheres, negros/as, LGBT,
Ter mais oportunidades de trabalho aparece rurais, sindicais e por trabalho etc.).
na pesquisa em primeiro lugar, quando jovens
e adultos(as) são perguntados(as) sobre o que
Juventude e participação
é mais importante para a juventude hoje. No
entanto, em todos os países, a educação de Os(As) jovens organizados(as) mostram-se
baixa qualidade e a violência são os maiores preocupados(as) com a desmobilização da
obstáculos para que os(as) jovens vivam melhor juventude como um todo e apontam como
o presente e conquistem o futuro. necessidade falar para além dos(as) militantes.
Na última fase da pesquisa, chegamos Outras questões relacionadas à participação se
a uma lista de nove demandas que vêm sendo referiram à relações de conflito, formação e co-
foco de reivindicação e debate entre jovens operação entre gerações dentro de organizações
organizados(as) e não organizados(as)2. São e movimentos; a necessidade, por vezes colocada
elas: educação com qualidade (acesso e conti- em espaços institucionais, de estar em um grupo
nuidade na trajetória escolar); oportunidades de organizado e estruturado para ter direito à parti-
trabalho digno e criativo; acesso a bens culturais cipação; e o papel dos(as) jovens organizados(as),
e condições para a produção artística juvenil; que podemos chamar de “minorias ativas”, nos
segurança (com respeito aos direitos humanos processos de transformação social.
e valorização da diversidade juvenil); cuidado Um eixo importante de investigação
com o meio ambiente, garantindo qualidade foram as políticas públicas de juventude. Por
de vida dos(as) jovens no campo e nas cidades; um lado, é possível afirmar que em muitos
gratuidade no transporte público para jovens; países e, sobretudo para especialistas e jovens
saúde com acesso a serviços que levem em organizados(as), a questão da juventude vem se
conta a atual condição juvenil; moradia (acesso consolidando na relação com o debate sobre os 2 As seis demandas
a créditos específicos para habitação juvenil no direitos dos(as) jovens e as políticas consideradas mapeadas na primeira
investigação (“Juventude e
campo e na cidade); e a consolidação de canais para essa parcela da população. A conformação Integração Sul-americana:
caracterização de situações-
de participação de grupos, redes e movimentos desse campo não se dá pela oposição entre jo- tipo e organizações juvenis”,
de jovens nas políticas públicas. vens e adultos. Ao contrário, há muitas alianças Ibase, Pólis, 2007), que
deram origem à publicação
O processo de construção de uma agen- possíveis (e tensões) entre gerações. O “outro” “6 demandas para a
construção de uma agenda
da comum para jovens sul-americanos(as) não por excelência nesse caso é o Estado e dele são comum”, foram ampliadas a
se resume a um simples inventário de deman- exigidos os direitos – muitos apresentados pela medida que outros(as) jovens
foram ouvidos(as) e outras
das e bandeiras. Durante diálogos nacionais e lista de demandas da investigação - capazes de demandas mapeadas
e analisadas.
regional (ver box) foi possível entrever as difi- garantir qualidade de vida dos(as) jovens.
3 Ao pedir que citassem
culdades e possibilidades da construção social Na etapa quantitativa, ficou claro que as espontaneamente programas
e política de tal agenda. Percebendo jovens sociedades dos seis países acreditam que seus e ações governamentais
voltados para jovens,
como sujeitos políticos de direitos, é possível governos conhecem as necessidades dos(as) jo- novamente as porcentagens
foram baixas, não
entender relações, embates e disputas entre vens, mas não fazem nada a respeito. Os países ultrapassando os 20% no
concepções e prioridades. É interessante notar onde a maior porcentagem de entrevistados(as) Uruguai, 19% no Brasil,
13% no Chile, 7% na
que muitas das questões que surgiram ao longo acredita que o governo apoia e promove pro- Argentina, 5% na Bolívia e
3% do Paraguai. Ainda assim,
dos diálogos não estão apenas nos movimentos gramas e ações para jovens foram Brasil (20%), muitas das ações citadas
e organizações de jovens. No entanto, são elas Bolívia (26%) e Uruguai (43%)3. eram, na verdade, iniciativas
de organizações não-
que perpassam as dificuldades e potencialidades Nos grupos de diálogo nacionais ficou governamentais em parceria
ou não com o governo e,
presentes nesses espaços. evidente a formação de um campo em torno ainda, diversas delas eram
Muitos(as) jovens participantes dos diá- das políticas públicas de juventude, ainda que as voltadas para crianças ou
famílias, por exemplo, e não
logos não estavam engajados em movimentos histórias dos diferentes países e dos movimentos direcionadas a jovens.
Julho 2010 35
Op i n i ã o Ib a s e
e organizações, o tempo de existência de orga- a existência de um nó mais forte dessa rede, re-
nismos governamentais específicos e as muitas presentado pelas entidades coordenadoras.
possibilidades de relação entre eles evidencias- Vale ressaltar que o desejo de construir
sem que se trata de um campo híbrido e com alianças sem eliminar diferenças requereu um
distintas conformações. As demandas colocadas esforço de tradução entre pesquisadores(as),
por jovens possuem diferentes níveis de legiti- com diferentes trajetórias, concepções teóricas
midade social4 e as entidades governamentais e experiências metodológicas. A busca por uma
que tratam das “questões da juventude” tam- relação mais horizontal entre pesquisadores(as)
bém encontram espaços diferenciados dentro e pesquisados(as) na produção de um tipo de
dos governos. No entanto, no diálogo regional conhecimento engajado foi imprescindível para
(em âmbito sul-americano) houve o reconhe- a realização da pesquisa. A relação de pesquisa
cimento de que, no geral, tais entidades ainda foi, em muitos casos, uma atualização de outras
não são suficientemente fortes e legitimadas, relações já estabelecidas em espaços políticos
nem para promover a participação de jovens de militância como conselhos, fóruns etc. No
nem para encaminhar suas demandas dentro caso do Brasil, sobretudo, essa dimensão esteve
do governo. fortemente presente.
Outra dimensão envolvendo o diálogo
durante a investigação foi a adaptação do método
Diálogos em curso
para uma nova realidade de pesquisa. Dessa vez,
O desafio de construir alianças sem eliminar tivemos o desafio de construir a metodologia
diferenças se coloca hoje não só para os movi- sabendo que iríamos “colocar em diálogo” jovens
mentos nos quais os(as) jovens estão, mas para com distintas trajetórias de militância que, em
a esquerda de maneira geral. Talvez o cenário alguns países, já vinham se encontrando em ou-
do campo das políticas públicas e seus diferen- tros espaços como assembleias, fóruns, reuniões,
tes atores da sociedade civil seja um dos mais muitas vezes com posições antagônicas.
interessantes para se pensar a construção de As práticas da esquerda e da sociedade
pontes que superem fragmentações e constru- civil organizada em geral, seus muitos fraciona-
am alternativas. Nele, “ser jovem” está longe de mentos, tensões e alianças estavam ali represen-
ser a única identidade ou a mais mobilizadora tadas.5 A metodologia dos diálogos pressupõe
da militância. A complexidade também está que seja possível ouvir o outro, seus argumentos
nas combinações possíveis entre identidades e buscar deixar preconceitos e pré-estabelecidas
que mobilizam bandeiras e demandas e nas de fora. Para pessoas que nunca se encontraram
múltiplas formas de negociação das mesmas isso pode ser mais fácil, mas para militantes
com o Estado, sociedade civil ou sociedade de que têm na disputa de ideias a centralidade
maneira geral. de sua ação, a questão se complexifica. Nossos
As estratégias para criar tais pontes são cuidados ao produzir o material, já que os temas
muitas e não devem ser excludentes. Ao analisar das políticas públicas, participação e articulação
o processo do Fórum Social Mundial, o sociólo- não eram de todo desconhecidos dos(as) jovens,
go português Boaventura de Souza Santos fala foram necessários. Possíveis preconceitos já
4 Se pensarmos, por do necessário trabalho de tradução que deve existentes, ainda que não tenham desaparecido
exemplo, nas demandas
de educação, encontramos
ser feito entre organizações e movimentos. Para por completo, deram espaço para um diálogo de
em todos os países um alto ele, a tradução deve ocorrer tanto entre saberes fato. As diferenças ideológicas, sociais, políticas
grau de apoio da sociedade
a reivindicações, já sobre (conceitos de análise, princípios políticos, obje- e morais estavam lá, e coube aos trabalhos de
demandas relativas à terra e
saúde sexual e reprodutiva,
tivos estratégicos), quanto no que diz respeito condução dos encontros e de análise do que foi
por exemplo, a adesão da às ações (organização, estilos de luta e de produzido durante seu processo lidar com elas e
sociedade é mais baixa.
atuação). É possível reconhecer tais dimensões incorporá-las como dimensões de análise.
5 Uma experiência anterior
vivida recentemente pelo do trabalho de tradução na pesquisa. No entanto, e o mais importante aqui,
Ibase (a utilização da
metodologia dos Grupos de
A formação de uma rede de investigação, tais diferenças não inviabilizaram o encontro
Diálogo na segunda fase já presente em experiências anteriores de Ibase e ou o debate. Ao contrário, os diálogos nacio-
da pesquisa Repercussões
do Programa Bolsa Família Pólis no trabalho com juventude, gerou um espa- nais e regional foram avaliados por jovens e
na Segurança Alimentar
e Nutricional das Famílias
ço de diálogo entre organizações com histórias, pesquisadores(as) positivamente e geraram in-
Beneficiadas, em 2008) nos perfis e vocações distintas. Esse trabalho, ao longo formações substantivas sobre como vêm sendo
fez perceber que, ainda que
difícil, usar a metodologia de três anos, constituiu-se como caminho dialó- construídas as relações entre sociedade civil e
para gerar diálogo entre
militantes seria possível
gico para a produção do conhecimento, ainda Estado e entre diferentes grupos e movimentos
e desejável. que sem estrada preestabelecida e considerando ligados à juventude, por exemplo.
36 Democracia Viva Nº 45
P o r o n d e c a m i nh a m o s ( a s ) j o v e n s S u l - a m e r i c a n o s ? O s d i á l o g o s d e u m a p e s q u i s a e m r e d e
Na etapa final, cerca de 40 jovens organizados(as), que participaram nos momentos anteriores da in-
vestigação, foram convidados a fazer parte de um Grupo de Diálogo Nacional, em cada um dos países
pesquisados, para conversar sobre possibilidades e entraves para o reconhecimento de seus direitos e
demandas, para sua participação e articulação nacional e regionalmente. Alguns(mas) foram escolhidos(as)
para fazer parte do Grupo de Diálogo Regional, no Rio de Janeiro, em junho de 2009, e conversar sobre
seus problemas e demandas e sobre as possíveis maneiras de as colocarem no espaço público pensando
a temática da Integração Regional.
Durante os dias de encontro, muitas questões foram levantadas e continuam sendo refletidas. Até
que ponto as demandas ditas “juvenis” se fundem com as demandas de outros tantos sujeitos sociais?
Se as demandas juvenis fazem parte de lutas mais amplas, qual o sentido de se fortalecer organizações
de jovens? Como é possível garantir que organizações e movimentos sem recorte etário incorporem as
especificidades juvenis? De que maneira fortalecer diferentes demandas sem hierarquizá-las? E, ainda,
como articular demandas de diferentes movimentos e organizações considerando diferenças ideológicas,
religiosas e morais existentes entre elas? 6 Para ele, a tradução seria o
procedimento que permitiria
O documentário Diálogos, dirigido por Beto Novaes e Cleisson Vidal, e produzido por Ibase e Pólis “a criação de inteligibilidade
em 2009, traz algumas dessas reflexões e é produto da pesquisa Juventudes Sul-americanas: diálogos recíproca entre as diferentes
para a construção da democracia regional. Ele mostra os(as) jovens participantes desse momento de experiências do mundo,
tanto as disponíveis como
diálogo contando suas histórias e debatendo questões que interessam à juventude hoje como educação, as possíveis, (…) sem por
participação, trabalho, militância, relação entre Estado e sociedade civil e violência. Além dele, a partir em perigo a sua identidade
e autonomia (...)”. (texto
de cada um dos diálogos nacionais, um filme foi produzido: uma visão possível de um momento de um
disponível em http://www.
processo marcado por diálogos, aproximações, dificuldades e descobertas. forumsocialmundial.org.
br/noticias_textos.php?cd_
news=432)
Julho 2010 37
r e s e n h a
38 Democracia Viva Nº 45
há muito deixou o terreno das ciências humanas (P. Mehling), e por fim, governança do sistema
para tornar-se uma ciência mais próxima à física (M.Williams).
teórica, traz algo de fato novo quando compa- A terceira parte do livro foca a perspec-
rado às inúmeras abordagens sobre o tema. tiva dos países em desenvolvimento. Discute a
A introdução escrita pelos editores é um vulnerabilidade financeira na Ásia (Y.Akyüz),
gostinho do que está por vir, contextualizando lições a serem aprendidas pelos países menos
o livro (resultado de um seminário organizado desenvolvidos a partir da crise (Y. Reddy); a
em julho de 2008, pela Initiative for Policy Dialo- influência do sistema financeiro internacional
gues da Universidade de Columbia) e dando um sobre as possibilidades; e os obstáculos ao
rápido panorama do restante da publicação. desenvolvimento encontrados por estes países
Na primeira parte, que trata da crise nos (R.Frenkel e M. Rappetti). E, no último texto,
Estados Unidos, o primeiro artigo de Stiglitz Fernando C. De Carvalho faz uma análise da
destaca os problemas de regulação e informa- efetividade limitada da acumulação de reservas
ção que possibilitaram a crise: problemas de (como se faz no Brasil) como estratégia de defe-
modelagem econômica, de avaliação de riscos sa contra crises, deixando aberta a agenda para
e de comunicação trazem concretude à ideia outras possibilidades mais adequadas.
de que a crise poderia, sim, ter sido evitada. A última parte do livro trata de maneira
O texto de G. Caprio (“Sub-prime Finance: mais ampla da reforma do sistema monetário
yes, we are still in Kansas”) destaca a questão internacional, em textos de J.A. Ocampo, B.
da desregulamentação financeira que levou Greenwald e J.Stiglitz. Sem entrar no detalhe
à bolha. O de Kregel recapitula a história da dessa discussão, deve-se ressaltar que, mais do
regulação financeira pós-New Deal para dis- que as respostas dadas, o que faz desse livro
cutir a premência da re-regulação necessária. uma ferramenta de peso para quem quer ir mais
Por último, o segundo texto de Stiglitz levanta a fundo no entendimento dos mecanismos que
possibilidades de resposta à crise no âmbito das levaram à crise são o enfoque e os questiona-
políticas fiscal e monetária. mentos ali feitos, que não permitem respostas
Na segunda, sobre reformas à regulação rápidas e tranquilizadoras. Ao contrário, o que
financeira, são tocados temas essenciais como tem de orgânico é o fato de que todos os artigos
a questão da liquidez necessária para evitar apontam para a necessidade e para a urgência
crises (texto de P. Turner), os critérios necessá- de reformas substantivas na arquitetura e no
rios à reforma na regulação financeira (texto funcionamento do sistema financeiro mundial.
de J. D'Arista e S. Griffith-Jones), o papel da Caso contrário, afirmam os autores, estamos
supervisão bancária e suas falhas em perceber condenados a viver incessantemente à espera
a chegada da crise, o que impediu medidas da próxima crise.
de prevenção (texto de A. Persaud) e, nos três
últimos, questões sobre como deveriam ser a
regulação das todas poderosas agências de
rating (C. Goodhart), a dos mecanismos que Renata Lins
permitiram a transmissão em cadeia da crise Economista, coordenadora do Ibase
Julho 2010 39
c u lt c u lt u r a
Aroeira
Chargista
Crise?
Que crise?
Quando o pessoal da Democracia Viva me pediu para escrever um artiguinho sobre a
crise, coisa pouca, seis mil caracteres, por aí... gelei. Demorei vinte minutos no Word só
pra descobrir como contar os tais caracteres. E esse preâmbulo foi só pra mostrar quão
É que não tenho escrito nada na mídia por mais de vinte anos. Estou enferruja-
do. Ouço as minhas circunvoluções cerebrais rangendo e estalando. Receio até quebrar
Pra meu alívio, me explicaram que este é apenas um texto introdutório para um
montão de charges sobre a dita crise. Gostaria de colocar cartuns de vários colegas, mas
a logística disso não é mole. Portanto, peguei os desenhos do chargista mais próximo e
mais à mão, eu mesmo. Então... a crise? Não preciso explicá-la, não preciso pesquisá-la,
não preciso sequer compreendê-la... Só preciso rir dela. E, se possível, fazer com que
40 Democracia
DemocraciaViva
VivaNºNº
4545
ura
Julho
Julho2010
2010 41
C u lt u r a
42 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?
Julho 2010 43
C u lt u r a
44 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?
Julho 2010 45
C u lt u r a
46 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?
Julho 2010 47
C u lt u r a
48 Democracia Viva Nº 45
crise? que crise?
to”? Ai, que saudade do Paulo Francis... Ou e diga “Mas que grande besta, esse cara!”.
simplesmente acertamos, ultimamente? Não seria a primeira vez.
Alguns dizem que escapamos por causa Mas em outros cantos o desastre foi
do consumo interno, graças à distribuição de feio pra burro. Existem lugares aí fora onde o
renda promovida por esse governo. Simplista, mundo caiu de verdade. Eu até achava que a
eu sei, mas é só pra resumir. Outros dizem que Islândia tinha sumido do mapa, mas pelo visto,
foi o Programa de Estímulo à Reestruturação e não. Sobrou pelo menos um vulcão, que fechou
ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacio- o espaço aéreo da Europa por uma semana. Se
nal (Proer), que saneou os bancos brasileiros, eu fosse o presidente da Comunidade Europeia,
explicação também simplista (não assino nem mandava benzer aquele lugar...
uma das duas visões, nem nada que tenha a ver Europeus e americanos não estão tão
com economia – vocês precisam ver as MINHAS acostumados à miséria como nós, me dizem.
contas). Provavelmente uma combinação de Por isso, gente no sinal lavando para-brisa em
ambas as ações. Paris, Londres, Madri e Los Angeles poderia
Sempre achei que os governos FHC e ensinar uma lição ao planeta. Bobagem. Paris
Lula fizeram algumas das tarefas essenciais nem está notando as favelas de migrantes cres-
pra esse país, só que em pontas diferentes cendo em sua periferia, a não ser pra votar leis
da sociedade. Pontas opostas, pra ser bem de exclusão e expulsão. O mesmo para essas
claro... mas fizeram. Bancos com carteiras outras cidades. Tenho muitas dúvidas sobre a
relativamente seguras, pouquíssimas hipote- capacidade de entendermos o desastre que
cas, empréstimos mais amarrados (já tentou isso significa e como evitar “más de lo mismo”.
arrancar um empréstimo de um banco se você Assim que a re-acomodação acabar, os novos
não tem carro ou casa? Fiu!), mais Bolsa- donos daquele dinheirinho de Banco Imobili-
família na mão de um bocado de gente, e ário assumirão os dados (já estão a fazer isso
outras formas de “assistencialismo populista e nesse exato instante) e o tabuleiro. E a espiral
eleitoreiro deslavado”, como diria a oposição. volta a rodar, sempre pra cima e além. Mas
Talvez tenha funcionado. O fato é que aqui nós não liguem pra mim, sou só um chargista. Um
passamos e ainda passamos pelas turbulências pessimista profissional...
da crise, mas indiscutivelmente menores...eu Aqui entre nós: Eta pessoalzinho burro,
acho. Pode ser que algum economista leia isso esses meninos ricos... não aprendem mesmo.
Julho 2010 49
Op i n i ã o Ib a s e
50 Democracia Viva Nº 45
caderno especial
Democracia
e governança financeira
Julho 2010 51
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
O déficit democrático
nas instituições
multilaterais
Fernando J. Cardim de Carvalho
Economista, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e um dos coordenadores do projeto
Liberalização financeira e governança global: o papel dos organismos internacionais
Por muito tempo, o funcionamento dos mercados financeiros foi considerado uma ati-
vidade de pouco interesse para as organizações da sociedade civil. Para muitas pessoas,
esses mercados apenas serviam para redistribuir renda entre os grupos de renda mais
alta da população. Alguns ricos ficavam mais ricos, outros, consequentemente, menos,
mas acreditava-se que a sociedade como um todo não tinha por que devotar atenção a
esse jogo. O que interessava era o que acontecia com a economia real, com os setores
A crise econômica dos últimos três anos mostrou a validade de uma esquecida
lição de grandes pensadores do capitalismo: nada é mais real em uma economia capi-
sistema financeiro não é indiferente para o restante da sociedade. Por um lado, porque
o principal canal pelo qual as instituições financeiras ganham dinheiro é pela oferta de
52 Democracia Viva Nº 45
O déficit democrático nas instituições multilaterais
crédito, em suas muitas formas. Quando esse ção, nem consumo em economias capitalistas.
crédito é ofertado para os que produzem e ad- O produto despenca, o desemprego cresce, e
quirem bens, ele pode contribuir para acelerar a população, especialmente aqueles grupos de
o crescimento econômico e para conceder à renda mais baixa que não têm onde se apoiar na
população acesso aos bens que deseja - espe- hora de necessidade, paga o preço do aumento
cialmente aqueles de mais alto valor, como bens dramático de pobreza. Isso tudo acontece apesar
de consumo durável, automóveis e residências. da capacidade “real” de produção continuar
Ao contrário, quando esse crédito é dirigido a fundamentalmente a mesma. As fábricas conti-
outras instituições e agentes financeiros, como nuam de pé, as máquinas continuam existindo
aconteceu nos últimos anos nas economias mais - mesmo se paradas -, os trabalhadores que
avançadas, o resultado é sempre a construção poderiam estar utilizando-as continuam vivos,
de castelos de cartas, fadados, cedo ou tarde, mas em suas casas ou perambulando pelas ruas
ao desmoronamento. em busca de oportunidades de emprego. Os
A segunda razão pela qual o funciona- pensadores mais conhecidos que analisaram as
mento do sistema financeiro não pode ser indi- economias capitalistas continuam tendo razão:
ferente para a sociedade é porque quando esses nada é mais real em uma economia assim do
mercados se tornam disfuncionais, novamente que o dinheiro e as finanças.
como aconteceu nos últimos anos, eles acabam A globalização financeira é um processo
entrando em crise. E crises financeiras contagiam pelo qual os mercados financeiros de todo o
rapidamente o resto da economia. Instituições mundo tendem a se unificar. No seu limite, dei-
financeiras cujo capital esteja ameaçado ou te- xam de existir os mercados financeiros nacionais
nha diminuído por causa de perdas não fazem e passa a existir apenas um grande mercado,
empréstimos. Sem empréstimos, não há produ- o mercado mundial, no qual compradores e
Julho 2010 53
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
vendedores de ativos financeiros fazem suas Mundial também impuseram muitos controles
transações, sem que sua nacionalidade ou re- de capitais e os mantiveram em operação até
sidência faça qualquer diferença. Esse processo recentemente, na década de 1980. Grandes
se dá por vários canais. potências emergentes como a China e a Índia
Por um lado, instituições financeiras os mantêm até hoje.
nacionais se tornam multinacionais: bancos Na América Latina, o canto da sereia (ou
americanos se instalam ou se expandem nos o conto do vigário) do neoliberalismo levou a
mercados latino-americanos, europeus e asi- maioria dos países a remover essa forma de
áticos. Bancos europeus e asiáticos fazem o proteção. Argentina, Brasil (de Collor a Lula),
mesmo. Até mesmo casas bancárias latino- Chile, México, todos compraram a propaganda
americanas perseguem o mesmo objetivo, como de que mercados financeiros são eficientes e
é o caso dos grandes bancos não precisam de controles. No Brasil, ainda há
privados brasileiros e, mais poucas semanas, o Banco Central continuava a
recentemente, até mesmo tomar medidas para liquidar os últimos resquí-
Um resultado o Banco do Brasil. Esses
bancos captam recursos nos
cios dos controles (que, a bem da verdade, já
não eram aplicados, pela falta de vontade das
54 Democracia Viva Nº 45
O déficit democrático nas instituições multilaterais
que essas atividades podem mesmo se tornar cidade de intervenção e contenção de crises
armas de destruição em massa – como George de governos foram corroídas, portanto, tanto
Soros usou a expressão para se referir a deri- domesticamente quanto internacionalmente,
vativos –, levou os países mais avançados, sob ainda que não inteiramente destruídas.
a liderança dos Estados Unidos do presidente
Franklin Roosevelt, a criar um grande conjunto
Déficit democrático
de instrumentos de controle do funcionamento
de mercados financeiros capazes de evitar novas No entanto, já desde a década de 1970 alguns
crises catastróficas, ou pelo menos amenizar os sinais de perigo começaram a ser visíveis. Em
seus impactos. meados daquela década, a quebra de um ou
Na era pré-globalização financeira, que outro banco nos Estados Unidos e na Europa
durou até os anos 1970 e 1980, o aparato de começavam a indicar que a globalização estava
regulação financeira criado pôde ser manejado criando um tipo novo de risco, gerado fora das
com eficácia e crises financeiras de vulto não fronteiras de um país.
voltaram a ocorrer por cerca de cinquenta anos. O primeiro desses sustos foi dado quando
As instituições criadas pelo governo Roosevelt um banco alemão, relativamente pequeno -
foram copiadas e adaptadas pela maioria dos pouco relevante em si, mas bastante integrado
países do mundo, desenvolvidos e em desen- no mercado financeiro mundial -, faliu por
volvimento. A competência na definição das causa de uma descoordenação entre seus ne-
regras (que, estrito senso, é o que se chama de gócios nos mercados japonês e americano. O
regulação financeira) e na sua implementação banco Herstatt captava em um país e aplicava
(atividade chamada de supervisão financeira, em outro e quando teve de interromper suas
exercida em muitos países pelo Banco Central) atividades acabou criando problemas na Ásia
ajudou a criar mercados financeiros mais ou e nos Estados Unidos além, naturalmente, na
menos sólidos, capazes de apoiar a atividade Europa. O resultado mais importante desse e de
produtiva sem criar riscos excessivos para a outros episódios ocorridos à mesma época foi a
sociedade como um todo. percepção de que, tendo instituições financeiras
Um economista americano que a crise operando em vários mercados nacionais, cada
atual tornou célebre, Hyman Minsky, adver- país acabava se expondo ao risco de ter de en-
tiu, há décadas, que a segurança pode gerar frentar uma crise gerada fora da jurisdição de seu
a complacência. Nas palavras que usava, a governo. Naturalmente, se um choque é gerado
estabilidade pode se tornar desestabilizante, por uma instituição financeira operando fora das
porque a experiência da ausência de crises fronteiras nacionais, o Estado não tem como
leva muitos a acreditar que crises são coisa do intervir para exigir que instituições estrangeiras
passado, já não são mais ameaças e, por isso, se comportem da maneira como gostaria.
não é necessário que os cuidados e precauções Desse modo, enraizou-se a crença de
tomados no passado continuem sendo aplica- que era necessário definir instâncias interna-
dos. Foi isso exatamente que caracterizou o cionais de regulação e supervisão financeira
que se tornou conhecido como desregulação para garantir que instituições operando em
financeira, processo que foi acelerado na era mercados sobre os quais um dado país não
Reagan/Thatcher. tem controle não venham a criar dificuldades
Fundamentalmente, o processo consis- para esse país. Foi nesse contexto que nasceu o
tiu na desmontagem de restrições à atividade Comitê da Basiléia para a Supervisão Bancária,
dos agentes e instituições financeiros, sob o ou Comitê da Basiléia, como é conhecido. O
pressuposto de que os mercados sabiam o comitê serve para que supervisores financeiros
que é melhor e dispensavam a intervenção nacionais possam discutir métodos e padrões
do governo, que críticos liberais sempre de regulação e supervisão comuns, de modo
caracterizam como pesada, desengonçada a garantir que um nível mínimo de seguran-
e poluída pela corrupção, o que consideram ça seja alcançado por todos, evitando com
monopólio estatal. isso que membros de comportamento mais
Ao mesmo tempo que as instituições duvidoso possam causar crises e prejuízos a
nacionais de proteção eram desmontadas, outros países.
dando mais liberdade (e poder) a mercados A iniciativa em si não foi uma má ideia,
financeiros, a globalização projetava processo especialmente se há a crença de que a globali-
semelhante para a economia mundial. A capa- zação veio para ficar - já houve outros períodos
Julho 2010 55
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
de globalização no passado, mas que foram Por outro lado, esperava-se que as
interrompidos por grandes crises. Se mercados orientações do Comitê fossem seguidas por
se tornaram maiores que governos, o que se todos os países que não quisessem ser conside-
buscava era criar uma espécie de “governo rados como párias pelos mercados financeiros,
internacional”, pelo menos na esfera da regu- fortalecidas pela adesão de instituições como o
lação financeira. Se os reguladores nacionais se FMI e o Banco Mundial, que as transformaram
articulam para perseguir políticas semelhantes, em paradigma de modernidade. Assim, as
os agentes privados não terão para onde fugir orientações eram decididas por um grupo de
e não poderão, assim, corroer o poder de in- reguladores de dez países e sua aplicação era
tervenção dos Estados. garantida por outras instituições que, como se
O problema dessa iniciativa foi que ela sabe, são mais representativas, mas nas quais
envolveu apenas os países mais desenvolvidos as vozes dos diversos países são ouvidas de
e, mesmo assim, nem todos. O Comitê da modo extremamente desigual.
Basiléia reunia supervisores financeiros do O Comitê da Basiléia exclui, o FMI e o
G10 (teoricamente os supervisores das sete Banco Mundial controlam o tempo de microfone.
maiores economias do mundo, mas que po- Esse é o chamado déficit democrático caracterís-
dia ter um pouco mais ou um pouco menos tico das instituições financeiras multilaterais. De
que dez membros realmente). Não foi criado fato, apenas a ONU, a organização internacional
como uma instância oficial, mas como um que menos influência tem sobre essas matérias,
clube informal de reguladores, um espaço dá voz e voto igual a cada país. Nas outras, ou
de, digamos, socialização, que lhes permitisse a voz não existe e voto ainda menos, ou a voz
conversar sobre problemas regulatórios. A existe, mas o voto dos mais fracos é repartido
natureza informal da associação serviu como por um grande número de países.
instrumento de exclusão, deixando de fora os Foi exatamente para denunciar e pro-
pouco mais de 170 países que não compõem por alternativas de governança para essas
o G10. Dentre esses pouco mais de 170 países instituições que o Ibase iniciou em 2006 um
incluía-se todo o mundo em desenvolvimento, projeto, patrocinado pela Ford Foundation, em
além de países da periferia do grupo de países Nova York, intitulado Liberalização financeira
chamados de “avançados”. e governança global: o papel dos organismos
A exclusão era justificada por razões internacionais. Esse projeto, co-coordenado
de eficiência: com poucos membros, o Comitê por Jan Kregel e pelo autor deste artigo, reúne
poderia analisar e examinar em profundidade cerca de quinze participantes de quase todos
as alternativas mais eficientes de regulação e os continentes, acadêmicos e militantes de or-
propor métodos que incorporassem as téc- ganizações de sociedade civil. Da sua atividade
nicas mais avançadas de supervisão. Nesse já resultaram quatro seminários de debate,
comitê nasceram as estratégias de regulação com a presença de representantes de outras
financeira conhecidas como Acordo da Basi- organizações da sociedade civil, e um número
léia de 1988 e, mais recentemente, o Basiléia significativo de textos e outros materiais sobre
II, de 2004. Além de um grande número de o tema, todos disponíveis no site <www.de-
orientações sobre todos os aspectos da re- mocraciaefinancas.org.br>.
gulação financeira, vista, claro, do ponto de Dentre os trabalhos realizados no âm-
vista liberal que dominou ideologicamente bito do projeto, selecionamos três textos, que
essa discussão nas últimas duas décadas, até ocupam as páginas seguintes. Cada um explora
a eclosão da crise. um ângulo particular e apresenta as conclusões
O argumento da superior eficiência per- a que chega cada autor individualmente. A
mitida pela exclusão de todos os países que não diversidade das posições apresentadas reflete a
fossem os mais ricos desmoronou rapidamente riqueza dos debates e do material acumulado
quando a crise começou. Na verdade, instâncias pelo projeto, podendo servir de instrumentos
de decisão como o Comitê da Basiléia apenas de capacitação de movimentos ou mesmo de
veicularam a mesma ideologia liberal que levou indivíduos que, percebendo a essencialidade
à desregulação e ao desmonte de controles assumida por mercados financeiros nas eco-
de capital que estão na raíz da crise que já se nomias modernas, se decida a participar dos
prolonga há três anos, e que se traduz, entre debates e pressionar por uma governança mais
outros, pelos 10% de desempregados da eco- democrática das instituições responsáveis pela
nomia norte-americana. ação regulatória.
56 Democracia Viva Nº 45
Finanças internacionais. É hora de radicalizar
Finanças internacionais
É hora de radicalizar
Bruno Jetin1
Economista do Centre d'Economie, Université de Paris Nord, França
Em 1998, durante a crise financeira no Leste Asiático, Paul Krugman publicou um famoso
artigo expressando a consternação dos que creem em uma economia de livre mercado:
Dez anos depois, uma nova crise financeira entrou em erupção, desta vez, no centro
está acuado”.3 Uma janela de oportunidade se abriu novamente para os que apoiam a
Financiar uma economia capaz de fornecer empregos dignos, educação, saúde e 1Como membro do comitê
científico da Attac França, me
beneficiei de seus debates
habitação, respeitando a natureza e as culturas, deve ser a “raison d'etre” de um novo internos. No entanto, sou
o único responsável pelas
opiniões expressas neste
documento.
sistema financeiro, baseado na maior descentralização possível, pois é assim que o con-
2 Paul Krugman, “Saving
Asia: It’s time to get radical”,
trole democrático dos cidadãos pode ser melhor exercido. Fortune, Nova York, 7 de
setembro de 1998.
3 "The Economist", 18 a 24
[Traduzido por Mariana Dias] de outubro de 2008.
Julho 2010 57
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
58 Democracia Viva Nº 45
Finanças internacionais. É hora de radicalizar
Não há nada que bancos não possam financiar. A história mostra que muitas inovações foram financiadas
por bancos. E bancos de investimentos especializados podem perfeitamente investir em novos serviços
e bens intangíveis se os riscos forem claramente assumidos.
Mais precisamente, a história mostra que países em desenvolvimento bem-sucedidos, como o Brasil
ou Coreia do Sul, para citar apenas dois exemplos, contam amplamente com bancos públicos para
financiar sua industrialização. Na Coreia do Sul, todo o setor bancário esteve, por vezes, sob controle
estatal. Vários países desenvolvidos, como a França, tinham até a década de 1990, e ainda têm, pode-
rosos bancos estatais que financiam capital e diversos setores de tecnologia, como a energia nuclear,
telecomunicações e indústrias de trens de alta velocidade, juntamente com o financiamento de habitação
social. Não há nenhum argumento definitivo em favor da superioridade dos mercados financeiros, mesmo
em fases posteriores de desenvolvimento. Economias, mesmo as capitalistas, podem perfeitamente viver
sem mercados financeiros.
Se os mercados financeiros fossem fechados, empresas privadas seriam completamente financiadas
por crédito e os gastos públicos seriam financiados por impostos progressivos e corporativos. A lógica é
que é socialmente mais justificável que o Estado seja financiado por impostos e não pela dívida pública.
Caixas de poupanças públicas recolheriam mais dinheiro para financiar gastos públicos, em troca de
uma taxa fixa de juros.
Se o mercado financeiro precisasse ser mantido, no caso de as receitas fiscais e poupanças não serem
suficientes para o total de gastos públicos, seria estritamente regulado. Derivativos5 de todos os tipos se-
riam proibidos e impostos sobre as transações garantiriam que investidores focassem no longo prazo.
Essas propostas podem parecer distantes da realidade, mas até pouco tempo atrás, a nacionalização
do sistema bancário também parecia. Os pacotes de resgate nos EUA e Europa - que de certa forma
“nacionalizaram” bancos privados - trouxeram o tema de volta às manchetes. Esses pacotes de resgate
provam que nacionalizar grandes bancos não é apenas possível: é também desejável.
Esses representantes da sociedade civil ser responsável por essas três metas – e não
garantiriam que os bancos não participassem de apenas pela inflação.
atividades especulativas ou outras aventuras dos • O Banco Central não deve ser independente.
chamados “produtos financeiros inovadores”. O papel e o poder do Banco Central são
Eles também garantiriam que empréstimos grandes demais para serem deixados nas
fossem oferecidos prioritariamente a projetos mãos de auto-proclamados “gestores in-
sociais e ecológicos, debatidos e incluídos em dependentes”, à margem de qualquer tipo
um planejamento democrático. de controle democrático.
Essa governança democrática do novo • A regulamentação dos bancos de desenvol-
sistema bancário nacionalizado seria complemen- vimento também deve ser revista, de modo a 5 Derivativo é um contrato no
qual se definem pagamentos
tada por outras medidas de democratização do incluir todos os aspectos do desenvolvimen- futuros baseados no
comportamento dos preços
Banco Central e outras autoridades públicas. to social: redução da pobreza e desigualda- de um ativo de mercado
• Audiências com o presidente do Banco de de renda, redução da desigualdade de (chamados commodities).
Pode-se dizer que derivativo é
Central no parlamento para que sua política gênero, da discriminação contra pessoas um contrato cujo valor deriva
de um outro ativo.
seja explicada e suas decisões justificadas. com deficiência, da desigualdade étnica,
Isso já existe em alguns países, como nos das desigualdades regionais e proteção do 6 Pleno emprego e
crescimento sustentável
EUA e na União Europeia. Representantes meio ambiente. não são contraditórios, mas
objetivos complementares.
de sindicatos e OSCs também poderiam Pleno emprego não
questionar a política do Banco Central. implica maior quantidade
Instituições e governança possível de produção com
• Audiências públicas com gerências de outros ônus ao meio ambiente.
financeira regionais Reduzir horas de trabalho
bancos públicos, especialmente com bancos por indivíduo permitiria
de desenvolvimento, devem ser organizadas A integração regional pode oferecer uma alter- compartilhar trabalho entre
todos os trabalhadores, sem
no parlamento com mecanismos que per- nativa à globalização neoliberal em comércio, necessariamente aumentar
demais a taxa de crescimento
mitam membros do parlamento e represen- investimentos, finanças, políticas monetária e do PIB e da destruição da
tantes do movimento social interrogá-los. cambial. Mas a integração regional não é pro- natureza, como acontece
na China. Nos países ricos,
• A regulamentação do Banco Central deve gressiva por si só. Um regionalismo com foco nas a taxa de crescimento zero
ou mesmo a diminuição do
incluir o pleno emprego e crescimento pessoas estabeleceria duas novas instituições: um PIB devem ser discutidas. A
sustentável6 como metas oficiais, além do novo tipo de banco de desenvolvimento regional produção de bens e serviços
é suficiente, mas distribuída
controle da inflação. O Banco Central deve e um novo fundo monetário regional. desigualmente.
Julho 2010 59
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
O mundo Um “Banco do Sul” interior do G-20. Do lado das OSCs, esse debate
latino-americano poderia ser- é obscurecido pela posição a ser adotada vis-à-
precisa de vir de modelo para a criação vis as instituições financeiras internacionais8 já
de outros na Ásia e África. existentes: devemos fechá-las ou reformá-las?
multilateralismo Um “Fundo Monetário do
Sul”, regional e totalmen-
Fechá-las abre o caminho para a constru-
ção de uma nova arquitetura financeira mundial,
60 Democracia Viva Nº 45
Finanças internacionais. É hora de radicalizar
• Os bancos centrais não devem refinanciar Apresentei aqui um breve sumário de 12 Para análises mais
compreensivas, veja: Jetin,
bancos indiscriminadamente, com as mesmas alguns princípios e medidas que podem ser Bruno. “Reconstruindo as
taxas de juros para todos os bancos comerciais considerados quando pensamos em um siste- finanças internacionais: É
hora de radicalizar“. Ibase,
e de investimentos, pois valida, a posteriori, ma financeiro e monetário radicalmente novo, Rio de Janeiro, 2008 (versão
integral). Jetin, Bruno."The
suas atividades especulativas e cria um risco democrático e centrado nas necessidades das Basel II accord and the
moral. Os bancos centrais devem refinanciar pessoas. Uma apresentação mais detalhada development of market-based
finance in Asia." Ibase, Rio de
bancos caso a caso, alocando montantes pré- pode ser encontrada em meus escritos ante- Janeiro, 2007a. Jetin, Bruno.
"The Basel II accord and the
definidos que, ultrapassados, implicariam em riores produzidos para a iniciativa Liberalização development of market-based
refinanciamentos com taxas de juros maiores. financeira e governança global: o papel das finance in Asia." 2007b.
Disponíveis em <www.
Isso ajudaria a evitar bolhas. entidades internacionais.12 democraciaefinancas.org.br>.
Julho 2010 61
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
Esta é a mais séria crise financeira internacional desde a Segunda Guerra Mundial. O
foco da crise foi o centro do próprio sistema mais avançado e sofisticado do mundo. É
uma crise do tipo “salame”: seu conteúdo aparece fatia por fatia e seu final ainda não
pela recessão nos EUA e pela diminuição da demanda e do crescimento global. Os países
mais pobres são afetados duplamente pela crise dos mercados financeiros e dos preços
dos alimentos.
62 Democracia Viva Nº 45
Finanças a serviço das pessoas ou tornar o cassino mais seguro para os jogadores?
Julho 2010 63
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
não somente cria uma tendência para que esses é papel da sociedade civil pensar unicamente
sistemas se tornem voláteis e instáveis, como em termos pragmáticos. É preciso ir além. A
também aprofunda a desigualdade social. própria apresentação de alternativas é uma
Os países em desenvolvimento e os gru- força política produtiva. A atual crise abre uma
pos sociais mais vulneráveis são especialmente oportunidade para a sociedade civil apresentar
atingidos. Estima-se que, no mundo em de- perspectivas de mudança amplas, profundas
senvolvimento, as perdas causadas pelas crises e de longo prazo.
dos últimos 25 anos alcancem um quarto do Ao mesmo tempo, é necessário desen-
Produto Nacional Bruto (PNB). Porém, mesmo volver propostas de acordo com estratégias de
quando não existe uma crise à vista e os merca- ação. É preciso estabelecer metas que possam
dos financeiros funcionam de forma adequada, ser atingidas no curto prazo, mas que tam-
a volatilidade dos mercados representa uma bém preparem o terreno para uma mudança
tensão econômica permanente e custos para os no equilíbrio de poder e para reformas de
países em desenvolvimento. As flutuações das maior alcance.
taxas de câmbio são responsáveis pela constante
volatilidade das receitas de comércio exterior e
Crise e estabilização de curto prazo
de serviço da dívida.
Necessitamos de mu- O FMI, o Comitê de Estabilidade Financeira e
danças substanciais de pa- alguns governos e bancos centrais adotaram
radigma: a meta não pode medidas como injeções de liquidez, exigências
A transparência ser tornar o cassino mais de transparência, aumento dos investimentos
seguro para os jogadores, e públicos e até mesmo a nacionalização como
é uma sim colocar as finanças a ser-
viço de uma economia que
forma de gestão da crise. Mas essas medidas
não enfrentam suas causas fundamentais.
64 Democracia Viva Nº 45
Finanças a serviço das pessoas ou tornar o cassino mais seguro para os jogadores?
Julho 2010 65
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
regime não deve mais ser determinado de forma A regulação dos fundos “private equity”,
unilateral pelos credores e seus interesses. se feita de forma adequada, dirigindo-os para o
Os paraísos fiscais e centros bancários financiamento de investimentos, pode aumen-
extraterritoriais (offshore) são um risco à esta- tar a eficiência da economia real e ser fonte de
bilidade: servem somente a indivíduos ricos e capital. As exigências de capital precisam ser
especuladores institucionais que desejam escon- aumentadas e a alavancagem limitada a um
der seus ativos das autoridades fiscais, máfia, nível sustentável. São necessárias reformas na
terroristas, traficantes de armas e outras forças governança corporativa e os sindicatos, consu-
criminosas que desejam lavar dinheiro. Por isso, midores e outras partes interessadas devem ter
a atual função econômica desses centros deve participação obrigatória nas decisões.
ser totalmente interrompida. Deve haver limites regulatórios para o en-
dividamento das famílias. Moradia para as cama-
das sociais com o menor poder de compra assim
Enfrentar a concentração de renda
como o acesso à propriedade residencial devem
A tributação progressiva da renda do capital é ser parte dos programas sociais governamentais.
um instrumento fundamental para a supera- Para que haja uma mudança real, a
ção da dinâmica da desigualdade no sistema orientação básica é ter como objetivo romper
financeiro. Enquanto os lucros com transações o domínio dos mercados financeiros sobre a
financeiras e as recompensas para banqueiros economia real. Muitas das medidas acima men-
e altos executivos forem muito maiores do cionadas contribuiriam para uma reorientação
que na economia real, haverá incentivo para das atividades econômicas como, por exemplo,
a especulação e riscos excessivos. Assim, os o imposto sobre transações com moedas, con-
incentivos para lucros excessivos (não lucros troles de capitais, regulamentação de taxas de
per se) precisam ser eliminados, tanto no caso câmbio, imposto de renda progressivo etc.
de indivíduos quanto de instituições. Para fechar as muitas brechas legais
A privatização dos sistemas sociais e que ainda permanecem, outros instrumentos
de infraestrutura importante, como energia poderiam ser utilizados. Alguns deles são a
e transporte, precisa parar e ser revertida. As tributação de todos os tipos de transferência de
questões sociais subjacentes a esses sistemas, capital (para reduzir a hipertrofia e o poder do
como envelhecimento da população, saúde, setor financeiro), diminuindo sua velocidade de
sociedade baseada no conhecimento, mobili- operação e visão de curto prazo; a criação de
dade, proteção do meio ambiente etc, são tão incentivos para que os bancos voltem a financiar
ligadas à própria existência que não podem ser as empresas; e fortalecer e privilegiar, por meio
deixadas à tirania comercial. Como envolvem de tributação, por exemplo, o setor público e
bens comuns, requerem gestão pública. cooperativo da indústria financeira.
66 Democracia Viva Nº 45
Reforma do FMI Pensamentos e reflexões de um militante em Washington
Reforma do FMI
Pensamentos e reflexões
de um militante em Washington
Rick Rowden1
Ativista, especialista em relações Norte-Sul e em instituições financeiras internacionais.
Nos últimos anos, várias tendências fizeram com que a disparidade de poder entre os países
na Diretoria Executiva do FMI ficasse cada vez mais fora de sincronia com a evolução das
normas contemporâneas. Primeiramente, embora o FMI tenha sido concebido para pro-
e não a países de baixa renda –, tal propósito se inverteu nas últimas décadas, criando
uma situação na qual os países ricos, com maior poder de decisão, não ficavam expostos
desequilíbrio político nunca foi o propósito inicial ou intenção do Fundo, nem de sua
do FMI compatível com o tamanho de suas economias, o que estimulou a demanda por
públicas nas últimas décadas tornou a estrutura de governança do FMI cada vez mais 1 Rick Rowden trabalhou em
Washington com ONGs de
incidência e foi analista sênior
para o escritório da Action Aid
fora de sintonia com os padrões contemporâneos, levando à demandas de modernização nos EUA. Trabalhou também
como consultor da UNCTAD
em Genebra. Atualmente,
da governança do FMI para a manutenção de sua legitimidade. está fazendo doutorado em
Economia na Índia.
Além disso, muitos insiders do FMI lamentaram a redução dos processos de toma- 2 Accountability é um
termo sem tradução exata,
que se refere à necessidade
de prestação de contas
da de decisões por consenso na última década. Embora a Diretoria Executiva continue por parte dos governos e
administrações. Usa-se, por
vezes, “responsabilização”, em
[Traduzido por Mariana Dias] tradução aproximada.
Julho 2010 67
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
a tomar decisões baseadas em “consenso”, a diferença cada vez maior no âmbito da trans-
determinação desse consenso é feita pela Presi- parência entre países desenvolvidos e em desen-
dência, pelo diretor-geral ou diretor-adjunto. A volvimento, já que as economias industrializadas
decisão é tomada em um processo totalmente publicam mais documentos do que as nações em
fechado e sem accountability. A progressiva re- desenvolvimento. Em resposta às exigências de
dução na duração das discussões e a diminuição maior transparência, governos dos países desen-
da ênfase em decisões consensuais e construção volvidos acusaram países em desenvolvimento de
de compromissos fizeram com que os países serem os obstáculos à transparência.
em desenvolvimento se sentissem ainda mais A preocupação com a falta de transpa-
alienados da instituição. rência do FMI e sua instituição parceira, o Banco
Os membros do Fundo vêm debatendo Mundial, levou à formação da Iniciativa Global
como renovar a fórmula que define os direitos pela Transparência (GTI, na sigla em inglês), que
de voto dentro da instituição. Após mais de dois procura romper o segredo que cerca as opera-
anos de negociação para a reorganização das ções das instituições financeiras internacionais.
fórmulas utilizadas para calcular votos básicos Como uma ferramenta para alcançar esse obje-
e a divisão de cotas entre membros, algumas tivo, foi esboçada uma Carta de Transparência,
mudanças foram feitas. Mas os países ricos, um documento que descreve nove princípios que
que representam cerca de 15% dos membros devem reger o acesso à informação de institui-
do FMI, continuaram a exercer quase 60% dos ções financeiras internacionais (IFIs)4.
direitos de voto na instituição3. Os documentos que detalham os progra-
O processo oficial de reforma da governan- mas de empréstimo do FMI para países de média
ça do FMI até agora incluiu somente negociações e baixa renda contêm mudanças extremamente
sobre a proporção de direito de voto entre seus controversas de política econômica e que, muitas
membros. Mas para que qualquer mudança real vezes, são condicionalidades para acesso a crédito.
sobre o controle do poder ocorra, uma série de Entre essas condicionalidades estão a liberalização
outras questões deve ser abordada, incluindo o comercial, privatizações, liberalização das contas
aumento da transparência nos processos de de- de capital e bancário, bem como metas de políticas
cisão e nos documentos oficiais. A publicação dos fiscal e monetária que podem restringir, e muito, as
votos para todas as decisões da diretoria é vital. taxas de crescimento, o tamanho de orçamentos
Espaços de participação envolvendo todas as par- e salários de funcionários públicos. No entanto,
tes interessadas precisam ser criados, assim como apesar de sua importância, as informações con-
métodos para aumentar a capacidade dos países tidas no documento são pouco compreendidas
em desenvolvimento se pronunciarem a uma só pela sociedade civil globalmente.
voz bem como de realizarem ações coletivas. Apesar do progresso recente em matéria
O processo oficial de reforma da gover- de transparência, o FMI, infelizmente, regrediu
nança do FMI continua aquém do necessário em um dos princípios mais importantes da Carta
para aumentar a legitimidade da instituição. de Transparência: a divulgação automática. A
Existe um acordo tácito oficial de que o tamanho primeira política de publicação do FMI, criada
de uma economia e seu peso na economia global em 2001, continha intenção de divulgação para
3 Nota da editora: na reunião
anual de primavera entre são as medidas que contam no FMI. As ideias de quatro tipos de documentos, incluindo as Cartas
o Banco Mundial e o FMI, um país/um voto, de maiorias duplas, que con- de Intenções e Memorandos de Políticas Econô-
em 25 de abril de 2010,
foi decidido o aumento no siderem o peso da população, ou de algum tipo micas e Financeiras. No entanto, em 2003, o FMI
direito de voto de alguns
países em desenvolvimento, de “ação afirmativa”, visando aumentar o poder reviu essa política e passou a requerer permissão
tais como Brasil, Índia e dos países mais pobres, não estão colocados para por escrito das autoridades de cada país antes
China. Sendo que a China
teve o aumento mais discussão. Dada essa situação, pode-se esperar de publicar um documento. Tal fato constitui, na
significativo, quase dobrando
sua participação anterior – de que a influência de algumas das principais eco- verdade, a intenção de não divulgação. A nova
2,77% para 4,42%. Com nomias emergentes seja relativamente fortaleci- definição permanece em vigor.
essa mudança, os países em
desenvolvimento passaram a da. Mas, apesar disso, nenhuma democratização
deter 47% dos votos.
significativa da estrutura de poder no FMI parece
4 V. “Transparency at Limites das reformas de políticas
IMF: guide for civil society
provável em um futuro próximo.
on getting access to A mais nova versão da política de divulgação de A única reforma importante de política ocorrida
information from IMF”,
Global Transparency informações do FMI demonstra a tendência de nesses anos de neoliberalismo foi o cancelamento
Initiative, 2007. <http:www.
brettonwoodsproject.org/
aumento de transparência. Hoje, os documentos de dívidas bilaterais com os países doadores do
art-557777>. são publicados em maior quantidade do que Norte, concedido pela Iniciativa dos Países Pobres
5 HIPCs, sigla em inglês. em qualquer outro momento. Há também uma Altamente Endividados (HIPCs5), e, em seguida,
68 Democracia Viva Nº 45
Reforma do FMI Pensamentos e reflexões de um militante em Washington
pela Iniciativa de Alívio da Dívida Multilateral civil que continuam participando. Se políticas de
(MDRI). Apesar de pouquíssimas nações terem se ajuste estrutural e alternativas possíveis não podem
beneficiado desses acordos, tais transformações ser discutidas nas consultas realizadas por governos
representam as mudanças mais significativas nas no âmbito do PRSP, as organizações da sociedade
políticas do FMI nos últimos anos. É essencial notar civil deveriam avaliar se a participação em outro
que foram fruto da pressão política interna e exter- tipo de consulta pública, liderada pela sociedade
na sobre os governos do G7 que dominam a dire- civil, constituiria uma estratégia mais útil na defesa
toria do FMI e do Clube de Paris, assim como sobre de políticas alternativas de desenvolvimento e na
os doadores de recursos para a ajuda oficial. mobilização de apoio político interno.
Além da anulação das dívidas, houve
oportunidades para avançar em outras frentes
Dominância da ideologia
de transformação política, mas não foram leva-
neoliberal e monetarista
das adiante. Por exemplo, no que se refere às
conservadoras políticas fiscal e monetária do É provável que a principal restrição de mudança
Fundo, quase nada foi alcançado. Embora, em das políticas do FMI seja o domínio do neolibe-
anos mais recentes, possa ter havido acordo de ralismo em muitas áreas de influência. Como
liberação de países devedores para empregar po- Susan George bem explicou, os neoliberais
líticas fiscal e monetária mais expansivas, a fim de passaram grande parte da década de 1970
capacitá-los a absorver mais ajuda estrangeira e investindo em instituições e estabelecendo as
aumentar gastos públicos para alcançar as metas bases ideológicas para a rápida decolagem de
do milênio – pelo menos em termos de gastos suas ideias com a ascensão dos regimes Reagan/
sociais –, os últimos anos foram caracterizados Thatcher, no começo dos anos 19807.
pelas mesmas políticas restritivas, com foco único Nos 30 anos seguintes, essas ideias foram
na estabilidade macroeconômica. totalmente incorporadas às estruturas de pensa-
O The New York Times resumiu correta- mento dominante, de ministérios a “think tanks” e
mente em editorial a desconexão atual das polí- à mídia corporativa, para não mencionar editoras
ticas dos países doadores: “Há a necessidade de- e departamentos universitários que ensinaram a
sesperada por uma política de maior coerência em duas ou três gerações de estudantes de Economia
um período em que muitos governos nacionais, o pensamento pura e exclusivamente neoliberal.
incluindo o de Washington, estimulam governos Assim como ilustra o excelente trabalho de Ha-
africanos a gastar mais em saúde e educação, ao Joon Chang, as ideias neoliberais que, quando
mesmo tempo em que as instituições financeiras introduzidas nos anos 1980, eram vistas como um
internacionais, em grande parte controladas por conjunto conservador de opções políticas, entre
esses mesmos governos ocidentais, têm pressio- uma série de outras escolhas, posteriormente pas-
nado os países africanos a encolher suas folhas de saram a ser entendidas como o único conjunto de 6 Documentos de
planejamento que os países
pagamento, inclusive o pagamento de professores opções políticas disponível para “policy makers”. de baixa renda e altamente
endividados apresentam ao
e profissionais de saúde.” As referências a políticas heterodoxas, tais como FMI e ao Banco Mundial,
O processo de produção de Documentos barreiras alfandegárias, políticas industriais ou nos quais se comprometem
a reduzir a pobreza,
de Estratégia para a Redução da Pobreza6 (PRSP, políticas fiscais e monetárias expansionistas, foram descrevendo as políticas
macroeconômicas e sociais
em inglês) foi iniciado. Nesse processo, “ouvir os totalmente retiradas do currículo dominante dos a serem desenvolvidas
pobres”, “aumentar a participação da comunida- departamentos universitários de Economia e das durante um período. A
partir da apresentação
de" e “comprometer-se com a redução da pobre- editoras de livros universitários8. desse documento, o país
em questão pode pedir o
za” nos países mais pobres do mundo estão entre A Action Aid apresentou à diretora-exe- abatimento de sua dívida
os mantras repetidos por altos líderes do Banco cutiva americana do FMI, Meg Lundsager, cópias perante o Banco Mundial,
o FMI e demais países
Mundial e do FMI. Faz parte da composição da impressas de cerca de uma dúzia de artigos exis- doadores, tendo acesso a
novos créditos, empréstimos
“carinha feliz” que as instituições financeiras glo- tentes na literatura econômica acadêmica sobre a e recursos a fundo perdido.
bais esperavam poder pintar em seus próprios ros- localização do nó na relação crescimento-inflação. O PRSP deve, em tese, ser
construído com a participação
tos, já que muitas organizações da sociedade civil Tais artigos mostram que há pouca evidência da sociedade civil (N.E.).
haviam rejeitado completamente os programas de empírica para justificar a manutenção de níveis 7 “How to win the war
of ideas: lessons from the
reajuste estrutural e as outras reformas de política de inflação tão baixos quanto os que o FMI vêm gramscian right,” por Susan
econômica que acompanham as condições de determinando há mais de 25 anos. No entanto, George. Dissent Magazine.
Verão 1997. <http://plec.
empréstimos para o desenvolvimento. ela, literalmente, empurrou a pilha de papéis para blogspot.com/Dissent%20
-%20Gramscian%20right>.
No entanto, esse processo não foi bem o lado e disse: “Eu não me importo com o que
sucedido até o momento, o que levanta uma dis- está na literatura. Os Estados Unidos simplesmente 8 “Kicking away the ladder,”
by Ha-Joon Chang. London:
cussão essencial para as organizações da sociedade acreditam que a inflação deve ser baixa!” Anthem Press, 2002.
Julho 2010 69
e s p e c i a l | D e m o c r a c i a e G o v e r n a n ç a f i n a nc e i r a
70 Democracia Viva Nº 45
Julho 2010 71
RE P ORTA G EM
Flávia Mattar, Jamile Chequer e Mariana Dias
UPP:
tecendo
discursos
solução dos problemas de violência na cidade. As UPPs são a luz no fim do túnel?
De que forma dialogam com um projeto maior de segurança pública para o Rio?
do país, Santa Marta, vitrine do projeto UPP, e Borel, a mais recente a receber
72 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos
Julho 2010 73
reportagem
74 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos
Julho 2010 75
reportagem
76 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos
Julho 2010 77
reportagem
pensado exclusivamente para combater o pro- de judô, com mais de 60 alunos. Por exem-
blema do controle do território por gangues plo, no Dia do Meio Ambiente recebemos o
armadas. “Infelizmente, não foi pensado como Batalhão Florestal. Fora isso, damos apoios a
projeto integrado, social, ambiental, cultural eventos que empresários querem organizar na
e urbanístico. Mas, à medida que você tira o comunidade”, cita.
controle de território, você autoriza a entra-
da não só de outros órgãos do estado, mas
Favela é cidade
também da vida privada.” E complementa: “O
próprio governador está reconhecendo que É importante analisar as UPPs a partir da noção
não dá para entrar apenas com polícia nas base de que favela é cidade. Tal afirmação cha-
favelas. É preciso entrar com polícia e pro- ma a atenção para as injustiças e desigualdades
grama integrado. O desafio é criar programas presentes nos ambientes urbanos, nos quais,
sociais nas UPPs, criar indicadores, sair desse muitas vezes, uma parte da população tem
oba oba que é a cultura do acesso a direitos e outra não. Uma questão
assistencialismo.” que ameaça moradores(as) de comunidades e
Segundo a moradora que é objeto de luta por parte de movimentos
Não dá para do Morro da Providência,
Elisete da Costa Moreira
e organizações é a luta contra a remoção, já
que muitas vezes o discurso a favor vai além
pensar política Silva, a UPP trouxe o fim de
tiroteios e tráfico armado.
do risco e cai em preconceitos, especulação
imobiliária etc.
78 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos
Julho 2010 79
reportagem
Está cada vez mais claro que o objetivo é o agora tem que passar pela capitã”. Não existe
controle territorial das favelas e a imposição vácuo de poder. Enquanto os projetos sociais
de um padrão comportamental definido como prometidos pelo estado não chegam, capitães
ideal pela polícia”, alerta. responsáveis pelas UPPs vêm se envolvendo
Para a capitã Pricilla, o retorno de crimi- em questões muito particulares do cotidiano
nosos ao Santa Marta poderia ser evitado por da favela.
meio da “educação”. “A partir do momento
que os moradores tomarem consciência de que
Sustentabilidade
isso não presta, de que eles são usados pelo
tráfico, a polícia vai ser o menos importante no Um questionamento que fica é em relação
lugar”, aposta. à sustentabilidade das UPPs. O projeto tem
morte anunciada: 2016, quando ocorrem as
Olimpíadas? Para o capitão Glauco, a UPP veio
“Policização” do cotidiano
para ficar. “Tem apoio do governo, da iniciativa
O sucesso conseguido até privada, da Secretaria de Segurança, da PM e
agora com as UPPs e sua da sociedade civil como um todo. Se um deles
lua-de-mel com os meios de falhar, os outros vão cobrar”, justifica.
Uma questão comunicação acaba enfra- A aposta de Roberto Sá segue na mesma
quecendo a crítica. Apesar linha. Segundo ele, serão realizados concursos
que ameaça de o cerne do policiamento
comunitário ser a participa-
para, no mínimo, 4 mil PMs por ano. “A gente
tem compromissos com o caderno olímpico de
moradores(as) de ção, lideranças das favelas
onde as UPPs estão sendo
encargos do Comitê Internacional de aumentar
o efetivo da Polícia Militar para patrulhar as ruas
80 Democracia Viva Nº 45
UPPs tecendo discursos
Sob o conceito de “polícia da paz”, o projeto das UPPs recebeu R$ 15 milhões destinados à qualificação
da Academia de Polícia, que deve formar cerca de 60 mil policiais até 2016. Em 2010, pelo menos 3,5
mil novos policiais serão destinados às Unidades Pacificadoras.
A primeira comunidade a ser ocupada foi o Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio. A ocupação
foi realizada em 19 de dezembro de 2008 e conta com 120 policiais, liderados pela capitã Pricilla de
Oliveira Azevedo. Segundo o subsecretário de Planejamento e Integração Operacional do Rio de Janeiro
Roberto Sá, a quantidade de fuzis utilizados está diminuindo: “Vamos manter um grupo tático com fuzil
para uma eventual resposta, mas vamos diminuir bastante.”
A ocupação da Providência ocorreu em 26 de abril de 2010. A UPP abrange as áreas Pedra Lisa e
Moreira Pinto e tem 200 policiais sob comando do capitão Glauco Schorcht. A Providência está locali-
zada atrás da Central do Brasil e a alguns metros da Zona Portuária, que tem projeto de revitalização
planejada. Cerca de 9 mil pessoas moram na Providência e no seu entorno.
O Borel, comunidade localizada na Tijuca, Zona Norte do Rio, foi ocupado em 28 de abril de 2010.
Uma diferença em relação à Providência e ao Santa Marta é o fato de o Borel estar próximo de grandes
favelas, como Casa Branca, da Cruz e Formiga. Durante a apuração desta reportagem, a comunidade
ainda estava na primeira fase de ocupação, realizada pelo Bope. A UPP foi instalada oficialmente em
6 de junho, com previsão de abranger cerca de 120 mil pessoas e possibilidade de instalação de outra
unidade em área próxima.
Também estão ocupadas pelas UPPs as comunidades Babilônia/Chapéu Mangueira (Leme), Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo e Tabajaras/Cabritos (Copacabana), na Zona Sul; Cidade de Deus (Jacarepaguá)
e Jardim Batam (Realengo), na Zona Oeste. A estimativa é que cerca de 140 mil pessoas estejam sob a
guarda dessa polícia comunitária.
Durante as ocupações não foram registrados grandes confrontos com traficantes locais. Para cada
lugar é criada estratégia específica de ocupação. No Santa Marta, por exemplo, a entrada dos policiais do
Bope foi “uma surpresa”, como relatam moradores. Já para o Borel, foi divulgada previsão de ocupação
antes do carnaval. Uma “guerra avisada para evitar balas perdidas”, segundo Roberto Sá. Porém, todas
as operações da polícia pacificadora seguem um roteiro comum.
Julho 2010 81
s u a o p i n i ã o
Amigos de longa data bancários de São Paulo. Nos velhos tempos
trouxemos também Prestes, assim que ele vol-
Queridos amigos,
tou do exílio, e muitos outros.
Sou Fátima, volta e meia estava aí na Rio Branco. Abraços e parabéns pelo importante e bonito
Sou a mãe do Marcus Vinícius, que um dia che- trabalho,
gou na sala e disse: “Já sei o que quero estudar, Gilmar Carneiro
quero ser como o Betinho”. Sabemos que Betinho
“não se aprende na escola”, mas hoje o sociólogo
Marcus Vinicius está em Florianópolis há 12 anos, Contribuir com a revista
professor de sociologia, concursado e, todos os Gostaria de parabenizar a todos os envolvidos
anos, pelo menos uma de suas 40 turmas o chama com a produção, divulgação e qualidade com
para ser o “padrinho”. Alguns aí nos conhecem, que é feita a revista e difundida a democracia
tivemos a honra de contar o feito acima ao próprio em nosso país.
Betinho. Precisamos muito da nossa revista, que
aliás, vocês nunca nos deixaram sem ela. Grato pela atenção,
Fátima Rômulo
82 Democracia Viva Nº 45
s u a o p i n i ã o
Julho 2010 83
última página
Nani
45
A agenda da revista Democracia Viva é ampla
VIVA
e aberta, parte do compromisso radical com
DEMOCRACIA
a cidadania e com a democracia.
Julho 2010