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Abstract Introdução
resgate dessa paciente e considerou que sua per- “A paciente ‘S’ começa a consulta relatando
manência no domicílio pouco contribuiria para que entrou no climatério há três meses, que agora
uma maior resolutividade do problema. Aparen- sente ‘um calorão’ e sua pressão disparou: ‘antes
temente não lhe ocorreu acionar o médico da uni- era 12, depois passou para 14 e agora está em 18’.
dade PSF para insulinizar a paciente” (diário de O médico registra essas informações no prontuá-
campo). rio e, em seguida, inicia um ‘diálogo’: ‘A senhora
Ao focalizar-se nas situações “problemáticas”, fuma? – Não. Faz atividade física? – Agora comecei
a visita domiciliar do enfermeiro perde seu cará- a caminhar”. Ele lê o prontuário da paciente para
ter preventivo. Deparando-se com situações que o pesquisador; recita: ‘paciente virgem de trata-
extrapolam a complexidade do nível básico de mento, com história familiar de hipertensão, ale-
atenção, seus esforços mostram-se pouco reso- gando estar no climatério, após o que teria ocor-
lutivos. Fica igualmente patente a inexistência de rido a elevação de pressão arterial’. Na seqüên-
mecanismos de articulação da rede do PSF com cia, comenta que não costuma procurar dados
os níveis mais especializados de atendimento. familiares e sociais no prontuário, pois isso pode
Na unidade básica de saúde, a visita domici- interessar para pesquisa, mas, na rotina, não têm
liar aos pacientes do HIPERDIA por profissional importância, porque a hipertensão atinge pobres
de nível superior, embora possível, dada a exis- e ricos. Prossegue falando que, ‘nesses casos vir-
tência do programa de agentes comunitários de gens de tratamento’, costuma recomendar dieta e
saúde na unidade, padece de diversas limitações. atividade física, mas, como a paciente é hiperten-
Como parcela importante dos pacientes hiper- sa classe III, prescreverá medicação. Solicita um
tensos e diabéticos ali atendidos reside em locais Eletrocardiograma e bioquímica de rotina. Define
distantes, sua visitação é inviável. Para os que re- o esquema terapêutico: ‘você vai tomar captopril
sidem nas proximidades, a atividade é prejudica- de 12 em 12 horas e passiflorine de 8 em 8 horas’”
da pela não-delimitação de área de abrangência (diário de campo).
da unidade, que se superpõe à área de atuação de É perceptível que o profissional não valorizou
outra unidade básica de saúde existente no bair- os sintomas de climatério, mesmo sendo essa
ro. Ambas disputam a exclusividade do registro uma condição associada à gênese e progressão
da clientela em suas respectivas estatísticas e sis- de cardiopatias 23. Seu foco se manteve na pres-
tema de cadastro sem que isso redunde em me- crição de anti-hipertensivo. Aparentemente, ele
lhoria da cobertura ou da qualidade da atenção. também interpretou as queixas da paciente co-
Os pacientes do HIPERDIA que consigam mo um quadro de ansiedade, condição apontada
adentrar ao serviço serão atendidos na unidade pela literatura como potencialmente relaciona-
de saúde da família, em um único dia da sema- da à hipertensão arterial sistêmica 24. Porém, a
na, pelo médico da família. Na unidade básica prescrição de um fitoterápico, sem eficácia tera-
de saúde, há consulta diária de cardiologista e de pêutica comprovada como ansiolítico 25, é pouco
clínico geral. Aqui, não há critério definidor de promissora. O especialista demonstrou desco-
acompanhamento do paciente pelo clínico ou nhecer as normas técnicas do programa e ale-
pelo especialista, isso depende exclusivamente gou preferência em seguir sua experiência; após
da compatibilidade entre o horário do profissio- algum tempo de conversa, admitiu nunca ter lido
nal e a vinda do paciente à unidade. Caso chegue as normas técnicas do programa HIPERDIA.
no horário matutino, terá acesso ao especialista, A focalização em alguns aspectos biológicos
do contrário, será atendido pelo clínico. Não há da hipertensão arterial e do diabetes mellitus não
um sistema de triagem para maximizar a ativida- é uma exclusividade da unidade básica de saú-
de do cardiologista; sua mão-de-obra é subutili- de. Na unidade de saúde da família pesquisada,
zada e, muitas vezes, esse recebe pacientes com uma paciente do HIPERDIA procurou o serviço
outras patologias apenas para completar sua co- com queixa de dificuldade visual. Foi orientada
ta de dezesseis atendimentos por turno de traba- a retornar em outro momento, pois aquele era “o
lho. Ambas as unidades oferecem atendimento dia do HIPERDIA” e só, no dia seguinte, haveria
de enfermagem para essa clientela. atendimento de clínica geral. O evento apreende
O cuidado ofertado é centrado no indivíduo a dificuldade de articulação de queixas, mesmo
doente e focaliza aspectos biomédicos, sobre- no interior de uma única ação programática,
tudo farmacológicos para o controle da hiper- tendo-se ignorado a associação recorrente entre
tensão arterial e do diabetes mellitus. O atendi- diabetes e comprometimento visual 26, que leva
mento médico relatado abaixo foi observado na à recomendação de que os diabéticos se subme-
unidade básica de saúde e será utilizado como tam à investigação periódica da saúde ocular.
fio condutor para discutir características dos cui- De forma similar, não observamos, durante as
dados oferecidos aos pacientes do HIPERDIA, na consultas, preocupação com outras ações pre-
Atenção Básica de Manaus. ventivas, tais como a indicação de exames col-
dade de acesso a exames e a certos especialistas nhecimento gerava, por vezes, sentimentos de
e uma menor facilidade de entrada no serviço. angústia e impotência, mas não se observou a
Pode-se afirmar também que as unidades com e produção de estratégias que propiciassem a in-
sem-PSF operavam de forma desarticulada, com corporação das informações sobre as condições
fragmentação do cuidado e desconhecimento de vida nos processos de trabalho desenvolvidos
das dimensões sociais do adoecimento. A maior nas unidades.
capacidade instalada da unidade básica de saúde As categorias analíticas centrais da pesquisa
não era aproveitada em favor dos usuários das (acesso e integralidade) mostraram-se ferramen-
unidades com PSF mesmo quando havia proxi- tas eficientes na comparação e análise da oferta
midade geográfica. de cuidados em unidade básica de saúde não-
Na unidade de saúde da família e na unidade PSF e em unidade de saúde da família. Os resul-
básica de saúde, o cuidado com as demandas de tados da investigação não mostraram diferença
saúde estava centrado na doença, pautando-se significativa entre elas no que tange à qualidade
pelo enfoque individual e medicalizador, com e integralidade do cuidado ofertado. Ambas par-
pouca penetração das atividades de educação tilhavam baixa capacidade de responsabilização,
em saúde no cotidiano das práticas sanitárias. de vínculo, escuta e acolhimento de problemas
A proximidade da equipe (ou de parte dela, co- que fugissem do foco imediato da ação progra-
mo o programa agentes comunitários de saúde mática e mesmo de ações não-medicamentosas
da unidade básica de saúde) com a comunidade previstas nas rotinas do HIPERDIA. Os resultados
permitia que o conhecimento da realidade social da investigação reforçam a idéia de que há um
fosse acessível a alguns profissionais, sobretudo longo caminho a ser percorrido na qualificação
agentes comunitários de saúde e enfermeiros, da Atenção Básica, em busca de alcance pleno
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Resumo Colaboradores
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Aprovado em 13/Jul/2007