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Janos Biro
Índice:
1. Fazer a sua parte..................................................... 1
2. Elevar a razão......................................................... 2
3. Respeitar a nossa cultura........................................ 2
4. Mudar o indivíduo.................................................. 4
5. Acreditar nas autoridades....................................... 6
6. A nossa história representa um avanço................... 7
7. A civilização como produto final da evolução....... 9
8. Nossas religiões têm um valor universal................ 10
9. O trabalho melhora o mundo.................................. 12
10. Precisamos de um Estado melhor......................... 13
11. O mundo está em nossas mãos............................. 15
Nota sobre ecologia e desenvolvimento..................... 17
Como mudar nossas crenças...................................... 17
Referências................................................................. 19
Introdução
Este livro foi escrito sob a influência de uma longa discussão acerca de crenças
culturais que estariam nos levando à destruição. Essa discussão se iniciou em 2003,
quando eu e vários membros do grupo Uma nova cultura começamos a debater sobre as
idéias de Daniel Quinn, autor de Ismael e História de B.
Quinn falava sobre a influência da cultura na forma com que nós pensamos e
agimos. Ouvimos a “voz da cultura” sussurrar idéias em nossos ouvidos de forma tão sutil
que quando menos percebemos estamos defendendo crenças culturais como se fossem as
verdades mais primordiais de nossa vida.
janosbirozero@gmail.com
28/08/2008
Esta obra é livre. Pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição.
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1. Fazer a sua parte
Era uma vez uma floresta. Um dia essa floresta começou a pegar fogo, e os
animais começaram a fugir. Mas um deles, o pequeno passarinho, decidiu que iria fazer
alguma coisa e começou a tentar apagar o fogo sozinho. Ele pegava uma gota de água do
rio no seu bico e, sobrevoando o fogo corajosamente, jogava a gota de água no fogo.
Quando diziam ao passarinho que sozinho ele não conseguiria apagar o fogo, ele só
respondia que isso não importa. O importante é que ele está fazendo a parte dele. A moral
dessa fábula é que devemos fazer nossa parte, mesmo que pequena, para a preservação do
todo.
Por que essa estória esconde uma crença letal? Porque ela dá a entender que nós
não temos responsabilidade alguma sobre a causa do que nos aflige, apenas sobre os
efeitos. A origem do fogo pouco importa, talvez tenha sido um raio. Mas ninguém se
pergunta sobre isso. Não importa o que produz o problema, não importa saber as causas,
não importa se os outros vão colocar ainda mais fogo na floresta, só importa fazer a sua
parte. Esta é uma falácia central da nossa cultura: atacar os efeitos e ignorar as causas. E
esta estória disfarça esta falácia.
Estou sugerindo que todos parem de tentar e fujam? Não. Estou sugerindo fazer
alguma coisa significativa. Caso não saibam o que fazer, então se ocupem em descobrir
primeiro; caso contrário qualquer ação será inútil. As ações significativas não são tão
fáceis de propagar quanto as insignificantes. Existem várias que inicialmente parecem
boas, mas que já foram assimiladas pelo sistema. Mesmo que você use uma ferramenta já
conhecida, use-a de maneira diferente. Os primeiros hackers são exemplos de pessoas que
descobriram maneiras novas de usar um sistema conhecido de uma forma que os próprios
criadores do sistema não poderiam prever.
Não haja sem conhecer nem se conforme com a ignorância. Considere o uso das
falhas e brechas do sistema contra ele mesmo e, antes de tudo, aprenda quem é seu
verdadeiro inimigo. O que iniciou o fogo na nossa floresta? O que o manteve e o espalhou
por todo este tempo? O que é capaz disto? Não podemos culpar um deus, ou a natureza,
ou qualquer outra coisa deste tipo. Nem todos os habitantes da floresta juntos podem
apagar fogo simplesmente jogando água, se, ao mesmo tempo, não pararem de jogar o
combustível que faz o fogo crescer e se espalhar. É preciso descobrir isso antes de sair
cegamente “fazendo sua parte”.
2. Elevar a razão
Dizem que o grande objetivo do homem é elevar sua razão. Isto significa não se
contentar com a irracionalidade que domina o mundo. Ascender para um próximo estágio
de consciência, onde sejamos plenos, porque a razão transforma o caos em ordem.
Esta crença é letal na medida em que toda solução é sempre dada por uma razão
superior àquela que criou o problema. Mas a própria razão nunca é responsabilizada por
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nada. Ao mesmo tempo outras formas de racionalidade podem ser descartadas como se
fossem apenas falta de racionalidade.
Nós classificamos os seres vivos colocando os seres humanos no topo, pois estes
são mais racionais. Mas a racionalidade não é a maior conquista da natureza. Elevar o
grau de racionalidade nem sempre é preferível, pois não há uma ordem escalar na
evolução. Nenhum desenvolvimento natural tende ao infinito, todos eles têm um limite, e
esse limite gera o equilíbrio do sistema.
E por que não destruir a diversidade? Se a própria evolução nos dotou com esse
poder, porque não levar isso a cabo? A evolução não promove poder, ela promove
diversidade. Saímos de uma única forma de vida e nos tornamos inúmeras espécies
diferentes. Parece que nosso modo de vida cria condições em que este processo natural
seja invertido, mas eu não posso supor que fazemos isso por motivos biológicos. Uma das
razões porque não posso supor isso é que não foi uma adaptação genética ao meio que nos
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transformou em seres que destroem a diversidade, mas sim uma adaptação cultural, que se
baseia no controle da produção de alimentos. A destruição da diversidade é apenas um
efeito colateral indesejado dessa recente mudança cultural.
4. Mudar o indivíduo
Durante nove anos, uma fábrica produziu carros que funcionam muito bem. É
claro, não eram todos perfeitos, mas a maioria funcionava bem o bastante, de forma que
os defeituosos nunca foram grande problema. Mas acontece que, no último ano, houve
uma mudança completa na forma de fazer carros nesta fábrica. Uma mudança que afasta
completamente o modo de produção do modo anterior. Os carros passaram a ser criados
inteiramente por máquinas. O resultado foi que muito mais carros podiam ser criados, mas
a porcentagem de defeito em cada um aumentava na mesma proporção. A cada dia, mais e
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mais carros eram feitos, e mais e mais carros saiam com defeito, de forma que agora, no
fim do décimo ano, a grande maioria dos carros sai com defeito. Estragam-se facilmente;
o motor gasta cada vez mais combustível; o pneu fura o tempo todo; as peças saem do
lugar; explodem...
Ao ouvir dizer que talvez o problema seja a forma com que os carros estão sendo
produzidos, e não exatamente o funcionamento de cada um, o dono diz: “É claro que o
problema não está na fábrica. Ela é muito melhor agora do que era há um ano atrás, e o
fato de que produzimos cem vezes mais carros é a prova inegável disto. O problema está
nos carros que sempre apresentaram algum defeito aqui ou lá, e que agora parecem piores
apenas porque fazemos muito mais carros em muito menos tempo”. E continua: “Não é a
maneira com que construímos os carros, mas sim a maneira com que os carros são usados,
e não há nada que possamos fazer quanto a isso, porque carros são assim. Devemos nos
conformar e aceitar esses defeitos como parte do funcionamento normal dos carros.
Devemos nos manter ainda mais atentos para reparar os carros mais cedo e mais
eficientemente. Devemos parar de usar aqueles que apresentam defeitos demais, antes que
causem acidentes. Devemos reformar as estradas e conscientizar os usuários...”. Desta
forma, cada vez mais aumentam os reparos preventivos, e cada vez mais se gasta com os
consertos constantes. Além disso, mais e mais carros defeituosos são deixados por longos
períodos na oficina, por não serem seguros, e os carros considerados perigosos demais são
destruídos ou colocados num grande monte de ferro-velho que se formou ao redor da
cidade.
Esta fábula é sobre a maneira com que lidamos com nossos problemas
educacionais. Não procuramos defeitos na formação das pessoas, mas no comportamento
das pessoas, nas suas opiniões e crenças pessoais. Por que não questionamos as crenças
culturais? A razão me parece simples, e capaz de ofender muita gente: é precisamente
porque são muito difundidas que são aparentemente mais corretas. Os intelectuais são
ótimos para criticar as crenças dos outros, mas não são bons em criticar suas próprias
crenças. Crenças culturais não são mais passíveis de serem verdadeiras apenas porque são
bem difundidas.
Num lugar muito isolado do resto da civilização morava um velho. Toda a sua
família morou ali antes, e todos os dias eles passavam pela perigosa encosta de uma
montanha para pegar água do outro lado, porque esse era o único caminho possível. O
velho era agora o único sobrevivente de sua família, pois todos os outros foram vítimas da
encosta da morte. Mas o velho não pensava em se mudar de lá, ele respeitava a montanha
e o lugar onde seus antepassados haviam vivido e morrido. Um dia, quando se dirigia para
a encosta, ele encontrou um turista. Com um sorriso singelo no rosto, o velho perguntou
onde o turista estava indo. Ele respondeu: “Para o outro lado desta montanha, onde há
uma bela formação de rochosa e uma fonte de água cristalina”. O sorriso do velho se
alargou, depois seu rosto ficou sério e preocupado, e o velho perguntou com um tom
grave: “Existe mesmo um belo lugar atrás dessa montanha, mas o único jeito de chegar lá
é pela encosta mais perigosa do mundo! Você está disposto a arriscar sua vida?”. O turista
coçou a cabeça e, mostrando o mapa da região, disse que não era preciso arriscar a vida, já
que havia uma ponte pelo outro lado da montanha. Ao ouvir isso, o velho se sentiu
falando com uma criança ingênua que acredita em contos de fadas. “Meu rapaz, você
obviamente foi enganado. Eu vivi nessa montanha minha vida toda, e antes de mim
viveram meus pais e meus avós, e eu lhe garanto com absoluta certeza: não existe ponte
alguma, tudo que há é a encosta. Se quiser chegar à fonte de água, precisa enfrentar a
encosta, não há outro caminho nem nunca houve”.
“Eu lhe disse que havia uma ponte”, disse o turista. “Não há ponte alguma”,
retrucou o velho. “Eu sabia que você ia duvidar, por isso tirei uma foto com a minha
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Polaroid. Tome, veja por si mesmo”. O velho olhou por um instante e concluiu: “Poderia
ser qualquer ponte”. O turista perguntou: “Quando foi a última vez que você passou pelo
outro lado da montanha? Me acompanhe para ver a ponte com seus próprios olhos”. Ao
que o velho respondeu: “Nunca fomos pelo outro lado porque nunca houve nada lá.
Nenhuma ponte pode ser construída por lá, sempre soubemos disso. Minha família passou
gerações atravessando a encosta porque jamais houve ponte, e nunca haverá, e por isso
somos os mais habilidosos e corajosos alpinistas. Você é só um turista ingênuo com uma
máquina fotográfica. Não ache que você pode saber mais que eu sobre a montanha. Fui eu
que vivi aqui, não você. Foi a minha família que viveu e morreu aqui, não a sua. Portanto,
saiba qual é o seu lugar e respeite o meu”. E tendo dito isto, o velho pegou a água que
precisava e voltou, pela encosta da morte, e a única coisa que guardou deste encontro foi
que o jovem turista tinha obviamente chegado ali por outros meios, já que logicamente
não poderia ter usado uma ponte que não existe.
Outro erro é confundir todo e qualquer tipo de plantação com o que chamamos de
agricultura. Muitas tribos plantam alimentos, mas não de maneira expansiva, não como
maneira de controlar a produção de comida, mas apenas como uma forma de favorecer o
crescimento de plantas preferidas. Não é verdade que a escassez de comida levou ao fim
do nomadismo. Começamos a nos fixar num só lugar porque encontramos regiões com
comida em abundância. Se houvesse falta de comida, a população morreria antes que a
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primeira colheita fosse feita. Não é verdade que não fazíamos nada. Desenvolvemos
coisas que muita gente se esquece que não nasceram conosco. Na verdade, foi preciso
muitas gerações de criatividade e imaginação para desenvolvê-las. Coisas como nossa
sabedoria ancestral sobre como conviver na natureza.
Será que somos diferentes do resto da natureza? Foi esta a conclusão dos
pensadores de nossa cultura: há uma dicotomia entre homem e natureza. Não me cabe
agora explicar porque isso é absurdo, mas basta dizer que existe uma situação onde é
razoável que uma população se encontre vivendo de forma insustentável. Isto acontece,
obviamente, quando esta população está em processo de extinção. Uma objeção clássica é
que nossa população está crescendo, logo não estamos sendo extintos, mas, pelo contrário,
estamos sendo muito bem sucedidos na natureza. Para mostrar o quanto essa noção é
ingênua eu levaria muitas páginas, mas basta se lembrar da fábrica de carros. A cada mês
ela produz mais carros, mas a cada mês aumenta a porcentagem de carros defeituosos. A
expansão quantitativa é inútil porque ela depende da decadência qualitativa. Uma
população bem adaptada sempre apresenta estabilidade, não crescimento.
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problema fundamental da civilização não for resolvido, todas as nossas soluções apenas
adiarão uma catástrofe inevitável e perpetuarão apenas o sofrimento.
Quando dizemos que o homem se difere dos outros animais, não parece que
estamos falando de uma diferença comum, como todas as espécies têm entre si, mas uma
diferença abismal entre a espécie humana e todas as outras espécies. Esta diferença é a
racionalidade. A idéia de que esta diferença coloca o homem em posição vantajosa em
relação ao resto das espécies implica que a evolução leva as espécies necessariamente
rumo a uma racionalidade cada vez maior. Esta idéia é tradicional, trata-se de ver uma
divisão hierárquica entre minerais, vegetais, animais e homens. Esta classificação é feita
primariamente observando-se um crescente grau de semelhança conosco. Logo, o objetivo
da evolução da vida no planeta era criar seres humanos, que são o ápice da criação, e por
isso não há mais necessidade de evolução natural. O que é preciso agora é outro tipo de
evolução, que aconteça somente no nível da humanidade, rumo à moralidade e a uma
sociedade mais justa: é a evolução cultural. Segundo esse dogma, nossa civilização
domina o mundo porque é racionalmente superior, ela conseguiu esse lugar por virtude
própria. Se há algum problema na sociedade, só pode ser a falta de encaixe das pessoas
nesse modelo perfeito ou então a falta de aplicação do modelo em lugares
“subdesenvolvidos”.
Por exemplo, o problema dos países pobres é que eles não são desenvolvidos o
bastante e o problema dos países ricos é que as pessoas ruins os estragam: os maus
governantes, os assassinos, os vagabundos, os estrangeiros. Em outras palavras, o segredo
da “liberdade” é que todos vivam segundo os mesmos padrões e que não se crie
desigualdade em parte alguma. Mas a desigualdade é a causa das pequenas ilhas de
prosperidade que temos hoje no mundo. Não há, até hoje, desenvolvimento que não
resulte num aumento considerável do consumo, o que leva direta ou indiretamente à
exploração de outras populações e à destruição da diversidade.
As pessoas podem estar acostumadas a ouvir esse tipo de coisa. Tão acostumadas
que deixaram de ouvir o que realmente está sendo dito. Estas citações são tiradas de
enciclopédias: “Passos importantes no crescimento da CULTURA incluem (1)
desenvolvimento de ferramentas, (2) O começo da criação de animais e cultivo de plantas,
(3) o crescimento das cidades, e (4) o desenvolvimento da escrita”. “A CULTURA
HUMANA se DESENVOLVEU em três grandes fases. Essas fases foram baseadas em (1)
sociedades caçadoras coletoras, (2) sociedades agrícolas, e (3) sociedades industriais”.
É claro que negar isso, como de fato nego por motivos já apresentados, não
significa afirmar que a culpa seja externo á humanidade. As pessoas acham que essas
implicações são óbvias porque estão acostumadas a enxergar o problema do ponto de vista
dado a eles pela educação convencional: “O erro só pode estar na natureza imutável das
coisas, porque sempre foi assim desde que o homem é homem. O máximo que podemos
fazer é tentar mudar os indivíduos”.
A sensação de ser naturalmente falho só aparece nos povos afetados por nosso
modo de vida. Esta sensação pode ter origem na idéia de que nosso modo de vida é
perfeito, as pessoas só precisam se adaptar a ele. Em outros modos de vida, por pior que
seja a situação, não há sinais desta sensação. Os missionários tiveram que se esforçar
muito para fazer os indígenas entenderem que estavam vivendo num estado de perdição
natural, que a única solução seria adotar outros costumes. São coisas que estamos não
apenas prontos, mas ansiosos para fazer toda vez que aparece uma novidade “ecológica”
na televisão ou um novo livro de auto-ajuda nos ensinado segredos de como mudar nossa
vida para melhor. O fato de que nos atraímos cada vez mais por essas coisas deveria ser
suficiente para atestar sua ineficiência.
Qualquer um pode afirmar que tudo tem seu fim. Mas o que é preciso para
afirmar que a humanidade ou nossa sociedade representa o fim inevitável do planeta é um
conhecimento muito mais profundo sobre o funcionamento do planeta do que nós temos
sobre o funcionamento do nosso próprio corpo. Afirmar que nós estamos destruindo o
planeta é uma coisa, afirmar que é para isso que nós fomos FEITOS é outra
completamente diferente. Seria muito difícil defender essa afirmação, porque não envolve
nenhum fato. Além disso, o que deveria ser nossa preocupação principal não é a natureza,
ela pode se regenerar. É nossa herança genética que está em perigo. Se nos destruirmos
dessa forma, não sobrará nenhum vestígio de nossa passagem terra, o universo continuará
como se não tivéssemos existido. Para conseguir fazer aquilo que fomos feitos para fazer,
precisamos nos adaptar novamente ao meio.
Tudo que nós compreendemos por religião nos conecta de alguma forma com um
outro mundo, um mundo além deste mundo. Tudo que nós chamamos de religião também
nos coloca numa posição bastante especial em relação aos outros seres vivos deste
planeta. Somos especiais, não simplesmente por sermos melhores, mas ao contrário, por
sermos afligidos por algum tipo de maldição que nos impede de atingir a felicidade agindo
simplesmente de acordo com nossas inclinações naturais. Nossas religiões dizem que não
estamos vivendo bem sendo simplesmente mundanos. Precisamos ascender a um grau
mais alto. Mas será que isto que chamamos de religião é típico de qualquer ser humano?
Os povos que chamamos de esquimós tem uma religião bem diferente. Sua
principal deusa não é bondosa, mas sim muito vingativa. Ela afunda os barcos que saem
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para pescar. Mais estranho ainda: ela não é a deusa criadora, pelo contrário, ela é posterior
aos próprios esquimós. Ela própria era uma esquimó, que saiu para pescar com seu pai. O
pai pegou muitos peixes, mas uma tempestade ameaçou virar o barco por causa do peso, e
isso o obrigou a uma decisão: ou ele jogava os peixes de volta no mar, e toda sua família
morreria de fome, ou ele jogava sua filha. Ele jogou a filha, mas ela se segurou nas bordas
do barco, e ele teve que cortar seus dedos com a faca. Desde então ela persegue os
pescadores, e seus dedos cortados se tornaram as baleias. A coisa que talvez mais se
aproxime de nossos próprios mitos seria a crença de que algumas pessoas se transformam
em aurora boreal depois que morrem. Mas esse privilégio é reservado, por exemplo, aos
suicidas.
Os povos animistas pensam que ninguém precisa ser salvo. Ninguém está num
estado de perdição, todos são seres humanos no melhor sentido da palavra. Não há
necessidade de um outro mundo. É neste mundo que as coisas se desenrolam e é neste
mundo que os espíritos estão, mas os espíritos não são sobrenaturais, apenas sobre-
humanos. Se você acaba com todos os rios você mata o espírito do rio. Se uma pessoa cai
no esquecimento, o seu próprio espírito não existe mais. Não podemos usar o termo
“religião” para o animismo, uma vez que nós inventamos esse termo tendo por base a
salvação. Não havia qualquer conceito de perdição durante 99% de nossa história, e por
conseqüência não havia salvação ou religião. O que nos levou a essa invenção e porque o
salvacionismo prolifera tanto na civilização?
Os povos animistas também concordam que não precisamos receber leis dos
espíritos para saber como nos comportar bem. Sabemos nos virar sozinhos, cada tribo é
responsável por seu comportamento. A civilização precisa de leis universais por um
motivo especial: nós vivemos em amontoados. Perdemos a sabedoria ancestral, que era
diferente para cada pequeno grupo de pessoas. Dependemos do nosso suor para nos
alimentar. Esta é nossa maldição.
Nosso sistema econômico não é prejudicial somente para a população pobre, ele
causa um prejuízo imediato para todos os seres humanos vivendo nele, mesmo que não
seja claramente visível. Um bom exemplo está na relação entre alimentação e medicina.
Poderia ainda supor-se que pelo menos o lucro dos trabalhadores da terra
aumentou. Na realidade o que aconteceu foi o oposto: As dívidas dos agricultores têm
crescido juntamente com o preço do petróleo, e está cada vez mais difícil ganhar dinheiro
cultivando alimentos em pequena escala. Este tipo de trabalho essencial à nossa existência
é o menos seguro de todos os investimentos. Apenas as grandes empresas estão seguras
nesse ramo, mas não sem muita manipulação política.
Assim como os gregos consideravam que qualquer pessoa vivendo fora da polis
não poderia ser muito mais que um selvagem; e os cristãos imaginam que um sujeito que
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discorda da Bíblia não deve ser muito confiável; imaginamos que sem um Estado para dar
e fazer cumprir leis é quase impossível viver em sociedade por muito tempo. A descoberta
de que o homem viveu pelo menos 100 mil anos sem Estado deveria ter colocado isso
abaixo, mas curiosamente ninguém se sentiu compelido a explicar porque o homem
sobreviveu tanto tempo sem um Estado, e ainda assim em comunidade.
Não há dúvida que havia algo que os regulava, mas as diferenças entre o nosso
tipo de lei e os costumes tribais são tantas que não se pode afirmar que uma seja a
continuação da outra. Elas são essencialmente diferentes. Como explicar que hoje
consideremos tão necessário algo que só existe no nosso modo de vida?
Os costumes dos nossos ancestrais não eram sobre punição ou retribuição, eram
sobre restituição. Não se tratava do que pode e o que não pode ser feito, mas sobre o que
fazer quando ocorre uma situação conflituosa, para restabelecer a convivência da maneira
menos danosa. Estes costumes não são formulados através de teorias sobre justiça, são
adquiridas através da experiência com conflitos anteriores, passadas de geração a geração
através da tradição. Cada tradição tem sua maneira particular de lidar com conflitos de
acordo com o que tem se mostrado mais vantajoso para os membros durante as gerações.
Isto é sabedoria prática, uma extensão daquela que utilizamos para resolver problemas de
convivência entre grupos pequenos de amigos ou familiares.
Isto se tornou possível porque o modo de produção havia se tornado tal que os
indivíduos perderam sua importância para o grupo. Num grupo pequeno, cada pessoa faz
diferença para sobrevivência de todos. Um grupo que insistisse em duplicar os prejuízos
ao invés minimizá-los não sobreviveria muito com um modo de vida sustentável. Numa
multidão, é mais fácil matar, prender ou multar os problemáticos do que lidar realmente
com o problema, o que pode causar a banalização do crime, a desconfiança mútua, e uma
série de outros problemas. Entre pessoas que dependem umas das outras é bem mais
difícil encontrar violência, furtos ou qualquer forma de crime.
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Sem tradições em comum para recorrer, as pessoas precisam de um Estado para
determinar o que é certo e o que é errado, e para punir os que erram. Embora as teorias do
Estado e das leis tenham mudando muito, as pessoas ainda não dedicaram tempo
suficiente para reavaliar profundamente os fundamentos do Estado e das leis inventados
há alguns séculos. Ou seja, estes conceitos foram dados por pessoas sabiam muito pouco
sobre o passado humano. Elas não sabiam que havia outros modos de vida durante
milhares de anos, e ainda assim a instabilidade e a efemeridade de organizações primitivas
são as premissas básicas para teorias da formação do Estado.
Basicamente, nos dizem que devemos ser pessoas melhores, mas não é necessário
ter um sistema melhor, só precisamos mudar algumas leis e hábitos. Mesmo quando novas
formas de produção são sugeridas, são planejadas com o mesmo raciocínio que trouxe o
problema. Por que devemos acreditar que dessa vez vão funcionar? Claro que se as
pessoas que tentaram voar tivessem desistido, nunca teriam inventado o avião. Mas isso
porque tentaram várias visões diferentes, e não só vários projetos. Se tivessem insistido
numa visão que contradiz as leis da aerodinâmica, poderiam fazer infinitos projetos, e não
iriam muito longe.
Da mesma forma, ninguém pode dizer que a solução seja simplesmente matar
todos os humanos, ou evoluir, porque nesse caso a pessoa já saberia que o problema é a
própria natureza humana. Esse conhecimento não passa de um dogma, pois não é possível
afirmar nada desse tipo. Por outro lado, consideremos que nosso modo de vida contradiz
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pelo menos uma lei da biodinâmica: a primazia da diversidade. Se há algo que podemos
afirmar com segurança sobre a natureza é que ela promove diversidade em todas as
instâncias. Se há algo que podemos afirmar sobre nosso modo de vida, é que ele promove
a uniformidade.
Como reação, podemos ver uma parcela das pessoas alegando que tudo se
resolverá quando amarmos de verdade a natureza e os animais. É mais fácil, e mais
vantajoso para as empresas, colocar a culpa nas pessoas, e não encarar os motivos
históricos, principalmente quando eles remontam à origem da civilização. As pessoas
consideram que a poluição não passa de um hábito ruim, que veio com a industrialização,
e que pode ser eliminado com alguma educação extra e com tecnologias limpas, sem
mudar em nada o sistema que se baseia nela. Em resumo, acreditam no investimento de
capital, trabalho e ciência, tratando a natureza como mera fornecedora de recursos e
receptora de resíduos.
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Começamos a estabelecer domínio sobre esse planeta muito antes da
industrialização, e para dominar algo precisamos saber como ele funciona. Durante muito
tempo tivemos a crença que era possível saber como a natureza funciona, em seus
mínimos detalhes. Estávamos enganados, mas todo nosso modo de vida está contaminado
com essa idéia. Hoje sabemos que a evolução da natureza é imprevisível, e que não
podemos determinar como deve ou não se organizar a vida no planeta. A natureza jamais
esteve em nossas mãos, a própria tentativa de controlá-la causou os perigos globais que
nós enfrentamos hoje.
Olhando para a história das lutas ambientais, vemos que nos contentamos com
vitórias cada vez menos significativas, enquanto os problemas se tornam cada vez
maiores. Não podemos esperar que novas leis mudem alguma coisa, as leis mais severas
nunca impediram os crimes de continuarem, porque não afetam as causas. Da próxima vez
que ouvir dizer que o futuro depende das novas gerações, lembre-se que quem diz isso
hoje ouviu isso ontem. Estamos vivendo à custa de um futuro com o qual não queremos
lidar, e por isso o jogamos nas mãos das novas gerações, até que um dia não haja mais
tempo para fazer qualquer outra coisa senão tentar sobreviver precariamente num planeta
onde as condições de existência foram reduzidas à quase nada.
Seria muito bom se todos nós fôssemos sempre abertos para analisar uma nova
idéia, e para mudar de idéia caso apareça uma idéia melhor. Mas para saber se uma idéia é
melhor é preciso aceitá-la como possível, pelo menos como um teste. Para compreender
uma idéia é preciso tomá-la para si por certo tempo, para que ela possa ser avaliada como
se fosse sua. É preciso ter aquela idéia para então poder descartá-la, caso seja ruim. Negar
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uma idéia sem colocá-la para funcionar em sua cabeça é como dizer que não gosta de algo
que nunca provou.
Algumas pessoas se apegam facilmente a uma nova idéia por dois motivos: ou
porque no fundo já pensavam desse jeito e só precisavam encontrar alguém que pensasse
da mesma forma, ou porque não estavam contentes com sua idéia anterior e estavam
prontos para se abrir para qualquer coisa diferente. Melhor que isso seria conseguir se
aprofundar numa idéia sem perder a autocrítica. Manter a capacidade de imaginar outros
cenários possíveis, onde outras idéias podem ser melhores que nossas idéias atuais.
De fato, só uma coisa pode fazer novos cenários ganharem espaço na cabeça das
pessoas: O interesse pelo questionamento, em oposição ao fundamentalismo.
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Sites e blogs:
largue.wikispaces.com ervadaninha.sarava.org
celulazero.blogspot.com ativismoabc.guardachuva.org
punkcanibal.zip.net projetociclovida.blogspot.com
excambo.ourproject.org eco-anarquista.org
duplipensar.net editoraderiva.multiply.com
gato-negro.org protopia.wikispaces.com
Outras publicações:
Crenças letais – 20 páginas.
Por uma mudança – 20 páginas.
Criticando a civilização – 20 páginas.
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