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ESTUDOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
URBANOS
e pesquisa em planejamento urbano e regional
ISSN 1517-4115
EDITORA RESPONSÁVEL
Norma Lacerda (UFPE)
EDITORA ASSISTENTE
Lúcia Leitão (UFPE)
COMISSÃO EDITORIAL
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Marco Aurélio Filgueiras Gomes (UFBA), Maria Adélia de Souza (Unicamp),
Maria Cristina Leme (USP), Naia de Oliveira (FEE/RS), Roberto Monte-Mór (UFMG)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Fernandes (UFBA), Carlos Bernardo Vainer (UFRJ), Carlos Roberto M. de Andrade (USP/São Carlos),
Circe Maria da Gama Monteiro (UFPE), Clélio Campolina Diniz (UFMG), Flávio Magalhães Villaça (USP),
Frank Svensson (UnB), Frederico de Holanda (UnB), Jan Bitoun (UFPE), Lícia Valladares (IUPERJ),
Marcus André B. C. de Melo (UFPE), Marta Ferreira Santos Farah (FGV/SP), Martim Smolka (UFRJ),
Maurício Abreu (UFRJ), Milton Santos (USP), Tania Bacelar (UFPE), Tânia Fischer (UFBA),
Wilson Cano (Unicamp), Wrana Panizzi (UFRGS)
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Margarida Michel, Sharing English (inglês),
Fernanda Spinelli (revisão final)
FOTOLITOS
Join Bureau de Editoração
IMPRESSÃO
GraphBox Caran
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
ESTUDOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
URBANOS
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
S U M Á R I O
RESENHAS
49 REFLEXÕES SOBRE A HIPERPERIFERIA: NOVAS E
VELHAS FACES DA POBREZA NO ENTORNO MUNICI- 101 A cidade do pensamenrto único: desmanchando
PAL – Haroldo da Gama Torres e Eduardo Cesar consensos, de Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia
Marques Maricato – por Fernanda Sánchez
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR
PRESIDENTE
Maria Flora Gonçalves (Nesur/Unicamp)
SECRETÁRIA EXECUTIVA
Yvonne Mautner (FAU/USP)
DIRETORES
Cássio Frederico Camargo Rolim (UFPR)
Geraldo Magela Costa (UFMG)
Henri Acselrad (UFRJ)
CONSELHO FISCAL
Décio Rigatti (UFRGS)
Esterzilda Berenstein de Azevedo (UFBA)
Frederico Rosa Borges de Holanda (UnB)
NORMA LACERDA
Editora Responsável
LÚCIA LEITÃO
Editora Assistente
MARÍLIA STEINBERGER
INTRODUÇÃO
Para mostrar que o meio ambiente urbano é, de fato, uma área de investigação, se-
rão utilizados dois enfoques. O primeiro refere-se à identificação de um marco institucio-
nal, supondo que, de certa maneira, ele equivale a um reconhecimento oficial da existên-
cia da área. O segundo respalda-se no debate em torno da desconstrução de mitos
construídos em marcos teórico-conceituais estabelecidos, passo inicial e revelador da
emergência de uma nova área.
ambiente urbano foi introduzida pelo Fórum Brasileiro de Reforma Urbana e expressada,
formalmente, no “Tratado sobre a questão urbana: por cidades, vilas e povoados, justos,
democráticos e sustentáveis” (1994).
Os signatários desse Tratado buscavam contribuir para o avanço dos movimentos so-
ciais e para a construção de uma vida digna nas cidades por meio da ampliação dos direi-
tos de seus habitantes, mudança na gestão e na qualidade da vida urbana; construção de
um meio ambiente a ser desfrutado pelas atuais e futuras gerações. Definiam que “o ur-
bano se redimensiona como centro das atividades humanas e como ponto focal de pro-
cessos políticos e econômicos. As cidades tornam-se centros de gestão e de acumulação do
capital, organizados em escala planetária, núcleos de comando de uma vasta rede que in-
2 Em continuidade às dis- tegra o urbano e o rural. Essa dimensão territorial expressa uma crescente integração das
cussões que já vinham ocor-
rendo desde o fim dos anos
problemáticas rurais, urbanas e meio ambientais” (HIC/Fococ, 1992:87).
70, sobre a então denomi- Essa postura foi inovadora, dado que o Relatório do Brasil para a Eco-92 havia ado-
nada Lei de Desenvolvimen-
to Urbano. tado uma outra direção ao relacionar duas causas da crise ambiental com o modelo de de-
senvolvimento: a pobreza e o mau uso da riqueza. Nesse contexto, o meio ambiente ur-
3 Outras diretrizes também
relacionadas ao meio am- bano foi inserido a partir da identificação de problemas: “Por um lado a pobreza das
biente urbano são: ordena- cidades … que se confunde com a degradação ambiental. Por outro lado … os problemas
ção e controle do uso do
solo, de forma a evitar a po- causados pela concentração das atividades econômicas … nas localidades urbanas.”
luição e a degradação am-
biental; adoção de padrões
(Cima, 1991:60).
de produção e consumo de Também no início da década de 1990, foi proposto, no âmbito do Congresso Na-
bens e serviços e de expan-
são urbana compatíveis
cional, um projeto de lei conhecido como Estatuto da Cidade.2 Embora ainda não trans-
com os limites da sustenta- formado em lei, sua tramitação encontra-se em estágio avançado, uma vez que não há dú-
bilidade ambiental, social e
econômica do município e vidas sobre a importância de sua finalidade: “Fixar parâmetros para a aplicação do
do território sob sua área de capítulo da política urbana da Constituição Federal, definindo princípios e objetivos, di-
influência; proteção, preser-
vação e recuperação do retrizes de ação e instrumentos de gestão urbana a serem utilizados, principalmente, pelo
meio ambiente natural e Poder Público Municipal” (Relatório do PL 5788/90 e seus apensos).
construído, e regularização
fundiária e urbanização de No que tange ao meio ambiente urbano, acompanhando a crescente importância
áreas ocupadas por popu-
lação de baixa renda, me-
que a área foi ganhando no decorrer da década, recentemente foram introduzidas, no Pro-
diante o estabelecimento de jeto do Estatuto, algumas orientações relevantes nos capítulos que tratam das diretrizes da
normas especiais de urbani-
zação, uso e ocupação do
política urbana e seus instrumentos. Com relação às diretrizes, cumpre destacar:
solo e edificação, conside- • garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como direito à terra urbana, à mo-
radas a situação socioeco-
nômica da população e as radia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e serviços pú-
normas ambientais. blicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
4 Além disso, nos demais • planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e
instrumentos (Parcelamen- das atividades econômicas do município e do território sob sua área de influência, de
to, Direito de Preempção,
Operações Urbanas Consor- modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos so-
ciadas, Transferência do Di-
reito de Construir e Estudo
bre o meio ambiente; e
de Impacto de Vizinhança), • audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de im-
há uma clara referência à
sua aplicação para manter
plantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos so-
ou criar áreas de interesse bre o meio ambiente natural ou construído.3
ambiental e para reforçar o
respeito à legislação am- Entre os instrumentos, dois são especificamente dirigidos ao meio ambiente urbano,
biental vigente. Vale ressal- a saber, o Zoneamento Ambiental e o Estudo Prévio de Impacto Ambiental.4
tar, ainda, que a obrigatorie-
dade de elaborar planos Por fim, o documento “Cidades Sustentáveis da Agenda 21 Brasileira” (MMA/PNUD,
diretores foi estendida para 1999) pode ser considerado como a mais recente contribuição para se construir um mar-
municípios inseridos na área
de influência de empreendi- co institucional da área de meio ambiente urbano. Seu objetivo é oferecer propostas para
mentos e atividades com
significativo impacto am-
introduzir a dimensão ambiental nas políticas urbanas vigentes ou que venham a ser ado-
biental regional ou nacional. tadas. Dentre as premissas que o nortearam, merece destaque a denominada crescer sem
destruir, por traduzir que o desenvolvimento sustentável das cidades implica, ao mesmo
tempo, o crescimento dos fatores positivos da sustentabilidade urbana e a diminuição dos
impactos ambientais, sociais e econômicos indesejáveis no espaço urbano. O documento
parte de diagnósticos setoriais a fim de identificar os pontos de estrangulamento mais crí-
ticos para o desenvolvimento urbano sustentável. Com base neles, conclui que a cidade
brasileira do século XXI poderá ser o palco de uma vida urbana enriquecida, desde que se
operem as necessárias transformações dos padrões insustentáveis de produção e consumo
que resultam na degradação dos recursos naturais e econômicos do País, afetando as con-
dições de vida da população nas cidades.5 5 Para se atingir tal anseio,
definem-se quatro estraté-
Além desses documentos, Rodrigues (1998) lembra que os trabalhos apresentados gias prioritárias: aperfeiçoar
nas conferências nacionais e internacionais preparatórias para o Habitat II (Istambul, a regulação do uso e ocupa-
ção do solo urbano; promo-
1997), embora centrados na habitação, sugeriam um (re)pensar sobre o meio ambien- ver o desenvolvimento insti-
te urbano, não como mera retórica, mas em torno de questões concretas, tais como a tucional e o fortalecimento
da capacidade de planeja-
qualidade de vida, a infra-estrutura e os equipamentos de consumo coletivo e a cidada- mento e gestão democráti-
nia urbana. ca da cidade; promover mu-
danças nos padrões de
Esse conjunto de documentos compõe o marco de referência institucional da área produção e consumo da ci-
dade, reduzindo custos e
de meio ambiente urbano no Brasil, uma vez que significa uma oficialização da sua desperdícios e fomentando
importância, por parte de entidades governamentais e não-governamentais brasileiras o desenvolvimento de tecno-
logias urbanas sustentáveis,
e internacionais. e estimular a aplicação de
Sobre o seu conteúdo, é preciso ressaltar que o corte analítico adotado em pratica- instrumentos econômicos
no gerenciamento dos re-
mente todos eles faz aflorar o principal ponto de conflito na área: a discussão entre meio cursos naturais visando à
ambiente natural e meio ambiente urbano. Há uma convergência de posicionamentos so- sustentabilidade urbana.
perspectiva, na década de 1920 nasceu a visão possibilista, que não focalizava a natureza
como determinante do comportamento humano, mas como fornecedora de possibilida-
des para o homem modificá-la. Preconizava que o homem, com sua cultura, criava uma
paisagem e um gênero de vida peculiares em cada porção do território, dotando-a de per-
sonalidade. Assim surgiu o conceito de região geográfica ou região-paisagem (Go-
mes,1995). Outras correntes se sucederam, como a da Geografia crítica, que se apropriou
dos ensinamentos marxistas sobre a natureza.
Da Sociologia veio a linha de pesquisa desenvolvida pela Escola de Chicago, princi-
palmente no período de 1915 a 1940. Embora iniciada em 1902, com base na obra de
Simmel que comparava a cidade a um organismo vivo, foi nesse intervalo que se produ-
ziram as principais contribuições: a de Park, que considerava a cidade como obra da na-
tureza humana e como habitat natural da sociedade civilizada; a de Wirth, que via o ur-
banismo como um modo de vida baseado numa ordem ecológica; e a de Wolman, que
discutia as necessidades metabólicas das cidades.
Da Economia vieram teorias que tratavam a natureza como um recurso a ser explo-
rado, como um fator ou meio de produção para gerar crescimento independentemente do
tipo de uso que se fizesse dos recursos naturais, na certeza de que a tecnologia seria a gran-
de saída. A natureza não apresentava custos. Existia para ser dominada e valorizada. Isso
levou alguns críticos a se referirem à economia de rapina ou economia destrutiva. Impe-
rava um modelo de desenvolvimento baseado na exploração ilimitada dos recursos natu-
rais que, ao mesmo tempo, privilegiava a questionável idéia de que “uma diminuição da
percentagem de população do setor primário deve ser considerada como um sinal de de-
senvolvimento econômico viável e permanente” (Alier & Schlupmann, 1991:307). Em
contrapartida, no início da década de 1970 alguns estudiosos propunham manter taxas
elevadas de crescimento para financiar políticas ambientais, enquanto outros propunham
a redução do crescimento, e até mesmo o crescimento zero. Também veio da Economia a
conhecida visão castastrofista da escassez de Malthus, que previa um desequilíbrio entre
o crescimento da população e a produção de alimentos, e foi resgatada nos últimos anos
pela corrente do neomalthusianismo.
Do Urbanismo veio o movimento modernista do século XX, que buscava estabelecer
uma nova relação entre arquitetura e o meio ambiente, e entre a cidade e a natureza, mas
não logrou êxito, pois prevaleceu a estética da arquitetura moderna que, em geral, condu-
ziu a uma dissociação entre edificação e natureza. Arquitetos e urbanistas dessa corrente de-
dicaram pouco tempo às questões ambientais e à paisagem natural (Marques da Silva, 1999).
Todos os aportes teóricos citados, independentemente da disciplina a que estejam li-
gados, têm como pano de fundo a discussão das formas de apropriação da natureza pelo
homem, em torno da qual foram sendo construídos mitos como: os limites da natureza;
o equilíbrio ecossistêmico; a capacidade de o homem modelar a natureza; a tecnologia co-
mo regeneradora da degradação da natureza e solução da escassez; e a racionalidade do
modernismo. Aqui, sugere-se que tais mitos precisam ser desconstruídos, porque são os
responsáveis por gerar a oposição entre meio ambiente e urbano e, assim, “engessar” o es-
paço urbano à idéia de uma insustentabilidade permanente. Essa idéia se baseia na pre-
missa de que o homem urbano, ao desrespeitar os limites da natureza, sempre cria um es-
paço urbano desequilibrado, pois as soluções tecnológicas e modernistas não dão conta de
reverter esse quadro ou o fazem de maneira paliativa.
A desconstrução inicia-se tomando emprestadas as idéias de Marx Weber, pois o de-
bate sobre os assuntos ambientais na teoria social está embutido nos processos de racio-
nalização ocidental analisados por ele há cerca de 80 anos. Embora não tenha examinado
esse assunto, ele mostrou a existência de uma relação paradoxal entre racionalidade e ir-
racionalidade, que ajuda no entendimento do conflito entre racionalidade instrumental e
racionalidade de valor expressa nas imagens divergentes da relação social versus natural
(Teixeira & Bessa, 1997).
Continua quando se indaga se a noção de meio ambiente abrange apenas aquilo que
Kant denominou de “mundo das coisas”, mundo físico, ou se, no seu interior, cabe o
mundo das representações, o mundo das formas. Ou ainda, se é uma questão na qual pre-
valecem os “nexos utilitários”, emergentes a partir da revolução tecnológica, ou, se admi-
tem nexos de significações. Sahlins (1979) considera que “toda ação humana é mediada
por um projeto cultural que ordena a experiência prática para além da simples logística
utilitária” (apud Silva, 1999:2).
Nesse sentido, propõe-se que a desconstrução aqui sugerida6 passe pela própria des- 6 Não se pretende, no âmbi-
to deste artigo, realizar a re-
construção da racionalidade instrumental embutida no arcabouço teórico-conceitual de ferida desconstrução, mas
cada uma das disciplinas que tratam a relação homem-natureza como uma apropriação tão somente apontar a sua
necessidade e identificar al-
utilitária; passe também pela desconstrução do planejamento como o maior símbolo des- guns autores cujas idéias
se tipo de racionalidade e, mais especificamente, do planejamento urbano. Acredita-se permitem agregar argumen-
tos nessa direção.
que somente assim será possível perceber um espaço urbano que, dotado de uma racio-
nalidade própria, desobediente e resistente às prescrições do planejamento, se supera e
reinventa formas de (con)vivência, razão pela qual ora é emblemático da irracionalidade
máxima de apropriação da natureza pela sociedade, ora de uma outra racionalidade. Por-
tanto, o espaço urbano, para alguns, torna-se o símbolo da irracionalidade e, para outros,
ao contrário, de uma racionalidade específica. O que diferencia essa (ir)racionalidade?
Costa (1999) ressalta que, no campo dos estudos ambientais, a dimensão espacial ur-
bana é subestimada e até mesmo negada como não-ambiental. Há uma hostilidade do
movimento ambientalista para com a existência das cidades. Para entendê-la, é preciso re-
tornar à origem das preocupações urbana e ambiental. A urbana surgiu com a generaliza-
ção do capitalismo ocidental urbano-industrial e a consolidação de um projeto de moder-
nidade. A ambiental surgiu das reações às características negativas da organização
territorial associada a esse projeto. Embora essa argumentação seja utilizada para mostrar
a oposição entre meio ambiente e espaço urbano, na verdade, ela aponta que ambas as
posturas estão prisioneiras de uma mesma racionalidade instrumental, o que confirma a
necessidade, antes levantada, de se perceber uma outra racionalidade.
Racionalidade que envolve a urgência de quebrar o preconceito dos ecologistas so-
bre a insustentabilidade dos centros urbanos e a sua crença de que só existem soluções sus-
tentáveis para pequena escala (Costa Filho & Sattler, 1999). Racionalidade que leva à ne-
cessidade de os economistas compreenderem que as externalidades não são apenas
econômicas mas também ambientais, ou seja, além do intercâmbio economicamente de-
sigual, é preciso computar o intercâmbio ecologicamente desigual (Alier & Schlupmann,
1991). Racionalidade que conduz os geógrafos a buscarem a natureza escondida no urba-
no ou cada vez mais oculta no processo de produção e reprodução do espaço urbano (Ro-
drigues, 1998). Racionalidade que faz os urbanistas reconhecerem que o meio ambiente
natural, quando substituído por espaços urbanos, dá lugar a uma ação antrópica, que cria
novas relações e subverte a ordem biológica reguladora da sociedade/natureza, lançando
as bases para uma nova ecologia humana (Alva, 1997). Por fim, a racionalidade destaca-
da por Santos (1994), em que a cidade está fadada a ser tanto o teatro dos conflitos cres-
centes, como o lugar geográfico e político da possibilidade de soluções.
Além disso, o entendimento de uma outra racionalidade no(do) espaço urbano in-
clui admitir que o tema ambiental evidencia a crise da ciência moderna, porque envolve
muitas disciplinas e, portanto, tem um caráter transdisciplinar. Essa complexidade fica
mais clara ainda quando se trata do meio ambiente urbano, onde a multiplicidade de
áreas do conhecimento empenhadas na apreensão do universo urbano favorece uma visão
mais holística da interação do espaço social construído e do seu suporte natural (Mota
Silva & Shimbo, 1999).
Com base nesses recortes do pensamento, argumenta-se, aqui, que a expressão meio
ambiente urbano, longe de conter uma contradição, traz a possibilidade de um novo olhar
que não é nem ambiental nem urbano isoladamente, mas carrega contradições inerentes
ao espaço urbano que definem sua (in)sustentabilidade de acordo com a racionalidade
adotada. Esse olhar leva a considerar o meio ambiente urbano como uma área de investi-
gação que trabalha com várias disciplinas, mas precisa necessariamente desconstruir os
mitos criados no seio de cada uma delas, para elaborar discursos verdadeiramente inova-
dores que abandonem a racionalidade instrumental e, conseqüentemente, a insustentabi-
lidade presente na maioria das vertentes teórico-conceituais apontadas.
Para tanto, é fundamental verificar em que bases vem ocorrendo o processo de ela-
boração de discursos específicos para a área de meio ambiente urbano. Trata-se de um
processo tortuoso e repleto de questionamentos que começam pelo modismo, passam pe-
la transformação da questão social urbana em questão ecológica e vão até a perda de iden-
tidade da questão urbana.
A visão de Hogan (1995), sobre os problemas urbanos de outrora serem vistos co-
mo os problemas ambientais de agora, é emblemática do modismo: “antes da questão am-
biental aparecer com a força e a centralidade que tem hoje, esses problemas já estavam nas
agendas dos planejadores urbanos e autoridades municipais. A transformação destes pro-
blemas de gestão urbana em sinais de saturação ecossistêmica é um marco do ambienta-
lismo contemporâneo. Porém sua identificação como problema e a intervenção do poder
público se deram há muito tempo” (apud Ribeiro et al., 1999:10).
Esse tipo de visão coloca em dúvida se o meio ambiente urbano é uma nova área de
investigação, uma vez que sugere estar havendo apenas a adoção de um novo “rótulo” para
tratar os mesmos problemas. De fato, muitos trabalhos, se considerados em sua temática
central – a exemplo dos de Pecchio (1993) e Câmara (1997), que tratam, respectivamente,
da ocupação em áreas degradadas e em encostas deslizantes – poderiam ser enquadrados co-
mo exemplos dessa afirmação. Entretanto, defende-se aqui que existe uma sensível diferen-
ça de abordagem entre analisar um problema urbano de per si e inseri-lo em uma proble-
mática ambiental urbana. Além disso, mesmo admitindo que problemas urbanos como os
acima referidos não são novos, é preciso observar que eles sempre impactaram o meio am-
biente urbano, embora isso não fosse uma preocupação consciente dos antigos gestores.
Há, portanto, uma diferença não só de abordagem mas de contexto. Acrescente-se o fato
de alguns autores considerarem que os problemas urbanos, vistos sob a óptica do meio am-
biente, podem gerar uma nova agenda de questões: qualidade de vida, iniqüidades sociais,
cidades globais, tensão entre o local e o global (Ultramarini & Pereira, 1999).
Um segundo tipo de questionamento é trazido por Topalov (1986): a emergência de
um novo paradigma, em que o meio ambiente passa a ser o tema central em torno do qual
todos os discursos e projetos sociais devem ser reformulados para serem legítimos. Segun-
do ele, a questão social urbana transformou-se em questão ecológica ou ambiental, ocor-
rendo uma substituição de paradigmas – o ecocêntrico tomando lugar do sociocêntrico.
Embora nesse enfoque não haja um questionamento do meio ambiente urbano co-
mo área de investigação, pois aparentemente se reconhece a (con)fusão entre questões ur-
banas e ambientais, essa é vista segundo uma abordagem que admite como possível a
substituição de ambiental por social. Portanto, vê-se exclusão quando deveria haver inte-
gração. Por essa razão, Ultramarini & Pereira (1999) mostram que a cidade pode ser en-
tendida como um ambiente construído ou como um conjunto de espaços construídos
que assentam sobre um suporte natural preexistente, progressivamente transformado se-
gundo determinadas lógicas que apresentam uma distribuição dinâmica de usos e fun-
ções. Nessa concepção, segundo eles, discutir o ambiente urbano supõe considerá-lo co-
mo espaço e suporte natural transformados pelas práticas dos agentes, as quais definem
aqueles usos e funções.
Por fim, Costa (1999) traz à tona o questionamento relacionado à perda de impor-
tância da questão urbana, como tema de interesse da “critical social theory” contemporâ-
nea, pois questões como raça, gênero e diversidade cultural assumiram a dianteira. Supõe-
se que nos anos 70 havia uma densa área de estudos sobre o urbano7 e que nos anos 80 7 Cujas teorias mais embe-
máticas foram as de Cas-
continuou como palco e gerador dos movimentos sociais, mas hoje essa nitidez não é mais tells, Topalov, Lipietz, Har-
possível, embora o mundo seja cada vez mais urbano, pois, ao generalizar-se, deixou de vey e Lojkine.
ser um objeto de investigação em si mesmo.8 Se isso fosse verdade, como mostra a pró- 8 Em apoio a essa argumen-
pria autora, a dimensão ambiental da análise urbana ficaria restrita a redutos mais técni- tação, a autora cita Castells
(1996), que considera a
cos (legais ou sanitários, como lixo, água e poluição), ou às práticas políticas e análises de busca da identidade como o
movimentos sociais em torno de conflitos ambientais nas áreas urbanas. Além disso, falar princípio organizador da so-
ciedade atual e, em decor-
da problemática socioambiental urbana soaria apenas como uma “roupagem da moda pa- rência disso, os estudos cul-
turais mais precisos do que
ra nossas velhas questões sociais (e urbanas). No entanto, definir e tratar conjuntamente os urbanos para agrupar
os dilemas sociais e ambientais constitui uma necessidade” (idem:5). identidades.
A mesma autora, ao apontar outras análises que se direcionam para uma redefinição
do objeto dos estudos urbanos, encarrega-se de destruir o próprio questionamento. Lem-
brando Smith (1984), ressalta a importância atual dos processos sociais urbanos (cultu-
rais e ambientais) que traduzem diferentes formas de sociabilidade e novos usos para os
espaços. Cita visões mais progressistas do planejamento, como a de Soja (1997), que pro-
põe uma teoria pós-moderna do planejamento, uma reestruturação ontológica que enco-
raje a desordem da diferença e novas (práticas) políticas culturais que vão além das defi-
nições binárias em termos de gênero, raça ou classe. Para ela, a expressão meio ambiente
urbano sintetiza as dimensões físicas (naturais e construídas) do espaço urbano, dimen-
sões de ambiência e possibilidades de convivência e de conflito, associadas às práticas da
vida urbana e a melhores condições de vida, seja no sentido da cidadania, seja da quali-
dade de vida urbana.
Do que foi dito anteriormente, é possível observar que não se pode olhar o meio am-
biente urbano com os olhos de ontem, quando não se tinha consciência da sua existên-
cia, tampouco separar o urbano do ambiental. Nesse sentido, nem o espaço urbano nem
o meio ambiente isoladamente são substratos do meio ambiente urbano, pois o meio am-
biente urbano é uma outra “coisa” que precisa ser vista com um novo olhar.
Os questionamentos apresentados mostram que há resistências em reconhecer o
meio ambiente urbano como área de investigação, embora indiquem abordagens que po-
dem conduzir a esse novo olhar. Tais abordagens vêm-se dirigindo para uma desconstru-
ção de mitos sobre a insustentabilidade do espaço urbano e, ao fazê-lo, podem gerar uma
definição de meio ambiente urbano. Antes, porém, é preciso conhecer com base em que
conceitos e em torno de quais questões e propostas essa definição se baseia.
Em princípio, parece que ambiente e meio ambiente são equivalentes, uma vez que
têm sido usados indistintamente. Entretanto, Vargas (1999) seleciona autores que se re-
ferem especificamente a ambiente. Para a Comunidade Européia, é o “conjunto dos ele-
mentos naturais que, na complexidade de suas relações, constituem o marco, o meio e as
condições de vida do homem”. Para Regales (1997), “o ambiente é um sistema global for-
mado por dois subsistemas: o meio geográfico e o habitat. No meio geográfico inclui-se
o meio físico, composto dos elementos naturais existentes na Terra e que fornecem recur-
sos para o exercício das atividades humanas. O meio físico oferece dificuldades e riscos,
recebe a marca da criatividade e das inovações culturais, convertendo-se em suporte hu-
manizado. Desse suporte individualiza-se o habitat, que seria o conjunto de assentamen-
tos rurais e urbanos, o tecido construído, onde o homem tem exercido historicamente as
funções de relação e interação com o meio geográfico e a natureza, ou meio físico”. Por
fim, o histórico da palavra ambiente que, segundo Cuter (1985), “teve significado inicial
como uma representação simbólica de ambiente construído, onde três dimensões se apre-
sentam: a social (renda, educação, saúde, segurança), a ambiental (clima, aspectos físicos,
nível de poluição) e a perceptiva (bem-estar e condições de vida)” (apud Vargas:7-8).
Por outro lado, referindo-se à noção de meio ambiente, Silva (1999) considera que
ela vem sendo entendida segundo um determinado recorte histórico-social, razão pela
qual não pode ser aceita como uma concepção dada, senão como uma construção. De fa-
to, desde 1993 Vainer perguntava: Qual é o meio ambiente que queremos planejar? De
que meio ambiente estamos falando? Para ele, “o conceito de meio ambiente ancora-se
num subjetivismo, cuja superação exige entender que o meio ambiente não é uma reali-
dade empírica, mas sim uma construção social”. Nessa linha de reflexão, diz: “a questão
ambiental deixa de ser vista como produto de uma relação entre o Homem … e a Natu-
reza … para situar-se no campo das relações que diferentes grupos entretecem no espaço
social, bem como das diferentes estratégias que elaboram com vista ao embate pela apro-
priação, controle e uso de território e recursos territorializados” (Vainer, 1993:556-7).
Os entendimentos acima, longe de esgotarem o significado dessas noções/concei-
tos, trazem, ao contrário, cada vez mais indagações que vão surgindo de novos enfo-
ques. Assim, por exemplo: “Considera-se o meio ambiente, o ambiente, a natureza, co-
mo um bem comum. Embora apropriado em parcelas, sob a forma de mercadorias,
bem comum é um bem de uso coletivo mesmo que apropriado privadamente?” (Rodri-
gues, 1998:57).
ligações humanas: cria uma comunidade, ligando o presente ao passado como fundo de
memórias comuns (História) e ao futuro como um destino comum; a territorialidade ali-
menta uma ética de cuidados e preocupações pelos concidadãos e pelo ambiente que par-
tilhamos com eles” (Friedmann, 1996:143-4).
A simultaneidade dos cidadãos em várias comunidades territoriais que Friedmann
ressalta é a base da reflexão de Monte-Mór & Costa (1997), que se propõem a repensar
o conceito de urbanização, dado que ele contraria inúmeras situações contemporâneas, a
exemplo dos trabalhadores rurais moradores de periferias urbanas.11 Para eles, uma nova 11 Para Monte-Mór & Costa
(1997), o conceito de urba-
definição de urbanização deve incluir diferentes níveis de urbanidade e ruralidade, bus- nização refere-se a um
cando privilegiar seus impactos antrópicos sobre o meio ambiente. processo de assentamento
humano, espacialmente con-
Os três pares de conceitos acima apresentados são como raízes para se entender o centrado em unidades de
que é sustentabilidade urbana. Isso equivaleria a dizer que, em princípio, todas as afir- complexidade variável: cida-
des, vilas, megalópoles, po-
mações, as ambigüidades e as críticas, antes ressaltadas, estariam sendo transpostas para voados etc. Tal processo im-
cá. Levaria, portanto, a indagar se a sustentabilidade urbana é tão simplesmente um con- plica formas de inserção
econômica não diretamente
ceito/noção derivado dos anteriores, ou possui uma identidade própria. Ou a indagar, ligadas ao trabalho da terra
ou à exploração de recursos
ainda, se o adjetivo urbana imprime uma leitura à sustentabilidade específica e isolada naturais, ambas associadas
de outras “sustentabilidades”. ao ciclo da natureza. Por
oposição, atividades indus-
Parece que a sustentabilidade urbana cobre, em grande parte, as lacunas e os ques- triais e terciárias são tidas
tionamentos apontados, principalmente porque é intrinsecamente espacial e encerra as como essencialmente urba-
nas. O mesmo tipo de argu-
contradições sociais que se exacerbam no espaço urbano. Entretanto, essas características mento, na sua vertente an-
não significam que ela pode ser vista isoladamente nem prescindir de um planejamento. tropológico-sociológica,
associa urbanização a um
Ao contrário, cada vez mais se trabalha a idéia de planejar a sustentabilidade urbana além determinado modo de vida,
dos limites da cidade. no qual se confundem variá-
veis como: valores, compor-
É a característica paradigmática da sustentabilidade que dá suporte à possibilidade tamentos, atitudes indivi-
duais e coletivas, acesso à
de uma sustentabilidade urbana, admitindo que o desenvolvimento urbano possa ocorrer informação, bens e servi-
em bases sustentáveis (MMA/PNUD, 1999). Essa possibilidade carrega ideais de interven- ços, estilos de vida, (busca
de) formas de morar, traba-
ção urbana via planejamento. Meyer (1997) acredita que, a despeito da crise do planeja- lhar e locomover-se, um
mento, ele ainda é a principal ferramenta para se atingirem os ideais de sustentabilidade sem-número de atividades
associadas ao não-trabalho,
urbana. Afirma que essa crise não pode confundir-se com a idéia de fracasso e fim da cul- capacidade ou risco de ex-
tura do planejamento urbano, e sim induzir a um momento de reflexão e reformulação posição a mudanças que se
processam velozmente...
que passa a integrar e redefinir o lugar que devem ocupar as questões ambientais dentro Esse modo de vida não é ne-
do quadro da gestão urbana. Essa premissa deixa implícita a necessidade de se refletir so- cessariamente único no
tempo e no espaço, mas é
bre o tipo de planejamento a ser adotado. Nesse sentido, o mesmo autor ressalta que uma certamente diferenciado da-
quele associado à vida rural.
das mais evidentes questões para o desenvolvimento sustentável é que ele requer a presen-
ça e a negociação das várias formas de capital: financeiro, natural, tecnológico, cultural, e
físico (apud Ribeiro et al., 1999).
Assim, a sustentabilidade urbana decorre da não-submissão das políticas aos interes-
ses do capital privado. Decorre, ainda, da contextualização dessas políticas a um espaço
geográfico que transcende os limites da cidade. Esse é o pensamento daqueles que vêm
desmitificando o sucesso do modelo de Curitiba, como capital humana, ecológica e tec-
nológica, mostrando que seu planejamento não levou em conta os vários agentes envol-
vidos nem o entorno e a região metropolitana em geral (Moura et al., 1999).
Outros autores também se referem, explicitamente, à transcendência dos limites da
cidade. Vargas (1995), analisando o Plano Diretor de Cubatão, destaca que suas propos-
tas se dirigiram a dois níveis de intervenção: o regional e o local. Referindo-se ao Zo-
neamento Econômico-Ecológico (ZEE), Steinberger (1997) aponta para a importância
de se perceber o território urbano-regional e não o urbano e regional separados, e Kohls-
dorf & Romero (1997) ressaltam que a abordagem ambiental do ZEE em regiões urba-
nizadas deveria contemplar a integração de vários tipos de unidades ambientais: urba-
nas, periurbanas e rurais. Monte-Mór & Costa (1997) identificam a coexistência de vá-
rias formas de urbanização na Região do Vale do Piracicaba mineiro, a exemplo de
cidades de porte médio, povoados rurais, distritos em fase de emancipação e transferên-
cia para outros municípios, núcleos estagnados, áreas urbanas conurbadas e uma área
metropolitana em consolidação.
Além disso, há autores que ressaltam essa transcendência no âmbito teórico. Para
Breheny (1992), “o debate recente sobre a cidade ecologicamente sustentável tem o mé-
rito de reunir questões urbanas e regionais até então compartimentadas” (apud Costa,
1999:10). Para Tudela (1997), a cidade consiste em um “complexo intercâmbio de ma-
téria, energia e informação que a entidade urbana estabelece com territórios por vezes
bastante distantes” (apud Ultramarini & Pereira, 1999:5).
Essa seleção de noções/conceitos básicos permite identificar um rumo bastante fér-
til de convergência sobre sustentabilidade urbana, baseada em uma outra racionalidade
não-instrumental: os focos sócio-histórico e político-espacial. Tais focos começam a apa-
recer na discussão de ambiente/meio ambiente. Ganham mais nitidez nos posicionamen-
tos críticos sobre desenvolvimento sustentável/sustentabilidade, e nas abordagens de ter-
ritório/urbanização, quando incorporam a dimensão política e as preocupações espaciais.
receitas gerais faliram e que cada território e cada lugar é um caso a ser definido pela po-
pulação envolvida, com o auxílio dos planejadores? A esse respeito, Rypkema diz que o
caráter do ambiente construído está diretamente relacionado não só com a força das co-
munidades como também com a qualidade do lugar (apud Pereira Costa,1999).
A segunda questão central, levantada nos trabalhos da Anpur, está ligada aos instru-
16 Embora a palavra ges- mentos de gestão16 ambiental. Em geral, é apresentada sob a forma de críticas relativas à
tão tenha vários signifi-
cados, um dos mais fre-
distorção no uso dos instrumentos ou à insuficiência dos mesmos. De Angelis (1999) or-
qüentemente utilizados é o ganizou um quadro de instrumentos de gestão ambiental, entre os quais incluiu os urba-
adotado pelo Plano Diretor
da Cidade de Recife: “Pro- nísticos, os econômicos, os educacionais e os informativos. Estudou mais detidamente os
cesso que envolve o planeja- urbanísticos17 e os econômicos.18
mento … a mediação … a
regulação … e a interven- Em relação aos urbanísticos, a inserção do viés ambiental no planejamento urbano
ção com base na pluralida- tem ocorrido por meio da aplicação de leis federais, como a 6.766/79, e dos planos di-
de de interesses negocia-
dos entre os agentes” (apud retores municipais que, recentemente, passaram a conter capítulos sobre o meio ambien-
Vergara, 1995:311).
te. A despeito disso, constata-se que a generalidade no tratamento da questão ambiental
17 Plano diretor, zoneamen- é uma característica das legislações municipais, embora haja algumas exceções19 (Ribei-
to de uso do solo e parcela-
mento do solo urbano.
ro et al., 1999). Em decorrência disso, os instrumentos urbanísticos não têm dado con-
ta de resolver os problemas de desqualificação ambiental que geram exclusão espacial e
18 Mercados de direitos de
utilização ou direitos ambien- risco de vida.20
tais negociáveis, taxas e ta- No que se refere aos instrumentos econômicos, segundo Acselrad, manuais acadê-
rifas, auxílios financeiros.
micos e organismos multilaterais insistem na superioridade dos instrumentos de mercado
19 O Zoneamento Ambien- para combater a degradação ambiental. Apoiados no paradigma econômico neoclássico
tal de Ribeirão Preto, o Rela-
tório de Impacto Ambiental da alocação eficiente dos recursos, propõem instrumentos de internalização dos custos
Urbano de Londrina, o Siste-
ma de Avaliação de Desem-
ambientais, partindo da noção de externalidade como um fenômeno extra-econômico.
penho Urbano de Porto Ale- Sugerem que a degradação do meio ambiente resulta de brechas de mercado por onde a
gre, o Índice de Qualidade
de Vida Urbana de Belo Ho-
alocação dos recursos se afasta de uma situação ótima: “Internalizar é portanto … traves-
rizonte e os Estudos de Im- tir um problema de poder em um problema de eficiência alocativa”. Como diz Lerner
pacto de Vizinhança de São
Paulo. (1972), “esta solução consistiria em transformar o conflito – um problema político – em
uma transação econômica; e uma transação econômica é um problema político resolvi-
20 Segundo Câmara (1997),
a exclusão espacial é enten- do”. Na opinião de Acselrad, “o que se faz necessário é a explicitação política dos confli-
dida como exclusão – das tos … como lembra Przeworski (1993), pois no processo de construção democrática o
áreas ocupadas ilegalmente
por populações pobres – problema não se reduz ao confronto do mercado contra o Estado, mas concerne em iden-
dos processos formais de
urbanização ou de planeja-
tificar mecanismos institucionais específicos capazes de oferecer a determinados agentes
mento. Por outro lado, o ris- econômicos, incluindo o Estado, incentivos e informação que os levem a se conduzir de
co de expulsão com possibi-
lidade de perda total dos
uma maneira coletivamente racional” (Acselrad, 1995:274-5).
bens duramente adquiridos Outro instrumento usado com fins econômicos, embora de caráter preventivo, é o
e o risco à saúde resultante
da ausência de saneamento Estudo de Impacto Ambiental, baseado em avaliações que lançam mão de métodos bastan-
tornaram-se problemas me- te conhecidos, mas severamente criticados.21 Alguns autores avaliam que as metodologias
nores diante do risco de
vida, ameaçada pelos desli- dos estudos ambientais de usinas hidrelétricas funcionam como um instrumento de ma-
zamentos de terra ou desa- nipulação das questões sociais. Argumentam que a noção de impacto despreza as condi-
bamento da própria moradia.
ções em que as populações se apropriam do território e dos recursos naturais, bem como
21 Como o da matriz de in-
teração causa/efeito (matriz
as formas pelas quais constroem seu mundo social e as representações acerca dele (Lacor-
de Leopold). Sobre as críti- te & Barbosa, 1995).
cas, ver Ron Bisset & Wil-
liam Kennedy (apud Sá et
Por fim, seguindo as tendências atuais em termos de planejamento participativo e
al.:1995:). estratégico, os trabalhos da Anpur sobre a terceira questão central – o conflito de interes-
22 Via educação ambiental, ses entre os atores – estão permeados por propostas de conscientizar22 e organizar os di-
entre outras propostas. versos segmentos da sociedade visando a uma participação mais coletiva. Nessa linha,
Lassonde (1996) afirma que o surgimento da questão ética nos debates contemporâneos
provém do fato de que estamos num ponto da história em que “os homens podem ser in-
dividualmente inocentes e coletivamente responsáveis, todos vítimas e culpados ao mes-
mo tempo” (apud Vargas, 1999:1).
Em termos mundiais, a emergência do movimento de conscientização ambiental co-
meçou na década de 1960, mas o marco foi a Conferência de Estocolmo, em 1972, que
gerou o lançamento do Programa Internacional de Educação Ambiental, em 1975. Nele,
a educação ambiental foi definida como “uma dimensão dada ao conteúdo e à prática da
educação orientada para a resolução dos problemas concretos do ambiente, através de en-
foques interdisciplinares e de uma participação ativa e responsável de cada indivíduo e da
coletividade” (Silva, 1999:4).
Pecchio (1995) constata que amplas camadas da sociedade urbana não relacionam
seus problemas cotidianos ao meio ambiente urbano, pois ainda não perceberam seu pa-
pel como agentes de mudança da própria realidade. Nesse sentido, considera que o pro-
cesso de politização do meio ambiente, no Brasil, passou por dois estágios: o meio am-
biente como matéria de intervenção estatal institucionalizada, desde os anos 70 até finais
dos 80, e a partir daí a valorização do papel político dos agentes sociais. Poley (1993)
acrescenta que o primeiro estágio foi marcado pela presença de movimentos apolíticos de
denúncia da degradação ambiental e de comunidades alternativas rurais, e que somente
com a Eco-92 ocorreu uma politização explícita do meio ambiente, por meio da denomi-
nada “opção ecopolítica”. Para ele, “o movimento ecológico se estrutura diante de dois fa-
tos principais: a degradação social e a degradação ambiental”.23 23 Nesse contexto, afirma
que “as questões ambien-
Essa politização do meio ambiente tem trazido à tona uma série de conflitos de in- tais enfrentadas pelos eco-
teresses. Alguns casos foram objeto de análise por pesquisadores da Anpur, que denun- logistas do primeiro e tercei-
ro mundos são de natureza
ciam os artifícios, os argumentos e as estratégias utilizados pelos vários atores envolvidos similar, mas as questões so-
no jogo de poder. O gerenciamento dos recursos hídricos da represa Billings, em São Pau- ciais são radicalmente dife-
renciadas" (Poley, 1993:
lo, revela a força da aliança do governo do Estado com os industriais contra os governos 535).
locais e os ambientalistas, ao usar o expediente da negociação em separado com base em
uma decisão técnica (Pacheco, 1993). A utilização da estratégia de “atuação responsável”,
no pólo petroquímico de Camaçari, para enfrentar o desgaste da imagem empresarial de-
vido à poluição que coloca em risco a segurança industrial e a saúde da população, é um
exemplo da fraqueza das lutas dos trabalhadores e das comunidades urbanas, dado o seu
baixo nível de organização (Borges & Franco, 1997). Nessa mesma linha, o comprome-
timento de propostas, como a do “selo verde”, no caso da indústria siderúrgica de Minas
Gerais, cuja imagem negativa pode acarretar perda de mercado, aparece sob a forma de
resistência das empresas em negociar termos de compromisso, contestar multas e exercer
pressões políticas acobertadas pelo governo do estado (Torres et al., 1997). A relação en-
tre empresários e pescadores artesanais organizados em torno do problema de despolui-
ção da baía de Guanabara, analisada segundo a responsabilidade social do empresariado
e sob o postulado da ecologia com justiça, mostra a pouca disposição deste último para
uma mudança além da mudança conservadora (Teixeira & Bessa, 1997). A desvaloriza-
ção das práticas culturais territorializadas de grupos sociais locais organizados, em detri-
mento de estratégias despolitizadoras dos governos federal e estadual, no caso da implan-
tação da usina hidrelétrica de Tucuruí, mostra a redução utilitária do meio ambiente
(Silva, 1999). A semelhança dos problemas de saneamento entre o Rio de Janeiro e Bra-
sília, capitais implantadas em sítios escolhidos por razões de Estado, aponta o conflito en-
tre soluções técnicas e políticas (Carvalho & Romero, 1999). Por fim, no caso da implan-
tação da usina de Serra Mesa, ainda não se estabeleceu um conflito em torno dos possíveis
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
interests among actors. In conclusion it is shown that, although most of the discourse on the
urban environment considers urban space to be unsustainable, there are paths that point to a
definition of the field.
SARAH FELDMAN
A partir dos anos 80, um número crescente de pesquisas vem-se direcionando para
a construção da historiografia das cidades brasileiras, estabelecendo um marco temporal
em relação à escassa produção anterior nessa área. Um elemento a destacar – determinan-
te para uma avaliação do estado da arte desse conjunto de trabalhos – é seu caráter mul-
tidisciplinar, uma vez que vêm sendo elaboradas, majoritariamente, por arquitetos, urba-
nistas, planejadores, geógrafos e outros profissionais vinculados à questão urbana. Nesse
sentido, a produção em curso pode ser inscrita no processo de ampliação do território da
história que, desde os anos 60, se dissemina na Europa e nos Estados Unidos, a partir do
movimento que tem origem no grupo de historiadores ligados à revista Annales d’Histoire
Économique et Sociale, surgida em 1929, na França, como reação aos paradigmas do his-
torismo desenvolvido no século XIX.1 1 O grupo ficou conhecido
como École des Annales. A
O objetivo fundamental do grupo é, desde o início, combater os rígidos limites co- revista teve quatro denomi-
locados pela visão do historismo, que tem no historiador alemão Leopold von Ranke sua nações: Annales d’Histoire
Économique et Sociale
maior expressão. À história baseada unicamente nos grandes acontecimentos e nas fontes (1929-39); Annales d’Histoire
documentais oficiais, restrita à política e feita somente por historiadores profissionaliza- Sociale (1939-42, 1945);
Mélanges d’Histoire Sociale
dos, contrapõem a aproximação da história a outras disciplinas e a ampliação dos objetos (1942-44) ; Annales: Écono-
mies, Sociétés, Civilisations
da história e do campo de fontes documentais. (1946).
Nessa busca de ampliação do território da história e da interdisciplinaridade está im-
plícito o questionamento à especialização do historiador, que resultou da institucionaliza-
ção acadêmica da visão rankeana, e a afirmação da idéia de que tudo tem história, tudo
tem um passado que pode ser reconstruído, não se reconhecendo, portanto, a existência
de uma história com H maiúsculo. Assim, em contraposição a uma história referenciada
em fatos que, nas palavras de Braudel, não passam de “espumas nas ondas do mar da his-
2 Braudel, F. 1959:49. tória”, propõem a “história total”.2 Os fatos não existem isoladamente, mas constituem
um tecido, têm uma organização na qual desempenham o papel de causa, fins, acasos etc.,
3 Veyne, P., 1971:43. e cabe ao historiador “reencontrar essa organização”.3 Em termos metodológicos, a dire-
triz principal diz respeito à ampliação das fontes: não apenas escritas, mas também orais,
imagéticas, estatísticas, etnográficas etc. A explicação histórica deve, nessa perspectiva,
dar-se pela variedade de questionamentos que se revelam mediante o reconhecimento de
4 Burke, P., 1991:15. “vozes variadas e opostas”, e não pelo ideal de uma voz oficial da história.4
Somente a partir dos anos 60, a interdisciplinaridade proclamada desde os anos 20
se realiza, diluindo-se os rígidos limites entre o território da história e algumas áreas das
ciências humanas. Nos anos 70, o movimento passa a denominar-se Nova História, dis-
semina-se pela Europa e Estados Unidos, e os historiadores a ele vinculados ampliam seu
espaço nas instituições acadêmicas e conquistam o acesso às editoras e à mídia.
Várias questões vêm sendo levantadas quanto aos rumos tomados pelo movimento
dos Annales, as quais não cabem ser desenvolvidas no âmbito deste texto. A própria ex-
pressão Nova História vem sendo questionada, uma vez que nunca foram abandonados
5 Burke, P. op. cit.; Borges, os princípios elaborados no início do século.5 Há um debate em torno das relações dos
V. P., 1980; Ribeiro, R. J. et
al., 1994; entre outros.
historiadores com o materialismo histórico, as quais oscilam entre o reconhecimento de
Marx como um precursor de muitas de suas idéias e a negação do método e dos concei-
tos marxistas. A vinculação dos historiadores à Academia também é questionada: o mo-
vimento, que se inicia marcado pelo inconformismo, pela negação da ortodoxia acadêmi-
ca, acaba, segundo alguns autores, por entrar no jogo intramuros da Academia, e os
procedimentos considerados revolucionários convertem-se “em simples instrumentos pa-
6 Ribeiro, R. J., op. cit.:13. ra legitimação de trabalhos que graças a eles se inscrevem acadêmica e editorialmente”. 6
Outra questão levantada refere-se ao fato de a chamada Nova História ser conside-
rada um movimento de disseminação de práticas e idéias relativas à historiografia, e so-
mente se constituir como uma “escola” no período em que é liderado por Fernand Brau-
del, quando novos conceitos são elaborados, conformando uma concepção de história.7 A
7 Burke, P., 1990:12. principal contribuição da Nova História ao pensamento e à prática da história seria, por-
tanto, a introdução, por Braudel, de uma nova dimensão da história, que diz respeito à
apreensão das forças profundas da história que só se deixam apreender e só atuam no tem-
po longo. Braudel decompõe a história em três planos escalonados, distinguindo tempo
histórico/tempo geográfico, tempo social e tempo individual. A eles correspondem, res-
pectivamente, as estruturas, as conjunturas, os acontecimentos. O tempo das estruturas é
a longa duração, a quase imobilidade, uma vez que as estruturas permanecem constantes
durante um tempo longo ou só evoluem de maneira imperceptível. O tempo das conjun-
turas são flutuações de dimensões diversas, oscilações cíclicas que se manifestam no con-
texto das estruturas. Os acontecimentos são engendrados pelas estruturas e conjunturas,
8 Braudel, F., op. cit.:44-54. são as rupturas ou o restabelecimento de equilíbrios.8
Mas em meio a todos os questionamentos, há uma concordância quanto à contri-
buição do grupo na expansão do campo da história, bem como na descoberta de novas
fontes e novos métodos para explorá-las.
Sua importância está não apenas na dilatação do território da história como também do
historiador, abrangendo temas e grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais.
Como parte de tal processo, a história urbana desenvolve-se a partir da história so-
cial e, no panorama internacional, os anos 60 constituem um momento relevante, pois
inicia-se a busca de demarcação de seus conteúdos.9 Um pressuposto que se impõe é as- 9 Sobre o debate em torno
da história urbana nos anos
sumir um ponto de ruptura no processo de constituição da cidade, enfatizando, dessa 60, consultar Handlin, O. e
maneira, uma abordagem problematizada da urbe. Essa abordagem contrapõe-se à abor- Burchard, J., 1963.
dagem dominante na história da cidade, desde o século XIX, que tem como pressuposto
teórico a noção de crescimento evolutivo ou de desenvolvimento, “que faz com que a(s)
cidade(s) seja(m) considerada(s) um fato histórico, sempre o mesmo, um fenômeno cu-
jas transformações (materialidade e função) constituem o objeto de pesquisa dos estu- 10 Bresciani, M. S.
diosos”.10 Nesse sentido, considera-se a cidade do século XIX um momento de ruptura 1992:11.
no processo de urbanização e privilegia-se o estudo da cidade associada à idéia de mo-
dernidade. Nessa perspectiva, a cidade moderna é considerada essencialmente diferen-
te, não podendo, portanto, ser abordada como mera descendente dos núcleos urbanos
do passado.11 11 Handlin, O., 1963. In:
Handlin, O., Burchard, J.,
De modo geral, numa grande categoria denominada “história urbana”, passam a en- op. cit.; Bresciani, M. S., op.
quadrar-se todos os estudos que tenham a cidade como locus, ocorrendo uma não-distin- cit.
ção entre o que é peculiar ao desenvolvimento da cidade e aquilo que diz respeito à cul-
tura de forma geral. As posições em torno dessa questão são diversas, com autores que
consideram difícil, ainda hoje, demarcar o que é um trabalho de história urbana, autores
que apregoam um campo específico para a história do urbanismo, e autores que enten-
dem a história urbana como o estudo da forma urbana como resultante de complexas for-
ças sociais, psicológicas e econômicas.12 12 De Decca., E., 1991:9,
e os textos de Tunnard, C.
Em The History of Urban and Regional Planning – an annotated bibliography, publi- “A note on the pursuit of city
cado em 1981, Anthony Sutcliffe faz um balanço dos trabalhos elaborados, em sua gran- planning history”, e de Sum-
merson, S. J., “Urban forms”,
de maioria, na Europa e Estados Unidos. Em suas conclusões, podem-se observar algu- in: Handlin, O., Burchard, J.,
mas semelhanças com a condição atual da história urbana no Brasil, principalmente em op. cit.
momento em que, a uma apropriação documental – uma verdadeira “saída dos armários”
de relatórios, material iconográfico, planos, relatórios etc. – corresponde uma não-apro-
priação metodológico-conceitual da disciplina história, que se expressa, por um lado, na
quantidade de pesquisas voltadas para a criação de bancos de dados e, por outro, no nú-
mero significativo de trabalhos que se restringem a descrever cronologicamente planos,
leis, relatórios etc.
Deve-se considerar que os trabalhos, no Brasil, além de sinalizarem a vitalidade de
um campo temático multidisciplinar, constituem uma busca de ampliação de parâmetros
teóricos e metodológicos para se transpor os limites interpretativos colocados pela pro-
nunciada influência do referencial marxista – desenvolvido, sobretudo, pela sociologia
13 Sobre as referências francesa dos anos 70 –, o qual vinha marcando as pesquisas brasileiras.13 Assim, paralela-
aos trabalhos nos anos 70,
ver Leme, M. C., Pacheco,
mente ao esquadrinhamento das fontes documentais, que vem permitindo iluminar todo
R., 1989. “A questão fundiá- um universo de constituição da engenharia, arquitetura e urbanismo brasileiros que per-
ria, imobiliária e os serviços
urbanos: conceitos e refe- manecia oculto, os trabalhos de história urbana refletem o deslocamento das interpreta-
rências teóricas em teses e ções fundamentadas exclusivamente em determinantes econômicos, em que as questões
dissertações recentes”. Es-
paço e Debates, São Paulo, fundiária, imobiliária e de serviços urbanos foram privilegiadas na explicação dos proces-
nº 28, p.101-117. sos de estruturação urbana, para a incorporação de aspectos estético-culturais. Se, nos
anos 70, os marcos teórico-conceituais em suas várias vertentes eram em grande parte ex-
plicitados ou reconhecíveis, nos trabalhos elaborados pós-80, com exceção daqueles vin-
culados à linha foucaultiana, tais questões vêm sendo minimizadas.
Nesse panorama, a legislação urbanística – aqui entendida como o conjunto de re-
gulamentações referentes ao parcelamento, uso e ocupação do solo e às edificações – não
foge à regra, com a agravante de não estar recebendo a devida atenção dos pesquisadores,
embora seja o elemento constitutivo da disciplina do urbanismo mais desenvolvido, no
Brasil, nas últimas cinco décadas. São poucos os trabalhos que vêm procurando inserir a
legislação como fato histórico no interior de uma história-problema, no sentido aponta-
do por Veyne (1971). Ainda que a referência à legislação esteja presente na maior parte
dos estudos sobre o urbanismo no Brasil, a legislação é, de certa forma, naturalizada e,
com raras exceções, ultrapassa o caráter de identificação das leis por meio da listagem e
descrição de seus conteúdos.
Neste trabalho, procuramos levantar alguns pontos para a discussão dos caminhos,
abordagens e métodos em curso na historiografia da legislação urbanística. O papel assu-
mido pela legislação no urbanismo brasileiro constitui um campo nebuloso e pouco ex-
plorado. Nos setores de urbanismo das administrações municipais no Brasil, prevalece, há
meio século, uma abordagem legalista, ou seja, a legislação é colocada como uma meta
em si, e não como um instrumento, dentre outros, para atingir determinadas metas de
desenvolvimento urbano. Se no período da Primeira República, quando começam a es-
truturar-se, nas administrações públicas, as seções de obras que evoluem para seções de
urbanismo, a elaboração e execução dos planos de melhoramentos e, posteriormente, dos
chamados planos de conjunto, impõem-se como atividade privilegiada de urbanistas
oriundos dos cursos de Engenharia. A partir dos anos 40, ocorre um nítido deslocamen-
to da esfera de atuação desses órgãos. Constrói-se um novo saber urbanístico – uma no-
va visão de atuação do Estado ante as novas formas de apropriação do espaço urbano – e
os denominados órgãos de planejamento passam a atuar, fundamentalmente, como ór-
gãos normativos. A tal mudança corresponde uma nova estrutura organizacional do setor,
assim como a construção de um novo perfil do urbanista – o profissional generalista, com
predominância de profissionais egressos dos cursos de arquitetura. É nesse momento que
se dá uma fissura entre arquitetura e urbanismo: planejar passa a constituir-se como ati-
vidade desligada de projetar, e o zoneamento – abrangente ao conjunto da cidade e arti-
culador de um conjunto de parâmetros urbanísticos em zonas funcionais – consolida-se
como o principal instrumento de planejamento.
O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NA
HISTORIOGRAFIA DO URBANISMO NO BRASIL
(Rolnik, 1983; Lira, 1991; Marins, 1998) como nos territórios de prostituição (Feld-
man, 1987). A questão da segregação espacial, por meio da análise das primeiras nor-
mas que extrapolam a construção de edifícios contidas nos Códigos de Posturas aprova-
dos na última década do século XIX, em inúmeras cidades, constitui o eixo direcionador
de tais análises.
Uma terceira vertente caracteriza-se pela precedência de estudos voltados para os
efeitos, repercussões e impactos no espaço urbano com a aplicação da legislação, os quais
têm como referência a escala assumida pela expansão das cidades brasileiras mediante es-
tratégias de solução da moradia à margem da legislação: loteamentos clandestinos, corti-
ços e favelas. Nessa vertente, podem ser discriminados estudos centrados na inefetividade
da lei (Grostein, 1987; Rolnik, 1996; Nery Junior, 1998); estudos que enfatizam a rela-
ção entre a legislação e a valorização imobiliária (Souza, 1994; Somekh, 1996), e estudos
que, com uma visão panorâmica da legislação, apontam seus efeitos no processo de pla-
nejamento (Rezende,1997) e na configuração da paisagem urbana (Medina, 1997).
14 Sobre o zoneamento: No âmbito da questão da inefetividade da legislação, segundo os procedimentos ins-
Wilderode, D., 1995. “Ope-
rações interligadas: Quem tituídos de aprovação e fiscalização de loteamentos e da relação poder público/loteador,
ganha?” Anais do VI Enan- Grostein (1987) mostra que se consolida uma prática de desobediência consentida e per-
pur, Brasília, 1995; Azeve-
do, D. T., 1993, O jogo das manente anistia a situações produzidas fora das normas. Rolnik (1997) entende a inefi-
Interligadas, Dissertação de
Mestrado, São Paulo, FGV;
cácia da legislação em regular a produção da cidade como a verdadeira fonte de seu suces-
Wakisaka, T., 1990. Zonea- so político, financeiro e cultural, num contexto urbano de concentração de riqueza e
mento de uso, ocupação do
solo e produção do espaço
poder. A lei age, segundo a autora, como delimitadora das fronteiras do poder, conferin-
urbano em São Paulo, Dis- do significados e gerando noções de civilidade e cidadania, mesmo quando não é capaz
sertação de Mestrado, São
Paulo, FAU/USP; entre ou- de determinar a forma final da cidade. A relação entre legislação e valorização imobiliária
tros. Sobre instrumentos é analisada por meio do estudo do processo de verticalização, entendido como resultante
pós-Constituição de 1988:
IPPUR/UFRJ, 1994. Questão de uma estratégia de valorização de múltiplas frações do capital (Souza, 1994) e como re-
urbana, desigualdades so- sultado da multiplicação do solo urbano possibilitada pelo elevador (Somekh, 1996). Nu-
ciais e políticas públicas:
avaliação do Programa Na- ma perspectiva não-historiográfica, estudos sobre os efeitos dos instrumentos normativos
cional de Reforma Urbana,
Relatório de Pesquisa; Ribei-
vêm sendo realizados em torno de aspectos específicos da legislação, principalmente no
ro, A. C. T., 1994. “Reforma que se refere ao zoneamento e aos instrumentos pós-Constituição de 1988.14
urbana nos limites da mo-
dernização”, Espaço e De-
Esse conjunto de trabalhos representa o início de um processo de construção de uma
bates, n.37, São Paulo, história da legislação urbanística brasileira e de compreensão do papel que vem desempe-
Neru; Alfonsin, B., 1997,
“Instrumentos e experiên- nhando no desenvolvimento de algumas cidades brasileiras. De modo geral, destacam seu
cias de regularização fundiá- caráter elitista, resultante do diálogo exclusivo entre os órgãos responsáveis por sua elabo-
ria em áreas urbanas”,
Anais do VII Enanpur, Recife, ração e os setores mais poderosos da sociedade, e seu uso como instrumento de segrega-
p.1571-1579; entre outros. ção espacial. Há, por vezes, uma supervalorização do papel da legislação na conformação
do espaço urbano, o que acarreta que, por meio da legislação, se cristalizem modelos in-
15 Machado, R. et al.,
1978. Danação da norma –
terpretativos genéricos.
medicina social e constitui- As linhas dominantes permitem não só detectar recortes temporais privilegiados pe-
ção da psiquiatria no Brasil,
Rio de Janeiro, Graal; Freire
las pesquisas bem como o nível de aprofundamento da reflexão. O período da Primeira
Costa, J., 1979. Ordem mé- República, no que se refere à perspectiva higienista de controle do espaço urbano, é o
dica e norma familiar, Rio
de Janeiro, Graal; Sevcen- mais profundamente estudado e desvendado. Uma explicação plausível para tal predo-
ko, N., 1984. A revolta da minância é o fato de a questão higienista ter sido amplamente estudada por diferentes
vacina, São Paulo, Brasilien-
se; Costa, N. do R., 1987. disciplinas e o papel da legislação, claramente situado no campo de um projeto político
“A Questão sanitária e a ci- e social.15 Nesse sentido, os trabalhos ultrapassam a identificação das leis e penetram nos
dade”, Espaço e Debates,
n.22, p.24; Chaloub, S., modelos habitacionais resultantes do ideário higienista, no qual a norma é apenas um
1996. A cidade febril, São
Paulo, Companhia das Le-
dos instrumentos de concretização (Rolnik, 1983; Lira, 1991), nas instituições criadas
tras; entre outros. para a gestão dos territórios e nos procedimentos de aplicação das normas, seja na esfe-
O LUGAR DA LEGISLAÇÃO
NO URBANISMO BRASILEIRO
banísticas desenvolvidas no Brasil. De modo geral, esses trabalhos vêm mostrando que,
na concepção dos planos elaborados até 1930, dos quais uma parcela significativa – entre
planos de melhoramentos, de embelezamento e de conjunto – chegou a ser executada,
prevaleceu a influência européia. Os anos 30 aparecem como um momento de transição,
em que as influências européias começam a mesclar-se a princípios do urbanismo ameri-
cano, por meio das parkways, zoneamento, e das versões americanas das cidades-jardins
de Howard, como o princípio das unidades de vizinhança de Radburn. Nas experiên-
cias de cidade novas, a partir dos anos 30, começam a ser introduzidos princípios moder-
nistas, que se realizam de forma acabada em Brasília.
Se nos planos as referências internacionais são facilmente demarcadas, seja pelos tra-
çados propostos, seja por explicitações de seus autores em relatórios, textos, memoriais, o
mesmo não ocorre em relação à legislação. A legislação é cumulativa. Novas formas de con-
trole com as mais diversas referências são constantemente incorporadas, como peças legais
parciais, artigos, num processo contínuo de reformulações, exclusões e acréscimos, que não
alteram, necessariamente, nem o sistema legal, nem as instituições e seus procedimentos.
Os estudos mostram que os padrões reguladores portugueses se estabeleceram nas
cidades e vilas do Brasil Colônia, e a legislação sanitária do urbanismo higienista de fi-
nais do século XIX utiliza as referências inglesas e francesas. As normas de controle de ali-
nhamento e nivelamento das vias, assim como a localização de atividades consideradas
nocivas ao meio urbano, as condições de higiene e salubridade das edificações e do espa-
ço público, utilizando princípios de controle e disciplina formulados nas cidades euro-
péias, são consolidadas nos chamados Códigos de Posturas Municipais, tornados obriga-
tórios no final do século XIX. A partir do término dos anos 20, nos chamados Códigos
de Obras, permanecem os princípios higienistas europeus, e são identificados princípios
da legislação americana, como é o caso, em São Paulo, dos padrões de arranha-céus. A
partir dos anos 30, a referência americana se impõe, principalmente na adoção do zonea-
mento, o qual é incorporado à totalidade da cidade nos Códigos de Obras do Recife, em
1936, e do Rio de Janeiro, em 1937, e em leis parciais em São Paulo, a partir de 1931.18 18 Sobre a influência ame-
ricana na legislação em São
A partir dos anos 30, passam a ser incorporados, também, princípios elaborados no âm- Paulo, ver Feldman, S., 1997.
bito do movimento moderno.
Podem-se identificar três correntes do pensamento urbanístico, entre as que são re-
ferência para o urbanismo no Brasil, que formulam concepções de legislação: o urbanis-
mo higienista, que estabelece uma legislação sanitária; o urbanismo americano dos anos
20, que reelabora o zoneamento alemão; e o movimento modernista, que se contrapõe à
legislação de princípios higienistas vigente na Europa dos anos 20. Segundo Ebenezer
Howard, embora princípios reguladores estejam implícitos na proposta espacial de
cidades-jardins, não chegam a propor uma concepção de lei.
As leis sanitárias e o zoneamento americano vêm recebendo a atenção da maioria dos
pesquisadores voltados para a historiografia da legislação urbanística no Brasil (Rolnik,
1983; Lira, 1991; Souza, 1994; Feldman, 1996; Somekh, 1997; Nery Junior, 1998; Ma-
rins, 1998), e as formas como tais referências foram e são absorvidas pela legislação urba-
nística brasileira estão sendo desvendadas. Em relação às propostas modernistas, o único
documento que vem sendo utilizado como referência é a Carta de Atenas, fundamental-
mente no que se refere ao zoneamento funcional.
A análise dos textos produzidos pelos arquitetos vinculados ao movimento moder-
nista no âmbito dos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) revela
que a legislação é colocada como um aspecto fundamental, e suas propostas nesse campo
ofereçam moradias de baixa qualidade. Caso o Estado não assuma tal postura, os arqui-
tetos colocam a alternativa da auto-ajuda, estabelecendo-se a relação direta entre o habi-
tante como usuário e o construtor como produtor. O nível de qualidade da moradia pas-
sa a ser assunto exclusivo de ambos, e a regulamentação estatal, dessa maneira, passaria a
ser supérflua, com o passar do tempo.
Finalmente, preconiza que os arquitetos contem não apenas com a ajuda de diver-
sos setores da ciência e da indústria, como também com a colaboração dos usuários, ao
invés de se guiarem apenas pelas leis. Assim, os arquitetos poderão entrar em cena como
competidores da construção especulativa de moradias e, ao mesmo tempo, poderão libe-
rar a construção de moradias dos entraves de uma regulamentação anti-social. Considera
que o padrão de moradia ideal imposto por uma visão estritamente legalista se mostrou
economicamente inviável nas circunstâncias do pós-guerra e, conseqüentemente, as ações
voltadas para a categoria de moradias mais baratas passam a efetivar-se sem que a legisla-
ção se responsabilize por elas. Para o estabelecimento de normas ideais, considera impres-
cindível que o Estado garanta também seu cumprimento econômico em todas as situa-
ções, como ocorre com outros tipos de normas.
Na Carta de Atenas, as considerações sobre a legislação como instrumento para fi-
xar as condições da habitação moderna são uma constante. Nesse documento, que reúne
grande parte do repertório da arquitetura modernista, além de incorporar soluções urba-
nísticas que já vinham sendo utilizadas em cidades européias e americanas, Corbusier
(1941) preconiza a “urgência de regulamentar, por um meio legal, a disposição de todo
solo útil para equilibrar as necessidades vitais do indivíduo em harmonia com as necessi-
dades coletivas”. Essa postura de Corbusier – inovadora em relação à legislação – já esta-
va presente em sua intervenção no III CIAM, em 1930, quando afirma que o objetivo do
Congresso, realizado em torno do tema “Métodos Construtivos Racionales. Casas Bajas,
Medias y Altas”, é chegar a uma modificação da legislação municipal em diversas cidades
do mundo. As propostas modernistas, segundo o arquiteto, não admitem uma mudança
parcial da legislação, mas exigem que se estabeleça um conjunto de novas regras, que de-
vem partir do reagrupamento do solo – “único caminho que conduz ao urbanismo” –, 19 A intervenção de Le Cor-
busier no III CIAM foi “La par-
uma vez que a propriedade subdividida, o caráter inalienável da propriedade, condena celación del suelo em las
“toda tentativa de melhorias coletivas”.19 ciudades”, In: Aymonino,
1973.
Na verdade, as propostas modernistas para a legislação podem ser interpretadas como
a proposta de um novo sistema legal, e algumas questões permanecem no debate atual so- 20 No II Congresso Interna-
cional de Arquitetura Moder-
bre a legislação urbanística no Brasil, embora não se explicite tal vínculo. Suas propostas na, realizado em Frankfurt
envolvem aspectos formais para a tradução das soluções de edifícios e para a organização am Main, em 1929, a legis-
lação foi objeto de uma das
do espaço urbano, além de questões técnicas, mas também aspectos econômicos e sociais quatro exposições que dire-
cionaram as discussões. Os
que se realizam no processo de elaboração e decisão sobre a aplicação das leis, e que pres- temas foram “Ordenanzas
supõem a redefinição das relações entre o Estado e os demais atores envolvidos na constru- edificatorias y vivienda mini-
ma”, apresentado por Hans
ção das cidades. Além disso, num evidente propósito de deslocar médicos e engenheiros Schmidt; “Los fundamentos
deste campo de atuação, o papel atribuído aos arquitetos e suas associações é destacado.20 sociológicos da la vivienda
mínima (para la población
O estudo, ainda em processo, de como esse elenco de questões relativas à regulamen- obrera de la ciudad)”, apre-
tação foi assimilado, no Brasil, pelos responsáveis pela elaboração das leis, por arquitetos sentado por Walter Gropius;
“Analisis de los elementos
e engenheiros responsáveis por projetos de cidades novas e de habitações econômicas, vem fundamentales en el proble-
demonstrando que se dá de forma bastante limitada. No âmbito dos debates em torno da ma de la vivienda mínima”,
por Le Corbusier e Pierre
legislação, a partir dos anos 30, as concepções modernistas têm repercussão significativa. Jeanneret, e “La organiza-
ción de la vivienda mínima”,
Em congressos e periódicos de entidades de arquitetos e engenheiros, a reivindicação por mu- apresentado por Victor Bour-
danças nos códigos de obras com o intuito de atenderem a um novo tempo é recorrente. geois (Aymonino, op.cit.).
A simplificação das leis, a maleabilidade para se atender aos materiais e técnicas modernas
de construção, a incorporação de setores da sociedade para a redação das leis conjunta-
21 Destacam-se nesses mente com técnicos são questões enfocadas por engenheiros, arquitetos e urbanistas.21
debates, entre outros, o en-
genheiro Alexandre de Albu-
Nos anos 30, esboça-se na legislação de uso e ocupação do solo uma ruptura com a
querque, presidente do concepção centrada na edificação e fortemente marcada pela visão higienista que se ini-
Congresso de Habitação de
1931, e Armando de Go- cia com os Códigos de Posturas do final do século XIX. Essa ruptura se dá, fundamental-
doy, engenheiro da Direto- mente, com a introdução de elementos reguladores de abrangência urbanística e de uma
ria de Engenharia do Distri-
to Federal. visão de urbanismo que se justifica explicitamente em termos econômicos. Parte dessa
mudança se verifica com a introdução do zoneamento abrangente no conjunto da cida-
de, seguindo o modelo adotado no início do século em Nova York, e não do zoneamen-
to proposto por Le Corbusier. Este só se efetivará em 1960, com a aprovação das “Nor-
22 Decreto nº 7 de mas para Construção em Brasília”.22
12/06/1960.
Nas demais cidades brasileiras – novas ou existentes, os códigos de obras assimilarão
dos modernistas, num primeiro momento, os princípios de ocupação do lote que relacio-
nam altura de edifícios e solo livre, e, posteriormente, padrões de ocupação para grandes
conjuntos residenciais, com a definição de espaços coletivos, ruas exclusivas para pedes-
tres etc. Ambas as estratégias evoluem para um processo de gradativa mudança dos teci-
dos urbanos existentes e podem ser interpretadas como formas de reagrupamento do so-
lo. Essa é, sem dúvida, a mais significativa influência do ideário modernista que se realiza
mediante mecanismos reguladores do uso e ocupação do solo.
A análise das referências modernistas na legislação urbanística, assim como de outras
referências que formularam concepções de legislação, exigem a identificação das estraté-
gias utilizadas para as transferências. O foco da pesquisa sobre legislação unicamente no
enunciado das leis vem-se mostrando insuficiente. Tomando Brasília como exemplo, po-
de-se observar que a legislação aprovada logo após a inauguração da capital absorveu os
princípios formais das propostas modernistas, e foi, sem dúvida, formulada por arquite-
tos, uma vez que a categoria vem, há décadas, assumindo a função de legisladores, no Bra-
sil. No entanto, a peça legal de 1960 foi, assim como grande parte da legislação urbanís-
tica no Brasil, aprovada por decreto, ou seja, ocorrem mudanças que atendem aos
requisitos formais, os arquitetos conquistam um espaço como formuladores de leis, mas
tudo isso se incorpora ao sistema legal preexistente no Brasil.
O estudo da legislação sob a ótica modernista torna evidente a necessidade de se dis-
cutir a questão metodológica para interpretar as permanências e mudanças na legislação
urbanística. Um caminho possível talvez esteja na identificação dos tempos propostos por
Sarah Feldman, arquiteta, Braudel: discriminar o que permanece constante durante um tempo longo, evoluindo de
é professora do Departa-
mento de Arquitetura e Ur- maneira imperceptível; o que flutua, oscila de forma cíclica, e o que não passa de aconte-
banismo da Universidade de
São Paulo.
cimento, representando rupturas ou restabelecimento de equilíbrios. Talvez seja esse um
E-mail: sarahfel@sc.usp.br dos caminhos para se entender o passado e formular propostas para o presente.
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ABSTRACT This paper analyses recent developments in the history of Brazilian urban legis-
lation, pointing out the progress made and limits faced, as a basis for reflection in the debate
on urban development and planning practice.The analysis is divided into three parts. The first
relates the dissemination of urban historical research in Brazil to the expansion of the field of
history which began in the 1960s with the "New History" movement in Europe and the Uni-
ted States. The second part sets out the dominant and emerging approaches to urban legisla-
tion. Finally, there is a discussion of two aspects that are seen as gaps in the history of urban
legislation: the role of norms, as the ideas and practices of urban planning become institutio-
nalised within public administration, and the influences of modernist ideas on Brazilian ur-
ban legislation, taking into account that the modern movement proposes a new legal system for
urban planning.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é composto por quatro partes, além desta introdução e da conclusão.
Na próxima seção, apresentamos algumas questões metodológicas relativas ao estudo. Na
terceira parte, descrevemos e discutimos a distribuição dos riscos ambientais no municí-
pio, enfocando duas questões: áreas inundáveis e regiões de alta declividade. A seguir,
discutimos os diferenciais de atendimento em um dos principais equipamentos urbanos,
assim como o que podemos esperar da dinâmica dessa situação nos próximos anos. Por
fim, fechamos o artigo resumindo os principais pontos levantados e apresentando nos-
sas conclusões.
METODOLOGIA
Por meio desses procedimentos, podemos não apenas visualizar graficamente a su-
perposição de diversos fenômenos em mapas, mas estimar quantitativamente as popula-
ções submetidas a cada tipo de situação urbana, bem como as suas características sociais
e econômicas. Entendemos que, embora simplificados, os procedimentos adotados per-
mitiram uma visão bastante abrangente dos padrões espaciais das áreas com grande acú-
mulo de problemas socioambientais, como as favelas, por exemplo. Buscamos tratar tal ti-
po de área de modo especial, de maneira a evidenciar sua especificidade e os principais
padrões de segregação nela existentes. Para tanto, utilizamos a classificação dos setores de
habitação subnormal do Censo de 1991 e da Contagem Populacional de 1996, ambos do
IBGE, única fonte existente compatível com as demais informações utilizadas no estudo.
Ao longo desse curso d’água e a montante desse local, observam-se alguns outros
pontos sujeitos ao mesmo tipo de problema. A Oeste dessas áreas, existe uma outra região
de freqüentes problemas, localizada no rio Tamanduateí, a jusante, próxima ao complexo
das favelas do Oratório (em formato de losango, junto à área Centro-Oeste do municí-
pio). Três outros pontos isolados também apresentam problemas, no rio Tamanduateí, a
jusante, e no Sul do município, no córrego da Serraria, a Oeste, e no córrego Capitão
João, ao Centro.
De fato, observa-se no Mapa 1 a superposição de áreas de inundação com trechos de
áreas subnormais (favelas). Como podemos observar, os núcleos favelados no complexo
do Macuco (ao Norte) são quase todos contíguos às áreas inundáveis. No complexo do
Oratório (no Centro-Oeste do município), a maior parte das favelas não se localiza na
área de influência de pontos de inundação, embora eles também aí ocorram. Como am-
bas as favelas estão localizadas em áreas de alta declividade, as áreas inundáveis correspon-
dem aos trechos mais baixos. A rigor, a proporção de domicílios subnormais em áreas
inundáveis (20,9%) é superior à média municipal (15,0%), indicando que a população
favelada está mais sujeita a esse tipo de risco (Tabela 1).
1-3 anos de estudo 1.165 1454 4,53 11.247 13.233 3,31 16,98 17,64 17,42 16,90
4-7 a. de estudo 3.197 3768 3,34 29.515 35.245 3,61 46,61 45,72 45,71 45,00
8-10 a. de estudo 919 1435 9,32 9.319 13.412 7,55 13,40 17,41 14,43 17,12
11-14 a. de estudo 405 632 9,30 4.638 7.489 10,06 5,90 7,66 7,18 9,56
15 e + a. de estudo 66 115 11,7 1.146 1.712 8,36 0,96 1,39 1,78 2,19
Chefe não residente
em 1991 774 - - 7.652 - - 100 - 100
O município de Mauá apresenta uma expressiva área de seu território com alta de-
clividade. Consideramos como definição de área de altas as declividades iguais ou supe-
riores a 50%. Essas áreas apresentam condições extremas de inadequação da ocupação,
visto que, segundo a Lei federal 6.766/79, que regulamentava o parcelamento do solo até
período bastante recente, declividades superiores a 35% só poderiam ser permitidas em
condições excepcionais. Utilizamos a delimitação de tais áreas como uma primeira apro-
ximação às áreas potenciais de risco de encosta. A delimitação mais precisa das áreas de
risco de deslizamento com objetivos normativos dependeria da confirmação e do apro-
fundamento dos resultados apresentados aqui por meio de laudos geotécnicos e vistorias
nas áreas.
O Mapa 2 apresenta a delimitação de tais áreas no município. Como podemos ob-
servar, as áreas incluem duas pequenas manchas a Sudoeste e Leste, assim como uma ex-
tensa área ocupando quase a totalidade do Norte do município. Em seu conjunto, as áreas
envolviam uma população de cerca de 53.000 habitantes em 1996, ou cerca de 17% do
total. Essa população cresceu a uma taxa anual de 8,1% entre os censos, muito superior
à das áreas de baixa declividade (2,3%).
As três áreas delimitam situações e vulnerabilidades muito diferentes, não apenas pe-
la extensão territorial alcançada, como também pelo padrão de ocupação e urbanização
de cada uma delas. O Mapa 3 apresenta a delimitação das mesmas áreas sobre o sistema
viário do município, incluindo ruas pavimentadas, de terra e vielas. Como podemos ver,
as áreas a Sudoeste e a Leste apresentam ocupação muito escassa, sendo a primeira incluí-
da na Zona de Desenvolvimento Econômico (destinada primordialmente a atividades in-
dustriais), e a segunda localizando-se no interior da área de mananciais do município. É
a grande mancha ao Norte do município, ao contrário, que sobressai pela intensa ocupa-
ção, apresentando destacada importância sob os pontos de vista urbanístico e social para
essa área de risco.
to na Metodologia (seção 2), qual seja: a construção de uma nova camada (layer) de in-
formação a partir da layer de curvas de nível (área de alta declividade) e a estimativa da
população dessa nova layer, tomando como base a população moradora de cada um dos
setores que a compõe, de maneira proporcional à participação desses setores na área total
da região de alta declividade.
Como podemos ver na Tabela 2, a população moradora das áreas de alta declivida-
de apresenta um padrão de escolaridade muito inferior à das demais áreas do município.
Em 1996, por exemplo, a proporção de chefes de família sem instrução ou com até três
anos de estudo era de 23,2% nas áreas de baixa declividade, mas nas áreas de alta declivi-
dade essa proporção chegava a impressionantes 42,4%. Além disso – e essa é uma in-
formação realmente importante –, as proporções de chefes sem nenhuma escolaridade
caiu nas áreas de baixa declividade entre 1991 e 1996, mas cresceu a taxas muito signi-
ficativas nas áreas de alta declividade, indicando que tais áreas estão recebendo um inusi-
tado fluxo migratório de analfabetos.7 7 A proporção de analfabe-
tos tem caído em quase to-
Essa precariedade socioeconômica pode ser confirmada pelas informações referentes das as áreas do território
ao rendimento dos chefes de família, que infelizmente estavam disponíveis apenas para o nacional, refletindo a substi-
tuição natural das gerações
ano de 1991. Como podemos observar, a proporção de chefes nas duas faixas inferiores mais idosas (e com maior
de renda – sem rendimento e com renda de até dois salários mínimos – era muito supe- proporção de analfabetos)
por novas gerações mais
rior nas áreas de alta declividade do que nas áreas de baixa declividade: 9,5% e 31,4% escolarizadas. O que parece
contra 6,2% e 25,1%, respectivamente. inusitado, no caso das
áreas de alta declividade de
Finalmente, vale também registrar que a população dessas áreas cresceu, entre 1991 Mauá, tem a ver com o fato
de se tratar – simultanea-
e 1996, a uma taxa bem superior à referente aos habitantes de áreas de baixa declividade: mente – de áreas com ele-
8,1% contra 2,3%. As informações relativas à migração recente dos chefes de família in- vada e crescente proporção
de analfabetos e pequena
dicam, nas áreas de alta declividade, uma significativa onda de migrantes recentes, parti- proporção de idosos.
cularmente aqueles oriundos de Estados nordestinos. As áreas de baixa declividade rece-
beriam, proporcionalmente, uma quantidade maior de chefes migrantes recentes de
outras cidades do Estado de São Paulo.
1-3 anos de estudo 1.784 2.883 10,08 10.628 11.804 2,12 21,91 20,77 16,80 16,24
4-7 anos de estudo 3.702 5.927 9,87 29.010 33.086 2,66 45,46 42,70 45,84 45,52
8-10 anos de estudo 805 1.541 13,88 9.433 13.306 7,12 9,88 11,10 14,91 18,31
11-14 a. de estudo 255 493 14,08 4.788 7.628 9,76 3,13 3,55 7,57 10,50
15 e + a. de estudo 26 46 11,81 1.186 1.781 8,48 0,33 0,33 1,87 2,45
Chefe não residente
em 1991 1.832 - - 6.594 - - 100 - 100
Em termos quantitativos, a Tabela 2 nos mostra que as áreas de alta declividade eram
ocupadas, em sua grande parte, por favelas: entre 1991 e 1996, 48,3% e 46,0% de seus
domicílios, respectivamente, eram localizados em setores subnormais, enquanto 7,8% e
10,0% dos domicílios das áreas de baixa declividade, respectivamente, localizavam-se em
favelas, segundo a definição do IBGE. De fato, grande parte das favelas dos dois agrupa-
mentos ao Norte e a Centro-Oeste do município, apresentados no Mapa 1, localiza-se em
áreas de alta declividade. A quase totalidade do complexo do Macuco, ao Norte, apresen-
ta declividades muito altas, e no Complexo do Oratório, a Centro-Oeste, grande parte
dos setores subnormais localizam-se em áreas de alta declividade.
As condições de infra-estrutura das áreas de alta declividade também eram bastante
inferiores às áreas de baixa declividade, em 1991, tanto em abastecimento de água (cober-
tura de 80,2% contra 95,8%) e esgotamento sanitário (atendimento de 41,7% contra
69,6%), quanto em limpeza urbana (cobertura de 79,1% contra 94,7%). Ainda segundo
as informações censitárias, a população afirmava que lançava seu lixo em cursos d’água
em uma proporção mais de quatro vezes superior aos habitantes de áreas de baixa decli-
vidade (cerca de 5,6% contra 1,5%). Vale acrescentar que, entre os Censos, o número de
domicílios em áreas de alta declividade seguiu a tendência do município, e também cres-
ceu a uma taxa anual superior à do crescimento populacional: 8,53% ao ano dos domi-
cílios e 8,06% de crescimento populacional.
constante a oferta de água e sem considerar o consumo industrial. Como podemos ver, a
situação, que já não é confortável, tende a se tornar insustentável em um período de tem-
po inferior a dez anos.
A oferta total de água não é a única informação preocupante na caracterização ge-
ral do abastecimento. O problema de oferta poderia ser mitigado pela presença de uma
capacidade de reservação elevada que permitisse regularizar o consumo diário. Entretan-
to, não é isso que se observa, considerando-se os números fornecidos pela Sama. A reser-
vação total do município é de 44.000 m3, distribuída pelos cinco reservatórios apresen-
tados no Mapa 4: Vila Magini I e II (7.000 m3), Jardim Zaira I e II (7.000 m3) e Mauá
(30.000 m3).
Tabela 3 – Oferta per capita média de água nas próximas duas décadas.
A reservação deveria ser pelo menos igual à regularização da vazão na hora de maior
consumo do dia de maior consumo. Esse volume não leva em conta as reservações neces-
sárias para vazões de incêndio e para o atendimento à demanda durante um determinado
período para a realização de reparos (usualmente considerado como igual a 3 dias). En-
tretanto, se o município dispusesse dessa reservação, a vazão aduzida atual seria capaz de
atender a toda a população do município, já que a vazão média atual é superior à vazão
média necessária para o abastecimento (1.010 l/s contra 990 l/s), já descontadas as varia-
ções diária e anual.
interrompido, são criadas pressões negativas no interior das tubulações, gerando uma ten-
dência à sucção da água do lençol freático, de valas ou córregos por onde passe a tubula-
ção para o seu interior. Quando o abastecimento é restabelecido, essa água se mistura à
de abastecimento, sendo consumida. Portanto, regiões submetidas a esse tipo de abaste-
cimento sofrem com a contaminação freqüente da água de consumo.
Ao compararmos o Mapa 5 com o Mapa 1, podemos perceber a superposição entre
áreas abastecidas por boosters e as áreas faveladas, mostrando como esse tipo de assenta-
mento está mais sujeito a um abastecimento de qualidade inferior. De fato, a quase tota-
lidade dos setores classificados como subnormais no complexo de favelas do Macuco apre-
senta pelo menos uma parte de sua área abastecida por boosters. A Oeste, uma parte menor
do Complexo do Oratório também é abastecida dessa forma, embora nesse caso a exten-
são comprometida seja relativamente menor. A maior parte das favelas dispersas pela ci-
dade, que, como já vimos, tendem a alojar uma população de melhores condições socioe-
conômicas, é abastecida de maneira convencional.
A Tabela 4 traz algumas informações socioeconômicas sobre os grupos populacio-
nais habitantes de áreas atendidas por boosters e de forma convencional, construídos por
meio de um overlayer. Os dados mostram uma clara segregação do atendimento pela si-
tuação socioeconômica.
Como podemos ver, as áreas atendidas por boosters abrigavam apenas 7,6% da po-
pulação de Mauá, em 1996. Essa população apresentava crescimento demográfico mais
elevado (6,7% contra 2,6% a.a.) e uma maior proporção de população jovem. A instru-
ção dos chefes de família era inferior à das áreas atendidas de forma convencional, tanto
em 1991 quanto em 1996.
Nas áreas de booster, os domicílios subnormais representavam quase um terço do to-
tal, enquanto no restante do município alcançavam cerca de 13%. Além disso, nas pri-
meiras, os domicílios favelados apresentavam taxas de crescimento mais elevadas do que
no restante do município (10,3% contra 7,4% a.a.). O atendimento por serviços também
era inferior nas áreas de booster, com 88% de cobertura de água por rede geral com cana-
lização interna, 57,3% de esgotamento em rede geral com sanitário interno e 87% do li-
xo coletado, contra 94,4%; 67,0% e 93,3%, respectivamente, no restante do município.
É interessante observarmos que a distribuição do rendimento médio mensal dos chefes de
família era bastante similar nos dois tipos de área, exceto pelos indivíduos sem rendimen-
to, mais presentes nas áreas de booster do que nas áreas de abastecimento convencional.
Esses dados gerais sobre o abastecimento nos informam sobre as condições de aten-
dimento potencial à demanda pelo serviço, mas não nos indicam quais áreas são realmen-
te abastecidas. As informações fornecidas pela Sama não nos permitem determinar os ín-
dices de cobertura, tampouco os dados levantados na contagem populacional de 1996.
Assim, a única fonte de informações sobre cobertura de que dispomos, presentemente,
são os dados coletados pelo Censo de 1991.
Tabela 4 – Informações sociodemográficas das áreas abastecidas por boosters, Mauá, 1991-
1996.
Variável Valores absolutos Valores relativos
Booster Normal Booster Normal
1991 1996 Taxa 1991 1996 Taxa 1991 1996 1991 1996
População total 18.774 26.186 6,88 277.594 315.227 2,58 100 100 100 100
0 a 4 anos 2.345 3.110 5,81 31.081 32.087 0,64 12,49 11,88 11,20 10,18
5 a 14 anos 4.757 6.126 5,19 64.060 67.223 0,97 25,34 23,39 23,08 21,33
15 a 59 anos 11.031 16.074 7,82 170.057 200.412 3,34 58,76 61,38 61,26 63,58
60 anos e mais 641 876 6,47 12.396 15.505 4,58 3,41 3,35 4,47 4,92
Chefes (*) 4.320 6.319 7,90 67.103 80.246 3,64 100 100 100 100
Sem instrução ou
< 1 ano de estudo 741 652 -2,53 9.065 7.418 -3,93 17,16 10,32 13,51 9,24
1-3 anos de estudo 749 1.318 11,9 11.663 13.369 2,77 17,33 20,86 17,38 16,66
4-7 a. de estudo 1.944 2.984 8,96 30.768 36.029 3,21 44,99 47,23 45,85 44,90
8-10 a. de estudo 657 934 7,28 9.581 13.913 7,75 15,21 14,77 14,28 17,34
11-14 a. de estudo 200 392 14,4 4.843 7.729 9,80 4,62 6,21 7,22 9,63
15 e + a. de estudo 30 39 5,54 1.182 1.788 8,63 0,69 0,62 1,76 2,23
Chefe não residente
em 1991 937 - 7.489 - - 100 - 100
A PRESSÃO DA DEMANDA
CONCLUSÃO
O conceito de periferia metropolitana, tal como desenvolvido originalmente, diz
respeito ao encontro da geometria/forma urbana – as áreas na franja da metrópole – com
conteúdos sociológicos particulares. As periferias da década de 1970 seriam os espaços
mais externos da metrópole, relativamente homogêneos, habitados por população de bai-
xa renda, cuja sobrevivência em condições precárias estava associada à venda continuada
de sua força de trabalho.
Esses conteúdos modificaram-se de maneira dramática. O silêncio recente da litera-
tura sobre o tema sugere talvez que, ao menos para uma parte da produção acadêmica, a
melhora das condições de vida nas últimas décadas teria transformado as periferias em
amplos espaços de classe média baixa, com características similares às dos subúrbios ca-
riocas da Central e ao início da Zona Leste paulistana. Os dados apresentados ao longo
deste artigo nos levam a discordar frontalmente dessa percepção, indicando a existência
de espaços heterogêneos e extremamente diferenciados.
A heterogeneidade desses espaços talvez já estivesse presente nos anos 1970, mas co-
loca-se hoje de forma evidente. A melhora das condições de vida de uma parte expressiva
da periferia, acompanhada de espaços extremamente precários, indica a existência de um
grande degrau urbano (e social), mesmo em espaços considerados periféricos, como o mu-
nicípio de Mauá.
As características dos grupos sociais localizados nesses espaços, que denominamos de
hiperperiféricos, também não se parecem com os conteúdos sociais da população operá-
ria, ou do exército industrial de reserva típicos das periferias dos anos 1970. Embora essa
dimensão deva ser objeto de análises específicas profundas, parece-nos estar diante de uma
população “excluída” ou fragilmente integrada ao sistema econômico, mesmo que de for-
ma “marginal”, para fazermos eco aos termos de um debate importante para aquelas ou-
tras periferias (Kowarick, 1975). Se a maior parte da população das atuais periferias está
mais integrada, portanto, os grupos sociais habitantes das hiperperiferias aparentemente
passaram da “dependência à irrelevância”, para usarmos as palavras de Castells (1991).
Em termos concretos, existiam na Região Metropolitana de São Paulo, em 1998,
aproximadamente 1,7 milhão de pessoas (10% da população) com rendimento familiar in-
ferior a dois salários mínimos – R$ 302,00 –, de acordo com a PNAD-IBGE. Isso correspon-
de a uma renda per capita inferior a R$ 2,50 por dia, para uma família com quatro pessoas.
Em tal contexto, é evidente que as áreas de periferia mais tradicional, e mesmo as favelas
mais consolidadas, constituem locais cujos custos de moradia são proibitivos para esse gru-
po. Essa grande população miserável é obrigada a habitar as franjas e interstícios urbanos
mais precários. Nesse sentido, a existência de áreas de risco ambiental com péssimos indi-
cadores sociais e sanitários (no caso de Mauá, especialmente em áreas de alta declividade)
mostra que há, claramente, uma periferia da periferia. Essa hiperperiferia implica a con-
densação e o acúmulo num espaço menor de riscos sociais, residenciais e ambientais de di-
versas origens, genericamente atribuídos ao contexto periférico mais abrangente.
Assim, os riscos ambientais e sociais são desigualmente distribuídos (ou os primei-
ros são distribuídos sobre os segundos), criando um círculo perverso de pobreza e péssi-
mas condições de vida em locais específicos (mas nem por isso numericamente desprezí-
veis). A isso se somam condições praticamente nulas de mobilidade social ascendente.
Essas condições, talvez ainda mais graves que as descritas nas “periferias da espoliação ur-
bana”, são cercadas por condições médias relativamente elevadas para os padrões periféri-
cos tradicionais, indicando um padrão de segregação mais complexo, mais difícil de con-
ceituar e medir, mas nem por isso menos injusto.
São inúmeros os mecanismos que levam a tal situação, desde o mercado de terras
que torna as áreas de risco ambiental (próximas a lixões, sujeitas a inundações e desmo-
ronamentos etc.) as únicas acessíveis a grupos de baixíssima renda, até as ações do poder
público e de produtores privados do urbano, passando pelos padrões mais gerais de trans-
formação dos mercados de trabalho. De um ponto de vista estritamente sociológico, a
emergência da hiperperiferia parece ter a ver com o aumento da heterogeneidade social
paulistana, num contexto de queda sistemática da participação do emprego industrial, au-
mento do número de trabalhadores autônomos e sem carteira assinada, bem como de au-
mento dos trabalhadores do sexo feminino e de ocupados no setor de serviços. Neste con-
texto, a desigualdade de rendimentos aumenta, mesmo naqueles momentos em que a
renda média apresenta algum crescimento, como na segunda metade dos anos 1990
(Marques & Torres, 2000).
No caso de Mauá, as ações do poder público, até onde pudemos notar (Torres &
Marques, 1999), têm em geral tentado enfrentar tais situações, conseguindo alcançar re-
sultados razoáveis em políticas como saúde e educação. No caso dessas políticas, analisa-
das pelo estudo original mas não incluídas aqui, a penetração espacial (e social, segundo
nosso critério) das políticas é significativa, embora novamente as populações de menor
Haroldo da Gama Torres, renda tenham menor acesso a vagas em séries mais elevadas e freqüentem escolas com
cientista social, é assessor
da Fundação Seade e pes- classes mais cheias, no caso da educação. No caso da saúde, esses grupos sociais deslocam-
quisador do Cebrap. se por maiores distâncias para ter acesso não apenas a unidades mais especializadas, o que
E-mail: hgtorres@uol.com.br
Eduardo Cesar Marques, seria justificável considerando-se o caráter hierarquizado do sistema de saúde, mas tam-
cientista social, é pesquisa- bém a unidades básicas. A diferença de acesso nesses dois casos, entretanto, é bem infe-
dor da Fapesp no Cebrap e
professor do Departamento rior à verificada no atendimento por infra-estrutura (e na sua qualidade) e no acesso à ci-
de Ciência Política da Uni-
versidade de São Paulo.
dade, indicando que, nas políticas propriamente urbanas, as prefeituras e os governos
E-mail: ecmarq@uol.com.br estaduais ainda têm muito a realizar.
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A B S T R A C T The aim of this article is to present the main analytical findings of the
application of GIS techniques to urban planning in Mauá, São Paulo. The paper is centre on
several types of exploratory cartography related to demography, urban risk and accessibility to
public policies in the 1990s. In certain census sectors of the municipality, the results show a su-
perimposition of extreme poverty and urban risk conditions, pointing to the existence of very
strong cumulative effects of urban risk and precarious socio-economic conditions. This cumu-
lative effect seems to be more important than that indicated by the academic literature: a much
more heterogeneous urban periphery than is commonly considered was identified, including
areas that are very well served and included in social and urban terms, as well as others in
which the population is submitted to more adverse conditions than those that characterised the
metropolitan peripheries of previous decades.
INTRODUÇÃO
Nos últimos trinta anos, o Brasil tem passado por profundas mudanças em seu pa-
drão demográfico, as quais ocorrem, principalmente, como conseqüência do declínio da
fecundidade. Esse é um processo irreversível e não-conjuntural, que deve ser considera-
do a curto, médio e longo prazos.
As transformações na estrutura e na distribuição da população têm um impacto
considerável nas demandas por serviços e na formulação de políticas públicas. Sendo o
Brasil um país urbano, as cidades acabam refletindo de forma explícita todas essas trans-
formações e, logicamente, seus efeitos.
As metrópoles brasileiras podem ser consideradas um locus privilegiado para a
análise da transformação das variáveis demográficas e suas conseqüências no País e
nos domicílios.
Assim, para se ter uma idéia, as oito maiores áreas metropolitanas (São Paulo, Rio
de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza e Curitiba), que
apresentaram uma rápida expansão populacional durante as décadas de 1960 e 1970 pas-
saram a ter, em conjunto, um crescimento anual abaixo da média nacional, especialmen-
te a partir da década de 1980. Isso é o resultado da redução dos fluxos migratórios e do
profundo controle da fecundidade que as mulheres, nessas áreas, passaram a exercer. Tal
diminuição na taxa de crescimento populacional é ainda mais marcante quando se leva
em conta apenas o município sede de cada uma dessas regiões metropolitanas.
A Tabela 1 dá um exemplo da rapidez com que essas mudanças estão ocorrendo, es-
pecialmente no que se refere ao padrão de formação de domicílios, em três grandes me-
trópoles: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
Uma das conseqüências dessas mudanças é que, no nível intra-urbano das grandes
cidades, também são observadas novas transformações.
Historicamente, as cidades têm-se estruturado de forma a possuir um centro demo-
graficamente populoso, bem equipado com infra-estrutura urbana, onde normalmente
residiam as classes mais ricas e se localizavam os melhores serviços, e uma periferia ocu-
pada por uma população de renda mais baixa, apresentando, além de densidades domici-
liares elevadas, péssimas condições ambientais, sanitárias e habitacionais.
Em Belo Horizonte, semelhante configuração também é comum. O padrão de for-
mação e localização das famílias deu-se a partir da construção dos domicílios mais abas-
tados, especialmente dos funcionários públicos mais graduados, que se transferiram de
Ouro Preto (antiga capital do Estado de Minas Gerais) para a área compreendida pelo
atual centro urbano (área interna da avenida do Contorno), caracterizada como zona de
ocupação dos domicílios unifamiliares. Ao mesmo tempo, as classes mais pobres de tra-
balhadores e os domicílios coletivos, que recebiam, especialmente, trabalhadores e mi-
grantes pobres, localizavam-se na parte exterior da Avenida.
De acordo com o texto elaborado pela Plambel (1979, p.51):
máximo no lote, e à limpeza das ruas, eram rejeitadas. Esse padrão implicitamente rejei-
tava os diferentes arranjos familiares que fugissem à idéia de família nuclear patriarcal.
Nesse processo, as classes populares acabavam tornando-se duplamente segregadas –
pelo padrão de convivência e pelos espaços que poderiam freqüentar e morar –, esse
espaço, em Belo Horizonte, foi claramente definido, entre as partes internas e externas da
avenida do Contorno.
No aspecto social, vale lembrar que Belo Horizonte recebeu um grande contingen-
te de trabalhadores migrantes no período de sua construção, estando entre eles, além da
própria mão-de-obra nacional, ex-escravos (a Abolição foi em 1888 e Belo Horizonte foi
inaugurada apenas dez anos após, em 1898) e imigrantes, principalmente italianos, con-
vocados para edificar a nova capital. Na maioria das vezes, essa população não seguia os
padrões considerados desejados de formação familiar e domiciliar, residindo em cortiços
e favelas, sendo provavelmente comum o amasiar-se (viver junto), mulheres chefiando
domicílios etc.
Barreto (1996, p. 519), ao descrever as primeiras aglomerações pobres no período de
fundação da cidade, observa que:
CARACTERIZAÇÃO DEMOGRÁFICA
Nos anos que seguem à sua fundação, Belo Horizonte torna-se um importante nú-
cleo ferroviário e, principalmente, um centro burocrático-administrativo. A população,
nesses primeiros anos de existência, crescia lentamente, especialmente se se considera o
crescimento das outras capitais provinciais. Isso era reforçado pelo pequeno parque indus-
trial, cuja importância real no município era quase insignificante. Assim, a cidade tinha
um crescimento lento, aglomerando uma pequena classe média, composta, principalmen-
te, de funcionários públicos (Moraes,1998, p. 63).
Belo Horizonte só passa a perceber um crescimento mais intenso durante as décadas
de 1930-1940, quando se instala em suas imediações um parque industrial dinâmico (Ci-
dade Industrial). A partir desse período, o núcleo urbano começa a receber sucessivas levas
de imigrantes, que aceleram o crescimento populacional e modificam substancialmente sua
estrutura demográfica e espacial. Por receber uma grande quantidade de imigrantes, nor-
malmente em idade de trabalho, a estrutura etária da população era basicamente jovem.
Tal processo se estende até os anos 70, quando algumas mudanças demográficas se
tornam mais visíveis, especialmente as relacionadas à queda da fecundidade e à diminui-
ção das taxas migratórias para a cidade, o que tem como conseqüência a diminuição das
taxas de crescimento e o início de um processo de envelhecimento populacional.
Assim, entre 1970 e 1980, o município cresceu a uma taxa de 3,73% ao ano; en-
tre 1980 e 1991, a uma taxa de 1,20% ao ano; e, finalmente, entre 1991 e 1996, a uma
taxa de 0,7% ao ano, alcançando, em 1996, uma população de, aproximadamente,
2.091.770 habitantes.
Como resultado desse processo, o padrão de formação e localização dos domicílios
parece modificar-se. O número de domicílios na área central de Belo Horizonte tem caí-
do sistematicamente. Além disso, a proporção de pessoas que moram sozinhas, de domi-
cílios não-familiares e de domicílios com apenas um casal está também aumentando. Ao
mesmo tempo, novas características físicas do domicílio parecem surgir, como, por exem-
plo, um aumento no número de domicílios com apenas um dormitório, o surgimento e
construção de apart-hotéis e o aparecimento de condomínios fechados.
Analisando a Tabela 2, observa-se que o crescimento total do número de domicí-
lios ocupados em Belo Horizonte foi, durante a década de 1980, de, aproximadamente
2,5% ao ano e, entre 1991 e 1996, de 2,2% ao ano. A população de Belo Horizonte cres-
ceu a uma taxa de 1,2% ao ano e 0,7% no período 1991-1996, demonstrando um des-
compasso crescente no incremento das duas variáveis. É interessante notar que a conse-
qüência mais imediata desse fenômeno é a queda da relação habitante por domicílio, que
1 O município de Belo Hori- mantém uma tendência crescente de queda à medida que o tempo passa.1
zonte está subdividido politi-
camente em nove Adminis-
Quando se analisa esse processo em nível interno do município, nota-se que, na
trações Regionais e 81 década de 1980, as Regionais que apresentaram um maior crescimento, tanto em nú-
unidades de planejamento
(UPs). Essas divisões po- mero de domicílios quanto em número de habitantes, foram Venda Nova, Barreiro e
dem ser observadas nos Norte, que se destacam, seguidas pelas Regionais Pampulha e Nordeste, indicando a di-
mapas anexos.
reção da expansão da malha urbana do município durante a década. Por outro lado, as
Regionais mais populosas, como a Centro-Sul, a Noroeste e a Leste, apresentaram uma
desaceleração do seu crescimento, sendo que a Regional Leste chegou a ter perda lí-
quida de população.
Entre 1991 e 1996, todas as demais Regionais apresentaram um declínio no seu rit-
mo de crescimento, e, além da Regional Leste, que continua perdendo população em um
ritmo menos acelerado, a Regional Noroeste também passa a essa condição, nesse último
período. Quanto à taxa de crescimento do número de domicílios, as Regionais Centro-
Sul, Noroeste, Pampulha e Norte foram as que apresentaram uma taxa de crescimento su-
perior entre 1991-1996. Em relação aos anos de 1980-1991, as demais diminuíram o rit-
mo de expansão do número de domicílios ocupados. Ao mesmo tempo, todas as
Regionais apresentaram um decréscimo na relação habitante/domicílio, e, proporcional-
mente, a Regional Centro-Sul foi a que apresentou um maior decréscimo nessa relação.
Um outro dado relevante é o desequilíbrio da composição demográfica por sexo
(vide Tabela 3). Isso se deve, basicamente, à maior imigração feminina, bastante comum
em todas as cidades de grande porte da América Latina. Analisando a razão de sexos por
regional, observa-se que a Regional Centro-Sul é a que apresenta, em ambos os períodos
analisados, a razão mais baixa, e a Regional Barreiro, a mais alta. Entre 1991 e 1996,
constata-se que a razão de sexos aumentou (maior proporção de homens residindo) nas
Regionais Centro-Sul, Oeste e Venda Nova, havendo uma diminuição nas demais, e, no
município todo, a razão de sexo permaneceu praticamente a mesma, havendo um pe-
queno decréscimo.
A maior proporção de mulheres residentes, aliada a uma expectativa de vida maior
que a masculina, caracterizam, num futuro próximo, que a população idosa de Belo Ho-
rizonte, principalmente nas idades mais avançadas, será basicamente feminina.
F R E D E R I C O
Tabela 2 – Distribuição da população e dos domicílios ocupados de Belo Horizonte por Regional, 1980-1996.
1980 1991 1996 80-91 91-96 1980 1991 1996 80-91 91-96 91 96
P O L E Y
Barreiro 31,700 51,359 58,896 4.48 2.78 154,743 220,872 237,046 3.29 1.42 4.3 4.0
Centro-Sul 56,399 70,138 77,607 2.00 2.04 238,971 249,862 256,661 0.41 0.54 3.6 3.3
Leste 57,791 64,964 67,457 1.07 0.76 261,626 254,035 243,302 -0.27 -0.86 3.9 3.6
Nordeste 45,674 61,158 65,718 2.69 1.45 211,138 247,774 251,126 1.47 0.27 4.1 3.8
Noroeste 74,826 86,401 92,541 1.32 1.38 337,765 339,002 336,230 0.03 -0.16 3.9 3.6
M A R T I N S
Norte 23,288 35,860 44,516 4.00 4.42 114,585 150,877 175,604 2.53 3.08 4.2 3.9
Oeste 50,080 62,296 68,340 2.00 1.87 235,650 249,059 252,345 0.50 0.26 4.0 3.7
Pampulha 16,695 25,638 31,518 3.98 4.22 80,284 106,330 120,865 2.59 2.60 4.1 3.8
Venda Nova 26,849 45,497 54,345 4.91 3.62 133,730 198,442 218,192 3.65 1.92 4.4 4.0
Total 383,302 503,311 560,938 2.51 2.19 1,768,492 2,016,253 2,091,371 1.20 0.73 4.0 3.7
F E R R E I R A
Fonte: IBGE, Censos Demográficos, 1980, 1991,1996.
75
E V O L U Ç Ã O U R B A N A E D E M O G R Á F I C A
O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO
Fica claro, também que, dentro do espectro de níveis de fecundidade e mortalidade con-
siderados como historicamente vivenciados pela humanidade, o processo de envelhecimento
populacional, seja o mesmo definido pelo topo, pela base ou pela idade média da população,
resulta quase que exclusivamente da queda da fecundidade. As mudanças nos níveis de mor-
talidade, dentro deste intervalo de níveis, têm apenas um impacto marginal sobre a estrutu-
ra etária.
É interessante observar que exatamente as áreas de ocupação mais antiga são aque-
las que possuem uma maior proporção de moradores idosos, como é o caso da Região
Centro-Sul. Áreas de ocupação mais recente, como Venda Nova, Barreiro e Norte, apre-
sentam uma menor percentagem de pessoas mais velhas. Esse processo pode ser mais bem
verificado nos mapas anexos (vide Mapas Evolução Urbana e Distribuição da População
Idosa). O número de domicílios com pessoas idosas decresce do centro da cidade (nor-
malmente área mais antiga) para a periferia ou áreas de ocupação mais recente.
Por outro lado, comparando-se as distribuições das populações idosas e da popula-
ção menor de cinco anos, dentro do município de Belo Horizonte (vide Mapas), obser-
va-se que as áreas centrais, que concentram a maior percentagem de pessoas idosas, são
também as áreas com a menor proporção de crianças menores de cinco anos. Isso indica,
provavelmente, a existência de um “gradiente” de complexidade4 entre os domicílios, que 4 Por nível de complexidade
domiciliar entende-se a
ocorre dos mais simples, na área da cidade, mais central, aos mais complexos nas áreas maior diversidade de pes-
mais distantes. Essa é uma hipótese a ser investigada. soas morando no mesmo
domicílio. Assim, um domicí-
Uma outra hipótese, que também poderia ser aventada, seria o fato de que as famí- lio unipessoal é “menos”
lias envelhecem com seus domicílios e, assim, as áreas de ocupação mais antiga também complexo do que um que
abriga somente um casal,
possuiriam, relativamente, uma maior percentagem de pessoas idosas. que é menos complexo do
Lee (1994) observa que devido ao fato de uma população de uma determinada re- que um domicílio composto
por casal e filhos e um pa-
gião ou área ser mais velha, ser dona do imóvel e ser moradora antiga, as chances de que rente etc.
elas se mudem para um novo endereço são menores do que em áreas cujos moradores não
apresentam as mesmas características.
Por outro lado, Rossi (1955) enfatiza os fatores relacionados a mudanças no ciclo de
vida como os determinantes da decisão de se mudar. Nessa perspectiva, mudanças no ci-
clo de vida, no tamanho, na composição por idades e no nível socioeconômico dos do-
micílios criam problemas com a atual residência, influenciando a demanda por diferentes
tipos de moradia e levando à mudança.
Nesse sentido, as taxas de mobilidade alcançam seu máximo nos primeiros anos da
idade adulta. A procura por emprego, o casamento e a transição nos estudos engendram
mudanças nas residências. Por outro lado, a presença de crianças no domicílio tende a de-
ter a mobilidade. Provavelmente, as crianças fazem que as famílias se mantenham em suas
casas e na sua vizinhança.
Quanto às mudanças devido ao aumento do número de pessoas no domicílio, Do-
ling (1976), analisando as estatísticas de moradores nas cidades norte-americanas, observa
que o típico casal recém-unido demanda, inicialmente, uma pequena residência em regiões
de alta densidade, próximas ao centro da cidade. As análises estatísticas, nas quais tal afir-
mação se baseou, também mostram, normalmente, que, com a idade e o aumento do ta-
manho da família, aumenta a demanda por espaço. Assim, essas famílias acabam por de-
5 Ao contrário dos subúr- mandar residências nos subúrbios5 (mais espaço). Quando o tamanho da família diminui
bios brasileiros, essas áreas
nas cidades americanas são
e os filhos se tornam adultos e saem das casas dos pais, haveria, na maioria das vezes, um
ocupadas pelas classes mé- retorno às pequenas habitações, junto a altas densidades e próximas ao centro urbano. Nes-
dias e altas, que demandam
grandes espaços para suas se caso, o acesso aos diferentes tipos de serviços, como proximidade de restaurantes, farmá-
residências. cias, serviços médicos e lazer, poderia ser um importante fator para a escolha da residência.
No caso específico dos idosos, Mutchler e Burr (1991) observam que a escolha de
onde e com quem viver pode ser complexa. Por exemplo, quando uma mulher se torna
idosa, suas obrigações na família, provavelmente, são alteradas pela perda de seu marido
ou pela saída dos filhos. Tais mudanças são imediatamente percebidas em seus arranjos de
vida. Mesmo se ela não se move fisicamente para outra casa, a composição do domicílio
à sua volta se modifica. Por outro lado, ela pode deparar-se com novas restrições, especial-
mente econômicas, que fazem que certos tipos de arranjos domiciliares sejam mais raros
ou mais comuns, levando até mesmo à mudança de moradia. Semelhantes características
e recursos, em combinação, ajudam a determinar as chances de se manter um domicílio
unipessoal, ceder a chefia do domicílio, mudar de casa ou entrar em uma instituição,
como um asilo.
No entanto, é possível que o aumento da riqueza domiciliar também esteja correla-
cionado com estágios do ciclo de vida. No caso das famílias, pode ser que esse fator assu-
ma uma grande importância na explicação das relações de mudança de domicílios. Assim,
se as famílias, nos sucessivos estágios do ciclo de vida, ocupam grandes casas, independen-
temente de sua localização e, se nos últimos estágios do ciclo de vida, não se observa um
retorno a casas menores, isso pode ser reflexo do aumento do poder de compra. Seria um
caso de aumento da riqueza com o envelhecimento, permitindo a aquisição de residên-
cias maiores e melhores.
Em Belo Horizonte, a análise indica ser pouco provável que os idosos de maior ren-
da estejam se mudando para casas maiores, mais afastadas do centro urbano, no caso. Em
certas áreas da cidade, especialmente as adjacentes ao centro (com grande acessibilidade e
oferta de serviços modernos), tem-se observado a construção de prédios de apartamentos
de luxo, flats e apart-hotéis voltados especialmente para pequenas famílias ou pessoas que
moram sozinhas e de alta renda (é o caso das regiões de Lourdes, Barro Preto e Savassi,
que apresentam elevadas proporções de idosos).
Por outro lado, o que parece ocorrer quanto aos reflexos das mudanças característi-
cas do ciclo de vida no espaço é que as áreas mais antigas abrigariam famílias cujo ciclo
de vida se encontra em estágios mais avançados (filhos já saíram de casa, morte de um dos
cônjuges, presença de chefes idosos etc). Quando o ciclo familiar chega ao fim, especial-
mente nas áreas mais antigas, parece ocorrer, além da dissolução da família, a dissolução
da unidade domiciliar com a mudança de seu uso.6 Seria esse o caso da área mais central
6 Muitas casas antigas no de Belo Horizonte, que nos últimos anos vem perdendo moradores (PBH, 1995).
centro de Belo Horizonte
têm cedido lugar a grandes
prédios de uso comercial e
de serviços. Por outro la-
do, prédios residenciais CONCLUSÕES
mais antigos no centro
têm-se deteriorado ou mu-
dado de uso. Este trabalho procurou reunir aspectos relativos às mudanças demográficas com ele-
mentos da evolução da ocupação do espaço urbano em Belo Horizonte.
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A B S T R A C T This paper analyses the ageing process of the population of Belo Hori-
zonte. In assessing past trends, this study compares the proportion of over-60s in 1991 with the
urban development process of the city in different years. The study uses the division of the city
area into “Planning Units” for data processing purposes.
INTRODUÇÃO
designações que essas aglomerações têm recebido entre nós, dependendo de suas caracte-
rísticas quanto a tamanho, forma, localização e condição político-administrativa, do tipo
de atividade à qual estão ligadas e do momento histórico em que surgem.
Este trabalho trata das diferentes formas de nomear tais lugares, discutindo o mo-
mento em que são introduzidas e investigando o contexto em que são utilizadas na lin-
guagem vernacular e na literatura especializada. Busca analisar como as denominações se
modificam, em relação às transformações ocorridas nesses lugares ao longo dos anos e aos
modos específicos de apreendê-los. Investiga não apenas as alterações nos termos empre-
gados, como as variações no sentido e no uso de um mesmo termo. Sob o último aspec-
to, mostra como uma mesma designação tem sido aplicada a situações diferentes, na bus-
ca de estabelecer relações positivas ou negativas entre coisas desiguais. Tal abordagem não
visa apenas fazer um mapeamento do vocabulário empregado para designar esses lugares,
mas partir das diversas denominações para investigar o estatuto dessas aglomerações na
urbanização brasileira. Em tal sentido, tratará também dos debates travados sobre a cate-
goria urbana de algumas dessas aglomerações e, em conseqüência, das discussões em tor-
no das palavras julgadas mais adequadas para designá-las.
desde iniciativas pioneiras, como a da Fundação A Casa Operária, instituída pelo Gover-
no do Estado de Pernambuco, que edificou em 1924, no Recife, a Vila Operária Paz e
Trabalho. Nos anos quarenta, essa forma de nomear os grupos de moradias persiste nos
institutos de aposentadorias e pensões. Um exemplo é a Vila Operária Previdência cons-
truída pelo Ipase, no Rio de Janeiro, cujo projeto reunia casas e blocos de apartamentos
destinados a aluguel e venda.
No que diz respeito às habitações construídas por indústrias para seus operários, o
termo “vila operária” era utilizado simultaneamente para designar grupos de casas cons-
truídos no centro e nos subúrbios afastados das cidades, ou em localidades rurais.
O termo surge para designar aglomerações isoladas no campo, como, por exemplo,
em um projeto de construção de uma grande metalúrgica em Frutal, publicado em 1920,
no qual há menção à construção de uma “villa operaria” com 2.500 casas. Camaragibe é
referida como uma “villa operária” na fala de conferencistas do Congresso Católico, ocor-
rido em 1902, e em um boletim da Companhia Industrial Pernambucana para a Exposi-
ção Nacional de 1908, quando contava com 123 casas, dois alojamentos para solteiros,
duas escolas, armazém, padaria, consultório médico e Círculo Operário.
No caso de grupos de moradias edificadas em cidades por empresas para seus operá-
rios, encontram-se referências à denominação “vila operária” desde o século XIX. Em
1895, matéria sobre a Companhia Empório Industrial do Norte, publicada na Gazeta de
Notícias, referia-se à “villa operária” que estava sendo erguida pela empresa em Salvador e
que já contava, na ocasião, com 258 casas, escola, creche, armazém, casas de banho e res-
taurante. Em 1922, fazia-se referência à “villa operária” – com 10 casas – da Companhia
Fiação e Tecidos Porto-Alegrense.
Tal designação continuou a ser empregada de forma indistinta ao longo do século XX.
Em 1939, por exemplo, matérias na imprensa pernambucana denominavam “villa operá-
ria” os conjuntos de moradias feitas por indústrias para seus operários, fossem eles localiza-
dos dentro ou na periferia de cidades, ou em localidades isoladas. Mencionava-se a “villa
operária” da Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco, localizada no centro do Reci-
fe; a da Companhia de Fiação e Tecidos de Pernambuco S.A., situada no bairro da Torre;
a do Cotonifício Othon Bezerra de Mello S.A. e a da Fábrica da Tacaruna, localizadas na
periferia da cidade. Os conjuntos situados próximos a pequenas cidades do interior eram
tratados da mesma forma: fazia-se referência à “villa operária” da Companhia Industrial
Fiação e Tecidos Goyanna, na cidade de Goiana; à da Fiação e Tecelagem de Timbaúba, em
Timbaúba; à da Companhia Industrial Pirapama, em Escada, e à do Cotonifício José Ru-
fino, na cidade do Cabo. Paulista, na época já convertida em município autônomo, era
chamada de cidade, enquanto suas casas eram apresentadas como “trecho da villa operária”
da Companhia de Tecidos Paulista. Os núcleos residenciais situados em meio a proprieda-
des rurais de indústrias também eram tratados da mesma forma: mencionava-se a “villa
operária” da Societé Cotonnière Belge-Brésilienne, em Moreno, e a da Companhia Indus-
trial Pernambucana, em Camaragibe. Do mesmo modo, a aglomeração com mais de 700
casas, escolas, áreas para esportes, cinema etc., criada pela Companhia União Industrial, era
referida, em matéria da revista Cidade Mauricéa de 1940, como uma “vila operária”.
Semelhante tratamento generalizante contribui para ocultar as enormes diferenças
na forma de gestão dos moradores de casas construídas por indústrias em cidades existen-
tes e em localidades isoladas no campo, nas quais a fábrica cria uma “cidade” nova e tem
condições de gerir a vida do lugar com grande autonomia. Alguns autores nacionais dão
conta dessas diferenças, designando o último caso de “vilas cidadelas” ou “vilas casernas”.
uso da palavra “vila” para nomear conjuntos de casas, em geral idênticas, dispostas ao lon-
go de rua ou de largo e que, muitas vezes, não tinham o caráter de logradouro público.
Exemplos nesse sentido podem ser localizados no Recife, no início da década de 1940,
com a Vila Iolanda, da Fábrica Iolanda, e a Vila Santa Luzia, da Companhia de Fiação e
Tecidos de Pernambuco. Um outro exemplo são os conjuntos de casas, edificados após a
Segunda Guerra pela Companhia Vale do Rio Doce em Itabira para seus operários, bati-
zados com nomes como Vila Piedade, Vila América e, já na década de 1960, Vila Paciên-
cia e Vila Coração de Jesus. No mesmo sentido, coloca-se o caso da Companhia Indus-
trial de Juta Taubaté que, em 1937, construiu a Vila Fabril de Juta e, em 1944, a Vila São
Geraldo. Essa forma surge também em núcleos erguidos por fábricas em localidades ru-
rais nas décadas de 1940 e 1950, e que se conservaram com dimensões reduzidas, como
a Vila Poty e a Vila Araripe, ambas em Pernambuco.
No caso de moradias edificadas por ferrovias, utilizou-se a designação “vila ferroviá-
ria”. O termo “vila” ocorre igualmente em alguns empreendimentos residenciais compos-
tos por casas unifamiliares criados pelos institutos de aposentadoria e pensões, nas déca-
das de 1930 e 1940, como a Villa Waldemar Falcão, criada pelo Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transporte e Cargas na Ilha do Governa-
dor; a Vila Comary e a Vila 3 de Outubro, construídas pelo Ipase. No Recife, foi criada
a Vila dos Comerciários, a Vila do Ipasep e a Vila do Hipódromo. O termo ainda foi apli-
cado nessa cidade para os grupos de casas destinadas a oficiais das forças armadas: Vila
dos Aprendizes de Marinheiro, Vila Ana Maria e Vila de Socorro. Também aglomerações
criadas por empresas de mineração e de geração de eletricidade adotam tal forma de de-
signação. Alguns exemplos são a Vila Cachoeirinha da Mineração Oriente Novo S. A., a
Vila Amazonas e a Vila da Serra do Navio, ambas da Indústria e Comércio de Minérios
S.A., a Vila de Cana Brava, da Sama, a Vila Residencial de Tucuruí, da Eletronorte.
Em outros casos – mais freqüentes a partir da década de 1940 –, a palavra “vila” tam-
bém desaparece. O grupo de casas construído pela Companhia Taubaté Industrial para
seus operários entre 1945 e 1947, por exemplo, foi batizado de “Jardim CTI”. O termo
“conjunto residencial”, que vinha sendo amplamente utilizado para designar empreendi-
mentos promovidos pelo Estado e pelos institutos de aposentadoria e pensões na década
de 1950, começa igualmente a ser estendido aos grupos de casas criados por indústrias.1 1 Em 1943, Attílio Correia
Lima referia-se ao empreen-
Em 1959, por exemplo, matéria em revista referia-se aos conjuntos residenciais da Usina dimento da Várzea do Car-
Amália, em Santa Rosa de Viterbo. mo, promovido pelo IAPI em
São Paulo, como “um núcleo
A substituição da palavra “vila” pela “conjunto” explica-se, parcialmente, pelo des- residencial operário”. Na dé-
prestígio crescente das vilas entre a população, diante do desgaste que o modelo sofre ao cada de 1950, entretanto, é
generalizado o termo “con-
construir uma reputação de lugar onde a liberdade individual e familiar é restrita. Tal re- junto residencial” para de-
putação atinge as diferentes modalidades de vila, relacionando-se ao controle da fábrica signar os empreendimentos
habitacionais do IAPI com-
sobre o cotidiano das famílias operárias; a ingerência dos vizinhos na vida doméstica dos postos por blocos de apar-
tamentos ou por blocos e
moradores de vilas erguidas por empresas construtoras; a disciplina rigorosa que preside casas. Exemplos neste sen-
às vilas militares. Por outro lado, tal substituição revela também mudanças de conteúdo tido são o Conjunto Residen-
cial da Penha no Rio; o Con-
e forma. O termo “conjunto habitacional” sugere uma alteração de escala, de forma e de junto Residencial Salgado
inserção na cidade. Sob o último aspecto, pressupõe uma área de uso residencial social- Filho junto à Fábrica Nacio-
nal de Motores; o Conjunto
mente homogênea, inserida num espaço urbano penetrado por uma divisão funcional. Residencial do Passo da
Enquanto o termo “vila operária” tem uma conotação social, moral e sanitária, o termo Areia em Porto Alegre.
“conjunto habitacional” vai mais além, incorporando a esses três atributos a noção de um
uso exclusivamente residencial (habitação e comércio e serviços locais), numa leitura da
cidade presidida por critérios funcionais.
Embora a forma “vila operária” fosse amplamente usada no século XIX e nas primei-
ras décadas do século XX, ela não era a única empregada para nomear grupos de moradias
erguidas por empresas para seus funcionários. Naquele primeiro momento de difusão da
grande indústria no Brasil, esses grupos de casas, quando em localidades rurais, foram
muitas vezes referidos como “povoado” ou “vila” – indicando sua população reduzida e
sua subordinação política a uma cidade, sede de um município – ou como “fazenda” –,
indicando o vínculo agrário do empreendimento industrial.
Em 1903, o Indicador Geral do Estado de Alagoas tratava Fernão Velho – uma aglo-
meração, criada pela fábrica União Mercantil, que na ocasião contava com trinta casas e
11 quartos – como um povoado. Por outro lado, as mais de cem casas de Rio Largo – eri-
gida pela fábrica Progresso Industrial – eram qualificadas de “uma linda villa operaria”.
Nesse caso, a distinção entre povoado e vila operária parece decorrer da dimensão do lu-
gar e do padrão construtivo das moradias. Atitude semelhante pode ser observada no
“Álbum de Pernambuco”, publicado em 1919, onde as casas para trabalhadores construí-
das nas usinas de açúcar só são referidas como “villa operária” quando “perfeitamente
hygienicas”, como no caso das vilas destinadas aos operários da fábrica na Usina União.
Em outros casos, fala-se no “correr de casas da Usina Bamburril”, ou nas “casas isoladas
em fila” da Usina Alliança.
São significativos os exemplos nos quais a implantação de uma grande empresa – fá-
brica e mineradora – em uma antiga fazenda não impede que o lugar continue a ser qua-
lificado como uma fazenda. As terras da Companhia Morro Velho, em Nova Lima – in-
cluindo as áreas residenciais e de mineração –, eram referidos no século XIX como
“Fazenda Morro Velho” e “Fazenda Raposos”. Só em 1891, quando foi promovido de fre-
guesia a vila, o local da sede da Morro Velho passou a se chamar Vila Nova Lima. O nú-
cleo constituído, em fins do século XIX, pela Fábrica de Tecidos Santanense e por algu-
mas casas para seus operários, era conhecido como “Fazenda Cachoeira” ou como
“arraial”. “Fazenda Cachoeira” era também a denominação do local onde funcionava, des-
de 1877, a Fábrica de Tecidos Cachoeira – hoje município de Inimutaba –, a qual, desde
sua fundação, contava com “casinhas” para operários no seu entorno. Tal foi ainda o ca-
so do núcleo formado pela Fábrica Cachoeira Grande e pelas residências de seus empre-
gados a partir do final do século XIX, o qual era chamado de “Fazenda Cachoeira Gran-
de”. Matéria no Auxiliador da Indústria Nacional, de 1886, indicava que a “Fábrica de
Tecidos Brazil Industrial” estava situada na “Fazenda Macacos”, e contava com cerca de
oitenta casas para operários, além de enfermaria, escola e capela. O engenheiro Baptista
de Oliveira, em 1939, trata da Fábrica São João Evangelista, instalada em local denomi-
nado “Fazenda Floresta”, onde estaria sendo projetada uma “villa operaria”. Nesses casos,
a instalação da fábrica e a construção de moradias para seus operários não alteram – em
um primeiro momento – o entendimento do local como uma fazenda.
Foi o caso, igualmente, do núcleo habitacional criado, a partir 1912, pelo industrial
Delmiro Gouveia junto à sua fábrica de linhas de costura localizada junto a Pedra, um pe-
queno povoado no sertão de Alagoas. Entre os seus moradores e contemporâneos, o nú-
cleo residencial era referido como “Fazenda Rio Branco”, “Fazenda da Pedra”, “Vila Ope-
rária da Fazenda Rio Branco”, ou simplesmente como “a Pedra”, enquanto a povoação
preexistente – localizada junto à estação ferroviária – era chamada “Pedra Velha” ou “cida-
de livre”. Alguns contemporâneos destinguiam os dois lugares com as expressões “dentro
CIDADE OPERÁRIA,
CIDADE-EMPRESA E CIDADE-COMPANHIA
Várias aglomerações criadas por empresas têm sido referidas como “cidade operária”,
“cidade-empresa”, “cidade-companhia” ou “cidade nova”. O termo “cidade operária” co-
meça a ser utilizado no Brasil para designar essas aglomerações, sobretudo a partir da dé-
cada de 1930. Está associado a uma mudança de escala desses lugares, tanto decorrente
do crescimento de alguns e de sua emancipação e conversão em sedes de municípios,
quanto do surgimento de novos lugares com grandes dimensões, alguns decorrentes de
iniciativas governamentais.
Em 1912, Alfredo Cusano referia-se a “Maria Zélia” – núcleo residencial criado por
fábrica têxtil na periferia de São Paulo e dotado de 196 moradias, creche, escolas, arma-
zém, restaurante, teatro, igreja, salão de festas – como uma “pequena cidade operária”.
Foi, entretanto, a partir dos anos trinta, que tal designação se tornou mais usual. Assim,
no concurso promovido, em 1935, pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira para o
plano urbano de Monlevade, alguns participantes – como Ângelo Murgel e Lincoln Con-
tinentino – tratam como uma “cidade operária” a aglomeração prevista para contar ini-
cialmente com cerca de 300 casas, área para comércio, igreja, escola, clube, cinema e ar-
mazém de consumo. Mais atento às implicações que o nome “cidade” comporta, outro
concorrente, Lúcio Costa, opta por denominá-la “villa de Monlevade”.
No projeto elaborado por Attílio Correia Lima para Volta Redonda, e na maioria dos
documentos da CSN da década de 1940, o núcleo urbano que estava sendo planejado
junto à primeira siderúrgica brasileira é denominado de “cidade operária”. Tal designação
certamente decorria das dimensões previstas para o lugar que, inicialmente, deveria con-
tar com quatro mil casas e cerca de vinte mil moradores, além de ser dotado de equipa-
mentos e infra-estrutura urbana. A povoação preexistente de Santo Antônio é referida co-
mo “cidade antiga”. Os grupos de casas em Volta Redonda, diferenciados segundo a
posição do morador na hierarquia fabril, por sua vez eram chamados “vilas”: Vila Con-
forto e Vila Santa Cecília.
A aglomeração a ser criada pela Fábrica Nacional de Motores junto às suas instala-
ções em Duque de Caxias também é mencionada como “cidade operária” no parecer ela-
borado por Attílio Correia Lima, em 1943. Nesse mesmo ano, faz-se referência a uma “ci-
dade operária” em construção em Campos, pela Companhia de Cimento Portland Paraíso.
VILA OU CIDADE?
Um acirrado debate ocorreu a partir dos anos 30, quando algumas das aglomerações
criadas por empresas foram emancipadas, convertidas em sedes de municípios e começa-
ram a ser designadas como “cidades”. Tal designação foi objeto de controvérsias. O con-
trole das fábricas sobre a vida econômica e política local e, sobretudo, o monopólio sobre
a propriedade imobiliária que elas continuavam a deter, suscitaram um questionamento
acerca do estatuto das novas cidades.
Com efeito, considerar aglomerações com tais características como cidades significa,
em muitos casos, desprezar elementos essenciais ao estatuto de uma cidade. Vários crité-
rios podem ser utilizados para se definir uma cidade: uma aglomeração com, no mínimo,
quatro mil habitantes; uma aglomeração com população não-rural – não comprometida
com trabalhos agrícolas; um lugar que é sede de bispado ou da administração civil; um
lugar que garante autonomia individual e coletiva aos seus moradores. Uma aglomeração
isolada, fundada por empresa, dificilmente reúne todos esses atributos: pode atingir mais
de quatro mil moradores, sua população pode estar envolvida com atividades urbanas,
pode ser sede de um município, mas dificilmente oferece autonomia a seus moradores.
Nos anos 30 e 40, novos termos – como “conjunto habitacional”, “núcleo indus-
trial”, “núcleo urbano”, “núcleo residencial” e “centro industrial” – são difundidos, reve-
Ao longo do século XX, ocorreu uma grande diversificação nos modos de nomear as
aglomerações erguidas por empresas para alojar seus funcionários, à qual correspondeu
uma maior diversidade na forma desses lugares – em termos de tamanho, arquitetura, for-
ma urbana e grau de autonomia em relação à empresa.
As diferentes formas de nomear vão privilegiando aspectos diversos do lugar. A pa-
lavra fazenda enfatizava a condição de inserção dos grupos de moradias em uma proprie-
dade rural particular. As formas vila operária, bairro proletário e cidade operária deslocam
o foco para a ocupação e classe social da população residente. Diferenciam-se entre si por
indicarem variações de escala: vila operária diz respeito a pequeno grupo de casas em ci-
dades ou no campo; bairro operário refere-se a um conjunto de casas de maiores propor-
ções situado em uma “cidade-aberta”; cidade operária aplica-se a uma localidade isolada
com um conjunto de moradias e serviços complementares e uma certa autonomia na vi-
da local, tanto em relação a outros centros urbanos, quanto à própria empresa que gerou
a aglomeração. Os termos núcleo urbano, núcleo residencial e núcleo fabril referem-se a
pequenas aglomerações isoladas, diferentes de uma cidade em termos de escala e do grau
de autonomia dos moradores e da vida local em relação à empresa. A denominação nú-
cleo fabril expressa o vínculo do lugar à indústria que o gerou. Assim como cidade ope-
rária, as formas cidade-companhia, cidade-empresa e cidade nova denotam uma amplia-
ção na escala da aglomeração. As formas de nomear cidade-companhia e cidade-empresa
enfatizam a estreita relação do lugar com a empresa que o criou. No caso do termo “cida-
de nova”, o foco dirige-se ao caráter peculiar – planejado e inovador – que presidiria ao
surgimento da aglomeração ou à sua oposição ante a “cidade velha”.
Entendemos que algumas destas formas de nomear são em si problemáticas, en-
quanto outras são muitas vezes empregadas de forma inadequada. No primeiro caso, si-
tua-se a expressão “cidade nova”, que não dá conta do vínculo entre o lugar e a empresa,
e mostra-se excessivamente genérica e incapaz de responder às especificidades desses
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
contemporânea, assume, de fato, uma forma cultural: sembocam numa concepção precisa, e instrumentali-
“A cultura é parte decisiva do mundo dos negócios e o zada, de cidadãos como consumidores da cidade.
é como grande negócio”. O modelo generalizou-se, virou receita difundida
Essa convergência é elucidada por Arantes ao dis- mundo afora. A cidade, transformada em mercadoria,
cutir, no plano teórico, uma série de processos e di- é posta em circulação e, mediante imagens que operam
mensões em que se casam o interesse econômico da a serviço dessa visão mercadológica, são descortinados
cultura e as alegações culturais das elites econômicas, seus atrativos comerciais, turísticos e culturais, na bus-
que cercam cidades como Barcelona, Bilbao, Paris, ca de atração de investimentos. Para dentro da cidade,
Baltimore, Berlim ou Lisboa, com seus governos mi- a mercadotecnia urbana gera uma visão de cidadania
diáticos, processos, por sinal, reeditados com agilidade que assalta, principalmente, os próprios cidadãos. Se-
em cidades periféricas bem embaixo de nossos pés. A duzidos pelo catálogo de espaços “renovados” e pelo
análise de tais processos, criativamente tecida no en- discurso da eficiência administrativa que estaria traba-
saio, mostra a existência de um “pensamento único das lhando a seu favor, eles encontram poderosas barreiras,
cidades”, próprio desta virada de século, uma matriz culturais e políticas, à sua expressão em movimentos de
conceitual e operativa comum na definição das estraté- resistência ou à participação em ações críticas, pois es-
gias urbanas. sas costumam ser esvaziadas, tomadas como manifesta-
O elenco de estratégias, que vêm sendo sistemati- ções de “desamor à cidade”.
camente adotadas, parece confirmar essa comunhão: Carlos Vainer vê na instauração da cidade-
grandes equipamentos públicos (museus, centros empresa uma negação radical da cidade enquanto es-
culturais) no repertório das políticas culturais para a paço político, de construção da cidadania; aponta para
reativação econômica dos lugares; arquitetura da gran- um encolhimento radical do espaço público, uma total
diosidade, assinada por algum astro de renome inter- subordinação do poder público às exigências do capi-
nacional; reabilitação de áreas urbanas (por meio de tal internacional com interesses localizados. Em sua
atração de investidores, atividades e moradores solven- construção teórica, ele mostra as imbricações entre
tes); promoção de megaeventos, ou mesmo preserva- cidade-empresa e cidade-pátria: a produtivização e o
ção de edifícios alçados à condição de patrimônio e consenso, bases permanentes para a cooperação
tornados emblemáticos dos programas de renovação público-privada, a cidade unificada sem brechas, trata-
urbana. Essas operações estratégicas são transformadas da como um bloco em torno de um projeto único que,
em iscas, grandes vitrines publicitárias da cidade- só assim, será vitorioso. A tendência à despolitização é
espetáculo, as quais buscam consagrar os projetos também identificada pelo autor na redução da questão
de cidade e despertar o espírito cívico, o orgulho, a sen- do governo da cidade à estreita questão da competên-
sação de pertencimento, ao mesmo tempo que se orien- cia técnica de seus administradores, cuja manifestação
tam para a neutralização dos conflitos, das diferenças. é perceptível, tanto nas práticas de planejamento quan-
O ensaio de Arantes vai além e mostra, junto to na produção teórica dessas práticas.
àquelas intervenções urbanísticas que produzem mate- O consenso construído em volta da cidade-
rialmente essa fase da modernização, outras dimensões mercadoria é desafiado, também, por Ermínia Maricato,
do casamento entre cultura e economia, as quais im- cujo ensaio se encarrega de mostrar o que não entra nas
primem novos valores às práticas de gestão: é a cidade contas do urbanismo de resultados e seus espaços de
pensada e administrada como uma empresa que com- distinção: o crescimento exponencial da cidade ilegal, a
pete no mercado global, é a cidade empreendedora, a enorme expansão espacial da pobreza, a violência urba-
“máquina do crescimento”, na expressão de Molotch, na, a exclusão. Esta é, para a autora, a cidade dissimu-
a qual conjuga governos e coalizões das elites econômi- lada, invisibilizada cultural e politicamente, cuja au-
cas num amplo leque de negócios, com suas fabulações sência faz parte das estratégias de dominação próprias
correlatas da geração de empregos e com suas metáfo- do capitalismo periférico e do urbanismo de mercado.
ras do bolo que cresce e derrama sua graça a todos os É como se o mundo real da pobreza urbana não
cidadãos; é a cultura da gestão eficiente e da qualidade fizesse parte da virtualidade da cidade reinventada
total na prestação de serviços, como caminhos que de- para os negócios. Quem vê o mundo pelos olhos do
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As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, de acordo com os exemplos abaixo:
GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patri-
moine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.
BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, orga-
nizadores ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda,
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